LITERATURA
BRASILEIRA
Textos
literários em meio eletrônico
Sermão do Mandato, na Capela Real, ano de 1645, de Padre Antônio
Vieira
Edição
de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
SERMÃO DO MANDATO PREGADO NA CAPELA REAL, ANO DE 1645
Sciens Jesus quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos, qui erant in mundo, in finem dilexit eos[1].
§I
O intento do evangelista e o de Cristo no presente Evangelho: mostrar a ciência de Cristo e a ignorância dos homens. Pensamento do sermão: Cristo amou sabendo, e os homens foram amados ignorando, e por isso só Cristo amou finamente, e só os homens foram finamente amados.
Considerando eu com alguma atenção os termos tão singulares deste amoroso Evangelho, e ponderando a harmonia e correspondência de todo seu discurso, tantas vezes e por tão engenhosos modos deduzido, vim a reparar finalmente — não sei se com tanta razão, como novidade — que o principal intento do evangelista foi mostrar a ciência de Cristo, e o principal intento de Cristo, mostrar a ignorância dos homens.
Sabia Cristo, diz S. João, que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Padre: Sciens quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem (Jo. 13,1). Sabia que tinha depositados em sua mão os tesouros da onipotência, e que de Deus viera, e para Deus tornava. Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus, quia a Deo exivit et ad Deum vadit[2]. Sabia que entre os doze que tinha assentados à sua mesa estava um que lhe era infiel, e que o havia de entregar a seus inimigos: Sciebat enim quisnam esset, qui traderet eum[3]. Até aqui mostrou o evangelista a sabedoria de Cristo. Daqui adiante continua Cristo a mostrar a ignorância dos homens. Quando S. Pedro não queria consentir que o Senhor lhe lavasse os pés, declarou-lhe o Divino Mestre a sua ignorância, dizendo: Quod ego fatio, tu nescis (Jo. 13, 7): O que eu faço, Pedro, tu não o sabes. — Depois de acabado aquele tão portentoso exemplo de humildade, tornou a se assentar o Senhor, e, voltando-se para os discípulos, disse-lhes: Scitis quid fecerim vobis (Jo. 13, 12)? Sabeis porventura o que acabei agora de vos fazer? — interrogação enfática tinha força de afirmação, e perguntar: Sabeis? — foi dizer que não sabiam. De maneira que na primeira parte do Evangelho o Evangelista atendeu a mostrar a sabedoria de Cristo, e Cristo, na segunda, a mostrar a ignorância dos homens.
Mas se o fim e intento de ambos era o mesmo, se o fim e o intento de Cristo e do evangelista era manifestar gloriosamente ao mundo as finezas do seu amor, por que razão o evangelista se prega todo em ponderar a sabedoria de Cristo, e Cristo em advertir a ignorância dos homens? A razão que a mim me ocorre, e eu tenho por verdadeira e bem fundada, é porque as duas suposições, em que mais apuradamente se afinou o amor de Cristo hoje, foram, da parte de Cristo, a sua ciência, e, da parte dos homens, a nossa ignorância. Se da parte de Cristo, amando, pudera haver ignorância, e da parte dos homens, sendo amados, houvera ciência, ainda que o Senhor obrara por nós os mesmos excessos, ficariam eles e o seu amor — não no preço, mas na estimação — de muito inferiores quilates. Pois, para que o mundo levante o pensamento de considerações vulgares e comece a sentir tão altamente das finezas do amor de Cristo, como elas merecem, advirta-se, diz o Evangelista, que Cristo amou sabendo: Sciens Jesus (Jo. 13,1), e advirta-se, diz Cristo, que os homens foram amados ignorando: Tu nescis (Jo. 13, 7).
Está proposto o pensamento, mas bem vejo que não está declarado. Em conformidade e confirmação dele pretendo mostrar hoje, que só Cristo amou fina mente, porque amou sabendo: Sciens, e só os homens foram finamente amados, porque foram amados ignorando: Nescis. Unindo-se porém, e trocando-se de tal sorte o sciens com o nescis, e o nescis com o sciens, que, estando a ignorância da parte dos homens e a ciência da parte de Cristo, Cristo amou sabendo como se amara ignorando, e os homens foram amados ignorando como se foram amados sabendo. Vá agora o amor destorcendo estes fios. E espero que todos vejam a fineza deles.
§II
Só Cristo amou, porque amou sabendo. O que vulgarmente se chama amor, nunca chega à idade da razão, e por isso os sábios no-lo pintam sempre menino. A ignorância, no amor, diminui o merecimento. A resolução de Pedro no Tabor, o maior ato de amor que se fez no mundo, e a palavra de Cristo na cruz.
Primeiramente só Cristo amou, porque amou sabendo: Sciens. Para inteligência desta amorosa verdade, havemos de supor outra não menos certa, e é que no mundo, e entre os homens, isto que vulgarmente se chama amor não é amor, é ignorância. Pintaram os antigos ao amor menino, e a razão, dizia eu o ano passado que era porque nenhum amor dura tanto que chegue a ser velho. Mas esta interpretação tem contra si o exemplo de Jacó com Raquel, o de Jônatas com Davi, e outros grandes, inda que poucos. Pois se há também amor que dure muitos anos, por que no-lo pintam os sábios sempre menino? Desta vez cuido que hei de acertar a causa. Pinta-se o amor sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à idade de uso de razão. Usar de razão e amar, são duas coisas que não se ajuntam. A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos. E como o primeiro efeito, ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem que isto, que vulgarmente se chama amor; tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor. Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem ignorando ofendeu, em rigor não é delinqüente. Quem ignorando amou, em rigor não é amante.
É tal a dependência que tem o amor destas duas suposições, que o que parece fineza, fundado em ignorância, não é amor, e o que não parece amor, fundado em ciência, é grande fineza. As duas primeiras pessoas deste Evangelho nos darão a prova: Cristo e S. Pedro. Transfigurou-se Cristo no Monte Tabor, e, vendo S. Pedro que o Senhor tratava com Moisés e Elias de ir morrer a Jerusalém, para o desviar da morte, deu-lhe de conselho que ficasse ali: Domine, bonum est nos hic esse[4]. Esta resolução de S. Pedro, considerada como a considerou Orígenes, foi o maior ato de amor que se fez, nem pode fazer no mundo, porque se Cristo não ia morrer a Jerusalém não se remia o gênero humano; se não se remia o gênero humano, S. Pedro não podia ir ao céu: e que quisesse o grande apóstolo privar-se da glória do céu, por que Cristo não morresse na terra, que antepusesse a vida temporal de seu Senhor à vida eterna sua, foi a maior fineza de amor a que podia aspirar o coração mais alentado. Deixemos a S. Pedro assim, e vamos a Cristo.
Em todas as coisas que Cristo obrou neste mundo, manifestou sempre o muito que amava aos homens. Contudo, uma palavra disse na cruz em que parece se não mostrou muito amante: Sitio: Tenho sede (Jo. 19, 28). Padecer Cristo aquela rigorosa sede, amor foi grande; mas dizer que a padecia, e significar que lhe dessem remédio, parece que não foi amor. Afeto natural sim, afeto amoroso não. Quem diz a vozes o que padece, ou busca o alívio na comunicação, ou espera o remédio no socorro, e é certo que não ama muito a sua dor quem a deseja diminuída ou aliviada. Quem pede remédio ao que padece, não quer padecer; não querer padecer não é amar: logo, não foi ato de amor em Cristo dizer: Sitio: Tenho sede. Contraponhamos agora esta ação de Cristo na Cruz, e a de S. Pedro no Tabor. A de S. Pedro parece que tem muito de fineza; a de Cristo parece que não tem nada de amor. Se será isto assim?
Dois evangelistas o resolveram com duas palavras: o evangelista S. João com um sciens, e o evangelista S. Lucas com um nesciens. O que em S. Pedro parecia fineza não era amor, porque estava fundado em ignorância: Nesciens quid diceret[5]. O que em Cristo não parecia amor, era fineza porque estava fundado em ciência: Sciens quia omnia consummata sunt, ut consummaretur Scriptura, dixit: Sitio[6]. Apliquemos por cada parte. Quando S. Pedro disse: Bonum est nos hic esse, não sabia o que dizia: Nesciens quid diceret (Lc. 9, 33), porque estava transportado e fora de si. E assim todas aquelas finezas que considerávamos pareciam amor e eram ignorâncias, pareciam afetos da vontade e eram erros do entendimento. Se aquela resolução de São Pedro se fundara no conhecimento das conseqüências que dissemos, não há dúvida que fora o mais excelente ato de amor a que podia chegar a bizarria de um coração amoroso; mas, como a resolução se fundava na ignorância do mesmo que dizia, em vez de sair com título de amante, saiu com nome de néscio, porque amar ignorando não é amar, é não saber.
Não assim Cristo, porque quando disse Sitio, sabia muito bem que, acabados já todos os outros tormentos, faltava só por cumprir a profecia do fel: Sciens quia omnia consummata sunt, ut consummaretur Scriptura, dixit: Sitio. E assim aquelas tibiezas que considerávamos, parecia que não eram amor, e eram as maiores finezas; parecia que eram um desejo natural, e eram o mais amoroso e requintado afeto. Se Cristo dissera tenho sede, cuidando que lhe haviam de dar água, era pedir alívio; mas dizer tenho sede, sabendo que lhe haviam de dar fel, era pedir novo tormento. E não pode chegar a mais um amor ambicioso de padecer, que pedir os tormentos por alívios, e para remediar uma pena, dizer que lhe acudiam com outra. Dizer Cristo que tinha sede não foi solicitar remédio à necessidade própria: foi fazer lembrança à crueldade alheia. Como se dissera: Lembrai-vos homens do fel que vos esquece: Sitio[7]. Tão diferente era a sede de Cristo do que parecia. Parecia desejo de alívios, e era hidropisia de tormentos. De sorte que a ciência com que obrava Cristo, e a ignorância com que obrava Pedro, trocaram estes dois afetos, de maneira que o que em Pedro parecia fineza, por ser fundado em ignorância, não era amor; e o que em Cristo não parecia amor, por ser fundado em ciência, era fineza. E como a ciência ou ignorância é a que dá ou tira o ser, e a que diminui ou acrescenta a perfeição do amor, por isso o evangelista S. João se funda todo em mostrar o que Cristo sabia, para provar o que amava: Sciens quia venit hora ejus, in finem dilexit eos[8].
§III
As quatro ignorâncias do amante, e as quatro ciências de Cristo. Primeira ciência do amor de Cristo: amou-nos conhecendo-se. O amor de Páris. Resposta de Salomão à Esposa dos Cantares. A exclamação de Pedro. O milagre da sarça ardente, e a definição de Deus.
Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor. Ou porque não se conhecesse a si, ou porque não conhecesse a quem amava, ou porque não conhecesse o amor, ou porque não conhecesse o fim onde há de parar amando. Se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera. Se não conhecesse a quem amava, talvez quereria com grandes finezas a quem havia de aborrecer, se o não ignorara. Se não conhecesse o amor, talvez se empenharia cegamente no que não havia de empreender, se o soubera. Se não conhecesse o fim em que havia de parar amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar, se os previra. Todas estas ignorâncias, que se acham nos homens, em Cristo foram ciências, e em todas e cada uma crescem os quilates de seu extremado amor. Conhecia-se a si, conhecia a quem amava, conhecia o amor, e conhecia o fim onde havia de parar amando. Tudo notou o Evangelista. Conhecia-se a si, porque sabia que não era menos que Deus, Filho do Eterno Padre: Sciens quia a Deo exivit[9]. Conhecia a quem amava, porque sabia quão ingratos eram os homens, e quão cruéis haviam de ser para com ele: Sciebat enim quisnam esset, qui traderet eum[10]. Conhecia o amor, e bem à custa do seu coração, pela larga experiência do que tinha amado: Cum dilexisset suos[11]. Conhecia finalmente o fim em que havia de parar amando, que era a morte, e tal morte: Sciens quia venit hora ejus[12]. E que, conhecendo-se Cristo a si, conhecendo a quem amava, conhecendo o amor, e conhecendo o fim cruel em que havia de parar amando, amasse contudo? Grande excesso de amor: In finem dilexit! Para que conheçamos quão grande e quão excessivo foi, vamo-lo ponderando por partes em cada uma destas circunstâncias de ciência.
Primeiramente, foi grande o amor de Cristo porque nos amou conhecendo-se: Sciens quia a Deo exivit (Jo. 13, 3). Que conhecendo-se Cristo a si nos amasse a nós, grande e desusado amor! Enquanto Paris, ignorante de si e da fortuna de seu nascimento, guardava as ovelhas do seu rebanho nos campos do Monte Ida, dizem as histórias humanas que era objeto dos seus cuidados Enone, uma formosura rústica daqueles vales. Mas quando o encoberto príncipe se conheceu e soube que era filho de Príamo, rei de Tróia, como deixou o cajado e o surrão, trocou também de pensamento. Amava humildemente enquanto se teve por humilde; tanto que conheceu quem era, logo desconheceu a quem amava. Como o amor se fundava na ignorância de si, o mesmo conhecimento que desfez a ignorância acabou também o amor. Desamou príncipe, o que tinha amado pastor, porque como é falta de conhecimento próprio nos pequenos levantar o pensamento, assim é afronta da fortuna nos grandes abater o cuidado. Ah! Príncipe da glória, que assim parece vos havia de suceder convosco, mas não foi assim! Quem ouvisse dizer que nos amava o Filho de Deus com tanto extremo, parece que poderia pôr em dúvida se o Senhor se conhecia ou vivia ignorante de quem era? Pois, para que a verdade de nossa fé não perigue nos extremos de seu amor, e para que o mundo não caia em tal engano, saibam todos, diz o Evangelista, que Cristo amou e amou tanto: In finem dilexit (Jo. 13, 1); mas saibam também que juntamente conhecia quem era: Sciens quia a Deo exivit (Jo. 13, 3).
Se Cristo não se conhecera, não fora muito que nos amasse; mas amar-nos conhecendo-se foi tal excesso, que parece que o mesmo amar-nos foi desconhecer-se. Disse uma vez a Esposa dos Cantares a seu Esposo, que o amava muito: Quem diligit anima mea[13]. E ele, que lhe responderia? Si ignoras te, o pulcherrima inter mulieres (Cân.1, 7): Formosíssima de todas as mulheres, desconheceis-vos? — Notável resposta! De maneira que quando a Esposa afirma ao Esposo que o ama, o Esposo pergunta à Esposa se se desconhece: Si ignoras te? Esposo discreto e amado, que modo de responder é esse, e que conseqüência tem esta vossa resposta? Quando a Esposa vos assegura o seu amor, vós duvidais-lhe o seu conhecimento, e, quando afirma que vos ama, perguntais-lhe se se desconhece: Si ignoras te? Sim. Porque conforme a alta estimação que o Esposo fazia dos merecimentos da Esposa, afirmar ela que o amava tanto era grande razão para duvidar se se não conhecia. Como se dissera o Esposo: Vós dizeis que me amais: Quem diligit anima mea? Pois eu vos digo que vos não conheceis: Si ignoras te, o pulcherrima. Porque, se vos conheceis a vós, como é possível que me ameis a mim? Foi necessário que a vós vos faltasse o conhecimento, para que a mim me sobejasse a ventura. O amor de minha indignidade vem a parecer ignorância de vossa grandeza: Si ignoras te, porque se não deixareis de vos conhecer, como vos abateríeis a me amar?
Isto que antigamente disse Salomão à princesa do Egito podemos nós dizer com mais razão ao verdadeiro Salomão, Cristo, à vista dos extremos de seu amor: Si ignoras te (Cânt. 1, 7). É isto amor, Deus meu, ou ignorância? Amais-nos, ou desconheceis-vos? Verdadeiramente, parece que vos esqueceis de quem sois, e que vos tirais da memória para nos meter na vontade. Oh! que alta e que profundamente considerou hoje São Pedro estes dois extremos, quando, com assombro do céu, vos viu diante de si com os joelhos em terra: Tu mihi (Jo. 13, 6)! Vós a mim? Vós a Pedro? — Parece, Senhor, que nem vos conheceis a vós, nem me conheceis a mim. Mas o certo é que a vós vos conheceis, e a mim amais. E é tão grande vossa sabedoria em conhecer estas desproporções, como vosso amor em ajuntar estas distâncias. Mas em amor infinito, bem podem caber distâncias infinitas. Assim provam as mãos de Deus juntas com os pés dos homens: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus[14]: eis al as mãos de Deus. Caepit lavare pedes discipulorum[15]: eis aí os pés dos homens.
Apareceu Deus na sarça a Moisés, e mandou-lhe descalçar os sapatos: Solve calceamenta de pedibus tuis (Êx. 3, 5). Quando eu lia este passo, admirava-me certo muito de que a majestade e grandeza de Deus entendesse com os pés de Moisés. Mas quem puser os olhos na sarça, deixará logo de se admirar. A sarça em que Deus apareceu estava ardendo toda em chamas vivas; e um Deus abrasado em fogo, que muito que se abalance aos pés dos homens! Falando a nosso modo, nunca Deus se conheceu melhor que quando estava na sarça, porque ali definiu sua essência: Ego sum qui sum[16]. E que, definindo-se Deus, o fogo não se apagasse? Que, conhecendo-se Deus essencialmente, as labaredas em que ardia não se diminuíssem? Grande amor! Definir-se e esfriar-se fora tibieza; definir-se e arder, isso é amar. Não fora Deus quem é, se não amara como amou. O definir-se foi declarar a sua essência; o arder foi provar a definição. O mesmo aconteceu a Cristo hoje: Sciens guia a Deo exivit, ponit vestimenta sua[17]. Sabendo que era Filho de Deus, começou a despir as roupas. Quem sabia que era Filho de Deus, conhecia-se; quem lançava de si as roupas, abrasava-se. E conhecer-se e abrasar-se, isso é amor: In finem dilexit.
§ IV
A segunda ignorância que tira o conhecimento ao amor: não conhecer quem ama a quem ama. O engano de Jacó. Os homens não amam aquilo que cuidam que amam, porém Cristo amava os homens com conhecimento; mesmo a Judas. Definição do amor fino: amar para amar. Por que somente a Judas dá Cristo o nome de amigo?
A segunda ignorância, que tira o merecimento ao amor, é não conhecer quem ama a quem ama. Quantas coisas há no mundo muito amadas, que, se as conhecera quem as ama, haviam de ser muito aborrecidas. Graças, logo, ao engano, e não ao amor. Serviu Jacó os primeiros sete anos a Labão, e ao cabo deles, em vez de lhe darem a Raquel, deram-lhe a Lia: Ah! enganado pastor, e mais enganado amante! Se perguntarmos à imaginação de Jacó por quem servia, responderá que por Raquel. Mas se fizermos a mesma pergunta a Labão, que sabe o que é e o que há de ser, dirá com toda a certeza que serve por Lia, e assim foi. Servis por quem servis, não servis por quem cuidais. Cuidais que os vossos trabalhos e os vossos desvelos são por Raquel, a amada, e trabalhais, e desvelais-vos por Lia, a aborrecida. Se Jacó soubera que servia por Lia, não servira sete anos, nem sete dias. Serviu logo ao engano, e não ao amor, porque serviu por quem não amava. Oh! quantas vezes se representa esta história no teatro do coração humano, e não com diversas figuras, senão na mesma! A mesma, que na imaginação é Raquel, na realidade é Lia; e não é Labão o que engana a Jacó, senão Jacó o que se engana a si mesmo. Não assim o divino amante, Cristo. Não serviu por Lia debaixo da imaginação de Raquel, mas amava a Lia conhecida como Lia. Nem a ignorância lhe roubou o merecimento ao amor, nem o engano lhe trocou o objeto ao trabalho. Amou e padeceu por todos e por cada um, não como era bem que eles fossem, senão assim como eram. Pelo inimigo, sabendo que era inimigo, pelo ingrato, sabendo que era ingrato, e pelo traidor, sabendo que era traidor: Sciebat enim quisnam esset qui traderet eum (Jo. 13, 11).
Deste discurso se segue uma conclusão tão certa como ignorada, e é que os homens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não é o que cuidam, ou porque amam o que verdadeiramente não há. Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima, e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama, e não defeitos. Cuidais que amais diamantes de firmeza, e amais vidros de fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo, os homens não amam o que cuidam que amam. Donde também se segue que amam o que verdadeiramente não há, porque amam as coisas, não como são, senão como as imaginam, e o que se imagina e não é, não o há no mundo. Não assim o amor de Cristo, sábio sem engano: Cum dilexisset suos, qui erant in mundo (Jo. 13, 1). Notai o texto, e a última cláusula dele, que parece supérflua e ociosa: Como amasse aos seus que havia no mundo. — Pois, onde os havia de haver? Fora do mundo? Claro está que não. Logo se bastava dizer: Como amasse aos seus, por que acrescenta o evangelista: os seus que havia no mundo: Suos qui erant in mundo? Foi para que entendêssemos o conhecimento com que Cristo amava aos homens, mui diferente do com que os homens amam. Os homens amam muitas coisas, que as não há no mundo. Amam as coisas como as imaginam, e as coisas como eles as imaginam, havê-las-á na imaginação, mas no mundo não as há. Pelo contrário, Cristo amou os homens como verdadeiramente eram no mundo, e não como enganosamente podiam ser na imaginação: Cum dilexisset suos, qui erant in mundo. Não amou Cristo os seus como vós amais os vossos. Vós amai-los como são na vossa imaginação, e não como são no mundo. No mundo são ingratos, na vossa imaginação são agradecidos; no mundo são traidores, na vossa imaginação são leais; no mundo são inimigos, na vossa imaginação são amigos. E amar ao inimigo, cuidando que é amigo, e ao traidor, cuidando que é leal, e ao ingrato, cuidando que é agradecido, não é fineza, é ignorância. Por isso o vosso amor não tem merecimento, não é senão engano. Só o de Cristo foi verdadeiro amor e verdadeira fineza, porque amou os seus como eram, e com inteira ciência do que eram: ao inimigo, sabendo o seu ódio, ao ingrato, sabendo a sua ingratidão, e ao traidor, sabendo a sua deslealdade: Sciebat enim quisnam esset, qui traderet eum (Jo. 13, 1).
Mas se esta ciência de Cristo era universal, em respeito de todos os discípulos, que eram os seus que havia no mundo, por que nota mais particularmente o evangelista o conhecimento desta mesma ciência em respeito de Judas, advertindo que sabia o Senhor qual era o que o havia de entregar: Sciebat enim quisnam esset qui traderet eum? Tão inteiramente conhecia Cristo a Judas, como a Pedro e aos demais; mas notou o evangelista com especialidade a ciência do Senhor em respeito de Judas, porque em Judas, mais que em nenhum dos outros, campeou a fineza do seu amor. Ora vede. Definindo São Bernardo o amor fino, diz assim: Amor non quaerit causam, nec fructum: O amor fino não busca causa nem fruto. — Se amo porque me amam, tem o amor causa; se amo para que me amem, tem fruto; e o amor fino não há de ter porquê, nem para quê. Se amo porque me amam, é obrigação, faço o que devo; se amo para que me amem, é negociação, busco o que desejo. Pois, como há de amar o amor para ser fino? Amo, quia amo; amo, ut amem: amo, porque amo, e amo para amar. Quem ama porque o amam, é agradecido; quem ama para que o amem, é interesseiro; quem ama, não porque o amam, nem para que o amem, esse só é fino. E tal foi a fineza de Cristo em respeito de Judas, fundada na ciência que tinha dele e dos demais discípulos.
Na prática desta última ceia, disse Cristo aos discípulos: Jam non ditam vos servos, sed amicos (Jo. 15, 15): discípulos meus, daqui em diante não vos hei de chamar servos, senão amigos. Sendo isto assim, lede todos os evangelistas, e achareis que só a Judas chamou amigo, quando disse: Amice, ad quid venisti[18]. — Pois, Senhor, não está aí Pedro, não está aí João, que merecem mais que todos o nome de amigos? Por que lhe não dais a eles este nome, senão a Judas? A Judas o inimigo? A Judas o falsário? A Judas, o traidor, o nome de amigo? Amice? — Hoje sim, porque Cristo neste dia não buscava motivos ao amor, buscava circunstâncias à fineza. Os outros discípulos, sabia Cristo que o amavam, e sabia que o haviam de amar, até dar a vida por Ele. Porque o amavam, tinha o seu amor causa, e porque o haviam de amar, tinha fruto. Pelo contrário, Judas nem amava a Cristo, porque o vendia, nem o havia de amar, porque havia de perseverar obstinado até a morte; e amar o Senhor a quem o não amava, nem havia de amar, era amar sem causa e sem fruto, e por isso a maior fineza. Amar ingratidões conhecidas, coisa é que algumas vezes se acha no amor. Mas ninguém amou uma ingratidão sabida, que aí mesmo não amasse a um agradecimento esperado. Só Cristo foi tão fino e tão amante, que amou sem correspondência, porque amou a quem sabia que o não amava, e sem esperança, porque amou a quem sabia que o não havia de amar. Por isso dá o título de amigo só a Judas, não porque lhe merecesse o amor, mas porque lhe acreditava a fineza. Amar por razões de amar, isso fazem todos; mas amar com razões de aborrecer, só o faz Cristo. Fez das ofensas obrigações, e dos agravos motivos, porque era obrigação do seu amor chegar à maior fineza: In finem dilexit.
§V
Terceira circunstância: Foi grande o amor de Cristo pelo conhecimento que tinha do mesmo amor Qual é o amor mais precioso: o primeiro, ou o segundo? Os dois juramentos de Jônatas a Davi. A ciência experimental do amor de Cristo. O amor de Abraão a Isac, e as duas setas do amor.
A terceira circunstância de ciência, que grandemente subiu de ponto o amor de Cristo, foi o conhecimento que tinha do mesmo amor. Cristo conhecia todas as coisas com três ciências altíssimas: com a ciência divina, como Deus; com a ciência beata como bem-aventurado; com a ciência infusa, como cabeça do gênero humano e Redentor do mundo. O amor ainda o conheceu com outra quarta ciência, que foi a experimental e adquirida, porque, assim como diz S. Paulo que aprendeu a obedecer padecendo, assim aprendeu a amar amando. E isto é o que ponderou muito S. João, advertindo que amou tendo amado: Cum dilexisset, dilexit.
Questão é curiosa nesta filosofia, qual seja mais precioso e de maior quilate: se o primeiro amor, ou o segundo? Ao primeiro ninguém pode negar que é o primogênito do coração, o morgado dos afetos, a flor do desejo, e as primícias da vontade. Contudo eu reconheço grandes vantagens no amor segundo. O primeiro é bisonho, o segundo é experimentado; o primeiro é aprendiz, o segundo é mestre; o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor. Enfim o segundo amor, porque é segundo, é confirmação e ratificação do primeiro, e por isso, não simples amor, senão duplicado, e amor sobre amor. É verdade que o primeiro amor é o primogênito do coração; porém, a vontade, sempre livre, não tem os seus bens vinculados. Seja o primeiro, mas não por isso o maior.
A primeira vez que Jônatas se afeiçoou a Davi, diz a Escritura Sagrada que lhe fez juramento de perpétuo amor: Inierunt autem David et Jonatas faedus: diligebat enim eum quasi animam suam[19]. Passaram depois disso alguns tempos de firme vontade, posto que de vária fortuna; torna a dizer o texto que Jônatas fez segundo juramento a Davi, de nunca faltar a seu amor: Et addidit Jonatas dejerare David, eo quod diligeret illum[20]. Pois, se Jônatas tinha já feito um juramento de amar a Davi, por que faz agora outro? Porventura quebrou o primeiro, para que fosse necessário o segundo? É certo que o não quebrou, porque não fora Jônatas o exemplo maior da amizade, se o não fora também da firmeza. Pois, se o amor estava jurado ao princípio, por que o jura outra vez agora? Porque foi mui diferente matéria jurar o amor antes de conhecido, ou jurá-lo depois de experimentado. Quando Jônatas jurou a primeira vez, não sabia ainda o que era amar, porque o não experimentara; quando jurou a segunda vez, já tinha larga experiência do que era e do que custava, pelo muito que padeceu por Davi, e era tão diferente o conceito que Jônatas fazia agora de um amor a outro que julgou que o juramento do primeiro não o obrigava a guardar o segundo. Pois para que a ignorância passada não diminuísse o merecimento presente, por isso fez juramento de novo amor. Não novo, porque deixasse de amar alguma hora, mas porque era pouco o que dantes prometera, em comparação do muito que hoje amava. Então prometeu como conhecia, agora prometia como experimentara. Que Jônatas se resolvesse a amar a Davi, quando não conhecia as paixões deste tirano afeto, não foi muita fineza; mas, depois de conhecer seus rigores, depois de sofrer suas sem-razões, depois de experimentar suas crueldades, depois de padecer suas tiranias, depois de sentir ausências, depois de chorar saudades, depois de resistir contradições, depois de atropelar dificuldades, depois de vencer impossíveis, arriscando a vida, desprezando a honra, abatendo a autoridade, revelando secretos, encobrindo verdades, desmentindo espias, entregando a alma, sujeitando a vontade, cativando o alvedrio, morrendo dentro em si, por tormento, e vivendo em seu amigo, por cuidado, sempre triste, sempre afligido, sempre inquieto, sempre constante, apesar de seu pai e da fortuna de ambos — que todas estas finezas diz a Escritura fez Jônatas por Davi — que depois, digo, de tão qualificadas experiências de seu coração e de seu amor, se resolvesse segunda vez a fazer juramento de sempre amar? Isto sim, isto é amor.
O mesmo digo do nosso fino amante, com a vantagem que vai de Filho de Deus a filho de Saul. Se Cristo pudera não conhecer o amor, ou o não conhecera por experiência, menos fora que nos amasse; porém, conhecendo experimentalmente o amor, e o amor seu, e sabendo que este fora tão rigoroso, que o arrancou do peito de seu Pai; que foi tão desumano, que o lançou na terra em um presépio; que foi tão cruel que, a oito dias de nascido, lhe tirou o sangue das veias; que foi tão desamoroso que, antes de dois meses de idade, o desterrou sete anos para o Egito; e que era tão tirano que, se lhe não tirou a vida a mãos de Herodes, foi porque se não contentava com tão pouco sangue: que conhecendo Cristo que este era o seu amor, não desistisse, nem se arrependesse, antes continuasse a amar, grande amor! Grande, porque amou, mas muito maior, porque amou sobre ter amado: Cum dilexisset dilexit.
Bem vejo que me replicam os teólogos que o amor de Cristo, desde o primeiro instante até o último, sempre foi igual, e nunca cresceu. Assim o pedia a razão. Se o diminuir no amor é descrédito, também é descrédito o crescer. Quem diz que ama mais desacredita o seu amor, porque ainda que o crescer seja aumento, é aumento que supõe imperfeição. Amor que pode crescer não é amor perfeito. Pois se o amor perfeitíssimo de Cristo sempre foi igual, e nunca cresceu, como dizemos que hoje foi maior? Todos respondem, e bem, que foi maior nos efeitos. Mas eu, como mais grosseiro, ainda na mesma substância do amor não posso deixar de reconhecer alguma consideração de maioria. Confesso que não cresceu, mas bem se pode ser maior sem crescer. Uma coluna sobre a base, uma estátua sobre a peanha, cresce sem crescer. Assim o amor de Cristo hoje, porque foi amor sobre amor. E como a base e a peanha, não só eram da mesma substância, senão a mesma substância do amor de Cristo, não só fica hoje mais subido, senão, em certo modo, maior. É tanto isto assim, que, a meu ver, não podem ter outro sentido as palavras do evangelista: Cum dilexisset, dilexit: Como amasse, amou. — Estas palavras dizem mais do que soam. Amasse e amou não têm mais diferença que no tempo; na significação não têm diversidade. Que nos diz logo de novo o evangelista? Se dissera: como amasse muito, agora amou mais, bem estava; isso é o que queria provar. Mas, se queria dizer que amou mais, como diz somente que amou? Porque o diz com tais termos, que dizendo só que amou, fica provado que amou mais: Cum dilexisset, dilexit. Como amasse, amou, e isto de amor sobre haver amado, não é só amar depois, senão amar mais. Não diz só relação de tempo, senão excesso de amor. E, como o evangelista queria subir de ponto o muito que o Senhor amou hoje, entendeu que, para encarecer o amor presente, bastava supor o passado.
Quando Deus mandou a Abraão que lhe sacrificasse seu filho, em todo o rigor da propriedade hebréia, diz o texto assim: Tolle filium tuum, quem dilexisti Isaac (Gên. 22, 2): Sacrifica-me teu filho Isac, a quem amaste. — A quem amas, parece que havia de dizer, porque todo o intento de Deus foi encarecer o amor, para dificultar o sacrifício. Pois por que não diz: sacrifica-me o filho que amas, senão o filho que amaste? Por isso mesmo. Queria Deus encarecer o amor para dificultar o sacrifício, e em nenhuma coisa podia encarecer mais o amor presente, que na suposição do passado. Sacrifica-me o filho, não só que amas, senão que amaste, porque amar sobre haver amado, é o maior amor. Por isso o evangelista hoje, comparando amor com amor, não fez comparação de grande a excessivo, senão de primeiro a segundo: Cum dilexisset, dilexit. Esta foi a primeira e segunda ferida do coração, de que o nosso divino Amante, muito antes de o amor lhe tirar as setas, já se gloriava: Vulnerasti cor meum, soror mea sponsa, vulnerasti cor meum[21]. A primeira ferida foi a do amor passado; a segunda, a do amor presente. E para prova de qual foi maior e mais penetrante, se não basta ser ferida sobre ferida, baste saber que com a primeira viveu, e que a segunda lhe tirou a vida: Cum dilexisset, in finem dilexit. E somos entrados, sem o pretender, na quarta consideração.
§ VI
Quarta e última circunstância: conhecer Cristo o fim onde havia de parar amando. A ignorância do fim no amor de Siquém. O sacrifício de Abraão e o sacrifício de Isac. O ocaso do sol divino. Cristo amou sabendo, como se amara ignorando; e por isso só ele soube amar finamente.
A quarta e última circunstância em que a ciência de Cristo afinou muito os extremos de seu amor, foi saber e conhecer o fim onde havia de parar amando: Sciens quia venit hora ejus. De muitos contam as histórias que morreram porque amaram; mas, porque o amor foi só a ocasião, e a ignorância a causa, falsamente lhe deu a morte o epitáfio de amantes. Não é amante quem morre porque amou, senão quem amou para morrer. Bem notável é neste gênero o exemplo do príncipe Siquém. Amou Siquém a Dina, filha de Jacó, e rendeu-se tanto aos impérios de seu afeto que, sendo príncipe soberano, se sujeitou a tais condições e partidos, que a poucos dias de desposado lhe puderam tirar a vida Simeão e Levi, irmãos de Dina. Amou Siquém, e morreu, mas a morte não foi troféu de seu amor; foi castigo de sua ignorância. Foi caso, e não merecimento, porque não amou para morrer, ainda que morreu porque amou. Deveu-lhe Dina o amor, mas não lhe deveu a morte; antes, por isso, nem o amor lhe deveu. Que quem amou porque não sabia que havia de morrer, se o soubera, não amara. Não está o merecimento do amor na morte, senão no conhecimento dela.
Vede-o em Abraão e Isac claramente. Naqueles três dias em que Abraão foi caminhando para o monte do sacrifício com seu filho Isac, ambos iam igualmente perigosos, mas não iam igualmente finos. Iam igualmente perigosos porque um ia a morrer, outro a matar, ou a matar-se; mas não iam igualmente finos, porque um sabia onde caminhavam, o outro não o sabia. O caminho era o mesmo, os passos eram iguais, mas o conhecimento era muito diverso, e por isso também o merecimento. Abraão merecia muito, Isac não merecia nada, porque Abraão caminhava com ciência, Isac com ignorância; Abraão ao sacrifício sabido, Isac ao sacrifício ignorado. Esta é a diferença que faz o sacrifício de Cristo a todos os que sacrificou a morte, por culpas do amor. Só Cristo caminhou voluntário à morte sabida; todos os outros, sem vontade, à morte ignorada. A Siquém, a Sansão, a Amon e aos demais que morreram porque amaram, levou-os o amor à morte, com os olhos cobertos, como condenados (Gên., Jz., Rs.); só a Cristo como triunfador, com os olhos abertos. — Tomara ter mais honradas antíteses, mas estas são as que lemos na Escritura. — Nem Siquém amara a Dina, nem Sansão à Dalila, nem Amon a Tamar, se anteviram a morte que os aguardava. Só a ciência de Cristo conheceu que o seu amor o levava à morte, e só Cristo conhecendo-a e vendo-a vir para si, caminhou animosamente a ela: Sciens quia venit hora ejus.
Que bem, e que poeticamente o cantou Davi: Sol cognovit occasum suum (SI. 1O3, 19): O sol conheceu o seu ocaso. — Poucas palavras, mas dificultosas. O sol é uma criatura irracional e insensível — porque, ainda que alguns filósofos creram o contrário, é erro condenado. — Pois se o sol não tem entendimento nem sentidos, como diz o profeta que o sol conheceu o seu ocaso: Sol cognovit occasion suum? O certo é, diz Agostinho, que debaixo da metáfora do sol material, falou Davi do sol divino, Cristo, que só é sol com entendimento. E porque ambos foram mui parecidos em correr ao seu ocaso, por isso retratou as finezas de um nas insensibilidades do outro. Se a luz do sol fora verdadeira luz de conhecimento, e o Ocidente, onde se vai pôr o sol, fora verdadeira morte, não nos causara grande admiração ver que o sol, conhecendo o lugar de sua morte, com a mesma velocidade com que sobe ao zênite, se precipitasse ao Ocidente? Pois isto foi o que fez aquele sol divino: Sol cognovit occasum suum. Conheceu verdadeiramente o sol divino o seu ocaso, porque sabia determinadamente a hora em que, chegando aos últimos horizontes da vida, havia de passar deste ao outro hemisfério: Sciens quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo. E que sobre este conhecimento, certo do fim cruel a que o levava seu amor, caminhasse sem fazer pé atrás, tão animoso ao verdadeiro e conhecido ocaso, como o mesmo sol material que não morre nem conhece? Grande resolução e valentia de amor! Não só conhecer a morte, e ir a morrer, mas ir a morrer conhecendo-a, como se a ignorara.
Só S. João, que nos deu o pensamento, poderá dar a prova. Quando vieram a prender a Cristo seus inimigos, diz assim o Evangelista: Sciens omnia quae ventura erant super eum, processit, et dixit: Quem quaeritis (Jo. 18, 4)? Sabendo o Senhor tudo o que havia de vir sobre ele, saiu a encontrar-se com os que o vinham prender, e disse-lhes: A quem buscais? — Parece que se implica nos termos esta narração. Quem sabe, não pergunta. Pois, se Cristo sabia tudo, e sabia que o buscavam a ele, e o evangelista nota que o sabia, por que pergunta, como se o não soubera? A razão e o mistério é porque, desde este ponto, começava Cristo a caminhar para a morte, e esse foi o modo com que seu amor o levava. Levava-o à morte sabendo, como se o levara ignorando. Quem ler o que diz o evangelista, dirá que Cristo sabia; quem ouvir o que Cristo pergunta, cuidará que Cristo ignorava, e, ou na verdade, ou na aparência, tudo era. Na verdade sabia, e na aparência ignorava, porque de tal maneira amou e foi a morrer sabendo, como se amara e morrera ignorando.
Este é o segredo que encobria aquele véu, ou aquele misterioso eclipse com que o amor hoje cobriu os olhos a Cristo por mãos de seus inimigos: Velaverunt eum, et percutiebant faciem ejus[22]. Que sofresse o Senhor outros muitos tormentos, não me espanto, que a tudo se oferece quem sobre tudo ama. Mas de permitir que lhe cobrissem os olhos, parece que não só se podia ofender a sua paciência, senão muito mais seu amor. S. João, hoje naquele repetido sciens, não tirou as vendas ao amor de Cristo, para que soubesse o mundo que amava com os olhos abertos? Pois, por que permite no mesmo dia que lhe cubram e vendem os olhos? Porque esta foi a destreza com que o amor de Cristo soube equivocar a ciência com a ignorância. Fez que amasse de tal maneira com os olhos abertos, como se amara com os olhos fechados. Que amasse de tal maneira sabendo, como se amara ignorando. Desafrontou-se o amor com aquele véu que parecia afrontoso, e vingou-se, para maior honra sua, do que lhe tinha feito S. João. S. João tirou as vendas ao amor de Cristo, e o mesmo amor tornou-as a pôr em Cristo, para que advertíssemos que de tal maneira amou sabendo, e com os olhos abertos, como se amara ignorando, e com os olhos fechados: Velaverunt eum (Lc. 22, 64). Conhecia-se Cristo a si, e amou como se não conhecera; sabia o que amava, e amou como se o não soubera; tinha experimentado o amor, e amou como se o não experimentara; previu o fim a que havia de chegar amando, e amou como se o não previra. E porque amou sabendo, como se amara ignorando, por isso só ele amou e soube amar finamente: Sciens, sciens, sciens, sciens in finem dilexit eos.
§ VII
O amor de Cristo, amor sem paga, e sem conhecimento. As certificações do conhecimento e as promessas do prêmio no sacrifício de Abraão.
Temos considerado o amor de Cristo pelas advertências de S. João. Consideremo-lo agora pelas advertências do mesmo Cristo que, como quem o conhecia melhor, serão as mais bem ponderadas e mais profundas. Apostaram hoje o maior amante e o maior amado. Cristo e S. João, apostaram, digo, a encarecer os extremos do mesmo amor, e depois que S. João disse quanto soube, advertindo que Cristo amara sabendo: Tá, diz Cristo, que não é essa a maior circunstância que sobe de ponto o meu amor. Se os homens querem saber a fineza com que os amei, não a ponderem pela minha sabedoria: ponderem-na pela sua ignorância. Amei muito aos homens, porque os amei sabendo eu tudo; mas muito maior foi meu amor, porque os amei, ignorando eles quanto eu os amava: Quod ego facio, tu nescis. Por mais que os homens façam discursos e levantem pensamento, nunca poderão chegar a conhecer o amor com que os amou Cristo, nem enquanto Deus, nem enquanto homem; e que se resolva. Cristo a amar a quem não só lhe não havia de pagar o amor, mas nem ainda o havia de conhecer! Que não haja de ter o meu amor não só a satisfação de pago, mas nem ainda o alívio de conhecido! Esta foi a maior valentia do coração amoroso de Cristo, e esta a maior dificuldade por que rompeu a força do seu amor.
E, se não, façamos esta questão. Que é o que mais deseja e mais estima o amor: ver-se conhecido, ou ver-se pago? É certo que o amor não pode ser pago, sem ser primeiro conhecido; mas pode ser conhecido, sem ser pago. E, considerando divididos estes dois termos, não há dúvida que mais estima o amor, e melhor lhe está ver-se conhecido que pago. Porque o que o amor mais pretende é obrigar: o conhecimento obriga, a paga desempenha; logo, muito melhor lhe está ao amor ver-se conhecido, que pago, porque o conhecimento aperta as obrigações; a paga e o desempenho desata-as. O conhecimento é satisfação do amor-próprio; a paga é satisfação do amor alheio. Na satisfação do que o amor recebe, pode ser o afeto interessado; na satisfação do que comunica, não pode ser senão liberal: logo, mais deve estimar o amor ter segura no conhecimento a satisfação da sua liberalidade, que ver duvidosa na paga a fidalguia do seu desinteresse. O mais seguro crédito de quem ama é a condição da dívida no amado: mas como há de confessar a dívida quem a não conhece? Mais lhe importa logo ao amor o conhecimento que a paga, porque a sua maior riqueza é ter sempre endividado a quem ama. Quando o amor deixa de ser acredor, só então é pobre. Finalmente, ser tão grande o amor, que se não possa pagar, é a maior glória de quem ama. Se esta grandeza se conhece, é glória manifesta; se não se conhece, fica escurecida, e não é glória; logo, muito mais estima o amor, e muito mais deseja, e muito mais lhe convém a glória de conhecido, que a satisfação de paga. Baste de razões; vamos à Escritura.
A maior façanha do amor humano foi aquela animosa resolução com que o patriarca Abraão, antepondo o amor divino ao natural e paterno, determinou tirar a vida a seu próprio filho. Teve Deus mão à espada ao desamorado e amorosíssimo servo seu, e o que lhe disse imediatamente foi: Nunc cognovi quod timeas Deum (Gên. 22, 12): Agora conheço, Abraão, que me amas! — Isto quer dizer aquele timeas, em frase da Escritura, e assim o trasladam muitos, e interpretam todos: Nunc cognovi quod diligis Deum. Depois disto apareceu ali um cordeiro grande, embaraçado entre umas sarças, que deu alegre fim ao não imaginado sacrifício, o qual acabado, tomou Deus a falar a Abraão, e disse-lhe: Quia fecisti hanc rem, benedicam tibi, etmultiplicabo semen tuum sicutstellas caeli (Gen. 22, 16 s): Em prêmio desta ação que fizeste, será tua geração bendita, multiplicarei teus descendentes como as estrelas, — nascerá de ti o Messias. Este foi historialmente o caso; reparemos agora nele. Duas vezes falou Deus aqui com Abraão, e duas coisas lhe disse: uma logo, quando lhe deteve a espada, e outra depois. A que lhe disse logo, foi que conhecia que o amava: Nunc cognovi quod diligis Deum. A que lhe disse depois, foi que lhe premiaria liberalmente aquela ação: Quia fecisti rem hanc, etc. Pois, pergunto: por que diz Deus a Abraão em primeiro lugar que conhecia seu amor, e no segundo que o premiaria? E já que dilatou para depois as promessas do prêmio, por que não dilatou também as certificações do conhecimento: Nunc cognovi? Falou Deus como quem conhece os corações, e sabe o que mais estima quem verdadeiramente ama. Primeiro certificou a Abraão de que conhecia seu amor, e reservou para depois o assegurar-lhe que o havia de premiar, porque, como Abraão era tão verdadeiro e fino amante, mais estimava ver o seu amor conhecido, que pago. As promessas do prêmio, dilatem-se embora; mas as certificações do conhecimento, dêem-se logo, e no mesmo instante, porque mais facilmente sofrerá um grande amor as dilações ou esperanças de pago, que as dúvidas de conhecido. Antes, digo que foi necessária a conseqüência de dizer Deus a Abraão que conhecia seu amor, quando lhe mandava suspender a espada, porque, se Abraão não ficara certo de que seu amor estava já conhecido, sem dúvida executara o golpe, para que o sangue da melhor parte de seu coração dissesse a gritos quão verdadeiramente amava. E que, estimando o amor sobre tudo ver-se conhecido, e não conhecendo os homens o amor de Cristo antes, sendo impossível conhecê-lo como ele é, vencesse seu amor esta dificuldade, e atropelasse este impossível, e, apesar dele e de si mesmo, amasse? Estupenda resolução de amor!
§ VIII
A mais rigorosa pena do amor: o desconhecimento. Os dois desmaios da Esposa dos Cantares. A queixa do Salmo XXXIV
Muito custou a Cristo amar-nos, muito padeceu amando-nos, porém a mais rigorosa pena a que o condenou seu amor, foi que amasse a quem o não havia de conhecer. Isto é o que mais sente, isto é o que lastima a quem ama. Dois desmaios, ou dois acidentes grandes padeceu a Esposa dos Cantares, causados ambos do seu amor. Um foi logo no princípio dele, que se escreve no capítulo segundo; outro foi depois de haver já amado muito, e se refere no capítulo quinto. Houve-se porém a Esposa nestes dois acidentes com diferença mui digna de consideração e reparo. No primeiro acidente disse: Fulcite me floribus, stipate me malis, quia aurore langueo (Cânt. 2, 5): Acudi-me com confortativos, trazei-me rosas e flores, porque estou enferma de amor. No segundo diz: Adjuro vos, flliae Jerusalem, si inveneritis dilectum, ut nuntietis ei quia amore langueo (Cânt. 5, 8): Pelo que vos mereço, filhas de Jerusalém, que busqueis a meu amado, e lhe façais a saber que estou enferma de amor. — Notável diferença! Se a esposa em ambos os casos estava igualmente enferma de amor: Quia amore langueo, por que razão no primeiro acidente pediu remédio e confortativos, e no segundo não? E se no segundo não teve cuidado de pedir remédios, por que encomenda com tanto encarecimento às amigas, e lhes pede juramento de que o façam a saber a seu esposo: Adjuro vos, ut nuntietis dilecto? Não podia pintar a verdade do que dizemos. No primeiro acidente, em que a Esposa era ainda principiante no amor, pediu somente remédios para a enfermidade, porque os efeitos penosos que experimentava seu coração eram os que mais lhe doíam. Porém, no segundo acidente, em que o amor era já perfeito e consumado, em vez de dizer que acudam com remédios a seu mal, diz que acudam com notícias a seu amado, porque não lhe doía tanto a sua dor porque ela a padecia, quanto porque ele a ignorava. Acudiu a Esposa primeiro ao que lhe doía mais; e mais lhe doíam os afetos do seu amor porque os ignorava a causa, que porque os padecia o sujeito. Por isso, em vez de dizer: trazei-me remédios, dizia: levai-lhe notícias. Tanto a afligiam as penas do seu amor muito mais por ignoradas que por padecidas. O mesmo foi em Cristo.
No Salmo XXXIV, conforme o texto grego, diz assim o Filho de Deus: Congregata sunt superme flagella, et ignoraverunt (SI. 34, 15): Caíram sobre mim tantos açoites, e ignoraram. — Para inteligência deste afeto, havemos de supor que, de todos os tormentos de sua paixão, nenhum sentiu Cristo tanto como o dos açoites. Bastava a razão por prova, mas o mesmo Senhor o declarou, quando descobriu aos discípulos o que havia de padecer: Tradetur gentibus, et illudetur, et flagellabitur, et conspuetur, et postquam flagellaverint, occident eum[23]. Em todos os outros tormentos, e na mesma morte falou só uma vez; porém o tormento dos açoites repetiu-o duas vezes: Flagellabitur, et postquam, flagellaverint, porque o que mais sente o coração, naturalmente sai mais vezes à boca. Diz pois o Senhor: Congregata sunt super me flagella, et ignoraverunt (SI. 34,15): Caíram sobre mim tantos açoites, e ignoraram. — Afligido JESUS, que termos de falar são estes? Se foram os açoites o tormento de vós mais sentido, parece que haveis de dizer: Caíram sobre mim os açoites. Oh! como os senti! Oh! como me atormentaram! — Mas em vez de dizer que os sentiu, e que o atormentaram, queixa-se somente o Senhor de que os ignoram, porque, no meio dos maiores excessos do seu amor, o que mais atormentava o coração de Cristo não era o que ele padecia, senão o que os homens ignoravam: Et ignoraverunt. Não se queixa dos açoites, e queixa-se da ignorância, porque os açoites afrontavam a pessoa, a ignorância desacreditava o amor. E quem amava com tanto extremo, que quis comprar os créditos de seu amor à custa das afrontas de sua pessoa, que visse enfim a pessoa afrontada, e o amor não conhecido, oh! que insofrível dor! E por que esta falta de conhecimento é o que mais sente, e mais deve sentir quem ama, por isso ponderou Cristo a fineza de seu amor, não pela circunstância da sua ciência, senão pela de nossa ignorância: Quod ego facio, tu nescis[24]. Muito mais realça o amor de Cristo este nescis, que o sciens de S. João, tantas vezes repetido, porque se foram grandes circunstâncias de amor amar conhecendo-se a si e conhecendo a quem amava, e conhecendo o amor, e conhecendo o fim em que havia de parar amando, sobre todas estas considerações se levanta e remonta incomparavelmente empregar todos esses conhecimentos e todo esse amor, por quem o não havia de conhecer: Tu nescis (Jo. 13, 7).
§ IX
As ignorâncias dos homens, o maior sentimento e o maior crédito do amor de Cristo. Tanto no nascimento como na morte, quis Cristo parecer menos amante, para que os homens parecessem menos ingratos.
Mas sendo assim que as ignorâncias dos homens eram por uma parte o maior sentimento, e por outra o maior crédito do amor de Cristo, usou o mesmo amor tão finamente delas que tomou essas mesmas ignorâncias por instrumento de nos acreditar a nós, sem reparar nas conseqüências com que se podia desacreditar a si. Subindo Cristo à cruz, isto é, ao trono do seu amor, no mais público teatro dele, que foi o Calvário, a primeira palavra que falou foi esta: Pater, dimitte illis, non enim sciunt quid faciut (Lc. 23, 34): Eterno Pai, perdoai aos homens, porque não sabem o que fazem. — Porque não sabem o que fazem, perdoador amoroso? E sabe vosso amor o que vos obriga a fazer nesta razão que alegais? Se a nossa ignorância nos faz menos ingratos, também vos faz a vós menos amante; porque na pedra da ingratidão afia o amor as suas setas, e quanto a dureza é maior, tanto mais as afina. Como formais logo desculpas a nossas ingratidões, donde podíeis crescer motivos a vossas finezas? Cuidei que tinha dito a maior de todas, mas esta foi a maior. Chegou Cristo a diminuir o crédito de seu amor, para dissimular e encobrir os defeitos do nosso, e quis parecer menos amante, só para que nós parecêssemos menos ingratos. Assim usou da ignorância dos homens, sendo a consideração da nossa ignorância o mais apurado motivo da sua fineza.
Mas por isso mesmo veio a não ser assim; e onde arriscou o amor de Cristo a sua opinião, dali saiu com ela mais acreditada, porque não pode chegar a maior fineza um amante que a estimar mais o crédito do seu amado que o crédito do seu amor. Exemplo deste primor só no mesmo Cristo se pode achar. Nasceu Cristo em um presépio, e diz por boca do evangelista que nasceu ali porque não havia lugar na cidade: Quia non erae ei locus in diversorio (Lc. 2, 7). Evangelista sagrado, não digais tal coisa, seria essa a ocasião, mas não foi essa a causa. Nasceu Cristo em um presépio, porque foi tão amante dos homens que logo quis padecer por eles aquele desamparo; e nasceu fora da cidade, porque foram os homens tão duros, e tão ingratos, que lhe não quiseram dar abrigo dentro em Belém. Pois se o amor de Cristo e a ingratidão dos homens foram a causa, por que se cala o merecimento de Cristo, e a culpa, que era dos homens, se atribui à ocasião e ao tempo: Quia non erat ei locus in diversorio? O certo é que mais amante se mostrou Cristo na causa que apontou, que no desamparo que padeceu. O que era eleição sua, quis que parecesse necessidade, e o que era ingratidão nossa, quis que parecesse contingência, para que na contingência ficasse dissimulada a ingratidão, e na necessidade o amor. A ingratidão acrescentava a fineza, a necessidade diminuía o amor, e quis Cristo parecer menos amante, para que os homens parecessem menos ingratos. Assim amou no princípio da vida, e assim acabou no fim dela. Por isso desculpa a ingratidão dos homens com a sua ignorância: Non enim sciunt quid faciunt, sendo a mesma ignorância dos homens o maior crédito de seu amor: Quod ego facio, tu nescis.
§X
Desproporção entre o amor de Cristo e o amor dos homens. Oração.
Este foi, cristãos, o amor de Cristo, esta a ciência, e as ciências com que nos amou, e esta a ignorância, e ignorância sobre que somos amados. Tragamos sempre diante dos olhos este sciense este nescis; tenhamos sempre na memória — que o mesmo Senhor tanto nos recomendou neste dia — a sua ciência e a nossa ignorância. Sirva-nos a sua ciência de espertador, para nunca deixar de amar; sirva-nos a nossa ignorância de estímulo para sempre amar mais e mais a quem tanto nos amou. Como não havemos de amar sempre a quem sempre está vendo e conhecendo se o amamos? Como não havemos de amar muito a quem nos amou tanto, que jamais o poderemos alcançar, nem conhecer? Oh! que confusão tão grande será a nossa, se bem considerarmos a força e correspondência deste sciens e deste nescis! Quando Cristo perguntou tantas vezes a S. Pedro se o amava, respondeu ele atônito da pergunta: Tu Domine scis quia amo te (Jo. 21, 15): Bem sabeis, Senhor, que vos amo. — Comparai agora este Tu scis de Pedro, dito a Cristo, com o Tu nescis de Cristo, dito a Pedro. Quando Cristo ama a Pedro, não sabe Pedro quanto o ama Cristo: Tu nescis. Mas quando Pedro ama Cristo, sabe Cristo quanto ama Pedro: Tu scis. Oh! que desproporção tão notável de amor e de ciência! O amor de Pedro sabido, o amor de Cristo ignorado. O amor de Cristo padece a nossa ignorância, o nosso padece a sua ciência, e ambos podem estar igualmente queixosos. O de Cristo queixoso, porque o não conhecem os homens: Tu nescis; o dos homens queixoso, porque o conhece Cristo: Tu scis. Se Cristo não conhecera o amor dos homens, tivera o nosso amor essa consolação nas suas tibiezas, e se os homens conheceram o amor de Cristo, tivera o seu amor essa satisfação nos seus excessos. Mas que, sendo o amor de Cristo tão excessivo, não o conheçam os homens, e que, sendo o amor dos homens tão imperfeito, o conheça Cristo! Mui igual e mui desigual sorte é a de ambos. Os remédios que isto tinha, Senhor, era que vós e nós trocássemos os corações. Se vós nos amásseis com o nosso coração, proporcionado seria o amor e o merecimento, e bastaria a nossa ignorância para o conhecer. E se nós vos amássemos com o vosso, amar-vos-íamos quanto mereceis, e só a vossa ciência conheceria o nosso amor. Mas já que isto não pode ser, vós que só vos conheceis, vos amai; vós que só conheceis vosso amor o pagai. E se) a única glória vossa e sua, saber-se que só de vós pode ser pago, e só de vós conhecido. Assim o cremos, assim o confessamos, e, prostrados aos pés de vosso amor, lhe oferecemos uma eterna coroa, tecida deste nescis e deste sciens: Sciens quia venit hora ejus, in finem dilexit eos.
[1] Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim (Jo. 13, 1).
[2] Sabendo que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas, e que ele saíra de Deus, e ia para Deus (Jo. 13, 3).
[3] Porque ele sabia qual era o que o havia de entregar (Jo. 13, 11).
[4] Senhor, bom é que nós estejamos aqui (Mt. 17, 4).
[5] Não sabendo o que dizia (Lc. 9, 33).
[6] Sabendo Jesus que tudo estava cumprido, para se cumprir a Escritura, disse: Tenho sede (Jo. 19, 28).
[7] Ibid. Ito S. Aug.
[8] Sabendo que era chegada a sua hora, amou-os até o fim (Jo. 13, 1).
[9] Sabendo que saíra de Deus (Jo. 13, 3).
[10] Sabia qual era o que o havia de entregar (Jo. 13, 11).
[11] Como tinha amado os seus (Jo. 13, 1).
[12] Sabendo que era chegada a sua hora (Jo. 13, 1).
[13] Amado da minha alma (Cant. 1, 6).
[14] Sabendo que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas (Jo. 13, 3).
[15] Começou a lavar os pés aos discípulos (Jo. 13, 5).
[16] Eu sou o que sou (Êx. 3, 14).
[17] Sabendo que saíra de Deus, depôs suas vestiduras (Jo. 13, 3 s).
[18] Amigo, a que vieste (Mt. 26, 5O)?
[19] Davi e Jônatas fizeram concerto entre si, porque Jônatas o amava como a si mesmo (1 Rs. 18, 3).
[20] E fez Jônatas a Davi este novo juramento, pelo amor que lhe tinha (1 Rs. 2O, 17).
[21] Tu feriste o meu coração, irmã minha esposa, tu feriste o meu coração (Cânt. 4, 9).
[22] Vendaram-lhe os olhos, e davam-lhe no rosto (Lc. 22, 64).
[23] Será entregue aos judeus, e será escarnecido, e açoitado, e cuspido, e depois de o açoitarem, tirar-lhe-ão a vida (Lc. 18, 32 s).
[24] O que eu faço, tu não o sabes agora (Jo. 13, 7).
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística