Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Sexta Sexta-feira da Quaresma, de Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA SEXTA SEXTA-FEIRA DA QUARESMA PREGADO NA CAPELA REAL, ANO 1661

Collegerunt pontifices et pharisaei concilium[1].

§I

A melhor e a pior coisa que há no mundo é o conselho. Do conselho que julgou a Cristo fará o autor um espelho à corte.

A melhor e a pior coisa que há no mundo, qual será? A melhor e a pior coisa que há no mundo, é o conselho. Se é bom, é o maior bem; se é mau, é o pior mal. A maior maldade que cometeu neste mundo a cegueira e obstinação dos ho­mens foi a morte de Cristo; a maior misericórdia que obrou neste mundo a bondade e piedade de Deus foi a redenção dos homens. E ambas estas coisas tão grandes e tão opostas saíram hoje resolutas de um conselho: Expedit vobis, ut unus moriatur homo, ne lota gens pereat[2]Suposta esta primeira verdade de ser o conselho o maior bem e o maior mal do mundo, ou quando menos a fonte dos maiores bens e dos maiores males, quisera eu hoje que fosse matéria de nosso discurso a consideração dos bens e males que concorreram neste conselho. Este conselho, ou se pode considerar pela parte que teve de político, ou pela parte que devia ter de cristão. Pela parte que teve de político, mostrou alguns ditames acertados; pela parte que devia ter de cristão, cometeu o mais enorme de todos os erros. E porque dos erros e dos acertos, como do aço e do cristal se compõem e formam os espelhos, dos acertos e dos erros deste conselho, determino formar hoje um espelho à nossa corte. Será este espelho de tal maneira político para os cristãos, e de tal modo cristão para os políticos, que se possa ver e compor a ele um conselho, e um conselheiro, e também um aconselhado. Se for muito liso e muito claro, isso é ser espelho.

Collegerunt pontifices et pharisaei concilium.

§II

As quatro partes do conselho do Evangelho.

Quatro partes considero neste conselho do Evangelho, sem as quais ne­nhum conselho pode ser acertado, nem ainda ser conselho. A eleição dos conselhei­ros, a formalidade da proposta, a conveniência dos pareceres e a eficácia da execu­ção. A primeira contém os princípios do conselho, a segunda o modo, a terceira os meios, a quarta o fim. Sem a primeira, será o conselho imprudente, sem a segunda, confuso, sem a terceira, danoso, sem a última, ocioso e inútil. Comecemos pela primeira.

§ III

Primeira boa propriedade do conselho do Evangelho: a matéria sobre que se havia de votar era da profissão dos conselheiros. A causa de andar tão mal-aconse­lhado o mundo é porque de ordinário os príncipes trazem desencontrados os conse­lhos e os conselheiros. Voto dos fariseus. O conselho de Deus contra el-rei Acab, e o voto do demônio. Em que consiste a gentileza do voto? O que se há de respeitar no voto? Por que votou melhor o demônio que os anjos?

A primeira boa propriedade que teve este conselho do Evangelho foi que a matéria, sobre que se havia de votar, era da profissão dos conselheiros. A matéria era de religião, e eles eram sacerdotes; a matéria era de fé, e eles eram teólogos; a matéria era do Messias prometido pelos profetas, e eles eram doutos nas Escrituras; enfim, a matéria era de letras, e eles eram letrados. A causa de se governar tão mal omundo, e de andar tão mal-aconselhado havendo tantos conselhos, é porque de ordi­nário os príncipes baralham os metais, e trazem desencontrados os conselhos e os conselheiros. Se o soldado votar nas letras, e o letrado na navegação, e o piloto nas armas, que conselho há de haver, nem que sucesso? Haverá letrados, e não se verá justiça; haverá pilotos, e não se fará viagem; haverá soldados e exércitos, e levarão a vitória os inimigos, Vote cada um no que professa, e logo nos conselhos haverá conselho. Nos casos da religião vote Samuel e Heli; nos negócios da guerra vote Joab e Abner; nas importâncias do Estado vote Cusai e Aquitofel, e nas ocorrências da navegação e do mar — ainda que não tenham nomes tão pomposos — vote Pedro e André. Indigna coisa parece, e ainda escandalosa, que os fariseus entrem no mesmo conselho com os Pontífices: Collegerunt pontifices et pharisaei concilium. Também o fariseu há de ter lugar no conselho? Também o fariseu há de dizer seu parecer? Também o fariseu há de dar seu voto? Também: se a matéria for da sua profissão. Ainda que o nome de fariseu naquele tempo fora tão vil e tão malsoante como é hoje, nem por isso se havia de excluir do conselho nas matérias da sua profissão, porque o bom conselho e o bom conselheiro, não o faz o nome nem a qualidade da pessoa, senão a do voto. E por que vos não pareça esta doutrina de tão má escola, como a do nosso Evangelho, vede tudo o que tenha dito no conselho de um príncipe melhor que os melhores pontífices, e no voto de um conselheiro pior que os piores fariseus.

Viu o profeta Miquéias a Deus em conselho, assentado em um trono de grande majestade. — Conta o caso o mesmo profeta no Terceiro Livro dos Reis, cap. 22 — Assistiam a Deus, de uma e outra parte do conselho, todas as grandes personagens das três jerarquias: os Tronos, as Potestades, as Dominações, Querubins, Serafins, etc. E diz o profeta, que também veio o diabo a achar-se no conselho. Se num conselho do céu, onde o presidente é Deus e os conselheiros anjos, entra um diabo, nos conselhos da terra, onde os que presidem e os que aconselham são homens, e talvez homens de muita carne e sangue, quantos diabos entrarão? Fez Deus a proposta ao conselho em voz, e disse assim: Pelas injustiças de Acab, rei de Israel, e pelas da rainha Jezabel, sua mulher, assim as que eles cometem, como as que consentem no reino, tenho resoluto de lhes tirar a vida e a coroa. E porque o estilo de minha justiça e providência é castigar os reis, permitindo que sejam enganados para que sigam os caminhos de sua ruína, cui­dando que são os meios de sua conservação, quisera ouvir do meu conselho, que modo haverá para que seja enganado el-rei Acab, e para que empreenda a guerra de Ramot e acabe nela? E também me diga o conselho a que pessoa, ou pessoas, será bem encarre­gar esta empresa? Quis decipiet Acab regem Israel, ut ascendat, et cadat in Ramoth [3]?

Ouvida a proposta de Deus, foram respondendo os anjos como lhes ca­bia, e diz o texto que uns diziam de um modo e outros de outro: Unus verba hujus­modi, et alius aliter (3 Rs. 22, 20), porque até entre os anjos pode haver variedade de opiniões, sem menoscabo de sua sabedoria nem de sua santidade, e para que acabe de entender o mundo, que, ainda que algumas opiniões sejam angélicas, nem por isso são menos angélicas as contrárias.

No último lugar falou o demônio, e falou breve, resumido, substancial e resolu­to: Ego decipiam illum; egrediar, et ero spiritus mendax in ore omnium prophetarum ejus[4]Suposto, Senhor, que V. Majestade divina tem resoluto, ou permitido, que seja enganado Acab para ser destruído, o meio mais a propósito para se enganar é que lhe mintam todos seus conselheiros, que são os profetas a quem ele consulta, e a pessoa que sem dúvida os fará mentir a todos — diz o demônio — serei eu, porque me transfor­marei em espírito de mentira, e me meterei nas suas línguas. — Até aqui o diabo. Ouvi agora, e pasmai. Não tinha bem acabado de dizer o demônio, quando Deus se confor­mou inteiramente com o seu voto, e não só lhe cometeu a empresa, mas segurou a todos o sucesso dela: Decipies, et praevalebis: egredere, et fac ita[5]Ainda me estou benzen­do, depois que isto li. Quem tal coisa crera, se a não afirmara Miquéias, como testemu­nha de vista? É possível que no seu conselho sacratíssimo e secretíssimo, há Deus de admitir o demônio? E é possível que não só o há de admitir e ouvir, senão que há de aprovar o seu voto, e se há de confirmar só com ele, deixando o parecer de tantos anjos e de tantos príncipes do céu? Sim. Porque a prudência e obrigação do Senhor supremo não é tomar o conselho dos melhores, senão o conselho melhor; não é seguir as razões dos grandes, senão as grandes razões; não é formar os votos, senão pesá-los. E porque o demônio, neste caso, votou melhor que os anjos, por isso se não conforma Deus com o parecer dos anjos, senão com o voto do demônio.

Os anjos, com serem anjos, votaram uns assim, outros assim, como diz o texto; mas o demônio, vede que gentilmente votou. A gentileza de um voto consiste em duas proporções: em proporcionar o meio com o fim, e em proporcionar o instrumento com o meio, e tudo fez o demônio escolhidamente. Proporcionou o meio com o fim, porque o fim do conselho era que Acab fosse enganado; e para ser enganado Acab, não havia meio mais a propósito que mentirem-lhe todos os seus conselheiros. Proporcionou também o instrumento com o meio, porque, para os conselheiros todos mentirem, não havia instrumento mais sutil e acomodado que o mesmo espírito da mentira metido nas línguas de todos. E sendo o voto do demônio tão medido com a proposta, sendo tão ajustado com o fim, sendo tão proporcionado nos meios, por que o não havia de aprovar Deus, e por que o não havia de antepor ao de todas as jerarquias? Olhar para a jerarquia de quem votou é querer venerar os votos, mas não acertá-los. Na eleição do voto, nem se há de respeitar a dignidade da pessoa — que por isso Deus se não conformou com os Tronos — nem se há de respeitar a nobreza — que por isso se não conformou com os Principados — nem se hão de respeitar os títulos — que por isso se não conformou com as Dominações — nem se há de respeitar o poder — que por isso se não conformou com as Potestades — nem sé há de respeitar o amor — que por isso se não conformou com os Serafins — nem se há de respeitar a ciência — que por isso se não conformou com os Querubins — nem se há de respeitar a santidade — que por isso se não conformou com as Virtudes. — Finalmente, não se há de respeitar qualidade alguma, por angélica, e mais angélica que seja — que por isso se não conformou com anjos, nem com arcanjos. Pois, que se há de respeitar no voto, e por onde se há de avaliar? Há-se de avaliar o voto pelos merecimentos do mesmo voto, e nada mais. Ainda que a pessoa que votou seja o sujeito mais vil do mundo, qual era o demônio, e ainda que seja a que está mais fora da graça do príncipe, como o demônio estava, se o seu voto for o melhor, há de preferir o seu voto.

O principal nos falta por advertir. Conformou-se Deus com o voto do demônio, e não com os dos anjos, porque o demônio votou melhor. Bem está. Mas, por que votou melhor o demônio que os anjos? Por que tem mais sabedoria que eles? Não. Por que tem mais delgado entendimento? Não. Por que ama mais a Deus, e zela mais seu serviço? Não. Por que deseja mais dar-lhe gosto, e fazer, e adivinhar-lhe a vontade? Não. Pois por que vota melhor um demônio neste conselho, que todos os anjos juntos? Porque a proposta e a matéria do conselho eram da profissão do demônio, e não era da profissão dos anjos. A proposta e a matéria do conselhoera enganar a Acab e fazê-lo cair: Quis decipiet Acab, ut cadat? E como a profissão própria do demônio é enganar e fazer cair aos homens, por isso votou melhor e mais acertadamente que todos. Se a proposta fora como se havia de guardar Acab, e como se havia de guiar e encaminhar para que se defendesse e se livrasse dos perigos daquela guerra, então venceria infalivelmente o voto dos anjos, porque essa é sua profissão: guardar, guiar, encaminhar, livrar e defender aos homens. Mas como o negócio era tão alheio da profissão e ofício dos anjos, e tão próprio da profissão e exercício do demônio, por isso o demônio votou melhor que todos os anjos. Tanto importa que vote cada um no que exercita, e que aconselhe no que professa. E seria grande desgraça, que se não observasse esta máxima em conselhos cristãos e católi­cos, quando vemos que se fez hoje assim em um conselho de inimigos de Cristo: Collegerunt pontifices et pharisaei concilium adversus Jesus (Jo. 11, 47).

§ IV

Segunda boa propriedade do conselho do Evangelho: o modo da proposta. Os conselheiros de que havemos de fazer, e os conselheiros de quid facimus? De quem fugiu Cristo quando o quiseram fazer rei? O primeiro conselho que houve no mundo: o da Torre de Babel.

A segunda boa propriedade, e excelentemente boa que teve este conse­lho, foi o modo da proposta: Quid facimus, quia hic homo multa signa facit: Que fazemos, que este homem faz muitos milagres. — Não sei se reparais no que dizem e no que não dizem. Não dizem: que havemos de fazer, senão: que fazemos? Ah! que grande conselho, e que grandes conselheiros! Conselheiros de que havemos de fazer não são conselheiros. Os conselheiros hão de ser homens de quid facimus: que faze­mos? E vede que discretamente inferiram é contrapesaram a proposta. Eles eram inimigos de Cristo, e tinham a Cristo por inimigo, e diziam: Quid facimus, quia hic homo multa signa facit[6]Notai o facit, e o quid facimus. Basta que nosso inimigo faz, e nós não fizemos? Nosso inimigo faz, e nós havemos de fazer? Nosso inimigo faz milagres, e nós não fazemos o que se pode fazer sem milagre? Já que ele faz,

façamos nós: Quid facimus? Que fazemos? A razão por que se perdeu tanta parte daquela tão honrada monarquia da Ásia, ganhada com tão ilustre sangue, qual foi? Porque o inimigo fazia, e nós havíamos de fazer. Não vamos tão longe. Enquanto Portugal teve homens de havemos de fazer — que sempre os teve — não tivemos liberdade, não tivemos reino, não tivemos coroa. Mas tanto que tivemos homens de quid facimus, logo tivemos tudo.

Quando Cristo fez aquele famoso milagre dos cinco pães no deserto, quiseram-no aclamar por rei, mas não o consentiu o Senhor. Quando entrou por Jerusalém, aclamaram-no por rei — Benedictus qui venit in nomine Domini, Rex Israel[7]  e não só o consentiu e aprovou, mas louvou e defendeu os que o aclama­ram. Pois se Cristo admitiu o título de rei na corte, onde era mais arriscado, por que o não admitiu no deserto, onde não havia risco? Sabeis por quê? Porque quis aceitar o título de rei da mão de homens que o fizeram, e não da mão de homens que o haviam de fazer. Notai o que diz o texto: Jesus autem cum cognovisset guia venturi erant ut raperent eum, et facerent eum regem, fugit (Jo. 6, 15): Vendo o Senhor que aqueles homens haviam de vir, e o haviam de arrebatar, e o haviam de fazer rei, fugiu. — E vós sois-me homens de que haviam, e mais que haviam, e outra vez que haviam? Eis aqui por que Cristo não quis ser aclamado rei por tais homens. Aceitou o título dos homens que o fizeram, e não dos homens que o haviam de fazer, porque homens de havemos de fazer, não são homens, quanto mais homens que houvessem de fazer um rei, e sustentá-lo. O texto diz que fugiu para o monte, mas não diz de que fugiu. E isso é o que eu pergunto: de que fugiu Cristo nesta ocasião? Dizem comu­mente que fugiu da coroa, mas eu digo que, se fugiu da coroa, fugiu muito mais dos homens, porque não há coisa de que um rei mais haja de fugir, que de homens de havemos de fazer. Se eles foram de quid facimus, bem me rio eu, que lhes fugira Cristo. E se lhes fugisse, haviam-no de prender, porque se depois o prenderam para lhe pôr uma coroa de espinhos, por que o não prenderiam para lhe porem uma coroa de ouro? Mas como eram homens de que havemos de fazer, nenhuma coisa fizeram: parou o seu conselho em nada.

O primeiro conselho que houve no mundo foi o da Torre de Babel. Re­solveram os homens em uma junta de todos quantos então havia, que, para eterna memória de seu nome, fabricassem uma torre cujas ameias subissem até entestar com as estrelas: Cujus cumen pertingat ad caelum (Gên. 11, 4). Não se pode crer o grande abalo que fez no céu este conselho. Mandou Deus tocar a rebate, e assistido logo de todos os exércitos dos anjos, a fala que lhes fez foi esta: Caeperunt hoc facere, nec desistent a cogitationibus suis, donec eas opere compleant (Ibid. 6): Estes homens resolveram em conselho de fazer uma torre que chegue até o céu, e não hão de desistir do seu pensamento, até o levarem ao cabo: Descendamus igitur, et confundamus linguas eorum: O que importa é que desçamos logo à terra, e que lhes confundamos as línguas, para que não vão por diante com seu intento. — Com o seu intento, Senhor? E que importam, ou que podem importar os intentos dos ho­mens contra o céu? Pois se o céu e os anjos, e muito mais Deus, estão tão seguros de todo o poder dos homens, se todas as máquinas de seus pensamentos e de suas mãos contra o céu, mais são desvanecimentos que conselhos, de que se altera o Empíreo, de que se receiam os anjos, de que se acautela Deus com tanto cuidado, com tanta prevenção, com tanto estrondo? Mais: se a fábrica imensa daquela intentada torre, quando menos pela distância infinita que vai da terra ao céu, não só era temerária, senão impossível, como afirma constantemente o mesmo Deus que não hão de de­sistir os homens da obra, até a levarem ao cabo? Eu o direi, e o mesmo texto o diz.

Aqueles homens, para tudo o que intentaram e resolveram, não fizeram mais que dois conselhos: um dos meios, outro do fim. No primeiro conselho disseram: Venite, faciamus lateres: eia, façamos tijolos; no segundo conselho disseram: Venite, faciamus turrim: eia, façamos a torre. E homens que em todos os seus conselhos não dizem faremos nem havemos de fazer, senão façamos: Faciamus lateres, faciamus turrim, estes homens, ainda que intentem o maior impossível, hão de levá-lo ao cabo. Homens que fazem os conselhos fazendo, homens que as suas resoluções são de pedra e cal, e que quando haviam de parecer conselhos, aparecem muralhas, guarde-se o mundo, guarde-se o céu, guardem-se os anjos, e — se é lícito dizê-lo assim — guarde-se o mesmo Deus de tais homens. Não é o encarecimento meu, senão do mesmo Deus, o qual por isso se não dilatou um momento em acudir ao caso, nem se contentou com mandar, senão que desceu em pessoa, e não só, senão acompanhado de todos os seus exércitos: Descendamus. Tal foi o conselho que hoje fizeram estes conselheiros, e tais foram também os efeitos dele. Tanto que Cristo viu o que se tinha proposto e resoluto neste conselho, que fez? Diz o evangelista que o Senhor se retirou logo de Jerusalém, e se passou escondidamente para a cidade de Efrém, e se meteu num deserto: Jesus ergo jam non palam ambulabat apud judaeos, sed abiit in regionem juxta desertum in civitatem, quae dicitur Ephrem (Jo. 11, 54). E retira-se Cristo? Esconde-se Cristo? Desaparece Cristo? Sim. Porque homens que nas suas propostas e nos seus conselhos não dizem que havemos de fazer, senão quid facimus, até a Deus metem cuidado, até a Deus põem receios, até Deus não está seguro de tais homens e de tais conselhos: Non palam ambulabat, abiit in regionem juxta desertum [8] .

§V

A terceira propriedade boa do conselho do Evangelho: a eficácia e presteza da execução. O princípio dos negócios é a execução. O conselho das mãos. Os entendimentos das mãos. Davi e seu grande conselheiro Aquitofel.

Pedia agora a ordem do conselho que depois da proposta se seguissem os pareceres e a resolução. Mas, para maior clareza do discurso, fique esta terceira parte para o fim, e passemos à última. A última propriedade boa, e melhor que todas deste conselho, foi a eficácia e presteza da execução: Ab illa autem die, cogitaverunt eum interficere[9] . O texto grego diz: Ab illa autem hora. No mesmo dia, e na mesma hora do conselho se começou a pôr o conselho em execução com todo o cuidado. A proposta do conselho foi: Quid facimus? Que fazemos? E o fim do conselho na mesma hora foi fazer o que se resolveu que se fizesse. Cuidam os ministros que, feitos os'conselhos, feitas as consultas, feitos os decretos, está feito tudo, e ainda se não começou a fazer nada. O princípio dos negócios é a execução: enquanto se não dão à execução, não se lhe tem dado princípio. In principio creavit Deus caelum et terram, são as primeiras palavras dá Escritura: No prin­cípio, criou Deus o céu e a terra. Pergunto: antes de Deus criar o céu e a terra, a criação do mesmo céu e da mesma terra não estava decretada ab aeterno no conselho de sua sabedo­ria? Sim, estava. Pois então é que se deu princípio à criação do céu e da terra? De nenhum modo, diz o texto: In principio creavit Deus caelum et terram. Quando Deus criou o céu e a terra, então é que lhes deu princípio, porque, enquanto os conselhos se não dão à execução, por mais conselhos e por mais decretos que haja, ainda se não tem dado princí­pio a nada. Que importa que haja conselhos e mais conselhos, que importa que haja decretos e mais decretos, se entre os decretos e a execução se passa uma eternidade? Os decretos serão divinos e diviníssimos, como eram os de Deus, mas todas essas divindades decretadas sem execução, que vêm a ser? O que era o céu e a terra antes da criação do mundo? Nada. Antes da criação do mundo estava decretado o céu, estava decretada a terra, estavam decretados os elementos, e tudo quanto Deus criou; tudo estava decretado e assentado em conselho. Mas todas estas coisas decretadas, que eram? O céu era nada, a terra outro nada, os quatro elementos quatro nadas, e toda essa infinidade de coisas uma infinidade de nadas. Que importa a sentença no conselho da justiça, se se não executa a sentença? Que importa o arbítrio no conselho da Fazenda, se se não executa o arbítrio? Que importa a prevenção no conselho da Guerra, se se não executa a prevenção? Que importam os mistérios no conselho do Estado, se se não executam os mistérios? O misté­rio altíssimo e diviníssimo da Encarnação estava decretado havia uma eternidade, e estava revelado havia quatro mil anos: e que era este mistério antes da execução? Nada.

Pois que remédio para que estes nadas sejam alguma coisa e sejam tudo? O remédio é criar um conselho de novo. Ainda mais conselhos? Bem aviados estamos. E que conselho há de ser este? E como se há de chamar? Salomão, cujo é o arbítrio, lhe deu também o nome: Consilium manuum (Prov. 31, 13): um conselho de mãos. Este é o conselho dos conselhos. Todos os outros conselhos, sem este, são conselho sem conselho. Os conselhos do entendimento discorrem, altercam, disputam, consultam, resolvem, de­cretam, e até aqui nada. O conselho das mãos é o que faz as coisas. O mesmo texto o diz: Operata est consilio manuum suarum[10]Os outros conselhos especulam; este conselho obra. Mas, com licença de Salomão, se este chamado conselho é de mãos parece que se não havia de chamar conselho, porque o conselho é ato de entendimento, e as mãos não têm entendimento. Antes só as mãos têm o entendimento que é necessário. A cabeça tem entendimento especulativo, as mãos têm entendimento prático, e este é só o entendimento que faz as coisas. Assim o disse um rei, que tinha muito bom entendimento e muito boas mãos, Davi: In intellectibus manuum suarum deduxit eos[11]Fala Davi das felicidades daquela mesma república em cujo conselho estamos, e conclui que em todas as ocasiões  em que tiveram felizes sucessos, os governou Deus, e eles se governaram com os entendi­mentos de suas mãos: In intellectibus manuum suarum. E notai que não diz com o enten­dimento de suas mãos, senão com os entendimentos: In intellectibus manuum suarum. A cabeça, que é uma, tem entendimento; as mãos, que são duas, têm entendimentos: In intellectibus. Aqui está um entendimento, e aqui outro: um na mão direita, outro na es­querda, e se estes dois entendimentos se dão as mãos, tudo se consegue. Os mais felizes reinos não são aqueles que têm as mais bem entendidas cabeças, senão aqueles que têm as mais bem entendidas mãos. Dos entendimentos das mãos é que se fazem os prudentes conselhos, ou quando menos nos entendimentos das mãos é que se qualificam de pruden­tes, porque os conselhos prudentes, que não passam do entendimento às mãos, fazem-se de prudentes néscios.

Rebelou-se Absalão contra el-rei Davi. Seguiu a voz de Absalão todo o reino, cujas vontades ele tinha ganhado: Toto corde universus Israel sequitur Absalam[12]Chegou a nova ao rei nestes mesmos termos, e como nos grandes casos se vêem os grandes corações, acomodou-se Davi à fortuna do tempo, e retirou-se com os capi­tães de sua guarda, que só o acompanhavam. Tinha já caminhado um bom espaço do Monte Olivete, quando recebeu segundo aviso, que também Aquitofel, seu grande conselheiro, seguia as partes de Absalão, e aqui foi que o coração do rei sentiu os primeiros abalos. Pôs-se de joelhos, levantou as mãos ao céu, e disse a Deus: Infatua, quaeso, Domine, consilium Achitofel (2 Rs. 15, 31): Peço-vos, Senhor, que enfatueis o conselho de Aquitofel. — Nunca nossa língua me pareceu pobre de palavras, senão neste texto. Enfatuar significa fazer imprudente, fazer ignorante, fazer néscio, e ainda significa mais; e tudo isto pedia Davi que fizesse Deus ao conselho de Aquitofel. Vede o que pesava no juízo daquele grão-rei, e o que deve pesar no de todos um grande conselheiro? Quando disseram a Davi que todo o reino unido seguia a Absalão, não fez oração a Deus para que o livrasse de suas armas; quando lhe disseram que também Aquitofel o seguia, fez oração apertada, para que o livrasse de seus conselhos. Mais temeu Davi a testa de um só homem, que os braços de infinitos homens. Bem tinha já experimentado o mesmo Davi na pedrada do gigante, que importa pouco que o corpo e os braços estejam armados, se a testa está fraca. Houve-se Davi neste caso contra Absalão, como já se houvera contra Golias. O tiro da sua oração não o apontou contra o reino, que era o corpo armado, senão contra Aquitofel, que era a testa. Um grande conselheiro no conselho do rei há de ser a sua maior estimação, e no conselho do inimigo há de ser o seu maior temor.

Vamos agora ao sucesso, em que a Escritura diz duas coisas notáveis, e que parecem totalmente encontradas. A primeira, que Deus ouviu a oração de Davi contra o conselho de Aquitofel; a segunda, que Aquitofel aconselhou a Absalão prudentemente o que lhe convinha: Domini autem nutu dissipatum est consilium Achitofel utile[13]. Pois se Aquitofel aconselhou útil e prudentemente a Absalão, como ouviu Deus a oração de Davi? A oração de Davi pediu a Deus que enfatuasse o conselho de Aquitofel; mas se o conselho de Aquitofel foi prudente e útil, como enfatuou Deus o seu conselho? Quereis saber como o enfatuou, lede por diante o texto. Ainda que a Escritura diz que o conselho de Aquitofel foi prudente, diz tam­bém que Absalão o não executou, e este foi o modo com que Deus enfatuou aquele conselho, porque conselhos prudentes, sem execução, não são prudentes, são fá­tuos. De dois modos podia Deus enfatuar o conselho de Aquitofel: ou no entendi­mento do mesmo Aquitofel, fazendo que Aquitofel votasse mal, ou nas mãos de Absalão, fazendo que, ainda que o conselho fosse bom, Absalão o não executasse. E Deus, para totalmente enfatuar o conselho de Aquitofel, como Davi lhe tinha pedi­do, escolheu este segundo modo, porque o conselho que se não acerta com o enten­dimento é conselho errado; mas o conselho, que depois de acertado não se executa, não só é errado, é fátuo. Errar um conselho é coisa que cabe em homens prudentes; mas acertá-lo e perdê-lo por falta de execução, só em homens fátuos se pode achar. Oh! quantos reinos se perdem, por conselhos prudentes enfatuados! Vejam lá os príncipes se são enfatuados nos entendimentos dos Aquitoféis, ou nas mãos dos Absalões. Por isso eu desejara um conselho de mãos, e por isso, sendo tão mau, teve esta parte de bom o conselho do nosso Evangelho. Começou estranhando o que se não fazia: Quid facimus? E acabou começando o que se havia de fazer: Ab illa autem die, ab illa autem hora cogitaverunt eum interficere.

Mas eu não acabo de entender como isto podia ser logo, no mesmo dia e na mesma hora em que se fez o conselho. Quando se lançaram os votos? Quando se escreveu a consulta? Quando se assinou? Quando subiu? Quando se resolveu?

Quando baixou? Quando se fizeram os despachos? Quando se registraram? Quando tor­naram a subir? Quando se firmaram? Quando tornaram a baixar? Quando se passa­ram as ordens? Quando se distribuíram? Tudo isto não se podia fazerem uma hora, nem em um dia, nem ainda em muitos. Se fora no nosso tempo e na nossa terra, assim havia de ser, mas tudo se fez, e tudo se pôde fazer. Por quê? Porque não houve tinta nem papel neste conselho.

§VI

Quarta e última propriedade boa do conselho do Evangelho: ser um conse­lho em que não apareceu papel nem tinta. Qual é mais antigo no mundo: os conse­lhos ou o papel? O escrever, remédio dos ausentes e dos mudos. Na execução de Cristo, só quatro palavras se escreveram, que foram as do título da cruz, e logo houve sobre elas requerimentos e altercações. O papel, matéria de escrever e inven­ção de esfolar.

Esta é a quarta e última propriedade boa que nele considero: ser um conselho em que não apareceu papel nem tinta. Dias há que tenho para mim que a tinta e o papel são duas peças, ou escusadas, ou quase escusadas em um conselho. E porque isto parece querer condenar o mundo, não hei de argumentar ao mundo, senão consigo mesmo. Qual é mais antigo no mundo: o conselho ou o papel? Pois assim como naquele tempo faziam os conselhos sem papel, por que se não puderam fazer agora? Dir-me-eis que estava ainda o mundo pouco polido, e pouco político. Mais político que agora. A primeira nação ou a primeira língua que soube ler e escrever foi a dos hebreus. Primeiro se governaram por famílias, depois em repúbli­ca, depois em monarquia, ultimamente em reinos e em todos estes estados não acha­reis tinta nem papel em seus conselhos. Chamava o príncipe diante de si os de seu conselho, propunha a matéria, ouvia os pareceres, resolvia o que se havia de fazer, nomeava a pessoa que o havia de executar, e acabava-se o conselho. Não era bom estilo este, senhor mundo? Agora estareis mais empapelado, mas nem por isso mais bem aconselhado. É verdade que junto às pessoas reais havia naquele tempo dois oficiais de pena. E quais eram? Um historiador e um secretário. Tira-se do II Livro dos Reis, capítulo 8 (2 Rs. 8, 17), onde se referem os oficiais de que se compunha acasa real, e se nomeia entre eles Josafá, a comentariis, e Saraias, scriba. E por que eram o historiador e o secretário os dois ofícios de pena? Discretissimamente o ordenaram assim, porque o escrever foi inventado para remédio da ausência e da memória. O secretário escrevia as cartas para os ausentes, e o historiador escrevia as memórias para os futuros. Por isso geralmente nas Histórias Sagradas só achamos livros e epístolas: os livros para os vindouros, as epístolas para os ausentes. Também o escrever se fez para remédio dos mudos, como aconteceu a Zacarias, pai do Batis­ta, que, sendo consultado sobre o nome do filho, e não tendo língua para o declarar, pediu a pena. Se os conselheiros foram mudos, e os reis surdos, então era necessário o papel; mas se os conselheiros falam, e os reis ouvem, para que são tantos papéis? Não é melhor ouvir um conselheiro que fala e responde, que ler um papel mudo, que não sabe responder? E quantos conselheiros houveram de dizer, de palavra, o que se não atrevem a dizer e firmar por escrito? Entre a boca do consultado e o ouvido do rei passa a verdade com segurança, e nem todos têm liberdade e constância para fiar o seu voto das riscas e dos riscos de um papel. Não falo em que a tinta, com ser preta, pode tingir o papel de muitas cores, e a pena, de qualquer ave que seja, toda nasceu de carne e sangue.

Introduzir papel e tinta — ao menos tanto papel, e tanta tinta — nos conse­lhos e nos tribunais, foi traça de fazer o tempo curto, e os requerimentos largos, e de se acabar primeiro a paciência e a vida, que os negócios. O maior exemplo que há desta experiência em todas as histórias é a da execução deste mesmo conselho em que estamos: Ah illa autem die cogitaverunt eum interficere. A execução deste con­selho foi a morte de Cristo, e é coisa, que parece excede toda a fé — se o não disseram os evangelistas — considerar o muito que se fez, e o pouco tempo que se gastou nesta execução. Foi Cristo preso às doze da noite, e crucificado às doze do dia. E que se fez, ou que se não fez nestas doze horas? Foi levado o Senhor a quatro tribunais mui distantes, e a um deles duas vezes; ajuntaram-se e fizeram-se dois conselhos; pre­sentaram-se em duas partes as acusações; tiraram-se três inquirições de testemu­nhas; expediu-se a causa incidente, e perdão de Barrabás; deram-se dois libelos contra Cristo; fizeram-se arrazoados por parte do réu e por parte dos autores; alega­ram-se leis; deram-se vistas; houve réplicas e tréplicas; representaram-se duas co­médias: uma de Cristo profeta, com os olhos tapados, outra de Cristo rei, com cetro e coroa; foi três vezes despido, e três vestido; cinco vezes perguntado e examinado; duas vezes sentenciado; duas mostrado ao povo; ferido e afrontado tantas vezes com as mãos, tantas com a cana, cinco mil e tantas com os açoites; preveniram-se lanças, espadas, fachos, lanternas, cordas, colunas, azorragues, varas, cadeias, uma roupa branca, outra de púrpura, canas, espinhos, cruz, cravos, fel, vinagre, mina, esponja, título com letras hebraicas, gregas e latinas, não escritas, senão entalhadas, como se mostram hoje em Roma, ladrões, que acompanhassem ao Senhor; cruzes para os mesmos ladrões, Cerineu que o ajudasse a levar a sua: pregou Cristo três vezes, uma a Caifás, outra a Pilatos, outra às filhas de Jerusalém.

Finalmente caindo e levantando foi levado ao Calvário, e crucificado nele. E que tudo isto se obrasse em doze horas? E que ainda dessas doze horas sobejassem três para descanso dos ministros, que foram as últimas da madrugada? Grave caso! E como foi possível que todas estas coisas, tantas, tão diversas, e de tantas dependências, se obrassem e se pudessem obrar na brevidade de tão poucas horas, e mais sendo a metade delas de noite? Tudo foi possível e tudo se fez, porque em todos estes conselhos, em todos estes tribunais, em todas estas resoluções e execuções não entrou papel nem tinta. Se tudo isto se houvera de fazer com as tardanças, com as dilações, com os vagares, com as cerimônias que envolve qual­quer papel, ainda hoje o gênero humano não estava remido. Só quatro palavras se escreveram na morte de Cristo, que foram as do título da cruz, e logo houve sobre elas embargos, e requerimentos, e altercações, e teimas, e descontentamentos. E se Pilatos não dissera resolutamente que se não havia de escrever mais: Quod scripsi, scripsi[14]o caso era de apelação para César, que estava em Roma, dali a quinhentas léguas, e demanda havia na meia regra para muitos anos.

Até Cristo teve a sua conveniência em não haver papel e tinta na sua execução, porque ao menos não pagou custas. É possível que não há de haver justi­ça, nem inocência, nem prêmio, que escape do castigo do papel? Chamei-lhe casti­go, por lhe não chamar roubo. Mas que papel há que não seja ladrão marcado? Tirou-me o escrúpulo de o cuidar assim uma só história de papel, ou de papéis, que se acha no Evangelho. Conta S. Lucas que certo senhor rico, tendo entregue a sua fazenda a um mordomo, por alguns rumores que lhe chegaram, de que não era limpo de mãos, lhe tirou de repente o ofício. Ouvindo o criado que lhe tiravam o ofício, toma muito depressa os papéis, vai-se ter com os que deviam ao amo, e que fez com eles? Ao que devia cem cântaros de azeite, fazia-lhe escrever oitenta: Scribe octo­ginta; ao que devia cem fânegas de pão, dizia-lhe que escrevesse cinqüenta: Scribe quinquaginta (Lc. 16, 6 s). Pois esta é a fé dos papéis tão acreditada? Para isto servem os papéis? Para isto servem: para de cem cântaros fazer oitenta cântaros; para de cem fânegas fazer cinqüenta fânegas. Vede se merecia o criado as marcas do papel? Mas se não houvera papéis, não tiveram tais ocasiões os criados.

Terrível flagelo do mundo foi sempre o papel, mas hoje mais cruel que nunca. A origem e o nome do papel foi tomado das cascas das árvores, que em latim se chamam papyrus, porque aquelas cascas foram o primeiro papel em que os ho­mens escreviam ao princípio; depois deram em curtir as peles, e se facilitou mais a escritura com o uso dos pergaminhos. Ultimamente se inventou a praga do papel, de que hoje usamos. De maneira que, se bem advertimos, foi o papel, desde seus prin­cípios, matéria de escrever e invenção de esfolar. Com o primeiro papel esfolavam-se as árvores, com o segundo esfolavam-se os animais, com o de hoje esfolam-se os homens. Oh! quanto papel se pudera encadernar com as peles que o mesmo papel tem despido! Mas em nenhuma parte tanto como em Portugal, porque em nenhuma se gasta tanto papel ou se gasta tanto em papéis. Estes socorros que damos a Veneza, não seria melhor dá-los antes em dinheiro contra o turco em Cândia, que dá-los por papel contra nós? O mais bem achado tributo que inventou a necessidade ou a cobi­ça, é para mim o do papel selado. Mas faltou-lhe uma condição: o selo; não o haviam de pagar as partes, senão os ministros. Se os ministros pagaram o selo, eu vos prometo que havia de correr menos o papel e que haviam de voar mais os negó­cios. Mas ainda voariam mais, se não houvesse penas nem papel. E por isso voaram tanto as resoluções deste conselho: Ab illa autem hora.

§ VII

Que se poderia esperar de um conselho contra Cristo? Perderam-se todos, porque mataram aquele homem. Castigos de Deus à República Hebréia. As três resoluções do conselho para conservação da sua república. A lei de Deus, verda­deira política e arte de reinar. Palavras de Cristo a el-rei D. Afonso Henriques. Admoestação aos príncipes, reis e monarcas do mundo.

Sendo este conselho tão político, e sendo tão políticos os seus conselheiros, que se seguiu de todas estas políticas? O que se seguiu foi a destruição de Jerusalém, a destruição de toda a República dos Hebreus, a destruição dos mesmos pontífices e fariseus que fizeram o conselho. E por quê? Porque, tendo o conselho tanto de político, não teve o que devia ter de cristão: antes todo ele foi contra Cristo: Collegerunt pontí­fices et pharisaei concilium adversus Jesum. Estas palavras: adversus Jesum, não são do texto, senão da glossa da Igreja. Notai, diz a Igreja, que este conselho foi contra Cristo. E de um conselho contra Cristo que se podia esperar, senão a destruição do mesmo conselho, dos mesmos conselheiros, e de toda a república, que por tais meios pretenderam defender e sustentar? E assim foi. O fundamento político de toda a resolu­ção que tomaram de matar a Cristo foi este: Si demittimus eum sic, venient Romani, et tollent locum nostrum, et gentem (Jo. 11, 48): Se deixamos este homem assim; todos o hão de aclamar por rei, e se se souber em Roma que nós temos rei contra a soberania e majestade do Império Romano, hão de vir contra nós os romanos, e hão de tirar-nos dos nossos lugares, e hão de destruir a nossa gente e a nossa república: pois morra este homem, para que nos não percamos todos. Mas vede como lhes saiu errada esta sua política. Matemos este homem por que nos não percamos todos, — e perderam-se todos, porque mataram aquele homem; — matemos este homem por que não venham os roma­nos, e tomem Jerusalém, — e porque mataram aquele homem, vieram os romanos e tomaram Jerusalém, e não deixaram nela pedra sobre pedra. Que é de Jerusalém? Que é da República Hebréia? Quem a destruiu? Quem a dissipou? Quem a acabou? Os romanos. Eis aqui em que vêm a parar os conselhos e as políticas, quando as suas razões de estado são contra Cristo. Santo Agostinho: In contrarium eis vertit malum concilium: Vede, diz Agostinho, o mau conselho como se converteu contra os mesmos que o tinham tomado: Ut possiderent, occiderunt, et guia occiderunt, perdiderunt: para conservarem a república, mataram a Cristo, e porque mataram a Cristo, perderam a república. — Oh! quantas vezes se perdem as repúblicas, porque se tomam por meios de sua conservação ofensas de Cristo! Quem aconselha contra Deus, aconselha contra si. E os meios que os homens tomam para se conservar, se são contra Deus, esses mesmos tomam Deus contra eles, para os destruir.

Muitas vezes castigou Deus a República Hebréia, em todos os estados e em todas as idades, por diferentes nações. Deixo os cativeiros particulares no tempo dos Juízes pelos madianitas, e no tempo dos reis pelos filisteus. Vamos aos cativei­ros gerais. O primeiro cativeiro geral, em tempo de Moisés, foi pelos egípcios; o segundo cativeiro geral, em tempo de Oséias, foi pelos assírios; o terceiro cativeiro geral, em tempo de Jeconias, foi pelos babilônios; o último cativeiro geral, depois de Cristo, que é o presente, foi pelos romanos. E por que ordenou Deus que os execu­tores deste último cativeiro fossem os romanos, e não por outra nação? Não estavam ainda aí os mesmos egípcios, os etíopes, os árabes, os persas, os gregos e os macedô­nios, que eram as nações confinantes? Pois por que não ordenou Deus que os execu­tores deste cativeiro fossem estas, ou outra nação, senão os romanos? Para que visse o mundo todo que a causa deste castigo foram as políticas deste conselho. Ora vede.

Três resoluções tomaram estes conselheiros para conservação da sua república, todas três fundadas no temor, no respeito, na dependência e na amizade dos romanos. A primeira notou S. Gregório, a segunda S. Basílio, a terceira Santo Ambrósio. Deixo as palavras por não fazer o discurso mais largo. A primeira resolu­ção foi que, se Cristo continuasse com aquele séquito e aplauso e com as aclamações de rei que lhe dava o povo, viriam os romanos sobre Jerusalém: Si dimittimus eum sic, venient romani. A segunda resolução foi entregarem a Cristo aos soldados ro­manos, porque eles foram os que o prenderam no Horto e o crucificaram: Judas vero, cum accepisset cohortem[15]que era uma das coortes romanas. A terceira reso­lução foi persuadirem a Pilatos, governador de Judéia posto pelos romanos, que, se livrava a Cristo, perdia a amizade do César: Si hunc dimittus, non es amicus Caesa­ris. Ah! sim! E vós temeis mais a potência dos romanos que a justiça de Deus? Pois castigar-vos-á a justiça de Deus com a mesma potência dos romanos. E vós entre­gais a Cristo aos soldados romanos para que o prendam e crucifiquem, pois Cristo vos entregará aos soldados romanos, para que vos cativem, vos matem e vos asso­lem. E vós antepondes a amizade do imperador dos romanos à graça de Deus; pois Deus fará que os imperadores romanos sejam os vossos mais cruéis inimigos, e que venha Tito e Vespasiano a conquistar-vos e destruir-vos. De maneira que todas as políticas dos pontífices e fariseus se converteram contra eles, e das resoluções do seu mesmo conselho se formaram os instrumentos da sua ruína. Disto lhes serviu o temor, o respeito, a dependência e a amizade dos romanos. E este foi o desastrado fim daquele conselho, merecedor de tal fim, pois tinha elegido tais meios.

Senhor, a verdadeira política é o temor de Deus, o respeito de Deus, a dependência de Deus e a amizade de Deus, e a verdadeira arte de reinar é guardar sua lei. Os políticos antigos estudavam pelos preceitos de Aristóteles e Xenofonte; os políticos modernos estudam pelas malícias de Tácito, e de outros indignos de se pronunciarem seus nomes neste lugar. A verdadeira política, e única, é a lei de Deus. Ouvi umas palavras de Deus no capítulo 17 do Deuteronômio, que todos os prínci­pes deviam trazer gravadas no coração: Cum sederit rex in solio regni sui, describet sibi Deuteronomium legis hujus, legetque illud omnibus diebus vitae suae, ut discat timere Deum, negue declinei in partem dexteram, vel sinistram, ut longo tempore regnet ipse, et filii ejus (Dt. 17,18 ss). Tanto que o rei, diz Deus, se assentar no trono do seu reino, a primeira coisa que fará, será escrever por sua própria mão esta minha lei, e a lerá todos os dias de sua vida, para que aprenda a temer a Deus, e não se apartará dela um ponto, nem para a mão direita, nem para a esquerda, e deste modo conservará o seu reino para si e para seus descendentes. — Pois, Senhor, esta é a arte de reinar, este são os documentos políticos, e estas são as razões de estado que dais ao rei do vosso povo para sua conservação e para perpetuidade e estabelecimento de seu império? Sim. Estas são, e nenhumas outras. Saber a lei de Deus, temer a Deus, guardar a lei de Deus, e não se apartar um ponto dela. Se Aristóteles sabe mais que Deus, sigam-se as políticas de Aristóteles. Se Xenofonte sabe mais que Deus, imi­tem-se as idéias de Xenofonte. Se Tácito fala mais certo que Deus, estudem-se as agudezas e sentenças de Tácito. Mas se Deus sabe mais que eles, e é a verdadeira e única sabedoria; estudem-se, aprendam-se, e sigam-se as razões de estado de Deus.

Não digo que se não leiam os livros, mas toda a política sem a lei de Deus é ignorância, é engano, é desacerto, é erro, é desgoverno, é ruína. Pelo contrá­rio, a lei de Deus só, sem nenhuma outra política, é política, é ciência, é acerto, é governo, é conservação, é seguridade. Toda a política de um rei cristão se reduz a quatro partes e a quatro respeitos: do rei para com Deus, do rei para consigo, do rei para com os vassalos, do rei para com os estranhos. Tudo isto achará o rei na lei de Deus. De si para com Deus, a religião; de si para consigo, a temperança; de si para com os vassalos, a justiça; de si para com os estranhos a prudência. Para todos estes quatro rumos navegará segura a monarquia, se os seus conselhos levarem sempre por norte a Deus, e por leme a sua lei: Consiliorum gubernaculum lex divina, disse S. Cipriano. Os conselhos são o governo da república, e a lei de Deus há de ser ogoverno dos conselhos. Conselho e república que se não governa pela lei de Deus, é nau sem leme. Por isso o reino de Jeroboão, de Bassa, de Jeú, e de tantos outros, fizeram tão miseráveis naufrágios.

O mais político e o mais prudente rei que lemos nas Histórias Sagradas foi Davi. E qual era o seu conselho? Ele o disse: Consilium meum justificationes tuae (SI. 118, 24): O meu conselho, Senhor, são os vossos mandamentos. — Oh! que autorizado conselho! Oh! que prudentes conselheiros! O conselho: a lei de Deus, os conselheiros: os dez mandamentos. De Aquitofel, aquele famosíssimo conselheiro, diz o texto que eram os seus conselhos como oráculos e respostas de Deus: Tan­quam si quis consuleret Dominum (2 Rs. 16, 23). Os Mandamentos de Deus, que eram os conselheiros de Davi, não são como oráculos, senão, verdadeiramente orá­culos de Deus. E quem se governar pelos oráculos de Deus, como pode errar? Quan­do Cristo apareceu a el-rei D. Afonso Henriques, e lhe certificou que queria fundar e estabelecer nele e na sua descendência um novo império, assim como disse a Moisés: Ego sum qui sum: Eu sou o que sou — assim o disse àquele primeiro rei: Eu sou o que edifico os reinos e os dissipo: Ego edificator, et dissipator regnorum sum. Nestas duas máximas resumiu Cristo todas as razões de estado por onde queria se governasse um rei de Portugal. Deus é o que dá os reinos, e Deus é o que os tira. O fim de toda a política é a conservação e aumento dos reinos. Como se hão de conser­var os reinos, se tiverem contra si a Deus, que os tira, e como se hão de aumentar os reinos, se não tiverem por si a Deus, que os dá? Se não tivermos contra nós a Deus, segura está a conservação; se tivermos por nós a Deus, seguro está o aumento: Pone me juxta te, et cujusvis manus pugnes contra me (Jó 17, 3), dizia Jó, que também era rei: Ponha-me Deus junto a si, e venha todo o mundo contra mim. — Se tivermos de nossa parte a Deus, ainda que tenhamos contra nós todo o mundo, todo o mundo não nos poderá ofender; mas se tivermos a Deus contra nós, ainda que tenhamos todo o mundo da nossa parte, não nos poderá defender todo o mundo. Fazer liga com Deus ostensiva e defensiva, e estamos seguros. Eis aqui o erro fatal deste mal-aconselha- do conselho dos pontífices e fariseus: por se ligarem com os romanos, apartaram-se de Deus, e porque não repararam em perder a Deus, por conservar a república, perderam a república e mais a Deus. Iste homo multa signa facit: Este homem, diziam, faz muitos sinais. — Chamavam sinais aos milagres de Cristo, e, ainda que acertaram o número aos milagres, erraram a conta aos sinais. Os milagres eram muitos, mas os sinais não eram mais que dois. Se seguissem a Cristo, sinal de sua conservação: se o não seguissem, sinal de sua ruína. Cada milagre daqueles era um cometa que ameaçava mortalmente a República Hebréia, se não cresse, e ofendesse a Cristo. E assim foi.

Príncipes, reis, monarcas do mundo, se vos quereis conservar, e a vossos estados, se não quereis perder vossos reinos e monarquias, seja o vosso conselho supremo a lei de Deus. Todos os outros conselhos se reduzam a este conselho, e estejam sujeitos e subordinados a ele. Tudo o que vos consultarem vossos conselhos e vossos conselheiros, ou como necessário à conservação, ou como útil ao aumento, ou como honroso ao decoro, à grandeza e à majestade de vossas coroas, seja debaixo desta condição infalível: se for conforme à lei de Deus, aprove-se, confirme-se, decrete-se e execute-se logo; mas se contiver coisa alguma contra Deus e sua lei, reprove-se, deteste-se, abomine-se, e de nenhum modo se admita nem consinta, ain­da que dele dependesse a vida, a coroa, a monarquia. O rei em cuja consciência e em cuja estimação não pesa mais um pecado venial que todo o mundo, não é rei cristão. Quid prodest homini, si universum mundum lucretur, animae vero suae detrimen­tum patiatur. Que lhe aproveitará a qualquer homem, e que lhe aproveitou a Alexan­dre ser senhor do mundo, se perdeu a sua alma? Perca-se o mundo, e não se arrisque a alma; perca-se a coroa e o cetro, e não se manche a consciência; perca-se o reino da terra, e não se ponha em contingência o reino do céu. Mas o rei, que por não pôr em contingência o reino do céu, não reparar nas contingências do reino da terra, é certo e infalível que por esta resolução, por este valor, por esta verdade, por este zelo, por esta razão e por esta cristandade, segurará o reino da terra e mais o do céu, porque Deus, que é o supremo senhor do céu e da terra, nesta vida o estabelecerá no reino da terra, pela firmeza da graça, e na outra vida o perpetuará no reino do céu, pela eternidade da glória.

 

[1] Ajuntaram-se os pontífices e os fariseus em conselho (Jo. 11, 47).

[2] Convém que morra um homem, e que não pereça toda a nação (Jo. 11, 50).

[3] Quem enganará a Acab, rei de Israel, para que ele marche e pereça em Ramot (3 Rs. 22, 20).

[4] Eu o enganarei; eu irei, e serei um espírito mentiroso na boca de todos os profetas (3 Rs. 22, 21 s).

[5] Tu o enganarás, e prevalecerás: sai, e faze-o assim (3 Rs. 22, 22).

[6] Que fazemos nós, que este homem faz muitos milagres (Jo. 11, 47).

[7] Bendito seja o Rei de Israel, que vem em nome do Senhor (Jo. 12, 13).

[8] Já não andava em público; retirou-se para uma terra vizinha do deserto (Jo. 11, 54).

[9] Desde aquele dia, pois, cuidavam eles em ver como lhe dariam a morte (Jo. 11, 53).

[10] Trabalhou com a indústria das suas mãos (Prov. 31, 13).

[11] Com a indústria das suas mãos os conduziu (SI. 77, 72).

[12] Todo o Israel segue Absalão com todas as veras (2 Rs. 15, 13).

[13] Mas por disposição do Senhor foi dissipado o útil conselho de Aquitofel (2 Rs. 17, 14).

[14] O que escrevi, escrevi (Jo. 19, 22).

[15] Tendo pois Judas tomado uma companhia de soldados (Jo. 18, 3).

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