Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, pregado na Catedral de Lisboa, ano 1651, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Si veritatem dico vobis, quare non creditis mihi[1]?

Por que nos propõe a Igreja as mesmas palavras que Cristo antigamente pregou contra os escribas e fariseus? Não se queixa Cristo de não crerem nele; queixa-se de o não crerem a ele,

§I

Estas palavras que hoje nos propõe a Igreja, e nos manda pregar ao povo cristão, são as mesmas que Cristo antigamente pregou contra os escribas e fariseus. E porque são as mesmas, parece que não é razão se nos preguem a nós. Cristo nestas palavras queixava-se dos judeus, porque o não criam: Quare non creditis mihi (Jo. 8, 46)? E não seria grande impropriedade, e ainda afronta da nossa fé, se em um auditório tão católico fizesse eu a mesma queixa, e afirmasse, ou supusesse de nós, que, sendo cristãos, não cremos a Cristo? Este foi o meu primeiro reparo, e me pareceu conforme a ele que as palavras do Evangelho, que propus, só as mandava referir a Igreja como história do tempo passado, e não como doutrina necessária aos tempos e costumes presentes.

Dei um passo mais avante com a consideração, e comecei a duvidar disto mesmo. Olhei para a fé, que se usa, olhei para a vida e obras que correspondem à mesma fé, olhei para os pequenos, e muito mais para os grandes, olhei para os leigos, e também para os eclesiásticos, e achei, e me persuadi, com grande confusão minha, que tão necessária é hoje esta pregação, como foi no tempo de Cristo. E porquê? O dia é de verdades: hei de dizer o porquê muito claramente. Porque se os escribas e fariseus não criam a Cristo, também os cristãos e católicos não cremos a Cristo. Iramo-nos muito, e dizemos grandes injúrias contra os judeus daquele tempo, e nós somos como eles. Contra eles pregou Cristo, contra nós prega o Evangelho. E se Cristo falara daquele sacrário, assim como então disse aos judeus: Quare non creditis mihi, assim havíamos de ouvir, que nos dizia a nós: Cristãos, por que me não credes? Se sois, e vos chamais cristãos, por que não credes a Cristo?

Parece-me, senhores, que vos vejo inquietos, e ainda indignados contra mim, por esta proposta, e que cada um dentro de si, não só me está argüindo e condenando, mas cuida que me tem convencido. - Nós, dizeis todos, por graça de Deus somos cristãos, e o Cristo em que cremos, e por cuja fé daremos a vida, é o mesmo Cristo que os judeus hoje negaram. Eles crucificaram-no, nós adoramo-lo; eles não creram que era o verdadeiro Messias, nós cremos que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que encarnou, que nasceu, que morreu, que ressuscitou, que salvou e remiu o mundo. Logo, grande injúria é a que faz à nossa fé e à nossa cristandade quem diz que somos como os judeus em não crer a Cristo. - E que seria se eu dissesse que nesta parte ainda somos piores?

Entendei bem o que diz o texto de Cristo, e logo vereis como a vossa instância nem desfaz a minha proposta, nem é argumento contra ela. Dizeis que sois cristãos? Assim é. Dizeis que credes muito verdadeiramente em Cristo? Também o concedo. Mas Cristo não se queixa de não crerem nele; queixa-se de o não crerem a ele. Notai as palavras. Não diz: Quare non creditis in me? Por que não credes em mim? O que diz é: Quare non creditis mihi? Por que me não credes a mim? Uma coisa é crer em Cristo, que é o que vós provais, e eu vos concedo; outra coisa é crer a Cristo, que é o que não podeis provar, e em que eu vos hei de convencer. De ambos estes termos usou o mesmo senhor muitas vezes. Aos discípulos: Creditis in Deum, et in me credite[2]Marta: Qui credit in me, etiam si mortus fuerit, vivet[3]Por outra parte, à Samaritana: Mulier, crede mihi[4]e aos mesmos judeus: Si mihi non vultis credere, operibus credite[5]. De maneira que há crer em Cristo, e crer a Cristo, e uma crença é muito diferente da outra. Crer em Cristo é crer o que ele é; crer a Cristo é crer o que ele diz; crer em Cristo é crer nele, crer a Cristo é crê-lo a ele. Os judeus nem criam em Cristo, nem criam a Cristo. Não criam em Cristo, porque não criam a sua divindade, e não criam a Cristo, porque não criam a sua verdade. E nesta segunda parte é que a nossa fé, ou a nossa incredulidade, se parece com a sua, e ainda a excede mais feiamente. O judeu não crê em Cristo, nem crê a Cristo, e que não creia a Cristo quem não crê em Cristo é proceder coerentemente. Pelo contrário, nós cremos em Cristo, e não cremos a Cristo, e não crer a Cristo quem crê em Cristo, não crer a sua verdade quem crê na sua divindade, é uma contradição tão alheia de todo o entendimento, que só se pode presumir de quem tenha perdido o uso da razão; e por isso o mesmo Senhor nos pergunta por ela: Quare non creditis mihi? Por que razão me não credes?

Isto que já tenho dito é o que resta declarar e provar. Mostrarei que a queixa de Cristo Senhor nosso, feita contra os escribas e fariseus, também pertence a este auditório, e que, se condena a parte secular dele, também fere a eclesiástica. As palavras dizem: Non creditis mihi? nós veremos debaixo de toda a sua propriedade, e com grande confusão nossa, que, por mais que nos prezemos tanto de cristãos, cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo. Esta é a verdade que trago para pregar hoje. Se vos parecer nova, será por ignorada, ou mal advertida; se amargosa e de pouco gosto, esse é o sabor da verdade; se finalmente dificultosa de crer, isso fica por conta do que haveis de ouvir. A matéria não pode ser nem mais cristã, nem mais importante, nem mais útil. Assista-nos Deus com sua graça. Ave Maria.

§II

Somos cristãos de meias: temos uma parte da fé, mas falta-nos outra. A incredulidade dos discípulos antes de Caná, e a presunção de Pedro. Tentação do demônio a Eva: crer no que Deus era, e não crer no que Deus dizia. Repreensão de Cristo às almas dos que se tinham afogado no dilúvio. Somos católicos de Credo, e hereges de Mandamentos.

De maneira, senhores católicos, que somos cristãos de meias: temos uma parte da fé, e falta-nos outra; cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: Non creditis mihi?Quando Cristo saiu ao mundo coma primeira provada sua onipotência e divindade, convertendo uma criatura em outra nas bodas de Caná de Galiléia, conclui o evangelista S. João a narração do milagre com esta notável advertência: Hoc fecit initium signorum Jesus in Cana Galileae, et crediderunt in eum discipuli ejus (Jo, 2, 11): Este foi o primeiro milagre que fez o Senhor Jesus, e creram nele seus discípulos. - Já vejo que reparais em uma e outra conseqüência. Se depois do milagre creram nele seus discípulos, segue-se que antes do milagre não criam nele; e se ainda não criam nele, como eram já seus discípulos? Eram já seus discípulos, porque criam a sua doutrina, mas ainda não criam nele, porque não conheciam a sua divindade. Criam-no a ele, mas não criam nele: criam-no a ele como mestre, mas não criam nele como Deus. De sorte que crer em Cristo e crer a Cristo não são crenças que andem sempre juntas. Os discípulos naquele tempo, e naquele estado, criam a Cristo, mas não criam em Cristo; e nós agora, às avessas deles, cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: cremos em Cristo, porque cremos o que é; não cremos a Cristo, porque não cremos o que diz.

Isto mesmo que a nós, sucedeu aos mesmos discípulos, quando já tinham não menos que três anos da escola divina, e no dia em que acabavam o curso dela. Neste dia - que foi a véspera da Paixão de Cristo - disse o Senhor a todos os discípulos que todos naquela noite haviam de padecer escândalo, faltando à fé e amor que lhe deviam: Omnes vos scandalum patiemeni in me in ista nocte[6] . Respondeu Pedro que, ainda que todos faltassem, ele não havia de faltar, e replicando o Senhor que, antes que o galo cantasse, o negaria três vezes, tornou Pedro a dizer que, se fosse necessário dar a vida, primeiro a daria e se deixaria matar, do que negar a seu Mestre; e o mesmo disseram todos os mais discípulos: Similiter, et omnes discipuli dixerunt (Mt. 26, 35). Se antes de Cristo ter dito o que acabava de afirmar com tanta asseveração, Pedro presumisse tanto de si, e o mesmo presumissem e dissessem os outros discípulos, não me admirara, porque falavam pela boca do coração, o qual de longe, e antes das ocasiões, sempre nos engana. Mas depois de o Senhor ter dito a Pedro e aos demais que ele nomeadamente o havia de negar, e que todos os outros o haviam de desamparar e fugir: Percutiam pastorem, et dispergentur oves[7] como não deram crédito a um oráculo tão expresso de Cristo? Pedro e os demais não criam que Cristo era Deus? Sim, criam, que assim o tinha confessado o mesmo Pedro, e todos com ele: Vos autem quem me esse dicitis? Tu es Christus, Filius Dei vivi[8]Pois se criam a divindade de Cristo, se criam que Cristo era Deus, como não creram o que lhes dizia? Porque a sua fé naquele tempo era como a nossa, e todos criam então, como nós cremos hoje. Criam em Cristo, mas não criam a Cristo. Os Apóstolos e discípulos, antes de descer sobre eles o Espírito Santo, eram sujeitos, como homens, a defeitos, e talvez padeciam os mesmos em que nós incorremos. No princípio e no fim criam de meias, e em um e outro caso só chegou a sua fé a ser meia fé, diversamente repartida. No princípio, por rudeza e imperfeição, criam a Cristo e não criam em Cristo; no fim, por fraqueza e tentação criam em Cristo, mas não creram a Cristo. E porque este modo de crer era muito mais arriscado e perigoso, por isso acrescentou o Senhor que o demônio naquela ocasião os havia de crivar: Ecce Satanas expectivit vos, ut cribaret sicut triticum[9].

Tenta e engana o demônio aos filhos de Eva com a mesma traça e com a mesma astúcia com que a enganou a ela. Como a fé é o fundamento da graça, contra a fé vomitou a serpente o primeiro veneno, e na fé armou o laço à primeira mulher. Mas como? Porventura intentou persuadir-lhe que não cresse em Deus, ou duvidasse da sua divindade? Tão fora esteve disto o demônio, que antes ele ratificou a Eva essa mesma crença de Deus, uma e outra vez, supondo sempre que o que lhe pusera o preceito, era Deus: Cur praecepit vobis Deus[10]? E o que lhe ameaçara a morte também era Deus: Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo[11]. Pois em que esteve logo a tentação contra a fé? Não esteve em que Eva não cresse o que Deus era; esteve em que não cresse o que Deus dizia. Deus disse a Eva e a Adão que, no ponto em que comessem da árvore vedada, haviam de morrer. E isto que Deus lhes tinha dito é o que o demônio procurou que não cressem: Nequaquam morte moriemini[12]Deus disse-vos que haveis de morrer, se comerdes da árvore. Não creais tal coisa. Ele é o Deus que vos criou, ele é o Deus que vos deu o paraíso, ele é o Deus que vos pôs o preceito, isso crede vós: mas crer que, depois de vos criar, e criar tanta diversidade de frutos para que sustenteis a vida, vos haja de tirar a mesma vida: Nequaquam, de nenhum modo, não creais tal, ainda que ele vo-lo tenha dito. Crede nele sim, mas não o creais a ele. Isto é o que pretendeu o demônio, isto é o que conseguiu. E como enganou a nossos pais, assim nos engana a nós. Dá-nos de barato a metade da fé, para nos ganhar a outra metade. Crer em Deus, quanto nós quisermos; mas crer a Deus, isso não quer o demônio. Por isso cremos em Cristo e não cremos a Cristo: Non creditis mihi?

E para que vejais quão importante é o conhecimento deste engano, e quão digna de se nos pregar esta doutrina, ouvi uma ação de Cristo que, pode ser, nunca ouvistes. Diz o apóstolo S. Pedro, no terceiro capítulo da sua primeira Epístola[13], que quando Cristo desceu ao inferno pregou às almas dos que se tinham afogado no dilúvio, e os repreendeu da sua incredulidade, porque não creram a Noé, quando fabricava a Arca, esperando vãmente na paciência de Deus: His, qui in carcere erant, spiritibus veniens praedicavit: qui increduli fuerant aliquando, quando expectabant Dei patientiam in diebus Noe, cum fabricaretur arca[14]Este passo, que é um dos mais dificultosos da Escritura, encerra três grandes dúvidas[15]. Primeira: como pregou Cristo aos condenados do inferno, se no inferno ninguém se pode converter nem emendar? Segunda: por que, havendo no inferno tantos outros pecadores impenitentes e obstinados, entre todos escolheu Cristo para pregar e repreender os que se afogaram no dilúvio? Terceira: por que, tendo estes mesmos homens tantos outros pecados gravíssimos, pelos quais mereceram aquele tão extraordinário castigo, só os argúi e repreende Cristo da sua incredulidade: His qui increduli fuerant[16]

Não se pudera melhor nem mais temerosamente declarar o que imos dizendo. Primeiramente pregou Cristo no inferno, não para converter os condenados, senão para mais os confundir, porque uma das maiores confusões do inferno é o conhecimento triste com que aqueles miseráveis estão vendo as causas por que se perderam, e quão facilmente se puderam salvar, se quiseram; e quis Cristo confundir particularmente aos condenados do dilúvio, porque todos eram homens que criam em Deus. A idolatria e os deuses falsos, todos começaram depois do dilúvio, sendo Nenrod o inventor desta cegueira, como consta da cronologia sagrada, e se colhe do Livro da Sabedoria, no capítulo 14 (Sab. 14, 13). E como até aquele tempo todos conservavam a fé recebida de Adão, e criam no verdadeiro Deus, por isso Cristo, deixando todos os outros homens e todos os outros pecados, argúi somente aos que pereceram no dilúvio, e os confunde com a sua incredulidade, porque a maior sem razão que se comete na terra, e a maior confusão que se há de padecer no inferno, é não crerem a Deus homens que crêem em Deus[17]. Avisou Deus por Noé aqueles homens que os havia de afogar a todos eles, e aos montes, e ao mundo, se se não emendavam; continuaram estes avisos dez anos, vinte anos, e cem anos inteiros; cada martelada que se dava na Arca era um pregão desta justiça que Deus determinava fazer; e eles, crendo em Deus para esperarem na sua paciência, não criam a Deus para temerem a sua ira. Pois homens que crêem em Deus não crêem a Deus, desça o mesmo Deus ao inferno a confundi-los. Para confundir os da Torre de Babel, desceu à terra; para confundir os do dilúvio, desceu ao inferno. Isto é o que Cristo lá pregou então, e isto é o que aqui prega hoje: Quare non creditis mihi?

Mas vejo que ainda há quem repugne ou, quando menos, duvide e pergunte como pode ser e se pode dizer, com verdade, que nós os cristãos e católicos, não cremos a Deus? Para nós não há outra fé, nem outra autoridade, nem outro oráculo infalível, senão o da palavra divina. Logo, como não cremos a Deus? O mesmo Deus respondeu já a esta dúvida, e nos deu uma regra certa, por onde conheçamos sem engano, se o cremos a ele, ou não. Cuidamos que cremos a Deus, e enganamo-nos. Mas qual é a regra? Qui crediti Deo, attendit mandatis (Eclo. 32, 28): Sabeis quem crê a Deus? - diz o Espírito Santo: Quem faz o que Deus lhe manda. - Se fazeis o que Deus manda, credes a Deus; se não fazeis o que ele manda, não o credes a ele: credes-vos a vós, credes ao vosso apetite, credes ao diabo, como creu Eva. Por isso dizia Davi: Quia mandatis tuis credidi (SI. 118, 66): Eu, Senhor, cri aos vossos mandamentos. - Isto é só o que é crer a Deus. A nossa fé pára no Credo, não passa aos Mandamentos. Se Deus nos diz que é um, creio, se nos diz que são três pessoas, creio; se nos diz que é criador do céu e da terra, creio; se nos diz que se fez homem, que nos remiu, e que há de vir a julgar vivos e mortos, creio. Mas se diz que não jureis, que não mateis, que não adultereis, que não furteis, não cremos. Esta é a nossa fé, esta a vossa cristandade. Somos católicos do Credo, e hereges dos Mandamentos. Vede se se deve contentar Cristo com tal invenção de crer, e se tenho eu razão de pregar que cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: Non creditis mihi.

§ III

Provas particulares de nossa incredulidade: como a pomba da Arca, buscamos o descanso onde o não há. Dizemos que queremos ir ao céu, mas parece que queremos chegar lá com a cabeça, tanto aspiramos às grandezas, quando sabemos que se não nos fizermos pequeninos, não entraremos no reino do céu.

E para que esta verdade, que só está provada em comum, se veja com os olhos e se apalpe com as mãos, desçamos a exemplos particulares, e, ponhamo-los, para maior clareza nas matérias mais familiares e usuais, ainda da conveniência do interesse, do gosto.Que homem há, senhores, que não busque o descanso? Este é o fim que se busca e que se pretende por todos os trabalhos da vida. O soldado, pelos perigos da guerra, busca o descanso da paz, O mareante, por meio das ondas e das tempestades, busca o descanso do porto. O lavrador, pelo suor do arado, o estudante, queimando as pestanas, o mercador, arriscando a fazenda, todos, como diversos rios ao mar, correm a buscar o descanso, que é o centro do desejo e do cuidado. E houve algum homem tão mimoso da fortuna neste mundo, que em alguma, ou em todas as coisas dele, achasse o descanso que buscava? Nenhum, Saiu a pomba da Arca, e diz o texto sagrado que já ia, já tornava, já tomava para uma parte, já para outra, e que não achava onde descansar: Cum non invenisset ubi requiescere pes ejus[18]Primeiro lhe cansaram as asas, do que achasse onde descansar os pés. E por que não achava a pomba onde descansar? Porque buscava o descanso onde o não havia. As cidades, os campos, os vales, os montes, tudo era mar. Este é o mundo em que vivemos. Antes e depois de Noé, sempre foi dilúvio. Uns para uma parte, outros para outra, todos cansando-se em buscar o descanso, e todos cansados de o não achar. A razão deu S. Agostinho no Livro Quarto dos seus desenganos, a que ele chamou Confissões: Non est requies ubi quaeritis eam: quaerite quod quaeritis, sed ibi non est ubi quaeritis[19]A razão por que não achamos o descanso é porque o buscamos onde não está. Não vos digo, diz Agostinho, que o não busqueis: buscai-o; só vos digo que não está aí onde o buscais. - Pois se é bem que busquemos o descanso, e ele não está onde o buscamos, onde o havemos de buscar? Onde Cristo disse que o buscássemos, porque só aí está, e só aí o acharemos: Venite ad me omnes qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos: Tollite jugum meum super vos, et invenietis requiem animabus vestris (Mt, 11, 28 s): Todos os que andais cansados - que sois todos - vinde a mim, diz Cristo, e eu vos aliviarei; tomai sobre vós o jugo de minha lei, e achareis o descanso. - Credes que são estas palavras de Cristo? Sim. Agora, respondei-me: é certo que todos desejais o descanso; é certo que todos o buscais com grande trabalho, por diversos caminhos, e que o não achais. Pois por que o não buscais na observância da lei de Cristo? Cristo diz que na sua lei está o alívio de todo o trabalho: Venite ad me omnes qui laboratis, et ego reficiam vos. Cristo diz que na sua lei, e só na sua lei, se acha o descanso: Et invenietis requiem animabus vestris. Logo, se não buscais o descanso na lei de Cristo, é certo que não credes a Cristo, porque se vós buscais o descanso onde o não há, com trabalho, claro está que antes o haveis de buscar onde o há sem trabalho. Mas a verdade é - e vós o sabeis muito bem - que a razão por que não buscais o descanso na lei de Cristo é porque a não tendes por descansada, senão por muito trabalhosa. Vós tende-la por trabalhosa, dizendo Cristo que só ela vos pode aliviar do trabalho? Vós tende-la por cansada, dizendo Cristo que só nela está o descanso? Logo, credes o que vós imaginais, e não o que Cristo diz; credes em Cristo, mas não credes a Cristo: Non creditis mihi.

Do descanso desta vida passemos ao da outra. Todos dizemos que queremos ir ao céu, e não há dúvida que todos queremos. Mas noto eu que parece queremos chegar lá com a cabeça. Os castelos que formamos nas nossas são como o zimbório da Torre de Babel: Cujus culmen pertingat ad caelum[20]Subir, e mais subir; crescer, e mais crescer. Os pequenos querem ser grandes, os grandes querem ser maiores, os maiores não sei, nem eles sabem o que querem ser: Superbia eorum ascendit semper[21]Ninguém se contenta cem a estatura que Deus lhe deu, e não há homem tão pigmeu, ou tão formiga, que não aspire a ser gigante, para conquistar o céu; assim o dizem as fábulas, mas não, são estes os textos do Evangelho. Olhai o que diz Cristo: Nisi efficiamini sicut parvuli, non intrabitis in regno caelorum (Mt. 18, 3): Se vos não fizerdes pequeninos, não haveis de entrar no reino do céu. - Notai muito as palavras: Non intrabitis, que é muito para notar e para tremer. Se a dúvida estivera em ser pequeno ou grande no céu, bem creio eu da nossa devoção que não fizéramos muito escrúpulo de ser pequenos no céu, contanto que fôramos grandes na terra. Grandes, digo, porque falo pela vossa linguagem. Um gentio[22] que sabia melhor que nós medir as grandezas, dizia que indignamente se dera a Alexandre Magno o nome de Grande, posto que tivesse dominado a terra, porque ninguém pode ser grande em um elemento tão pequeno. Grandes, só no céu os pode haver. Mas a dúvida, como dizia, não está em ser grande ou pequeno no Céu; está em entrar lá ou não entrar: Non intrabitis.

A ocasião que deram a esta doutrina os discípulos foi a ambição com que todos, e cada um, esquecidos de haverem sido pescadores, pretendiam ser o maior: Quis eorum videretur esse major (Lc. 22, 24). Então lhes descobriu o Mestre celestial este segredo, e lhes ensinou que a arquitetura do céu não é como a da terra. Uma cidade tão grande como o céu, parece que havia de ter umas portas muito altas e muito largas, e não é assim. S. João, no seu Apocalipse, viu esta mesma cidade, e viu também que um anjo com uma vara de ouro a veio medir toda, e os seus muros e as suas portas: Ut metiretur civitatem, et portas ejus, et murum (Apc. 21, 15). Declarando porém o evangelista o comprimento e largura da cidade, e a altura dos muros e das portas, não diz que altura nem que largura tinham. Pois se o anjo veio também medir as portas, e as mediu, por que não declara São João de que medida eram? Porque é tão pequena a capacidade das portas do céu, que não há espaço ou nome nas medidas, com que se possa declarar, O que só diz o evangelista, quando se seguia dizer a medida das ditas portas, é que cada uma delas - coisa digna de grande admiração - estava aberta em uma pérola: Singulae portae erant ex singulis margaritis. Vede vós em uma pérola que porta se pode abrir. Por isso, Cristo noutro lugar lhe chamou: foramen, furo, e não porta (Mc. 10, 25). Eu bem vejo que as pérolas do céu podem ser muito maiores que as do mar Eritreu; mas as portas que nelas abriu o sumo artífice, como são fabricadas à proporção dos que hão de entrar por elas, traçou que fossem não só pequenas, mas pequeninas, porque também tinha decretado que não entrassem no céu senão os pequeninos: Nisi efficiamini sicut parvuli, non intrabitis in regnum caelorum. Isto é o que diz Cristo, isto é o que repete uma e muitas vezes. Vejam agora os que todo o seu cuidado e toda a sua indústria e todas as suas artes empregam em subir, em crescer, em se fazer grandes - ainda que seja desfazendo grandes e pequenas - vejam que fé, ou que esperança podem ter de entrar no céu? Ou crêem estas palavras de Cristo, ou não as crêem. Se as crêem, não querem ir ao céu; e se querem ir ao céu, como cuidam que podem entrar lá por onde Cristo diz que não podem entrar? O certo é que todos estes grandes cristãos, ou todos estes cristãos que querem ser grandes, crêem em Cristo, mas não crêem a Cristo: Non creditis mihi.

§ IV

Os dois senhores de que fala Cristo: Deus e o dinheiro. Os exemplos de Zaqueu e de Judas. O dinheiro, pecado original do século. O seguro real de Cristo: cento por um de ganância. Por que, pois, aceitamos os cinco por cento que nos promete um homem? Outras afirmações de Cristo.

Mas porque esta altiveza de ser grandes é ambição de que a natureza ou a fortuna tem excluído a muitos, ponhamos o caso em matéria universal, e que toque a todos. Diz Cristo universalmente, sem excluir a ninguém, que ninguém pode servir a dois senhores: Nemo potest duobus dominis servire (Mt. 6, 24). Isto se entende juntamente e no mesmo tempo, porque em diversos tempos, bem pode ser. E querendo o mesmo Cristo pôr um exemplo muito claro de dois senhores a quem se não pode servir juntamente, que dois senhores vos parece que serão estes? Deus e o Mundo? Deus e o diabo? Deus e a carne? Não: Deus e o dinheiro: Non potestis Deo servire, et mamonae. Se há coisa no mundo que pudera competir no senhorio com Deus, é o ídolo universal do ouro e prata. Muitas nações há no mundo que não conhecem a Deus; nenhuma que não adore e obedeça a este ídolo. E ainda, dos que professam servir a Deus, quem há que o não sirva? Pois assim como ninguém pode servir a dois senhores, assim diz Cristo que não pode servir a Deus e mais ao dinheiro. Servir a Deus com o dinheiro, bem pode ser, e é bem que seja, mas servir a Deus e ao dinheiro juntamente, é impossível. Quando Zaqueu se resolveu a servir a Cristo, logo renunciou o dinheiro, e quando Judas se resolveu a servir ao dinheiro, logo renunciou a Cristo. Arrependido o mesmo Judas de ter vendido a seu Mestre, lançou os trinta dinheiros no templo: Projecit eos in templum. E os ministros do templo resolveram que não se podiam meter na bolsa: Non licet eos mittere in corbonam (Mt. 27, 6). Mofino dinheiro, que nem roubado, nem restituído, nem no templo, nem na bolsa teve lugar com Deus: e assim é todo. Se o roubais, perdeis a Deus; se o restituís, perdeis o dinheiro; se quereis servir a Deus, Deus e o dinheiro não cabem no mesmo templo; se quereis servir ao dinheiro; o dinheiro e Deus não cabem na mesma bolsa: Aut unum odio habebit, et alterum diliget, aut unum sustinebit, et alteram contemnet[23]. Ou haveis de renunciar o dinheiro, se amais e prezais a Cristo, como fez Zaqueu, ou haveis de renunciar a Cristo, se amais e prezais o dinheiro, como fez Judas. Oh! quantos Judas, e quão poucos Zaqueus há no mundo! Se Deus tivera tantos servos, e tão diligentes, como tem o dinheiro, que bem servido fora! Mas quantos desserviços se fazem a Deus em serviço deste mau ídolo? O maior sacrilégio de todos é que, em vez de os homens se servirem do dinheiro para servir a Deus, chegam a se servir de Deus para servir ao dinheiro: Servire me fecisti in peccatis tuis[24]Quantas vezes os bens eclesiásticos, que são de Deus, os vemos aplicados e consumidos em usos profanos, e os vasos do Templo de Jerusalém, ou levados aos tesouros de Nabuco, ou servindo nas mesas de Baltasar, Quando jamais se encontrou Deus com o interesse, que o desprezado não fosse Deus? Ou quem seguiu os ídolos de ouro de Jeroboão, que não virasse as costas à Arca do Testamento? O ouro que os hebreus roubaram no Egito, adoram-no no deserto. E quantos há que fazem o mesmo só com a figura mudada? Que importa que não adoreis a forma, se adorais a matéria? Que importa que não adoreis o bezerro de ouro, se adorais o ouro do bezerro? E no mesmo tempo - como os de Azoto - pondes a Deus e o ídolo sobre o mesmo altar, e credes com afetada hipocrisia que podeis servir juntamente a um e a outro? Se Cristo diz, sem exceção, que isto é impossível, como cuidais vós que pode ser? Mas é que credes em Cristo, e não credes a Cristo: Non creditis mihi.

E já que falamos em matéria de interesse, que é o pecado original deste século, com o mesmo interesse vos quero convencer e fazer-vos confessar sem réplica, que nem como desinteressados que devereis ser, nem como interesseiros que sois, credes a Cristo. A fineza e ventura do interesse consiste em granjear muito com pouco, e quanto o muito que adquiris é mais, e o pouco que despendeis menos; tanto é maior a ganância e a ventura. Agora vamos ao ponto. Todos sabeis que diz e promete Cristo no Evangelho que quem deixar ou der por ele alguma coisa, receberá cento por um e a vida eterna: Centuplum accipiet, et vitam aeternam possidebit (Mt. 19, 29). A circunstância de dar a ganância e mais a vida, ainda que não fora eterna, é condição que nenhum assegurador, senão Deus, pode meter nos seus contratos. E para que ninguém se defenda com as esperas ou tardanças do outro mundo, posto que tão breves, declara o mesmo Cristo por São Lucas e São Marcos, que a vida eterna há de ser no outro mundo, mas a ganância e o cento por um neste: Centies tantum nunc in tempore hoc, et in saeculo futuro vitam aeternam[25]Estas são as palavras, esta a promessa, este o seguro real de Cristo, e mais que real, porque é divino. Se o credes ou não, digam-no agora os vossos contratos e os vossos interesses.

Aqueles dois criados do rei, a quem ele entregou os talentos para que negociassem: Negotiamini dum venio[26]fizeram-no com tanta limpeza, com tanta diligência, e com tanta ventura, que ambos, diz o texto, dobraram o cabedal. O que negociou com dois talentos granjeou outros dois, e o que negociou com cinco granjeou outros cinco. Ditoso rei! Honrados criados! Se a semelhantes criados entregaram os reis a sua fazenda, ela se vira mais acrescentada. Mas não falo agora com os criados nem com os reis, falo com todos. Granjear com dois talentos outros dois, e com cinco talentos outros cinco, é ganhar cento por cento. E que negociante haverá tão avaro, tão interesseiro e tão cobiçoso, que se não contente, e dê muitas graças a Deus, por tão avantajada ganância, e mais sem risco? Pois se Cristo nos promete, não cento por cento, senão cento por um, que são dez mil por cento, em que se perdem os algarismos, por que não negociamos com ele, nem aceitamos este contrato? E se não aceitamos um tal contrato com Deus, por que fazemos outros com os homens de tanto menores conveniências, e tão diferentes em tudo?

Dais o vosso dinheiro - falemos claro, e familiarmente - dais o vosso dinheiro a juro, e por quanto? A cinco por cento, e por menos, e se achais a seis e quatro, é dispensação da lei, e por grande favor. Pois se a um mercante, que pode quebrar, dais o vosso dinheiro a cinco por cento, a Deus, que tem por fiador a sua palavra, e por seguro a sua onipotência, por que o não dais a cento por um? Se fiais de um homem o vosso dinheiro, por uma escritura feita no Paço dos Tabeliães, por que o não fiais de Deus por três Escrituras, debaixo do sinal raso de S. Mateus, de S. Marcos, de São Lucas? Que bem aperta este argumento S, Pedro Crisólogo: Homo homini exiguae cartullae obli gatione constringitur: Deus tot ac tantis voluminibus cavet, et tamen debitor non tene tur? Estais seguro que um homem vos não há de faltar com o lucro prometido, porque se obrigou por uma folha de papel, e temeis que vos falte Deus, tendo-se obrigado em tantos livros sagrados, e com tantas Escrituras? - O certo é que, se quereis o cento por um que promete Cristo havíeis de dar o vosso dinheiro a Deus de muito boa vontade, por a metade menos; mas por que quereis e aceitais antes os cinco por cento que vos promete um homem? Porque não dais crédito às palavras de Deus, porque não vos fiais das promessas dos seus Evangelhos, enfim, porque cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: Non creditis mihi.

Infinita matéria era esta, se a houvéramos de prosseguir com ponderações tão largas. Mas não é bem que, sendo tão importante, não convençamos ainda mais a nossa pouca fé. Seja em termos brevíssimos. Que mais diz Cristo? Diz Cristo - e esta foi a primeira coisa que disse - que são bem-aventurados os pobres, e que deles é o reino do céu. Todos queremos ser bem-aventurados, todos queremos ir ao céu, e, sendo tão fácil o ser pobre, e tão dificultoso o ser rico, ninguém quer ser pobre: por quê? Porque não cremos a Cristo. Diz Cristo que, se nos derem uma bofetada na face direita, ofereçamos a esquerda, e, sendo mais nobre a paciência que a vingança, nós temos a vingança por honra, e a paciência por afronta: por quê? Porque não cremos a Cristo. Diz Cristo que quem se humilha será exaltado, e quem se exalta será humilhado; e nós cuidamos que sendo humildes nos abatemos, e sendo altivos e soberbos nos levantamos: por quê? Porque não cremos a Cristo.

Diz Cristo que deixemos aos mortos sepultar os seus mortos; e nós desenterramos os mortos, para sepultar os vivos. Diz Cristo que amemos e façamos bem a nossos inimigos; e quem há que ame verdadeiramente e guarde inteira fé aos amigos? Diz Cristo que, se amarmos os inimigos, seremos filhos de Deus; e nós dizemos: não serei eu filho de meu pai, se mo não pagar o meu inimigo. Diz Cristo que se por demanda nos quiserem tirar a capa, larguemos também a roupeta; e nós não fazemos já as demandas para defender o vestido próprio, senão para despir o alheio, Diz Cristo que vigiemos e estejamos sempre aparelhados, porque não sabemos o dia nem a hora em que virá a morte; e cada um vive e dorme tão sem cuidado, como se fôramos imortais. Diz Cristo que quem ouve os prelados, o ouve a ele, e quem os despreza, o despreza; e nós, ainda que o prelado seja o supremo, desprezamo-nos de o ouvir, e ouvimos e ajudamos os que o desprezam. Diz Cristo que é mais fácil entrar um calabre pelo fundo de uma agulha, que entrar um avarento no reino do céu; e nós, em vez de desfiar o calabre, todo o nosso cuidado é como o faremos mais grosso. Diz Cristo que, se dermos esmola, não saiba a mão esquerda o que faz a direita; e nós queremos se apregoe com trombetas que damos com ambas as mãos o que recebemos com ambas. Diz Cristo que, se o olho direito nos escandaliza, o arranquemos, e que se a mão, ou o pé direito nos for também de escândalo, o cortemos e lancemos fora; e quem há que queira cortar ou apartar de si, nem a coisa que ama como os olhos, nem aquela de que se serve, como dos pés e mãos? Finalmente diz Cristo que ele é o caminho, a verdade e a vida; e nós vivemos tais vidas e andamos por tais caminhos, como se tudo isto fora mentira: por quê? Porque não cremos a Cristo. Fique pois por conclusão certa e infalível, ainda que seja com grande confusão nossa e afronta do nome cristão, que todos, ou quase todos, cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: Non creditis mihi.

§V

Admirado, Cristo pede-nos a razão de nossa incredulidade. A verdadeira resposta da pergunta de Cristo: as dificuldades de crer em Cristo estão da parte do objeto, as dificuldades de crer a Cristo estão da parte do sujeito. Por que se não louva e encarece em Abraão, pai dos crentes, a fé com que creu em Deus, senão a fé com que creu a Deus?

Admirado Cristo de que sendo a suma verdade o não creiamos, pede-nos a razão desta incredulidade, e diz que lhe digamos o porquê dela: Quare non creditis mihi? Não há coisa mais dificultosa que dar a razão de uma sem-razão. E isto é o que só resta ao nosso discurso, não para responder a Cristo, a quem não podemos satisfazer, mas para doutrina e emenda nossa, e para que entendamos e conheçamos a raiz de tamanho mal. Qual é, pois, ou qual pode ser a razão por que, crendo todos nós em Cristo, haja tão poucos que creiam a Cristo? A fé com que se crê em Cristo, a fé com que se crê que é Deus um homem crucificado, tem todas aquelas dificuldades que, nos dois povos de que então se compunha o mundo, experimentou S. Paulo quando disse: Praedicamus Christum crucifixum, Judaeis quidem scandalum, gentibus autem stultitiam[27]. Pois, se crer como se deve em Cristo é um ponto no qual acha tanta dificuldade e ainda horror o entendimento humano, enquanto Deus sobrenaturalmente o não alumia, nós que tão facilmente e sem repugnância cremos todos em Cristo, por que não cremos também todos a Cristo? Quare non creditis mihi?

A razão desta sem-razão é porque as dificuldades de crer em Cristo estão da parte do objeto, as repugnâncias de crer a Cristo estão da parte do sujeito: aquelas estão longe de nós, estas estão dentro em nós. A fé, que não dói, é muito fácil de crer; a fé, que se não pode praticar sem dor, é muito dificultosa de admitir. A fé com que creio em Cristo manda-me que creia a sua paixão; a fé com que creio a Cristo manda-me que mortifique as minhas, e aqui está a dificuldade, Para crer em Cristo basta fazer um ato sobrenatural; para crer a Cristo é necessário fazer muitos atos contra a natureza, e é mais fácil excedê-la uma vez, que batalhar continuamente contra ela, e vencê-la muitas. O mesmo S. Paulo, definindo a fé, diz que é: Argumentum non apparentium[28]E entre as coisas que não aparecem, e as coisas que não se apetecem há grande diferença. Para crer as coisas que não aparecem, pode não ter dificuldade o entendimento; para querer as coisas que não se apetecem, sempre tem repugnância a vontade. Com a vontade falou Cristo, quando admiravelmente declarou, ou supôs esta mesma diferença: Si quis vult venire post me, abneget semetipsum, et tollat crucem suam (Mt. 16, 24): Se alguém me quer seguir, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz às costas. - Notai. Não diz Cristo: quem me quiser seguir confesse-me a mim, senão negue-se a si. Nem diz adore a minha cruz, senão leve a sua. Confessar a Cristo e adorar a sua cruz é crer nele: negar-me a mim, e levar a minha cruz, é crê-lo a ele; e porque isto é o dificultoso à humanidade fraca e corrupta, esta mesma apreensão de dor, este receio de mortificação, esta contrariedade da natureza, que traz consigo a doutrina de Cristo nas coisas que nos manda ou aconselha, esta é a razão ou sem-razão que entibia e acovarda a segunda parte da nossa fé, e nos aparta de crer a Cristo.

O homem de todos os séculos mais afamado e celebrado em crer, e por isso chamado nas Escrituras Pai dos crentes, foi Abraão: Celebram esta sua fé, no Testamento Velho, Moisés, no Novo, S. Paulo e São Tiago, e todos pelas mesmas palavras dizem que Abraão creu a Deus: Credidit Abraham Deo (Gên. 15, 6; Tg. 2, 33; Rom. 4, 3). Abraão, antes de crer a Deus, creu em Deus, e não creu em Deus como nós, que recebemos a fé de nossos pais, senão com maior merecimento, e por própria eleição, sendo filho de pais idólatras, e ele também idólatra. Pois se Abraão creu no verdadeiro Deus, abjurando os ídolos, por que se não louva e encarece nele a fé com que creu em Deus, senão a fé com que creu a Deus: Credidit Abraham Deo? Porque crer em um Deus, e não crer em muitos, crer no Deus verdadeiro, e não crer nos deuses falsos, crer no criador do céu e da terra, e não crer em paus e pedras, é crença que não tem dificuldade. O lume natural o mostra, a razão o dita, o entendimento o alcança. Porém crer a Deus - que não é crer especulativamente o que ele é, senão praticamente o que ele manda ou aconselha - mandando muitas coisas repugnantes à natureza e contrárias à vontade, e aconselhando outras ainda mais contrárias e repugnantes, isto é o que se louva, porque isto é o que dói; isto é o que se encarece, porque isto é o que custa; isto é o grande e heróico, porque isto é o árduo e dificultoso. E se não, vede-o no mesmo Abraão, e no que Deus lhe mandou obrar.

Depois que Abraão creu em Deus, disse-lhe Deus já crido que saísse da sua pátria e da casa de seu pai, e de entre seus parentes e amigos, e se fosse peregrino a outra terra, a qual ele lhe mostraria: Egredere de terra tua, et de cognatione tua, et de domo patris tui, et vem in terram, quam monstravero tibi (Gên. 12, 1). E crer eu a Deus, quando me manda trocar a pátria pelo desterro, o descanso pela peregrinação, a casa própria e grande por uma choupana, a companhia dos que são meu sangue pela de gente estranha, de costumes e língua desconhecida, e sobretudo sem saber para onde vou ou me levam, vede se foi grande prova esta de fé, e se tinha neste ato muito que reclamar a natureza? Mas não parou aqui. Promete Deus a Abraão um filho, e dá-lhe Isac; promete-lhe neste filho grande descendência e grandes felicidades; eis que no meio destas esperanças, como se Deus virara a folhas e se esquecera ou arrependera do que tinha prometido, manda a Abraão que prepare espada, fogo e lenha, e que vá tirar a vida ao mesmo Isac, e lho sacrifique em um monte, que ele também lhe mostraria: Tolle filium tuum primogenitum, quem diligis Isaac, et offeres illum in holocaustum super unum montium quem monstravero tibi (Gên. 22, 2). E crer um pai a Deus, quando lhe manda sacrificar o filho único e unicamente amado, com todos os motivos de horror e lástima que o mesmo Deus não calou, e que seja o mesmo Abraão, com suas próprias mãos, o executor do sacrifício, e que o sacrifício não seja outro, senão holocausto de que lhe não ficasse parte ou prenda, mais que a dor, a saudade e as cinzas? Aqui pasmou a natureza, aqui triunfou o valor, aqui batalhou a fé contra a fé, e se venceu a si mesma. Por isso não se celebra em Abraão o crer em Deus, senão o crer a Deus: Credidit Abraham Deo.

Mas antes que feche o discurso, quero satisfazer a uma grande objeção, com que podem replicar ao que tenho dito os versados na Escritura. Quando a escritura disse de Abraão: Credidit Abraham Deo, ainda Isac não era nascido, quanto mais sacrificado, porque o caso do sacrifício sucedeu daí a vinte e seis anos, tendo Isac vinte e cinco de idade. Como logo podia cair e referir-se a esta ação o testemunho e elogio da sua fé? Que o mesmo testemunho se refira ao desterro da pátria, posto que passado, como dizem os comentadores, seja; porém ao sacrifício futuro e tão distante, que nem era, nem fora, nem havia de ser, senão daí a tantos anos, como pode ser? Agradecei a solução desta nova e fortíssima instância, a um notável texto do apóstolo São Tiago, no capítulo 2 da sua Católica: Abatiam pater noster nonne ex operibus justificatus est, offerens Isaac filium suum super altare? Et suppleta est scriptura, dicens: Credidit Abraham Deo[29]. Notai muito esta última cláusula, que é milagrosa. Diz pois São Tiago que naquela ocasião famosa em que Abraão sacrificou a seu filho, então supriu a Escritura o ilustre testemunho que tinha dado de sua fé, quando disse: Abraão creu a Deus. Et suppleta est Scriptura, dicens: Credidit Abraham Deo. De maneira que o testemunho da Escritura tinha sido antes, o sacrifício de Isac foi tantos anos depois, e contudo o testemunho passado refere-se ao sacrifício futuro, porque, enquanto não chegava o ato do sacrifício, esteve a Escritura como suspensa e embargada, esperando aquela maior prova da fé de Abraão, para suplemento do que tinha dito. Enquanto Abraão não sacrificou, nem o seu valor estava bastantemente qualificado, nem o testemunho da Escritura cabalmente completo; mas quando ele se arrojou ao sacrifício, então acabaram ambos de suprir e desempenhar, Abraão a sua fé, a Escritura a sua verdade: Et suppleta est Scriptura, dicens: Credidit Abraham Deo - para que se veja quão certa é a razão que assinamos de diferença entre o crer em Deus e o crer a Deus, entre o crer em Cristo e o crer a Cristo, e que só crê a Deus e a Cristo, como deve, quem contra as repugnâncias da natureza, e sobre todas as leis do próprio amor, pronta e constantemente o obedece. Mas porque a nós nos falta esta resolução e valor, e nas coisas que Cristo nos manda ou aconselha, nos deixamos enfraquecer do receio e vencer da dificuldade, por isso, crendo em Cristo, não cremos a Cristo. Esta é a verdadeira resposta daquela pergunta; este o verdadeiro porquê daquele quare: Quare non creditis mihi?

§ VI

Suposto que não cremos a Cristo, a quem cremos, senão aos três inimigos de nossa alma: o mundo, o demônio e a carne? A fé com que se crê a Deus e a Cristo, essa só é a fé que justifica e salva. O perigo de se perder a primeira parte da fé, se nos faltar a segunda.

Agora que tenho satisfeito ao tema, acabado o discurso, e, se me não engano, provado o que prometi, quisera perguntar por fim a todo o cristão, ou que cada um se perguntasse a si mesmo: suposto que não cremos a Cristo, a quem cremos? Se não cremos a Cristo, no que nos manda como verdadeiro Senhor, no que nos ensina como verdadeiro Mestre, e no que nos aconselha como verdadeiro amigo, a quem cremos, ou a quem podemos crer, senão a um tirano que nos violente, a um traidor que nos engane, a um lisonjeiro que nos perca? Non credas inimico tuo in aeternum (Eclo. 12, 10), diz o Espírito Santo: A teu inimigo, não o creias jamais. - E quem são estes a quem cremos, senão os três inimigos de nossa alma? O tirano que nos violenta e cativa é o mundo; o traidor que nos mente e engana é o demônio; o lisonjeiro que, falando sempre ao sabor dos sentidos, nos precipita e perde é a carne. Ó carne, ó natureza corrupta, ó apetite depravado, ó fraqueza e miséria humana, que facilmente te rendes ao aparente bem deleitável, e que cega e poderosamente resistes ao honesto e útil. Não crês a quem te promete e abre o céu, e crês a quem to fecha? Não crês a quem com amor te ameaça o inferno, e crês a quem com falsa doçura te arrebata e leva a ele? Tal é a nossa cegueira, tal a nossa loucura, tal a nossa pusilanimidade e covardia

Creu Abraão a Deus antes de ser homem, creu a Deus antes de encarnar e morrer por ele, e nós, rebeldes aos exemplos de sua vida, e ingratos às finezas de sua morte, não cremos a Cristo? Não nos manda Cristo, depois de deixar o céu que deixemos a pátria, como a Abraão; não nos manda Cristo que depois de se pôr em uma cruz por nós lhe sacrifiquemos os filhos, e não nos envergonhamos que um homem, que não tinha mais lei que a da natureza, contra as maiores repugnâncias da mesma natureza, tivesse fé e valor para crer a Deus, quando lhe punha tão duras leis? Então vivemos mui confiados que nos havemos de salvar não crendo a Cristo, só porque cremos em Cristo. Olhai o que acrescenta o texto à fé de Abraão: Credidit Abraham Deo, et reputatum est illi ad justitiam: Creu Abraão a Deus, e então foi reputado e canonizado por justo. Porque creu a Deus, diz, e não porque creu em Deus. A fé com que se crê em Deus e em Cristo é fé de justos e pecadores; a fé com que se crê a Deus e a Cristo, essa só é a fé dos justos, porque só essa sobre a outra é a que justifica e salva. Muitos que creram em Deus e em Cristo estão no inferno; e dos que chegam a uso de razão, só os que crêem a Deus e a Cristo se salvam.

E por que nos não lisonjeemos com a fé de cristãos e católicos, que nos distingue dos gentios e dos hereges, quero acabar estas verdades com uma verdade em que não cuidamos os portugueses, e nos devera dar a todos grande cuidado. Fiamo-nos muito em que cremos firmemente em Cristo, como fiéis católicos? Pois eu vos digo, da parte do mesmo Cristo, e vos desengano, que, se faltarmos à segunda parte da fé, também nos faltará a primeira, e que, se não cremos a Cristo, estamos muito arriscados a não crer em Cristo, Inglaterra, Holanda, Dinamarca, Suécia, e tantas outras províncias e nações da Europa, ou totalmente perdidas, ou infeccionadas da heresia, também foram católicas como nós, também floresceram na fé, também deram muitos e grandes santos à Igreja. E porque cuidais que apostataram da mesma Igreja e da verdadeira fé, que só ela ensina? Diga-o a sua doutrina e os seus mestres. Lutero e Calvino, e os outros que eles levaram após seus erros, também criam em Cristo, mas porque no creram a Cristo, já não crêem nele. Impugnam e negam o Evangelho, porque não creram ao Evangelho. Deram-se soltamente aos vícios e pecados, e, porque os não quiseram confessar, negaram o sacramento da confissão; largaram a rédea à torpeza e sensualidade, e, porque não quiseram guardar continência, negaram a castidade; entregaram-se às demasias e intemperanças da gula, e, porque não quiseram ser sóbrios, negaram o jejum e a penitência; seguiram em tudo a largueza e liberdade da vida, e, porque não quiseram obrar bem, negaram o valor e necessidade das boas obras. Enfim, deixada a lei de Deus como fiéis, e a da razão como homens, fizeram outra, que eles chamam religião, na qual só se crê o interesse e se obedece o apetite. Vede que fé se podia conservar entre costumes de brutos? Conservam o Batismo e nome de cristãos, mas verdadeiramente são ateus; e porque não creram a Cristo, passaram a não crer em Cristo. Estas são as disposições por onde se introduziu e se ateou em tantos reinos a peste da heresia E praza a Deus que do Setentrião não passe também ao Ocidente! Ainda cá não chegou, mas já está em caminho. E segundo os vícios lhe têm aberto as estradas, não será dificultosa a passagem.

§ VII

Os ninivitas creram tão facilmente em Deus, porque creram a Deus. A admoestação de S. Paulo a Timóteo, e os exemplos de Himineu e Alexandre. A apostasia de Presbítero Saprício e o martírio de Nicéforo.

Não lhe será, torno a dizer, dificultosa a passagem, porque assim como os que crêem a Deus passam facilmente a crer em Deus, assim, de não crer a Cristo é fácil passar a não crer em Cristo. Nínive era a maior cidade que houve no mundo, a gente infinita, os moradores todos gentios, sem fé nem conhecimento de Deus, os costumes corruptíssimos e abomináveis, e em tudo semelhantes aos do rei, que então era o infame Sardanapalo. E contudo diz a Escritura que todos os ninivitas em um dia creram em Deus: Caepit Jonas praedicare itinere unius diei, et crediderunt viri ninivitae in Deum[30]Pois se estes homens eram gentios, e tantos milhares, e tão habituados nos vícios, que são os que mais escurecem os entendimentos, e mais endurecem as vontades, como creram em Deus tão facilmente? Creram em Deus porque creram a Deus. Mandou-lhes Deus anunciar pelo profeta Jonas que dentro em quarenta dias se havia de abrir a terra e soverter a cidade, e assombrados do pregão, e atemorizados do castigo, creu o rei, e creu o povo o que Deus pelo profeta lhes dizia.

E como creram a Deus, logo também creram em Deus: Crediderunt viri Ninivitae in Deum. Desenganemo-nos pois, que se de crer a Deus se passa tão facilmente a crer em Deus, também de não crera Cristo sé passará com facilidade anão crerem Cristo. Não sou eu o que o digo, é S. Paulo. E falava S. Paulo com Timóteo, melhor cristão que nós, e de cuja fé se podia temer menos semelhante ruína. Era Timóteo discípulo do Apóstolo, era tão provecto na fé de Cristo, que no sobrescrito desta mesma epístola lhe chama dileto filho na fé; era tão santo e favorecido do céu, que tinha mui altas ilustrações e revelações divinas; e contudo o grande mestre das gentes, logo no primeiro capítulo, o admoesta e compunge assim: Comendo tibi, fili Timothee, secundum praecedentes in te prophetias, ut milites in illis bonam militiam, habens fedem et bonam conscientiam, quam quidam repellentes, circa fidem naufragaverunt (1 Tim. 1, 18 s): Encomendo-te, filho meu Timóteo, que te não fies nas tuas revelações, para te descuidar da vida. Traze sempre unidas, no coração e nas obras, a boa consciên cia com a fé, e a fé com a boa consciência, porque muitos, já neste princípio da Igreja, porque não fizeram caso da consciência, fizeram naufrágio na fé.-Oh! quanto se pode temer à vista destes naufrágios, que também o faça esta nau em que imos embarcados! Ela leva nas bandeiras a cruz e chagas de Cristo, mas quando as costuras da consciência se vêem tão rotas e tão abertas, quando cremos tão pouco a Cristo e sua doutrina, que se pode esperar, senão o que aconteceu a tantos? Os nossos pecados não são mais privilegiados que os seus, nem menos pesados, e se os seus os levaram ao fundo, e chegaram a naufragar na fé, porque não temeremos nós semelhante desgraça, e que também se diga algum dia dos portugueses - o que a divina misericórdia não permita: - Circa fidem nau fragaverunt.

S. Paulo põe por exemplo a Timóteo dois cristãos mui nomeados da primitiva Igreja, Himineu e Alexandre, que, por não se acomodarem às leis e conselhos do Evangelho, depois de receber a fé, apostataram dela. Eu, em lugar de peroração, quero deixar-vos na memória outro exemplo, também vizinho àqueles tempos, mas muito mais temeroso, e verdadeiramente horrendo. No ano de Cristo duzentos e sessenta, na cidade de Antioquia - onde primeiro esteve a Cadeira da Fé e de São Pedro, que em Roma - foi preso pela confissão de Cristo um presbítero chamado Saprício[31]. Padeceu constantemente o cárcere e outros tormentos; foi levado finalmente com a mesma constância ao lugar do martírio, e quando estava já como Isac sobre a lenha, e o tirana com o golpe armado para lhe cortar a cabeça, chega Nicéforo, que tinha sido seu inimigo, e, lançado a seus pés, lhe pede que ao menos naquela hora o receba em sua graça e lhe deite a sua bênção. Que vos parece, senhores, que responderia Saprício, e que faria em tal ato? Claro está que, se lhe não pudesse lançar os braços, por ter as mãos atadas, com todo o afeto do coração e com a maior doçura de palavras o meteria dentro na alma que tão gloriosamente partia para o céu e dava por Cristo. Caso porém inaudito e sobre toda a imaginação estupendo! Respondeu Saprício irado que se tirasse de sua presença, que se não havia de reconciliar com tal homem, que ainda era tão inimigo seu como sempre fora, e que, na ocasião em que estava, mostraria ao mundo que o havia de ser até a morte. Parece que excede toda a fé humana uma tal resposta, de tal pessoa, e em tal hora. Mas quis a Providência divina que as atas e testemunhos autênticos de todo o sucesso existissem ainda hoje, como refere Barônio, para que não vacilasse o crédito de tamanho caso, que ainda é maior.

Mas antes que vá por diante, ouça-me Saprício, já que não quer ouvir a Nicéforo. Homem, sacerdote, monstro, vês onde estás? Lembras-te do que és? Conheces o que queres ser? Estás debaixo do alfange do tirano, queres ser mártir de Cristo, e não te lembras que és cristão? Não te lembras que diz Cristo-e com advertência de que ele o diz: -Ego autem dico vobis: diligite inimicos vestros[32]Pois como não amas este que, se foi teu inimigo, já o não é, e mais quando ele, rendido a teus pés, te pede perdão? Não te lembras que diz o mesmo Cristo, que se fores oferecer sacrifício sobre o altar, deixes aí o sacrifício, e te vás primeiro reconciliar com teu próximo, se tiver de ti alguma ofensa: Si offers munas tuum ad altare, relinque ibi munas tuum, et vade prius reconciliari fratri tuo (Mt. 5, 23)? Pois se Nicéforo se vem reconciliar contigo, estando nu, oferecendo o sacrifício de tua vida e sangue por Cristo, como não aceitas sua amizade, e queres morrer como viveste, em ódio? Aqui vereis, cristãos, como é certo o que vos preguei, que nem todos os que crêem em Cristo crêem a Cristo. Saprício cria tão firmemente em Cristo que, por confessar a sua fé, estava dando a vida; e no mesmo tempo cria tão pouco a Cristo, que, contra dois preceitos expressos de sua doutrina, nem amava a seu inimigo, nem se quis reconciliar com ele.

E para que vejais também no mesmo caso quão certo é o que eu acabava de vos dizer, que quem não crê a Cristo facilmente passa a não crer em Cristo, ouvi com maior assombro o que se seguiu àquela resposta. Tanto que Saprício respondeu a Nicéforo que ainda era seu inimigo, e não se queria reconciliar com ele, volta-se ao tirano, que ia para descarregar o golpe, manda-lhe que suspenda a espada. E para quê, ou por quê? Porque eu, diz Saprício, já não sou cristão, renego de Cristo, e quero oferecer incenso aos ídolos. Assim o disse, e assim o fez o verdadeiro e falso católico, passando, em um momento, de sacerdote a sacrílego, de mártir a renegado, e de cristão a idólatra. Sapricius - conclui o mesmo Barônio - vita jam oppignerata martyrio, quod veteri adio flagraret in Nicephorum, ipsum prope ictum vibrante carnifice, Christum negans idolis sacrificavit. Pode haver mais temeroso exemplo, e mais para fazer temer a todo o cristão? Mas assim vêm a não crer em Cristo os que não crêem a doutrina de Cristo. E ainda mal, porque não é só Saprício, o cristão e o sacerdote, em que se representam os atos de semelhante tragédia: Confitentur se nosse Deum, factis autem negant[33]Não renegam de Cristo com a boca, mas renegam-no com as obras; não oferecem incenso aos ídolos, mas têm ídolos a quem sacrificam os corações; não professam publicamente o gentilismo, mas pública ou secretamente vivem como ateus. Creiamos, creiamos a Cristo, e teremos segura a fé com que cremos em Cristo. E se for necessário dar por ele a vida, também a daremos constantemente, e sem mudança. Tal foi - ainda continuo a história - tal foi a maravilhosa catástrofe com que a fortuna não merecida de Saprício, no mesmo teatro, no mesmo momento, e na continuação do mesmo ato, se passou a Nicéforo. Já o tirano ia embainhando sem sangue a mal temida espada, contentando-se com a fraqueza e retratação do apóstata, quando Nicéforo, levantando-se de seus pés, onde lhe pedira e não alcançara o perdão, e substituindo-se animosamente no seu lugar: Aqui estou - disse em alta voz - sou cristão; este posto é meu. Nem à fé de Cristo lhe podem faltar defensores, nem a seus altares vítima. Aqui está o peito aberto e a garganta nua. O sacrifício que começaste noutro, acaba-o como quiseres em mim. - Não sofreu a raiva do tirano mais palavras, nem teve paciência para mais dilatados tormentos: começou pelo último. Esperou o novo e melhor mártir com a mesma constância e alegria a ferida mortal, levaram-lhe a cabeça, e recebeu a coroa. Tal foi o fim de Nicéforo, tal o de Saprício, digno um e outro da fé de ambos. Saprício creu em Cristo, mas não creu a Cristo, e perdeu a Cristo para sempre; Nicéforo creu em Cristo, e creu a Cristo, e goza, e gozará de Cristo nas eternidades.

[1] Se eu vos digo a verdade, por que me não credes? (Jo. 8, 46)?

[2] Credes em Deus, crede também em mim (Jo. 14, 1).

[3] O que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá (Jo. 11, 25).

[4] Mulher, crede-me (Jo. 4, 21).

[5] Quando não queirais crer em mim, crede as minhas obras (Jo. 10, 38).

[6] A todos vós serei esta noite uma ocasião de escândalo (Mt. 26, 31).

[7] Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão (Mt. 26, 31).

[8] E vós, quem dizeis que sou eu ? Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo (Mt 16, 15 s).

[9] Eis aí vos pediu Satanás com instância, para vos joeirar como trigo (Lc. 22, 31).

[10] Por que vos mandou Deus (Gên. 3, 1)?

[11] Porque Deus sabe que em qualquer dia que vós comais desse fruto (Gên. 3, 5).

[12] Bem podeis estar seguros que não morrereis de morte (Gên. 3, 4).

[13] Ita Damasc. Epist. ad Epictec. 1 Petri 3, 10. 20.

[14] Também foi pregar aos espíritos que estavam no cárcere, que noutro tempo tinham sido incrédulos, quando nos dias de Noé esperavam a paciência de Deus, enquanto se fabricava a arca (1 Pdr. 3, 19 s).

[15] Descendisse Christum ad infernam damnatorum sententia est Aug. Fulgent. Nis. Cyril. Hierosol. Euseb. Emis. et aliar quos citat, et sequitur Bellarminus, De Christi Anima, L. 4, c. 16.

[16] D. Th. q. 52, art. 4. ad 2.

[17] Clemens Rom. lib. 1. Recog. Epiph. praef lib. de Haeres. Cyril. L. 1. et III, contra Julian. Damasc. init. I de Haeresib. Hier Oseae 2. Euseb. in Chron. et passim alii.

[18] A qual, como não achasse onde pousar o seu pé (Gên. 8, 9).

[19] Aug. Conf. lib. 4, cap. 12.

[20] Cujo cume chegue até o céu (Gên. 11, 4).

[21] A soberba deles sobe continuamente (SI. 73, 23).

[22] Sêneca.

[23]Porque, ou há de aborrecer um e amar outro, ou há de acomodar-se a este e desprezar aquele (Mi. 6, 24).

[24] Fizeste-me servir nos teus pecados (Is. 43, 24).

[25] Neste mesmo século a cento por um, e no século futuro a vida eterna (Mc. 10, 30; Lc. 18, 30).

[26] Negociai até eu vir (Lc. 19, 13).

[27] Nós pregamos a Cristo crucificado, que é um escândalo de fato para os judeus, e uma estultícia para os gentios (1 Cor. 1, 23).

[28] Argumento das coisas que não aparecem (Hebr. 11, 1).

[29] Abraão, nosso pai, não foi ele justificado pelas obras, oferecendo seu filho Isac sobre o altar? E cumpriu-se a Escritura que diz: Abraão creu em Deus (Tg. 2, 22 s).

[30] Na Vulgata: E Jonas começou a entrar na cidade, andando por ela um dia... e creram os ninivitas em Deus (Jon. 3,4 s).

[31] Baron. Spond. anno Christi 260.

[32] Mas eu vos digo: Amai a vossos inimigos (Mt. 5, 44).

[33] Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no com as obras (Ti. 1, 16).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística