Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Sermão de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, ano de 1651, de Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA PREGADO EM LISBOA, NA IGREJA DE N. SENHORA DOS MÁRTIRES, ANO 1651

Stabat juxta crucem Jesu Mater ejust[1].

§I

A causa da misteriosa impropriedade do Evangelho: Maria é mostrada junto à cruz, porque a cruz é a vara por onde a havemos de medir e a balança com que a havemos de pesar. Assunto do sermão: medir e pesar a graça de Maria.

Este é o Evangelho que hoje nos propõe a Igreja, mas se eu houvera de fazer a eleição, não havia de ser este o Evangelho. Se a festa é da graça, por que não seria o Evangelho também da graça? Que no dia da Conceição, no do Nasci­mento, no da Assunção da Senhora nos não dê a Igreja Evangelho próprio, e que tenhamos os pregadores o trabalho de acomodar o texto à festa, ou de desacomo­dar a festa por amor do texto, terrível pensão é, mas forçosa, porque passaram os evangelistas em silêncio aqueles mistérios. Mas na festa da graça, que tão expres­sa e tão encarecida está no Evangelho? Verdadeiramente que se a acomodação não fora tão antiga, pudéramos cuidar que também aos Evangelhos abrangia a fortuna dos tempos: os que mais serviam, deixados, os que menos servem, aco­modados. Não estava aí graça, e mais graça no capítulo segundo de S. Lucas?

Não ouviríamos da boca de Gabriel em termos claros: Ave gratia plena? Não ouviríamos da mesma boca angélica: Invenisti gratiam apud Deum[2]Que me­lhores duas bases, e mais capazes para levantar sobre elas o non plus ultra da graça de Maria, que estes dois grandes testemunhos do anjo, um de cheia, outro de inventora da graça? E contudo que nos negue, ou nos dissimule a Igreja neste dia tão claras e tão duplicadas luzes da graça da Senhora, e quando vimos a ouvir e admirar as excelências dela, nos meta entre as sombras e eclipses do Calvário, e nos ponha diante dos olhos a cruz arvorada: Stabat juxta crucem (Jo. 19, 25)?

Ora, eu buscando a causa desta misteriosa impropriedade —  que não pode ser sem mistério —  e reparando com atenção na cruz levantada, e na Senhora em pé junto a ela, representou-se-me a cruz naquelas duas figuras em que tantas vezes a vemos significada no Testamento Velho: em figura de vara, e em figura de balança. Figura da cruz foi a vara de José, adorada de Jacó, porque já então o sagrado e consagrado madeiro começava a ser venerado com adoração de latria (Gên. 47. 31; LXX. Hebr. 11, 21). Figura da cruz foi a vara de Arão florescente, porque havia de ter a cruz; por remate, o título de Nazareno, que quer dizer florido (Núm. 17, 8). Figura da cruz foi a vara que tocou e acendeu o sacrifício de Gedeão, porque com seu contato santificou o Redentor a Cruz, e nela consumou o maior sacrifício (Jz. 6, 21). Figura da cruz foi a vara de Assuero que, estendida sobre Ester, a livrou a ela e a todo seu povo da tirania de Amã, como a cruz a nós todos da sentença geral da morte (Est. 5, 2). Figura da cruz foi a vara que saiu de Sion para dominar todas as gentes, e as pôr —  como as tem posto a cruz —  sujeitas e rendidas aos pés de Cristo (SI. 109, 8). Figura foi enfim da cruz a vara de Moisés prodigiosa, a vara de Jônatas, que vertia mel, e sobre todas, a vara de Jessé, de cujas raízes nasceu o fruto coroado e bendito do ventre sacratíssimo de Maria (Êx. 4, 2; 1 Rs. 14, 27; Is. 11, 1).

E se a cruz erguida no Calvário foi figurada na vara, estendida e com os braços abertos, não com menor propriedade é figurada também na balança. Figura foi da cruz a balança de Jó, em que ele, simbolizando o Redentor, de uma parte quis se pusessem os nossos pecados, e da outra os seus tormentos (Jó 6, 2). Figura foi da cruz a balança de Jeremias, na qual o profeta pesou autenticamente o preço da terra, em fé de que Deus a havia de restaurar do cativeiro dos assírios (Jer. 32, 11). Figura foi da cruz a balança de Babilônia, em que Baltazar perdeu em uma hora a monar­quia, e se passou toda a Ciro, chamado por antonomásia o Cristo do Senhor (Dan. 5, 27). Figura foi da cruz a balança de Isaías —  como libra do firmamento —  na qual, suspendida por três dedos de Deus, toda a redondeza da terra pesa um só átomo (Is. 40, 13). Figura foi enfim da cruz a balança de Ezequiel, em que ele pesou os seus cabelos, não juntos, mas divididos, porque a cruz há de ser no dia do juízo aquela fiel balança, em que se hão de pesar os merecimentos, bons ou maus, de todos os homens, sem que fique, sem ser pesado nem um só cabelo (Ez 5, 1). E para que tudo nos estabeleça e confirme a mesma autoridade que nos deu o texto, a da Igreja, que é a mais qualificada de todas, assim o canta: Adsunt prodigia divina in virga Moysis primitus figurata! Eis aí a cruz figurada na vara: Statera facta corporis, tulitque praedam Tartari. Eis aí a mesma cruz figurada na balança[3].

Sendo pois a cruz vara, e sendo balança, já se descobre o grande mistério que ao princípio nos parecia impropriedade, e já se vê com quanta elegância e ener­gia se nos mostra a Virgem Santíssima junto à cruz, quando buscamos motivos so­bre que celebrar sua graça. Como se a mesma Igreja, que aplicou o Evangelho, o explicara e nos dissera: quereis conhecer a grandeza, quereis compreender a imensi­dade da graça de Maria, eis aí a vara por onde a haveis de medir, eis aí a balança com que a haveis de pesar: Stabat juxta crucem. Medir e pesar a graça de Maria será hoje o meu assunto. Mas quem poderá medir o imenso, quem poderá pesar o incompre­ensível? Só na hástea da cruz, onde Deus esteve estendido, se pode medir; só nos braços da cruz, onde Deus esteve pendente, se pode pesar. Ao medir, sei de certo que haveis de ficar admirados; ao pesar, desejara eu muito que ficáramos confundi­dos. Para tudo nos é necessária a mesma graça. Ave Maria.

§ II

Por onde se havia de medir a graça da Senhora? Pela Maternidade e não pela cruz, dizem os doutores da Igreja. Mas o autor afirma que a Maternidade de Deus, absolutamente considerada, não é bastante medida da graça de Maria. A Senhora teve maior graça do que havia de ter se Adão não pecara. Caso o Espírito Santo também se encarnasse, havendo assim duas Mães de Deus, a Mãe de Cristo teria maiores prerrogativas de graça. Na cruz, e nas conseqüências da cruz, cres­ceu a Senhora a maior graça, que graça de Mãe de Deus. A comparação dos anjos nos Cânticos. Palavras do doutíssimo Sono.

Stabat juxta crucem Jesu Mater ejus.

Estava junto da cruz de Jesus, sua Mãe. Não temos dito nada. Eis aqui por onde se havia de medir a graça da Senhora. Havia-sede medir pela Maternidade, e não pela cruz, pelo Mater ejus, e não pelo juxta crucem, porque o ser Mãe de Deus é a medida mais cabal da graça de Maria. S. João Damasceno, S. Epifânio, S. Agos­tinho, S. Bernardo, S. Boaventura, mas para que é nomeá-los? Todos os Padres, todos os Doutores, quanto mais ponderam, quanto mais encarecem, e quanto mais querem dar a conhecer a graça da Senhora, medem-na pela Maternidade de Deus. Teve tanta graça Maria, quanta era bem que tivesse a que era digna Mãe de Deus. Isto dizem todos os doutores, e aqui para todos os encarecimentos. Mas com licença de todos, ajudado com o favor da mesma Senhora, para maior glória de sua graça, determino dizer dela hoje o que até agora se não disse. Digo que o ser Maria Mãe de Deus não é bastante medida para nos dar a conhecer a grandeza da sua graça, porque a graça de Maria foi maior graça que graça de Mãe de Deus. Torno a dizer, e explico-me mais: pudera a Senhora ser Mãe de Deus com toda a graça necessária e propor­cionada àquela dignidade, e não ter tanta graça quanta teve: logo, a graça de Maria é maior graça que graça de Mãe de Deus; logo a Maternidade de Deus, absolutamen­te considerada, não é bastante medida da graça de Maria. Como este modo de dizer é tão novo, e hoje a primeira vez que sai a público, para que vá assentado sobre os fundamentos mais sólidos, haveis-me de dar licença que discorra um pouco ao esco­lástico. Uma vez na vida bem se sofre.

Argumento assim: quando a Virgem Maria concebeu em suas entranhas o Verbo Eterno, encheu Deus a Senhora de tanta abundância de graça; quanta era bem que tivesse a que desde aquele ponto era digna e verdadeira Mãe sua. Isso quis signifi­car o anjo quando disse: Ave gratia plena, e assim o declara Santo Tomás: Dicitur gratia plena, quia scilicet habuit sufficientem gratiam ad statum illum, ad quem electa est a Deo, scilicet, ut esset Mater Unigeniti ejus. Sed sic est, que a Senhora depois domistério da Encarnação, e principalmente ao pé da cruz, mereceu e cresceu incompara­velmente na graça: logo a graça da Senhora foi maior graça que graça de Mãe de Deus absolutamente considerada. É tão evidente a força deste argumento, que, movidos sem dúvida dele, o sutilíssimo Escoto, S. João Damasceno, Guerrico Abade, e alguns ou­tros Padres e teólogos vieram a ter opinião que a Senhora, desde o ponto em que concebeu o Verbo Divino, não crescera mais em graça. A sua conseqüência era boa, se a suposição fora verdadeira. Supunham que a Senhora não tivera mais graça que a graça proporcionada à de Mãe de Deus: logo, se a Senhora, no instante da Encarnação, teve toda a graça que era proporcionada àquela dignidade, bem se seguia que não podia crescer mais na graça. Sendo porém certo —  como é sentença comum dos teólogos, e o prova larga e doutamente o Padre Soares —  que a Senhora cresceu sempre na graça, segue-se logo que teve maior graça que graça de Mãe de Deus.

Mais. Em caso que Adão não pecara, como podia não pecar, perguntam os teólogos se havia Deus de fazer-se homem. E resolvem mais comumente que sim. Neste caso a Virgem Senhora nossa havia de ter graça proporcionada à dignidade de Mãe de Deus, e contudo não havia de ter muita parte da graça que hoje tem. Provo. Porque naquele estado não havia de haver os desamparos do presépio, nem as perse­guições de Herodes, nem os desterros do Egito, nem a espada de Simeão, nem as peregrinações de Judéia; não havia de haver pretório de Pilatos, nem Calvário, nem cruz, nem espinhos, nem lança, nem soledades, nem outras tantas ocasiões de pade­cer e merecer, que foram conseqüências do pecado de Adão. É verdade que, em lugar destes atos, sempre a Virgem havia de fazer outros muito dignos de graça, mas não haviam de ser tão meritórios como estes, como também o não foram outros que a mesma Senhora fez em sua vida. Bem se infere logo que a Senhora teve maior graça do que houvera de ter, se Adão não pecara. E contudo, se Adão não pecara, havia a Senhora de ser verdadeira Mãe de Deus, com a graça proporcionada àquela dignidade. Teve logo maior graça, que graça de Mãe de Deus. Toda esta doutrina é mais conforme à de São Paulo, o qual diz que o pecado de Adão foi ocasião de maior graça: Ubi abundavit delictum, superabundavit et gratia[4]Se Adão não pecara, fora a Senhora Mãe de Deus com graça abundante; e porque pecou, foi Mãe de Deus com graça superabundante: Superabundavit et gratia.

Mais. Assim como encarnou a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, assim pudera também encarnar a terceira. Suponhamos pois que o Espírito Santo se fez homem. Neste caso havia de haver duas Mães de Deus: uma a Virgem Maria, e outra a Mãe do Espírito Santo; e contudo a Mãe do Espírito Santo não havia de ter tanta graça, como teve a Virgem Maria: logo a Virgem Maria tem mais graça que a de Mãe de Deus absolutamente. E que a Mãe do Espírito Santo hão houvesse de ter tanta graça, prova-se, porque, como ensina a Teologia, os Santos Padres e a razão da Providência divina, Deus dá a graça conforme os ofícios para que elege; e a Mãe do Espírito Santo, ainda que havia de ser Rainha dos homens e dos anjos, soberana Senhora de todo o criado, não havia porém de ter outros ofícios de grande dignidade e merecimento, que teve a Virgem Maria, porque, como o mundo estava já remido, não havia de ser reparadora dos erros de Eva, não havia de ser corredentora, ou, quando menos, coadjutora da Redenção, não havia de ser sucessora de Cristo na propagação da fé, Mestra dos Apóstolos, e primeira e suprema luz da Igreja, e outros títulos semelhantes, de cujos exercícios resultavam grandes aumentos de graça. Nem é inconveniente considerar que haveria uma Mãe de Deus que tivesse menos graça que outra, porque também a humanidade do verbo tem hoje alguma prerrogativa de glória, que não havia de ter no tal caso a humanidade do Espírito Santo, porque, quando menos, havia Cristo de ser singular naquela glória incomparável de Reden­tor, de que fala S. Paulo: Factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit illum, et donavit illi nomen, quod est super omne nomen[5]Pois se havendo dois Homens-Deus, um deles havia de ter maiores prerro­gativas de glória, que muito é, que havendo duas Mães de Deus, uma delas tivesse maiores prerrogativas de graça?

Mais. Dizem graves autores que quando Cristo ia subindo o Monte Cal­vário com a cruz às costas, viu-o a Senhora, e no mesmo ponto caiu desmaiada e amortecida, e dizem que ainda hoje se vêem vestígios de um templo edificado na­quele lugar com o nome do espasmo. Não me meto a averiguar verdades desta his­tória. Mas, suponhamos que foi assim, e que a Senhora, ou neste passo, ou no de ver pregar, ou levantar, ou expirar na cruz ao Filho, que amava intimamente mais que a si mesma, não só ficou amortecida, senão totalmente morta de dor. Pergunto: mor­rendo a Senhora naquele estado, havia de ter graça e glória de Mãe de Deus? Claro está que sim; e contudo não tinha ainda a graça que havia de merecer ao pé da Cruz, nem a que mereceu depois por todo o espaço de sua vida, enriquecida de admiráveis atos de intensíssimo amor de Deus, e de todas as virtudes: logo na cruz, e nas conse­qüências da cruz —  que tudo foram conseqüências suas, como logo veremos —  cres­ceu a Senhora a maior graça, que graça de Mãe de Deus.

Parece que temos provado com razões; mas, que é dos autores? E que culpa lhe tenho eu, se eles não trataram este ponto? Mas já que não temos autores homens, teremos autores anjos: Quae est ista quae progreditur quasi aurora con­surgens, pulchra ut luna, electa ut sol (Cânt. 6, 9)? Quem é esta, —  dizem os anjos nos Cânticos, falando com a Senhora– que se vem levantando como aurora, formo­sa como a lua, e escolhida como o sol? —  A três luzes comparam aqui os anjos a Senhora: à luz da aurora, à luz da lua, à luz do sol. Destas três luzes, uma entendo, duas não entendo. Que se compare a Senhora à luz da aurora, grande propriedade tem, porque assim como da aurora nasce o sol, assim da Virgem Maria nasceu o sol de justiça, Cristo. Mas que depois de comparada à aurora a Senhora, a comparem também à lua e ao sol? Isto não entendo. O sol tem maior luz que a aurora, a lua tem menor luz que a aurora: pois, se a Virgem está comparada à aurora, que é luz própria da Mãe do sol, por que a comparam também ao sol, que tem mais luz, e à lua, que tem menos luz? Por isso mesmo. Porque a Senhora, comparada em diferentes esta­dos de sua vida, em um teve graça igual à graça de Mãe de Deus; em outro teve menor graça que graça de Mãe de Deus; em outro teve maior graça que graça de Mãe de Deus. Na Encarnação teve graça igual à de Mãe de Deus, por isso aurora; antes da Encarnação teve graça menor que graça de Mãe de Deus, por isso, lua; depois da Encarnação teve graça maior que graça de Mãe de Deus, por isso sol. Quasi aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut sol.

E porque totalmente entre as vozes angélicas não falte alguma humana, porei aqui as palavras de um dos maiores mestres da escola de Santo Tomás —  posto que também é angélica —  o doutíssimo Sotto: Fuit quidem gratia plena ante concep­tionem Filii, quantum par eras, ut fieret Christi Mater: attamen gratia illa non fuit eo modo summa, ut non posses deinceps meritis augere. Tinha dito Santo Tomás que a graça da Senhora, na Conceição e Encarnação do Verbo, fora consumada. E explica este grande teólogo o modo com que foi consumada, ou suma. Foi consumada e suma, porque recebeu na conceição do Verbo toda aquela enchente de graça que era necessária para ser digna Mãe de Deus; mas não foi de tal maneira suma e consuma­da, que daí por diante não pudesse crescer em maior merecimento e graça, como verdadeiramente cresceu. Pôs as premissas Sotto, e só lhe faltou tirar a conseqüên­cia: logo a graça de Maria foi maior que graça de Mãe de Deus, precisa e absoluta­mente considerada. Mas, respondendo a uma só objeção que tem esta teologia —  e à primeira vista não fácil de desatar —  ficará mais conhecida a verdade gloriosa dela.

§ III

Como a Senhora foi predestinada para mais que Mãe de Deus, por isso a graça foi também maior graça que graça de Mãe de Deus. Os dois decretos da Encarnação de Cristo e a predestinação da Virgem Maria. As graças da Materni­dade e as graças da cruz.

A Senhora não teve mais graça que a graça para que foi predestinada: foi predestinada para Mãe de Deus, com a graça competente àquela soberana dignida­de: logo não teve mais graça que graça de Mãe de Deus. Que a senhora não tenha mais graça que a graça para que foi predestinada, é certo; mas por isso mesmo teve mais graça que a de Mãe de Deus precisamente. Por quê? Porque foi predestinada para mais que Mãe, e para mais que de Deus. Ora vede. Foi predestinada para mais que Mãe, porque foi predestinada para Mãe atormentada, para Mãe afligida, para Mãe angustiada, para Mãe mortificada, e para Mãe crucificada, como o foi com seu Filho: Juxta crucem. E tormentos, aflições, angústias, martírios, cruzes, não entram no conceito preciso de Mãe: são de mais a mais. Foi logo a Virgem predestinada para mais que Mãe. E foi também predestinada para Mãe mais que de Deus, porque Deus, de que foi Mãe a Virgem Maria, foi Deus redentor, Deus passível, Deus cru­cificado, Deus morto, Deus sepultado. E redenção, passibilidade, cruz, morte, se­pultura, não entram no conceito preciso de Deus-Homem; são outros excessos mui­to maiores: logo foi a Senhora predestinada para Mãe mais que de Deus. E como a Senhora foi predestinada para mais que Mãe, e para Mãe mais que de Deus, por isso a graça para que foi predestinada foi também maior graça que graça de Mãe de Deus.

Declaremos bem este ponto em todo o rigor da teologia. O mistério da Encarnação do Verbo foi determinado ab aeterno por dois decretos, um antes, outro depois da previsão do pecado de Adão. Antes da previsão do pecado, foi decretado que o Filho de Deus se fizesse homem sem outro fim por então, mais que o da glória divina, e para que fosse suprema cabeça do gênero humano, e causa final e exemplar de todos os predestinados, como diz São Paulo: Quos praecivit et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui, ut sit ipse primogenitus in multis fratribus; ut sit in omnibus ipse primatum tenens[6]Depois da previsão do pecado estendeu-se o decreto divino a que o Filho de Deus se fizesse, não só homem absolutamente, senão homem em carne passível, para que pudesse padecer e morrer, e para que, por meio da morte de cruz e do preço de seu sangue, fosse glorioso redentor do mesmo gênero humano, de que já era Senhor, como diz também S. Paulo: Decebat enim eum, prop­ter quem omitia, et per quem omnia, qui muitos filios in gloriam adduxerat, autho­rem salutis eorum per passionem consumarem[7].

Estes dois decretos, com propriedade até agora não advertida, declarou admiravelmente o profeta Miquéias. Tinha profetizado Miquéias que o Messias ha­via de nascer em Belém, e acrescenta logo que, assim como havia de sair em tempo ao mundo, assim tinha saído ab aeterno da mente divina: Egressus ejus ab initio, a diebus aeternitatis[8]Mas o que até agora fazia a dificuldade era que a palavraegressus não é do singular, senão do plural, e não quer dizer saída, senão saídas: Egressus, id est, egressiones. Assim se lê no texto hebreu e no grego. Pois se o Verbo em tempo saiu uma só vez ao mundo, ao sair da eternidade, em que foi decretada e predestina­da esta mesma saída, por que lhe não chama o profeta saída, senão saídas: Egressiones ejus? Porque propriamente assim foi, e assim o havia de dizer o profeta. Cristo saiu da mente de Deus ab aeterno, não só uma, senão duas vezes predestina­do: a primeira vez, antes do pecado de Adão, predestinado para homem; a segunda vez, depois do pecado, predestinado para homem imortal e passível. E como os decretos da predestinação foram dois, um posterior ao outro, por isso as saídas fo­ram também duas, e por conseguinte saídas, e não saída: Egressiones ejus ab initio.

As palavras que se seguem acrescentam e declaram maravilhosamente o misté­rio: Ah initio, a diebus aeternitatis. Estas duas saídas, diz o profeta que foram lá no princípio, desde os dias da eternidade. Pois lá nesse princípio sem princípio da eterni­dade, houve dias? Há-se de entender e supor que sim, pois o profeta o diz. E se houve dias, que dias foram estes? Foram as duas luzes da ciência ou presciência divina, que segundo a ordem dos decretos se distinguem em Deus, as quais necessariamente haviam de preceder aos mesmos decretos. Notai agora ainda os que não sois teólogos. Para haver dias, ao menos hão de ser dois, e para haver dois dias, regularmente há de haver uma noite entre eles. E tudo isto houve no caso em que estamos, porque entre o dia do primeiro decreto da Encarnação, e o dia do segundo decreto, houve a noite do pecado de Adão em meio. No primeiro dia, antes da previsão do pecado, em que só tinha amanhecido a luz da ciência condicionada, foi predestinado Cristo para homem; no segundo dia, depois da previsão do pecado, em que já havia a luz da ciência de visão, foi predestinado para homem passível. E estes foram os dois dias e as duas predestinações com que não uma, senão duas vezes saiu Cristo ab aeterno da mente de Deus: Egressiones ejus ab initio a diebus aeternitatis.

Ao nosso intento agora. No primeiro decreto, em que Cristo foi predes­tinado somente para homem, foi também predestinado para a graça e glória compe­tente a um homem que juntamente era Filho Unigênito de Deus: Gloriam quasi Unigeniti a Patre, plenum gratiae[9]No segundo decreto, em que foi predestinado para homem mortal e passível, não foi predestinado para maior graça nem para maior glória essencial; porque era compreensor, mas para maior glória e maior co­roa acidental, merecida pela morte: Videmus Jesum, propter passionem mortis, glo­ria et honore coronatum[10]E isto que passou ab aeterno na predestinação do Filho, é o que havemos de filosofar, pelos mesmos passos, na predestinação da Mãe. No primeiro decreto, antes da previsão do pecado, foi a Virgem Maria predestinada absolutamente para Mãe de Deus-Homem, e para toda aquela eminência de graça e glória, não igual, mas proporcionada, que a tão alta e altíssima dignidade era devida, a qual na execução lhe havia de ser dada pelos merecimentos do seu mesmo Filho. No segundo decreto, depois da previsão do pecado, foi predestinada, não para Mãe de Deus-Homem —  que essa dignidade já a tinha pelo primeiro decreto —  senão para Mãe e companheira desse Deus-Homem mortal e passível; e aqui lhe foram acres­centados todos aqueles excessos de graça e glória que a Senhora mereceu por todos os atos de sua vida, que se seguiram à passibilidade e mortalidade de Cristo, e à redenção custosíssima do gênero humano, por meio da morte de cruz. Tornem os anjos, que são hoje os nossos doutores.

Viam os anjos admirados subir a sua Rainha e Mãe de Deus para o céu, e diziam assim: Quae est ista quae ascendit per desertum, sicut virgula fumi ex aromatibus mirrhae et thuris (Cânt. 3, 6)? Quem é esta, que vai subindo da terra, como sobe direito o fumo aromático, composto de incenso e mirra? —  Angélica comparação! O incenso significa em Cristo o divino, e a mirra o mortal, e esse foi o mistério com que os Magos, quando entrou neste mundo, lhe ofereceram incenso e mirra: o incenso como a Deus, e mirra como a mortal e passível: Quia Deum et passibilem credebant, diz Santo Anselmo. Sobe pois a alma da Virgem como com­posição abrasada de incenso e mirra, que, deixando as cinzas na terra, sobe em fumo direita ao céu, porque a graça com que a Senhora subiu a ser exaltada na glória, parte lhe foi concedida por Cristo, enquanto Deus humanado, como a Mãe, e parte en­quanto mortal e passível, como a companheira de todos seus trabalhos. A primeira foi a graça da Maternidade, e essa merecida por obséquios ou sacrifícios de incenso; a segunda foi a graça da cruz, e essa merecida por tormentos ou sacrifícios de mirra. Mas em qual destas duas graças esteve a Senhora mais crescida em graça? Na da Maternidade ou na da cruz? Na do incenso ou na da mirra? No mesmo texto dos Cantares o temos: Vadam ad montem mirrhae et ad collem thuris (Cânt. 4, 6): Irei ao monte da mirra e ao outeiro do incenso. —  A graça da mirra e da cruz chama-se monte; a graça do incenso e da Maternidade chama-se outeiro, porque, ainda que a Senhora por Mãe de Deus precisamente alcançou toda a graça que era proporciona­da àquela altíssima dignidade, contudo, pela assistência e companhia que fez a este mesmo Deus passível na cruz, e pelos imensos trabalhos que padeceu com ele e depois dele na obra da redenção, foi tanta a graça que lhe acresceu a Maria sobre essa graça, que a primeira por si só parecia um outeiro, e a segunda, sobre a primei­ra, um monte: Vadam ad montem mirrhae, et ad collem thuris. Não quero dizer que, consideradas separadamente estas duas graças, fosse maior a da cruz que a da Ma­ternidade; mas quero dizer que, posta a da cruz sobre a da Maternidade, ficou gran­demente maior a graça da Senhora do que dantes era, e que esta há de ser a medida de sua graça, não medida pelo Mater ejus precisamente, senão, sobre o Mater ejus, pelo juxta crucem: Stabat juxta crucem Jesu Mater ejus.

§ IV

Cresceu a graça da Senhora em todo o tempo de sua vida, mas os aumentos da graça, que a fizeram maior que de Mãe de Deus, só foram os da cruz. A congre­gação das águas e a congregação das graças. A graça da Senhora é o elemento da água, a maternidade é a nau, e a cruz é a Arca de Noé. Paralelo entre as palavras de Cristo a Deus e à Virgem. Abraão e Maria.

Já vejo que me concedem todos que a graça da Senhora se não mede pelo Mater ejus bastantemente; mas, pelas mesmas razões, me podem dizer também que se não mede cabalmente pelo juxta crucem, porque a graça da Senhora não só cres­ceu no dia da Paixão, em que a Virgem esteve ao pé da cruz, mas por todo o tempo de sua vida. Assim é verdade que cresceu a graça da Senhora em todo o tempo de sua vida, mas os aumentos da graça que a fizeram maior que de Mãe de Deus só foram os da cruz. A graça que a Senhora mereceu pelos outros atos de toda sua vida pertencem à graça da Maternidade, porque o conceito de Mãe de Deus precisamente inclui vida perfeitíssima e santíssima; mas a graça que a Senhora mereceu pelo mis­tério da cruz, e pelos atos pertencentes à Redenção, são excessos que acresceram sobre a graça da Maternidade, porque no conceito de Mãe de Deus precisamente não se inclui redenção nem cruz: logo, só pela cruz, e não pela Maternidade se há de tomar a medida à graça da Senhora, ou só pela cruz, e não pela Maternidade, se pode compreender o imenso de sua graça.

A graça da Senhora é comparada ao elemento da água, por sua imensidade. Este foi o mistério do nome que Deus deu ao elemento da água no princípio do mundo: Congregationes aquarum vocavit Deus maria; locus atuem omnium gratiarum voca­tur Maria, diz S. Alberto Magno: à congregação das águas chamou-lhe Deus mária, e ao lugar onde se ajuntaram todas as graças, chamou-lhe Maria. Em seguimentodesta mesma metáfora, é muito de reparar os dois termos com que no Testamento Velho se figuram a Maternidade da Senhora e a cruz de Cristo. A Maternidade da Senhora chama-se nau; a cruz de Cristo chama-se Arca de Noé. A Maternidade da Senhora chama-se nau, porque nela se embarcou, desde o outro mundo, o pão que nos trouxe a vida à terra: Facta est quasi navis institoris, de longe portans panem suum[11]; a Cruz chama-se Arca de Noé, porque nela, como em outra Arca de Noé, se salvou o gênero humano do naufrágio universal do mundo: Sola digna tu fuisti ferre mundi victimam, arque portum praeparare Arca mundo naufrago. De maneira que a graça da Senhora é o elemento da água, a Maternidade é a nau, a cruz é a Arca de Noé. E que diferença tem sobre o elemento da água a nau e a Arca? A diferença é que a nau navega pelo mar, e a Arca navegou pelo dilúvio. Tal foi a graça da Senhora comparada com a Maternidade e com a cruz: debaixo da Maternidade foi mar; de­baixo da cruz foi dilúvio. Debaixo da Maternidade foi mar, que tem por limite as praias; debaixo da cruz foi dilúvio, que tem por balizas os horizontes.

Assim foi, e assim havia de ser necessariamente, porque a graça que a Senhora mereceu ao pé da cruz foi igual à sua dor; a dor foi tão grande como o mar: Magna est velut mare contritio tua[12]E um mar sobre outro mar; já não é mar, é dilúvio. Ao mar só o pode fazer crescer outro mar; os rios estão continua­mente correndo ao mar, e ele não cresce: Omnia flumina intrant in mare, et mare non redundat (Eclo. 1, 7). Tal foi a graça da Maternidade da Senhora, diz São Boaventura: Maria dicitur mare propter fluentiam et copiam gratiarum, unde dictum est omnia flumina intrant in mare, dum omnia charismata sanctorum in­trant in Mariam. A graça da Senhora na Maternidade foi um mar, a que correram e concorreram todas as graças que Deus repartiu por todos os santos; mas como todas estas graças não eram mais que rios, ainda o mar ficou mar, e não passou a graça da Senhora os limites da graça de Mãe de Deus; porém, ao pé da cruz, como se abriram as fontes dos abismos, como se rasgaram as cataratas do céu, como choveu um mar sobre outro mar, cresceu tanto a graça da Senhora sobre si mes­ma, que saiu o mar da madre, e, sobrepujando a graça os limites da Maternidade, foi maior que graça de Mãe de Deus.

Verdadeiramente que todos estes excessos de graça os mereceu bem a Senhora ao pé da cruz, porque justo era que fosse ao pé da cruz mais que Mãe na graça, a que foi ao pé da cruz mais que Mãe na fortaleza. O mais ordinário reparo deste Evangelho, e ainda o maior escrúpulo ou a maior lástima dele, são aquelas palavras de Cristo, mais secas do que parece as ditava a ocasião: Mulier, ecce filius tuus (Jo. 19, 26): Mulher, eis aí teu filho. —  Duro caso que um tal Filho a tal Mãe, em tal ocasião, lhe negue o nome de Mãe! Noto eu que nas poucas palavras deste Evan­gelho chamou S. João quatro vezes à Senhora Mãe de Cristo: Stabat juxta crucem Jesu Mater ejus: uma; et soror matris ejus: duas; cum videsset Matrem: três; dixit Matri suae: quatro[13]. Pois se o discípulo chama a Senhora quatro vezes Mãe de Cristo em quatro palavras, o mesmo Cristo, em uma só que lhe falou, por que lhe não chamou Mãe? Antes que respondamos a esta dúvida da Mãe, temos a mesma demanda no pai. Pouco havia que tinha acabado Cristo de dizer: Mulier ecce filius tuus, levanta os olhos ao céu, e diz: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me (Mt. 27, 46)? Deus meu, Deus meu, por que me desamparastes? —  No desamparas­tes reparo a todos; eu não reparo senão no Deus meu. Não fora mais razão que dissera Cristo: Pai meu, Pai meu? Parece que sim, ao menos assim o fez o Senhor nos outros atos da Paixão, quando orou no Horto: Pai: Pater, si possibile est; quando rogou pelos inimigos: Pai: Pater, ignosce illis; quando encomendou o Espírito: Pai: Pater, in manus tuas[14]Pois se em todas as outras ocasiões chama Cristo Pai a seu Padre, agora, por que lhe nega o nome de Pai? Seria porventura por dar satisfações à Mãe? Não eram necessárias satisfações onde não havia queixas; mas foi porque no Pai e na Mãe havia as mesmas causas. Dai atenção a este paralelo.

Pregado Cristo na cruz, olhava para o céu, e via que o Pai o entregara à morte tão despegadamente como se não fora Pai; virava os olhos para a terra, via a Mãe que oferecia a Deus tão generosamente, como se não fora Mãe: tanto assim, diz Ruperto, que se fora vontade de Deus, a mesma Senhora, por suas próprias mãos, crucificara a seu Filho. E como estas finezas de constância, assim de Pai como de Mãe, eram ocultas aos homens, para as manifestar o Filho, que só as via, que fez? Calou os nomes do afeto e publicou os nomes da natureza, e, para mostrar que o Pai se portava como se não fora Pai, chamou-lhe Deus, e, para mostrar que a Mãe se portava como se não fora Mãe, chamou-lhe mulher. O que disse ao Pai parecia queixa, e foi elogio; o que disse à Mãe parecia sequidão, e foi panegírico. Como se dissesse o Filho de Deus e da Virgem: saiba o mundo que é tanta a inteireza de meu Pai, que, sendo Pai e Deus, me deixou como se não fora Pai; saiba o mundo que é tanta a fortaleza de minha Mãe, que, sendo Mãe e mu­lher, me sacrifica como se não fosse Mãe. —  Ambos foram louvores grandes, mas, com licença do Padre, o da Senhora foi maior. O Pai portou-se como se não fora Pai, mas era Deus: Deus meus; a Mãe portou-se como se não fora Mãe, e era mulher: Mulier. O Pai tinha contra si o afeto, mas tinha por si a natureza; a Mãe tinha contra si a natureza e mais o afeto, porque, sobre a ternura de mulher, tinha a piedade de Mãe. Oh! que armas tão desiguais! Mas que vitória! Estava a huma­nidade da Senhora ao pé da cruz, feita um espelho da divindade do Padre, retra­tando em si tudo o que lá passava: o Padre, como quem não tinha nada de huma­no, a Mãe como se fora toda divina; o Pai imóvel, a Mãe imóvel; o Pai firme, a Mãe constante; o Pai insensível, a Mãe como se não sentira; o Pai impassível, a Mãe como se o fora, e ele porque o era, ela porque o parecia. Oh! Deus! Oh! mulher! Que chegasse uma mulher pela paciência aonde chegou Deus pela im­passibilidade! Per patientiam impassibilis, diz Boaventura. Chame-se pois mu­lher, e não se chame Mãe, a que se portou como se não fosse Mãe; ejá que é mais que Mãe na constância, seja mais que Mãe na graça.

A Abraão, porque sacrificou seu filho, como se não fosse pai, deu-se-lhe por prêmio que fosse pai de Deus: In semine tuo benedicentur omnes gentes[15]À Senhora, que sacrificou seu Filho como se não fosse Mãe, que prêmio se lhe havia de dar? Se não fora Mãe de Deus, dera-se-lhe de prêmio que o fosse. Mas como já era Mãe de Deus, não lhe ficou a Deus outro prêmio que lhe dar, senão que tivesse mais graça que graça de Mãe de Deus. A Maternidade lhe deu graça de Mãe de Deus; a cruz lhe deu maior graça que de Mãe de Deus. Não se mede logo bem a sua graça pela Maternidade, senão pela cruz: não pelo Mater ejus, senão pelo juxta crucem.

§V

Já temos visto quão grande é a graça da Senhora; importa agora ver quanto pesa. A graça dos reis e a graça de Deus, figurada em João, o valido do maior Príncipe do inundo.

Parece-me que temos medido; segue-se agora que pesemos. Há coisas que avultam muito e pesam pouco, Já temos visto quão grande é a graça da Senhora; importa agora ver quanto pesa. Somos entrados na mais grave e importante matéria que se pode tratar neste lugar: pesar a graça de Deus. Todas as vezes que considero a facilidade com que os homens perdem a graça de Deus, o esquecimento dela com que vivem, e ainda o descuido com que morrem, não acho outra causa a esta ceguei­ra senão a falta do verdadeiro conhecimento, e não chegarem os homens a pesar que coisa é a graça de Deus, A graça de Deus é espiritual; nós somos carne; a graça é sobrenatural; nós em tudo seguimos a natureza; a graça não se vê, não se ouve, não se apalpa; nós não sabemos perceber senão o que entra pelos sentidos. Daqui vem que não pesamos a graça, nem a conhecemos, nem a percebemos, nem ainda a pode­mos, nem sabemos pesar como convém. Isto quisera eu que fizéramos hoje. Mas que coisa há no mundo de tanto peso que se possa pôr em balança com a graça de Deus? Se discorrêramos por todos os estados do mundo, fora matéria muito provei­tosa, mas infinita. Para a compreendermos toda em termos breves, reduzi-la-ei aos quatro estados que hoje se acham ao pé da cruz com Cristo: a Virgem Maria: Stabat juxta crucem Jesu Mater ejus; Maria Cléofas: et soror Matris ejus, Maria Cleophae; Maria Madalena: et Maria Magdalenae, e o discípulo amado: et discipulum stan­tem, quem diligebat (Jo. 19, 25). Nestas quatro notáveis pessoas se acham as quatro coisas que, na opinião dos homens, costumam ser de mais peso. Cada um irá pondo em balança o que lhe couber. Comecemos por S. João.

O título por que se nos dá a conhecer S. João neste Evangelho, é pelo seu valimento: Quem diligebat Jesus. Valido do maior príncipe do mundo, valido do Rei dos reis. Posto pois em balança o valimento do maior príncipe, posta em balança de uma parte a graça dos reis, e da outra a graça de Deus, qual pesa mais? Se houvermos de estar pelo juízo comum dos homens, mais pesa a graça dos reis. Digam-no aqueles que tantas vezes por contentar aos príncipes, atropelam a graça de Deus. Moisés dei­xou a graça de el-rei Faraó, por servir a Deus; mas vede o que diz S. Paulo desta ação: Magis eligens affligi cum populo Dei, quam temporalis peccati habere jucunditatem[16]que Moisés, por amor de Deus, desprezou o contentamento do pecado temporal. Notá­vel dizer! Chama o apóstolo a graça de el-rei Faraó pecado temporal. E é curiosidade digna de se averiguar a razão por que um espírito tão bem entendido, como o de S. Paulo, deu à graça dos reis este nome e este sobrenome, Pecado, e temporal, a graça dos reis? Sim. Chama-se temporal, porque a graça dos reis nunca dura muito tempo; e chama-se pecado, porque assim como o pecado lança fora da alma a graça de Deus, assim a graça dos reis e a de Deus dificultosamente podem andar juntas. Quais são as artes comumente dos que andam junto dos reis? A lisonja, a ambição, a calúnia, a inveja, o chegar um e desviar outro, o levantar estes e derrubar aqueles, o tratar da conservação própria, sem reparar na vida, na honra, no estado, na sucessão, na ruína alheia. E com isto pode-se conservar a graça de Deus? Claro está que não. Pois por isso a graça de Deus e a dos reis, ou não andam, ou dificultosamente podem andar juntas. Esta é, a meu juízo, a maior desgraça dos reis: que os que andam na sua graça, andam ordinariamente fora da graça de Deus. O que se trata por mãos de quem anda fora da graça de Deus, como o pode ajudar Deus? Dir-me-eis que sim, que a graça dos reis é pecado, e temporal, pois lho chama S. Paulo, mas que esse tempo, que dura, não se pode negar que é pecado doce, e da casta daqueles que trazem grande gosto consigo. O mesmo S. Paulo o disse: Temporalis peccati habere jucunditatem: não quis ter o gosto do pecado temporal. Ora, com todo esse gosto, olhemos bem para o fiel da balança, e veremos qual das duas graças pesa mais.

A graça dos príncipes não vos pregarei eu, que não é muito pesada e muito contrapesada, mas é de muito pouco peso. Seja esta a primeira diferença entre a graça de Deus e a graça dos reis. A graça de Deus é a coisa de maior peso, e não é pesada; a graça dos reis é uma coisa que pesa muito pouco, e é pesadíssima. A graça dos reis, para se conservar, quantos cuidados custa? A graça de Deus é um descuido de tudo o mais, e só a podem ofender outros cuidados. A graça dos reis é um alvo a que se tiram todas as setas; a graça de Deus é um escudo que nos repara de todas. A graça dos reis muitas vezes é conveniência, outras necessidades, algumas gosto, e sempre tem poucos quilates de vontade; a graça de Deus, como Deus, não depende, nem há mister, toda é amor. A graça dos reis, por muito que levante ao valido, sempre o deixa na esfera de vassalo; a graça de Deus sobe o homem à familiaridade de amigo, à dignidade de filho, e à semelhança de si mes­mo. A graça dos reis não vos dá parte da coroa; a graça de Deus é participação de sua divindade. A graça dos reis, ainda que deis o sangue por eles, não basta para a alcançardes; a graça de Deus, deu Deus o sangue por vós, só para vo-la dar. A graça dos reis, se é grande, é de um só: se é de mais que de um, é pouca e de poucos; a graça de Deus é de todos os que a querem: põe-lhe a medida o amor, e não a diminui a companhia. A graça dos reis nem é para perto, nem para longe, porque de perto enfastiais, de longe esqueceis; a graça de Deus nunca tem longes, e quanto estais mais perto de Deus, tanto estais mais seguro na sua graça. A graça dos reis é data da fortuna; a graça de Deus é prêmio do merecimento, e esta só propriedade, quando não houvera outra, bastava para a fazer de suma estima. A graça dos reis, ainda que façais pela merecer, nem por isso a conseguis, antes muitas vezes a logram mais os que a merecem menos; a graça de Deus, se fizerdes pela merecer, não vo-la pode Deus negar. A graça dos reis, para ser mudável, basta fundar-se em vontade humana: mas funda-se em vontades coroadas, que, como são as mais livres, são também as mais indiferentes, por não dizer, as mais inconstantes; a graça de Deus funda-se em vontade divina, que, como não pode errar a eleição, não pode mudar o afeto. A graça dos reis poucas vezes dura tanto como a vida do valido, e quando dura quanto pode, acaba com a vida do rei; a graça de Deus cresce na vida e confirma-se na morte: da parte do homem, é imortal, porque se funda na alma; da parte de Deus, é eterna, porque é graça de Deus. A graça dos reis, dizem que é uma grande altura; a graça de Deus é certo que é posto muito mais alto, e ainda que ambas estão juntas aos precipícios, da graça de Deus podeis cair, da graça dos reis podem-vos derrubar.

A graça dos reis, pode-vo-la tirar a calúnia; a graça de Deus, só vo-la pode tirar a culpa. Da graça e da privança do rei pode-vos tirar o rei todas às vezes que quiser; a graça e a privança de Deus, nem o mesmo Deus vo-la pode tirar sem vós quererdes, e, se quiserdes, será muito a seu desprazer. A graça dos reis, depois de perdida, não se recupera com rogos; a graça de Deus, se a perdeis, o mesmo Deus vos roga que tomeis a ela. Depois de perdida a graça dos reis, fica o pesar sem remédio; depois de perdida a graça de Deus, não é necessário outro remédio mais que o pesar: pesou-vos, estais outra vez na graça. A graça dos reis, dá-se aos ditosos, de que depois se hão de fazer os arrependidos; a graça de Deus dá-se aos arrependidos, que desdelogo começam a ser ditosos; a ambas as graças anda junto o arrependimento, mas a dos reis tem-no depois, a de Deus antes. A graça dos reis é graça sem sacramentos; a graça de Deus tem sete: tem Batismo para o inocente, e tem Penitência para o culpado; tem Confirmação para a vida, e tem Extrema-Unção para a morte; tem Ordem para o ecle­siástico, e tem Matrimônio para o leigo; e finalmente tem Comunhão para todos. Sete portas nos deixou abertas Deus para entrarmos à sua graça, e nenhum dos que entram por elas as pode fechar ao outro. Só em uma coisa se parece a graça de Deus com a dos reis, e é que ambas mudam os homens: uns e outros não são os que dantes eram, mas com esta diferença: os que se vêem na graça dos reis, esquecem-se do que foram, e também se esquecem do que podem vir a ser; e os que andam na graça de Deus, de nenhuma coisa se lembram, senão do que hão de vir a ser, e nenhuma coisa lhes dá pena, senão a lembrança do que foram. Finalmente a graça dos reis não pode dar Paraíso: tirá-lo sim; a graça de Deus é a que só dá o paraíso, e só a falta dela o inferno.

Basta isto para provar que a graça de Deus pesa mais que a graça dos reis? Se ainda não basta, ajuntemos o fim com o princípio. Se nos não basta, como cristãos, saber que a graça dos reis é o maior risco da graça de Deus, baste-nos, como políticos, saber que a graça de Deus é a maior segurança da graça dos reis. Não há graça dos reis segura, senão fundada na graça de Deus. José foi valido de el-rei Faraó, Daniel foi valido de el-rei Dario, Amã foi valido de el-rei Assuero, e que lhes aconteceu a estes validos? José e Daniel conservaram-se na graça; Amã não se conservou. Por quê? Porque a graça de Amã funda­va-se na vontade do rei; a graça de José e Daniel, fundara-se na graça de Deus. Quando a graça dos reis se funda na graça de Deus, nem ela pode cair, nem outrem a pode derrubar. Tanto pesa a graça de Deus, que até a dos reis leva após si.

§ VI

Os nadas do mundo, representados por Madalena, e a graça de Deus. A filosofia de Epicuro e os gostos da graça de Deus.

Tem pesado S. João; segue-se a Madalena. Mas que há ela de pesar, que lhe não dá nada o Evangelho? S. João pesou o quem diligebat; Maria Cléofas há de pesar o soror Matris; a Senhora há de pesar o Mater ejus, que é o que lhes dá o Evangelho. O Evangelho não dá nada à Madalena; que há de pesar? Isto mesmo há de pesar: os seus nadas. Aqueles nadas que tantas vezes pesaram mais para com ela que a graça de Deus, esses hão de vir à balança. Vós, os que tão seguidores sois da primeira vida da Mada­lena, e tão pouco imitadores da segunda, pesai, pesai aqui os vossos nadas, pesai bem os nadas de vossas vaidades, os nadas de vossos gostos, os nadas de vossos apetites, os nadas desse amor e engano cego, pelo qual tão facilmente desprezais a graça de Deus. Pôr-me eu agora a provar que a graça de Deus é coisa de maior peso que os gostos do apetite corrupto e depravado seria agravo de nossa fé e de vosso entendimento: só vos hei de provar o que vós não credes, e é que o gosto que causa a graça de Deus, ainda naturalmente é maior, sem comparação, que o gosto desses mesmos apetites, e não comparando graça com apetite, senão gosto com gosto.

O caso parece dificultoso. Tomemos juízes. Eu tomo por minha parte a Santo Agostinho, bem experimentado em uns e outros gostos. Pela vossa parte concedo-vos que tomeis a Epicuro, que é o mais apaixonado e o mais subornado juiz que podeis ter. E que é o que diz, ou que sentencia cada um destes dois juízes? S. Agostinho, logo no princípio da sua conversão, quando começou a experimentar a diferença dos gostos da graça aos dos seus antigos divertimentos, dizia assim: Et quod admittere gaudium fuerat, jam dimittere gaudium erat: Sabeis como me vai de gostos, depois que me vejo nesta nova vida? Comparando os gostos da passada com os da presente, vai-me tão bem, que experimento hoje muito maior gosto em deixar e carecer dos mesmos gostos, do que experimentava antigamente em os gozar. —  Grande dito! O carecer não é nada, e contudo Agostinho, só no carecer dos gostos, tinha maior gosto do que nunca expe­rimentara quando mais os gozava, porque os nadas dos gostos da graça são maiores gostos que o tudo dos gostos do mundo.

Tem que dizer contra isto a seita de Epicuro? Ouvi a Lucrécio, seu discípu­lo: Persuasio infernum esse, et vindicem Deum, nullam voluptatem puram, liquidam-que relinquit. Para que os gostos sejam puros, e sem mistura de pena e de desgosto, é necessário que os homens se persuadam primeiro que Deus não tem justiça, nem casti­go, nem há inferno. —  Estai no caso. Os filósofos epicuros punham a bem-aventurança nos gostos desta vida. Este era o primeiro princípio de sua seita. E o segundo, qual era? Que havia Deus, mas que não tinha providência, e como não tinha providência, que não tinha justiça; como não tinha justiça, que não havia de haver inferno. Oh! que discurso tão discreto! O fundamento era errado, sim, mas o discurso discretíssimo. Fizeram conselho, ou concilio, os filósofos epicuros sobre os fundamentos e princípiosem que haviam de estabelecer a sua seita, e disseram assim: Nós pomos a bem-aventu­rança nos gostos desta vida: gostos gozados com temor do inferno não podem ser gostos, nem podem dar gosto: logo, importa-nos que na nossa seita neguemos o infer­no. —  E assim o fizeram. Ah! sim! E gostos gozados com fé e temor do inferno, não são gostos nem dão gosto: logo, só na graça de Deus há os verdadeiros gostos, porque só a graça de Deus nos pode segurar o temor do inferno.

Se não credes que há inferno, bem podeis chamar gostos aos vossos gostos; mas se tendes fé que há Deus, que tem justiça, e que há de haver inferno, e tendes contudo gosto nos vossos gostos, sois piores que Epicuro. Por honra de Deus, que mediteis um pouco nesta doutrina, e considereis se é bem que um Cristo seja pior nas obras do que foi Epicuro nos ditames. A Madalena também seguia esta seita: galas, vaidades, delícias, apetites, passatempos, gostos. E por que cuidais que deu tão grande volta à vida? Porque pesou e pôs em balança os gostos do mundo e a graça de Deus, que dava por eles, e conheceu quão pouco pesavam os gostos, e de quanto peso é a graça. Não vos peço que não vendais a graça de Deus, como cada hora fazeis pelos nadas de vossos apetites: só vos peço que a não vendais senão a peso. Pesai primeiro o que dais e o que recebeis. Esaú vendeu o morgado por uma escudela de lentilhas, e vede o que condena em Esaú a Escritura: Abiit parvi pendens, quod primogenita vendidisset[17].Vendeu um morgado tão grande por um apetite tão vil e tão breve, e foi-se sem pesar o que fizera. Não lhe condenou o vender, senão o não pesar, porque, se ele pesara, ele não vendera. Pesai, pesai, e se não quereis pesar vossos gostos com a graça de Deus, ao menos pesai os vossos gostos com os seus pesares. Assim o fez a Madale­na, e por isso se achou hoje ao pé da cruz: Et Maria Magdalenae.

§ VII

A nobreza do sangue, representada por Maria Cléofas, e a graça de Deus. O título de primo de Cristo, e o título de amado. O parentesco da graça e o parentesco do sangue.

Maria Cléofas, já sabeis que há de pesar o soror Matris ejus. Nenhuma coisa há no mundo que tanto pese com os homens, e de que eles tanto se prezem e desvaneçam, como da nobreza do sangue. Se a nobreza e a graça, se as manchas do sangue e as manchas da consciência andaram na mesma reputação, estivera reforma­do o mundo. Chama o Evangelho a Maria Cléofas irmã da Virgem Maria: Soror Matris ejus, não porque fosse filha dos mesmos pais da Senhora, mas porque os hebreus chamavam irmãos aos primos. Este parentesco que Maria Cléofas tinha com Maria, Mãe de Deus, era a mais qualificada nobreza que nunca houve no mun­do, não por ser sangue legítimo de Davi e reis de Israel, de quem a Senhora descen­dia por linha direta, mas por ser sangue de Deus. E é de notar que a nobreza deste parentesco com Deus era dobrada, porque, como Cristo não teve pai na terra, não tinha outra baronia, senão a de sua Mãe. Por isso graves teólogos quiseram chamar à Virgem Maria, não simplesmente Mater, como às outras mães, mas Matri-pater, que quer dizer Mãe-Pai, para significar, com a singularidade e novidade deste nome, a união soberana deste dobrado parentesco de pai e mãe, que naquele novo e inaudi­to mistério contraíra com seu Filho a Mãe de Deus-Homem. Tal era a nobreza de Cléofas. Mas posta em balança de uma parte toda esta nobreza, e da outra a graça de Deus, qual pesará mais? Foi ventura que houvesse no Evangelho outro príncipe de sangue, para que nos fizesse exemplo nesta dúvida, porque a faltar ele, ainda que na balança se pusessem todos os quatro metais da estátua de Nabuco, que era de sangue imperial de todos os quatro costados: dos imperadores assírios, dos imperadores persas, dos imperadores gregos, dos imperadores romanos, comparada toda esta nobreza de sangue com a de Cléofas, não pesaria um átomo.

O príncipe de sangue que digo era S. João, que tinha o mesmo parentesco com Cristo que Cléofas com a Senhora. Notai agora a diferença com que S. João falou de Cléofas e de si. A Cléofas chama-lhe prima da Senhora: Soror Matris ejus; a si chama-se discípulo amado de Cristo: Discipulus quem diligebat Jesus. Pois se S. João era primo do Filho, assim como Cléofas era prima da Mãe, por que lhe chama a ela prima, e a si não se chama primo, senão amado? Porque estimou e se prezou mais S. João do título de amado que do título de primo. O título de primo diz parentesco, o título de amado diz graça, e em um juízo tão claro e tão alumiado, como o de S. João, pesa muito mais o estar em graça de Deus, que o ser parente de Deus. Ainda, tomando a graça em razão de parentesco —  ouçam isto os que por um ponto de vaidade, a que chamam nobreza, não duvidam arriscar tantas vezes e perder a graça de Deus —  ainda tomando a graça em razão de parentesco, teve muita razão S. João para estimar mais o parentesco da graça que o parentesco do sangue.

Por quê? Porque pelo parentesco do sangue era primo de Deus enquanto homem, e pelo parentesco da graça era filho de Deus enquanto Deus. Assim o disse o mesmo S. João em dois lugares: Dedit eis potestatem filios Dei fieri[18]. Ut filii Dei nominemur et simus[19]É a graça essencialmente uma participação tão alta, tão sublime e tão íntima da mesma natureza divina, que não só se nos comunica por ela o nome, senão o verdadeiro ser de filhos de Deus: Ut filii Dei nominemur et simus. E que nobreza de sangue há no mundo que se possa comparar com esta?

Profundamente o ponderou o mesmo discípulo amado, não só por alusão, senão por irrisão aos vossos sangues, de que tanto vos prezais: Qui non ex sanguinibus, sed ex Deo nati sunt[20]Os regenerados pela graça que receberam de Cristo, de quem cuidais que descendem? Non ex sanguinibus: não descendem lá dos vossos sangues, em que o que se desvanece de mais vermelho, se não sabe já de que cor é; não dos vossos sangues, em que, se um fio foi pintado de púrpura, os quatro são tingidos em almagra; não dos vossos sangues, que, quando sejam tão limpos como ode Abel, pelo mesmo lado têm mistura de lodo, e dois quartos de Caim. Pois de quem descendem os que estão em graça? Non ex sanguinibus; sed ex Deo. Descendem, por antigüidade, do Eterno, por grandeza, do Onipotente, por alteza, do incompreensível, e por toda a nobreza e ser, daquele que só tem o ser de si mesmo e dá o ser a todas as coisas: Sed ex Deo nati sunt. Pesa bem esta balança? Oh! quanto nela se pode subir, e quanto se pode descer! Vós os que tanto vos prezais dos altos nascimentos, se não estais em graça de Deus, descei, descei, e abatei os fumos, que o vosso escravo, se está em graça, é mais honrado que vós. E vós a quem porventura Deus, por vos fazer maior favor, quis que nascêsseis humilde, não vos descon­soleis: levantai o ânimo, que, se estais em graça de Deus, sois da mais ilustre nobreza, e da mais alta geração de quantas há no mundo e fora do mundo, porque só o Filho de Deus se pode gabar de ter tão bom pai como vós. Sangue real era Cléofas, porque era sangue de Davi e de Salomão; sangue era com esmaltes de divino, porque era sangue do sangue da Mãe de Deus; mas todo esse sangue, e sua nobreza, posto em balança com a graça: Inven­tus est minus habens[21]pesa menos, e tanto menos, que quase não tem peso.

§ VIII

A graça e a dignidade de Mãe de Deus. A dignidade fê-la Mãe, mas a graça fê-la digna, e por isso a graça é maior que a dignidade.

Há mais que pesar com a graça? Tudo o que há no céu e na terra: Mater ejus: a dignidade de Mãe de Deus. A graça de Mãe de Deus, já a medimos: agora havemos de pesar não a graça, senão a dignidade. Os que tantas vezes pisais a graça de Deus, os que tantas vezes fazeis degraus da graça de Deus para subir às dignida­des do mundo, estai atentos e ouvi agora. A dignidade mais soberana, mais sobrena­tural e mais divina que cabe em pura criatura, é a dignidade de Mãe de Deus. Os teólogos lhe chamam dignidade em seu gênero infinita, porque todo o outro nome é menor que sua grandeza. Posta pois em balança esta dignidade assim infinita, qual pesará mais: a dignidade de Mãe de Deus, ou a graça? A dignidade de Mãe de Deus sempre anda junta com a graça, e muita graça; mas, separada a graça da dignidade, e a dignidade da graça, digo que muito mais pesa a graça que a dignidade. Ainda disse pouco. Muito mais pesa um só grau de graça em qualquer homem, que toda a digni­dade de Mãe de Deus. Não me atrevera a dizer tanto, se não tivera por fiador desta portentosa verdade o mesmo Filho de Deus, que fez a Virgem Mãe sua. Exclamou a mulher das turbas: Beatus venter qui te portavit: Bem-aventurada a Mãe que trouxe nas entranhas tal Filho. —  Respondeu o Senhor: Quinimo beati qui audiunt verbum Dei, et custodiunt illud (Lc. 11, 275): Antes te digo que mais bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam. —  Santo Agostinho comparou a Mater­nidade da Virgem com a graça da mesma Virgem, e diz que foi mais bem-aventurada pela graça que pela Maternidade: Beatior fuit Maria concipendo mente, quam ven­tre; felicius gestavis corde, quam carne. Mas Cristo não faz a comparação entre a dignidade da Mãe e a graça da Mãe, senão entre a dignidade da Mãe, e a graça de qualquer homem que guarda seus Mandamentos: Quinimo beati qui audiunt ver­bum Dei, et custodiunt illud.

Pois, Filho de Deus e da Virgem Maria, a graça de qualquer homem é maior felicidade, é maior dita, é maior bem, que a felicidade e a dignidade infinita de ser Mãe vossa? Separada essa dignidade da graça —  como a mulher das turbas con­siderava —  sim. E se não, vede-o nos efeitos da mesma dignidade e da mesma graçana mesma Senhora. A dignidade fê-la Mãe, mas a graça fê-la digna; a dignidade fê-la rainha, mas a graça fê-la santa; a dignidade levantou-a sobre todas as criaturas, mas a graça uniu-a ao mesmo Criador; a dignidade fez que ela comunicasse a Deus o que Deus tem de homem: a graça fez que Deus lhe comunicasse a ela o que Deus tem de Deus: Communicasti mihi, quod homo sum; communicabo tibi quod Deus sum, diz Guerrico Abade.

Quereis agora ver esta mesma soberania na graça de cada um de vós? Ouvi com assombro ao grande Agostinho, não já comparando a dignidade de Mãe de Deus com a sua graça, senão a graça de qualquer homem com a dignidade de Mãe de Deus: Maternum nomen etiam in Virgine est terrenum in comparatione caelestis propinquitatis, quam illi contrahunt, qui voluntatem Dei faciunt: O nome e dignida­de de Mãe de Deus, ainda posto na Virgem Maria, é um nome e título terreno, em comparação da alteza celestial e divina a que se levantam por meio da graça e união com Deus, os que fazem sua vontade. —  Notai muito esta universal: Qui voluntatem Dei faciunt. De maneira que a graça de qualquer criatura humana que faz a vontade de Deus, por vilíssima que seja em tudo o mais, é maior bem e maior felicidade, e de maior peso e preço que a mesma dignidade de Mãe de Deus, e não em outrem, senão na mesma Virgem Maria: Etiam in Virgine. Pode haver coisa de maior admiração e de maior consolação para os que estão em graça de Deus, e de maior confusão para os que a perdem, e de maior desesperação para os que estão no inferno e já a não pedem recobrar? Entendamos bem este ponto, cristãos. Estai comigo. A dignidade de Mãe de Deus é um poder tão soberano e supremo, que domina a todos os homens, a todos os reis e monarcas do mundo, que domina a todos os anjos e a todas as jerarquias, e que até ao mesmo Deus, enquanto Filho, tem obediente e sujeito: Et erat subditus illis[22]A dignidade de Mãe de Deus é uma alteza tão sublime, tão remontada e tão incompreensível, que nem a podem conceber os entendimentos humanos, nem a podem alcançar os entendimentos angélicos e seráficos, nem o entendimento da mesma Virgem Maria a pode compreender, porque só Deus, que se compreende a si mesmo, pode compreender e conhecer cabalmente o que é ser Mãe de Deus. Finalmente, a dignidade de Mãe de Deus é de tal maneira a última raia da onipotência divina, que, não havendo coisa no mundo que não possa Deus fazer outras sempre maiores e melhores em infinito, maior e melhor Mãe não a pode Deus fazer. E sendo tão infinitamente grande, e tão impossivelmente maior e melhor que todas, esta dignidade de Mãe de Deus, posto em balança, da outra parte, um só grau de graça de Deus, pesa mais esta pequena graça, que toda aquela imensa dignidade.

Quem me dera agora uma voz que se ouvira em todas as cortes do mun­do, com que confundira não já a ambição senão a pouca fé dos que tão louca e cegamente traz fora de si a pretensão daqueles nomes vazios, a que o mundo bruto e vil chama dignidades! Tantos trabalhos, tantos cuidados, tantos desvelos, tantas di­ligências, tantas negociações, tantos subornos, tantas lisonjas, tantas adorações, tan­tas indignidades, tanto atropelar a razão, a justiça, a verdade, a consciência, a honra e a vida. E por quê? Por alcançar a vaidade de um posto, de um lugar, de um título, de um nome, de uma aparência; e no mesmo tempo, entra a velhinha por aquela igreja, toma água benta com piedade cristã, e por aquele ato de religião tão leve, adquire um grau de graça que pesa mais que todos os lugares, que todas as honras, que todos os títulos, que todas as dignidades do mundo, ainda que seja a dignidade de Mãe de Deus: Mater ejus. Credes isto, cristãos, ou não o credes? O certo é que, ou não temos fé, ou muito fraca.

§ IX

Sabeis quanto pesa a graça de Deus? Pesa a Deus posto em uma cruz. Resolução.

Mas que hemos de fazer para acabar de pesar, como convém, a graça de Deus? S. João pesou o valimento, a Madalena as delícias, Maria Cléofas a nobreza, a Mãe de Deus as dignidades, e nada disto faz pendor à balança: que hemos de fazer? Ainda temos no Evangelho uma quinta pessoa, que só lhe soube e lhe pode dar à graça o peso que ela tem: Stabat juxta crucem JESU: Jesus é o que soube, e pode pesar a graça de Deus. Sabeis quanto pesa a graça de Deus? Pesa a Deus posto em uma cruz. Deus posto em uma cruz é o preço e o peso justo da graça de Deus; e não há outro. O fim para que Deus se pôs em uma cruz, não há dúvida que foi para nos merecer a graça. Assim o ensina a fé e a teologia, a qual também ensina que podia Deus dar-nos a graça por outros modos. Pois, se Deus nos podia dar graça por outros modos, por que no-la quis dar pondo-se em uma cruz? Ouvi a razão a Eusé­bio Emisseno: In trutina crucis se ipsum author salutis passus est appendi, ut homi­ni, qui ab statu gratiae degeneraverat, dignitatem suam ostenderet pretii magnitu­do: Sabeis, diz Emisseno, para que se quis pôr Deus na balança da cruz: In trutina crucis? Para que, posta de uma parte a graça, que o homem perdera, e doutra todo Deus, que com o preço da sua vida e do seu sangue lha comprava, entendesse o homem de quanto peso é a sua graça. É de tanto peso, que só com Deus se pode contrapesar. Ponde naquela balança remos, ponde coroas, ponde cetros, ponde im­périos, ponde monarquias, ponde tudo o que pode dar a natureza, e tudo o que pode dar a fortuna, ponde o mundo, ponde mil mundos, ponde o mesmo céu com sua glória: nada disto faz pendor, em comparação da graça que tão facilmente perdemos. Posta em balança a graça, só Deus pode igualar as balanças. E se não, veja-se em tudo o mais pela diferença do que lhe custa.

Os bens deste mundo, ou são bens da natureza, ou bens da fortuna, ou bens da glória, ou bens da graça. Os bens da natureza custaram-lhe a Deus uma palavra de sua onipotência, com que os criou; os bens da fortuna custaram-lhe um aceno de sua providência, com que os reparte; os bens da glória custam-lhe uma vista de sua essência, com que se comunica; e os bens da graça, que lhe custaram? Diga-o a cruz: custaram a vida de Deus, custaram o sangue de Deus, custaram a alma de Deus, custaram a divindade de Deus, custaram a honra de Deus. Pesa muito a graça de Deus? Pois ainda há outra coisa no mundo que pesa mais que ela. E qual é? Qualquer dos vossos apetites. Nas balanças da cruz, pesa tanto a graça como Deus: nas balanças do juízo humano, qualquer apetite pesa mais que Deus e que a sua graça. Dizei-o vós, quantas vezes dais a Deus e a graça por um apetite? O men­daces filii hominum in stateris (Sl. 61, 10)! Oh! homens, diz o profeta, como sois falsos nas vossas balanças! —  As balanças não são as falsas, porque a fé e o entendi­mento bem sabe conhecer quanto pesa mais que tudo a graça de Deus; mas os ho­mens são os falsos às balanças, mentindo-se e enganando-se a si mesmos com a verdade à vista: Mendaces filii hominum in stateris. É possível que Deus se há de dar a si mesmo pela graça, para nos levar ao céu, e que nós havemos de dar a Deus e a graça pelo pecado, que nos leva ao inferno? Já que não amamos a graça pela graça, já que não tememos o pecado pelo pecado, não amaremos a graça pela glória, não temeremos o pecado pelo inferno?

Bem sei que estais dizendo dentro em vós mesmos que, ainda que agora estais em pecado, nem por isso ireis ao inferno, porque depois vos haveis de pôr em graça. Ah! cegueira! Ah! miséria! Ah! tentação infernal! Todos os cristãos que estão no inferno fizeram essa mesma consideração, todos tiveram essa mesma esperança, e com ela se condenaram. E quem vos disse a vós que vos não sucederá o mesmo? Muitos estão no inferno, que fizeram menos pecados que vós, e contudo não se restituíram à graça. Pois se os vossos pecados são maiores, como esperais que ha­veis de alcançar tão facilmente o que eles não alcançaram? Cristãos da minha alma, almas remidas com o sangue de Cristo, não persistamos nesta cegueira um momen­to, que vejo que nos imos ao inferno sem remédio. Se a Senhora da graça, como Mãe de graça e de misericórdia, vos dá nesta hora uma boa inspiração, lançai mão dela, não a dilateis. Se estais escravo do demônio pelo pecado, fazei-vos filho da Mãe de Deus pela graça, e seja nesta mesma hora, como fez o evangelista: Et ex illa hora, accepit eam discipulus in suam[23]Nesta mesma hora fazei uma resolução muito animosa, nesta mesma hora detestai vossos pecados, nesta mesma hora deliberai de deixar, e deixai com efeito todas as ocasiões deles. E torno a dizer que seja nesta hora, porque a graça de Deus tem horas, e a morte também tem hora, e não sabemos quando será. Mova-nos a formosura da mesma graça, mova-nos a bem-aventurança da glória que se nos promete por ela, mova-nos a eternidade do inferno, onde have­mos de ir arder se a desprezamos, e mova-nos enfim o preço que Cristo Jesus deu por ela, o sangue de Jesus, a vida de Jesus, a alma de Jesus, a morte e a cruz de Jesus: Stabat juxta crucem JESU.

[1] Estava em pé junto à cruz de Jesus, sua Mãe (Jo. 19, 25).

[2] Deus te salve, cheia de graça, pois achaste graça diante de Deus (Lc. 1, 28. 30).

[3]  Na vara de Moisés estão prefigurados os prodígios divinos... O corpo, transformado em balança, rouba ao Tártaro, a presa.

[4] Onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rom. 5, 20).

[5] Feito obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que Deus também o exaltou, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome (Flp. 2, 8 s).

[6] Os que ele conheceu na sua presciência, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos (Rom. 8, 29); ele tem a primazia em todas as coisas (Col. 1, 18).

[7] Porque convinha que aquele para quem são todas as coisas, e por quem todas existem, havendo de levar muitos filhos à glória, consumasse pela paixão ao autor da salvação deles (Hebr. 2, 10).

[8] Cuja geração é desde o princípio, desde os dias da eternidade (Miq. 5, 2).

[9] Glória como de Filho unigênito do Pai, cheio de graça (Jo. 1, 14).

[10] Vemos a Jesus, pela paixão da morte, coroado de glória e de honra (Hebr. 2, 9).

[11] Fez-se como a nau do negociante, que traz de longe o seu pão (Prov. 31, 14).

[12] Grande é como o mar a tua tribulação (Lam. 2, 13).

[13] Estavam em pé junto à cruz de Jesus sua Mãe, e a irmã de sua Mãe; tendo visto a sua Mãe, disse à sua Mãe (Jo. 19, 25 s).

[14] Pai, se é possível (Mt. 26, 39); Pai, perdoa-lhes (Lc. 23, 34); Pai, nas tuas mãos (Lc. 23, 46).

[15] Na tua geração serão abençoadas todas as tribos da terra (Gên. 28, 14).

[16] Escolhendo antes ser afligido com o povo de Deus, que gozar da complacência transitória do pecado (Hebr. 11, 25).

[17] Foi-se, dando-se-lhe pouco de ter vendido o seu direito de primogenitura (Gên. 25, 34).

[18] Deu a eles o poder de se fazerem filhos de Deus (Jo. 1, 12).

[19] Que nós sejamos chamados filhos de Deus, e com efeito o sejamos (1 Jo. 3, 1).

[20]  Que não nasceram do sangue, mas de Deus (Jo. 1, 13).

[21] Achou-se que tinhas menos peso (Dan. 5, 27).

[22] E era-lhes submisso (Lc. 2, 51).

[23] E desta hora por diante a tomou o discípulo para sua casa (Jo. 19, 27).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística