LITERATURA
BRASILEIRA
Textos
literários em meio eletrônico
Sermão da Primeira Dominga do Advento, na Capela Real, ano de 1652, de
Padre Antônio Vieira
Edição
de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
PREGADO NA CAPELA REAL, ANO DE 1652
Amen dico vobis, non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant[1].
I
Muitas coisas sabemos do Juízo universal, e só duas ignoramos: quando há de ser, e quais de nós são os que se hão de ver à mão direita e quais à esquerda. Estes serão os dois pontos do discurso.
Muitas coisas sabemos deste grande dia, todas grandes e temerosas, e duas só ignoramos. Sabemos que antes do dia do Juízo, o sol, que soía fazer o dia, se há de escurecer e esconder totalmente com o mais horrendo e assombroso eclipse que nunca viram os mortais. Sabemos que a lua, não por interposição da terra, mas contra toda a ordem da natureza, se há de mostrar entre as trevas medonhamente desfigurada e toda coberta de sangue. Sabemos que as estrelas do firmamento, desencaixadas dos orbes celestes, hão de cair, e como no mundo inferior não têm onde caber, lá hão de estalar a pedaços com horrível estrondo, e exalar-se em vapores ardentes. Sabemos que o mar há de sair furiosamente de si, e atroar os ouvidos atônitos com pavorosos roncos, e, levantando ondas imensas até às nuvens, já não há de bater como dantes as praias, mas sorver inteiras as ilhas e afogar os montes. Sabemos que depois destes tristíssimos sinais - a que o Evangelho chama princípios das dores - entre trovões, relâmpagos e raios, há de chover um dilúvio de fogo, com que se há de acender o ar, secar o mar e abrasar a terra, e que, nesta universal confusão de fumo e labaredas, há de arder e consumir-se em todos os três elementos tudo o que até então respirava e vivia neles. Sabemos que assim hão de acabar todos os homens, e que assim há de acabar com eles tudo o que a sua ambição e vaidade fabricou em tantas vidas e séculos, e que este há de ser, enfim, o fim do nosso mundo, lastimoso, mas não lastimável, porque já não haverá quem se lastime dele.
Neste vastíssimo deserto, e neste profundíssimo silêncio de tudo o que foi, sabemos que se ouvirá em um e outro hemisfério o som de uma trombeta, a cuja voz portentosa se levantarão daquele sepulcro universal todos os mortos e vivos, mas não sairão na mesma, senão em muito diversas figuras, porque cada um trará no semblante o retrato de sua própria fortuna. Tornado a povoar assim o mundo com todos os que hoje são, com todos os que foram, e com todos os que hão de ser, sabemos que de repente se há de abrir no céu uma grande porta, e que a primeira coisa que todos verão sair por ela, cercada de resplendores bastantes a escurecer o sol, se ainda houvera sol, será a mesma sagrada cruz em que o Redentor do mundo padeceu, reservada só ela do incêndio, e reunida de todas as partes da Cristandade de onde esteve dividida e adorada. Sabemos que a esta celestial bandeira seguirão, repartidos em nove numerosíssimos exércitos, todas as hierarquias dos anjos, e que sinaladamente se divisarão entre eles os que tiveram por ofício guardar os homens, uns com rosto alegre, outros severo, segundo o feliz ou infeliz estado daqueles a quem guardaram. Sabemos que por fim deste infinito e pomposissimo acompanhamento, aparecerá em trono majestoso de luzidíssimas nuvens o supremo e universal juiz, Cristo Jesus, a cuja vista se abaterão, prostrados com profundíssimo acatamento, toda a multidão imensa do gênero humano ressuscitado, adorando agora com bem diferentes afetos, uns a Majestade que creram e serviram, outros a que não quiseram crer, outros a que não quiseram servir.
Parado em proporcionada distância o tremendo consistório, e assentados de um e outro lado, como assessores, os doze apóstolos, sabemos que sairão dele, como ministros inferiores de justiça, muitos anjos em forma visível, os quais, entrando por aquela imensidade de homens - já despidos e desenganados todos dos falsos respeitos que se lhes guardavam na vida - sem confusão nem resistência, os apartarão uns dos outros, e os bons e ditosos serão colocados à mão direita, e os maus e mal-aventurados postos à esquerda. De uma parte estará a esperança alentando, e da outra o receio tremendo; e no meio desta suspensão e terror de que até os mesmos anjos se não darão por seguros sabemos que em um momento se abrirão os processos, e ficarão manifestas e patentes as vidas de todos, sem haver obra, palavra, omissão nem pensamento, por mais secreto e oculto, que ali não seja público, vendo todos as consciências de todos, todos a de cada um, e cada um a sua. Sabemos que, convencidos desta evidência, ninguém haverá que replique, ninguém que embargue, ninguém que apele, nem para a Mãe de Misericórdia, nem para a misericórdia do Filho e suas chagas, porque, havendo-se dado à mesma misericórdia tantos anos, aquele dia tantas vezes pregado, e não temido, será todo da justiça. Sabemos finalmente que, pronunciada a sentença por aquela mesma sacratíssima boca que tantas vezes nos exortou à penitência dos pecados, que tanto tempo nos esperou pela emenda, e nos esteve rogando com o perdão, sabemos, digo, que os da mão direita, com o mesmo e maior aparato - porque já as almas bem-aventuradas irão revestidas de seus corpos gloriosos - marcharão em triunfo para o céu, dando-se mil parabéns e vivas, e os miseráveis condenados, lançando sobre si infinitas maldições, e vendo sem remédio o que por sua culpa perderam, abrindo-se de repente a terra, cairão precipitados no inferno, e tornando-se outra vez a cerrar, ficarão sepultados e ardendo nele para enquanto Deus for Deus.
Estas são as grandes coisas que sabemos se hão de ver naquele grande e temeroso dia, todas certas e infalíveis, porque todas, sem afetação nem hipérbole, são tiradas das Sagradas Escrituras, no sentido natural, próprio e literal delas. Mas entre estas coisas tão sabidas e tão pregadas neste dia, há outras duas, como dizia ao princípio, as quais só ignoramos e não sabemos. E que duas coisas ignoradas são estas? São também grandes? São também temerosas? São também importantes e de que dependa a felicidade ou infelicidade eterna, a salvação ou condenação dos que vivemos? Agora o vereis. A primeira coisa que ignoramos, é quando há de ser o dia do Juízo, a segunda, quais de nós são os que se hão de ver à mão direita, e quais à esquerda. Estas duas coisas tão ignoradas, quero que leveis hoje sabidas, e elas serão os dois pontos do meu discurso. No primeiro vos direi de certo quando há de ser o dia do Juízo; no segundo, também de certo, quais se hão de ver à mão direita e quais à esquerda naquele dia. A matéria é tão grande e tão importante, que por si mesma se recomenda, e não é necessário pedir atenção; graça sim a Deus, e muita graça, para que nossas almas se deixem penetrar destes dois raios de luz, e tirem deles um último desengano, de que tanto necessita a nossa cegueira.
II
A questão do fim do mundo: A primeira opinião é que se há de acabar no ano da conjunção maior, restando ainda ao mundo nove mil anos de duração; a segunda opinião prova que o curso do mundo durará oito mil anos completos, desde a criação até o Juízo; a terceira é, que assim como o mundo foi criado em seis dias, assim durará seis mil anos, até o ano de 1800. Segundo o cardeal Cuzano o fim do inundo será no ano mil e setecentos. Quanto ao dia, acaba-se o mundo todos os dias.
Amen dico vobis, non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant.
A questão do dia do Juízo e fim do mundo, pode-se excitar de dois modos e em dois sentidos: ou mais largamente, quanto aos anos, ou mais estreita e determinadamente, quanto ao dia. Quanto aos anos há várias e mui diversas opiniões. Alguns têm para si que se há de acabar o mundo no ano da conjunção maior, ou perfeitamente máxima, isto é, quando os orbes celestes, depois de acabarem inteiramente seu curso, tornarem outra vez a ficar no mesmo posto, composição e assento em que foram criados. O fundamento é porque não parece conveniente nem conforme à providência do Autor da natureza, que fabricasse esta grande máquina com tantos, tão diversos e tão concertados movimentos, para ficar parada no meio da carreira, e não dar sequer uma volta ou passeio inteiro, em que se visse e lograsse a consonância e simetria de sua admirável arquitetura, sendo certo que toda foi criada para louvor e glória do supremo Artífice. E segundo esta sentença e seus autores, ainda restam de vida ou duração do mundo mais de nove mil anos.
A segunda opinião prova, ou quer provar, que o curso do mundo, desde o dia de sua criação até o do Juízo, há de ser de oito mil anos completos. Funda-se naquele lugar do profeta Habacuc, em que diz que Deus se havia de manifestar aos homens no meio dos anos: In medio annorum notum facies (Hab. 3, 2). E constando, segundo a mais verdadeira e exata cronologia, que o mistério da Encarnação do Verbo, em que Deus se manifestou aos homens, foi quatro mil anos depois da criação, segue-se que do ano do nascimento de Cristo a outros quatro mil há de ser o fim do mundo. E, segundo esta opinião, ainda o mundo há de durar dois mil e trezentos e cinqüenta anos, tempo em que será já tão outro, que de tudo quanto hoje há nele apenas se conserve algum vestígio, gastados, como vemos, em menor antigüidade os mármores, e consumidos os bronzes.
A terceira e comuníssima sentença é que, assim como o mundo foi criado em seis dias, há de durar somente seis mil anos, conforme aquela regra de que mil anos para Deus são um dia: Mille anni ante oculos tuos tanquam dies[2]. E, assim como ao sexto dia da criação se seguiu o sétimo, em que diz a Escritura que descansou Deus de tudo o que tinha obrado, e depois deste dia não se conta outro, assim, ao sexto milenário da duração do mundo se há de seguir o sétimo, sem fim, no descanso da eternidade. Este modo de dizer se tem comumente por tradição antiquíssima, continuada desde o princípio do mesmo mundo. E verdadeiramente assim o demonstra a conspiração com que vemos concordes no mesmo parecer os mais doutos homens dos gentios, dos hebreus, dos gregos, dos latinos. Dos gentios, Hidaspes, Mercúrio, Trismegisto, e as Sibilas; dos hebreus, Rabi Isac, Rabi Elias, e Rabi Moisés Gerundense; dos gregos, S. Hipólito, S. Justino, S. Irineu, S. Cirilo, S. Crisóstomo; dos latinos, Tertuliano, Lactâncio, S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Hilário. Acrescenta-se ao peso de tanta autoridade ser conforme este número à distribuição natural da Providência divina, pois sabemos que a lei da natureza durou dois mil anos, a escrita outros dois mil, e parece que, segundo a proporção e correspondência das mesmas leis, deve durar a da graça outro tanto tempo. Por estes e outros fundamentos, muitos e graves autores modernos, como Belarmino, Genebrardo, Fevardêncio, Pico Mirandulano, Bongo, Cornélio e outros, têm esta sentença por mui provável, e como tal a seguem. Na suposição dela, e de que o mundo não há de durar mais que seis mil anos, desde o ano presente, em que estamos, até o último, não lhe restam de duração mais que trezentos e cinqüenta, E daqui podem inferir os que hoje edificam tão magnificamente em todas as cortes, Roma, Paris, e na nossa Lisboa, que tudo isto que fazem, e em que tanto se cansam, é em ir ajuntando lenha para o fogo do dia do Juízo.
O cardeal Cusano, grande filósofo e teólogo, em um tratado particular que compôs desta matéria, ainda estreita muito mais este prazos[3]. Toma por fundamento aquela profecia de S. Paulo, em que diz que a Igreja há de crescer segundo a medida da idade de Cristo: In mensuram aetatis plenitudinis Christi (Ef. 4, 13). E dando a cada ano da idade de Cristo um ano da remissão ou redenção que na lei velha se chamava ano jubileu, e vinha de cinqüenta em cinqüenta anos vem a concluir, por boa aritmética, que o fim do mundo há de ser o ano de mil e setecentos, daqui a quarenta e noves[4]. Segundo esta conta, muitos dos que hoje são vivos se podem achar presentes a toda a tragédia do dia do Juízo, e ver os horrendos sinais que o hão de preceder. Oh! se houvesse alguns que se persuadissem disto! Que pouco cuidado lhes dariam outros futuros, que tão pouco importam, e que pouco se cansariam a si e aos príncipes em requerer comendas e rendas para muitas vidas.
Mas, passando do ano ao dia, ainda o desengano é mais breve e mais certo, e mais para persuadir o desprezo de tudo. Cristo, Senhor nosso, disse a seus discípulos que o segredo daquele dia é reservado só ao Padre, e que nem os anjos do céu o sabem, nem ele o sabia em foro que o pudesse revelar: De die autem illa et hora nemo scit, neque angeli in caelo, neque Filius, nisi Pater[5].Contudo, eu me não arrependo, nem me desdigo do que prometi. Prometi de vos dizer com certeza quando há de ser o dia do Juízo. E quando cuidais que há de ser? Não vos quero ter suspensos. É hoje, foi ontem, há de ser amanhã, e não amanhece nem anoitece dia, que não seja certamente o dia do Juízo. Que coisa é o dia do Juízo? É um dia em que se há de acabar o mundo, é um dia em que Cristo nos há de vir julgar, é um dia em que havemos de dar conta de toda a nossa vida, e em que os bons hão de ir para o céu e os maus para o inferno. Não é esta a essência e substância do dia do Juízo? Sim. Pois isto é o que se faz hoje, o que se fez ontem, o que se há de fazer amanhã e todos os dias. Acaba-se o mundo todos os dias, porque para quem morreu acabou-se o mundo. Vem Cristo a julgar todos os dias, porque no ponto em que cada um expira, logo o vem julgar, e julga, não outrem, senão o mesmo Cristo. Toma-se conta, e estreitíssima conta de toda a vida, todos os dias, porque no dia da morte, e no mesmo instante dela, se toma e se dá esta conta. Finalmente, vão os bons para o céu e os maus para o inferno todos os dias, porque todos os dias os que morrem, ou são absoltos e vão para o céu, ou condenados, e vão para o inferno. Vamos agora ao Evangelho, e vejamos como este mesmo Juízo, e na mesma forma em que o tenho declarado, é o que hoje nos prega Cristo.
III
Que quer dizer uma geração em frase da Escritura? Qual é o tudo do dia do Juízo, e que é o que Cristo chama tudo? O Juízo que há de vir e que já é, segundo S. Jerônimo e Santo Agostinho.
Tinha Cristo, Senhor nosso, pregado o mesmo Evangelho que ouvistes, tinha anunciado a seus discípulos os sinais tremendos que hão de preceder ao Juízo, e o poder e majestade com que o mesmo Senhor há de vir em pessoa a julgar o mundo, e conclui com as palavras que tomei por tema: Amen dico vobis, quia non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant: De verdade vos prometo e afirmo que não há de passar a presente geração, sem que tudo o que vos tenha dito se cumpra. - Este é um dos dificultosos lugares de toda a história evangélica. Uma geração, em frase da Escritura, quer dizer uma idade ou um século, porque o mais que chega a durar a vida humana são cem anos. Neste sentido diz o Eclesiastes pelas mesmas palavras do nosso texto: Generatio praeterit, generatio advenit[6]; e Davi em muitos lugares: A generatione in generationem; e o mesmo Deus, com maior distinção e declaração, revelando o tempo do cativeiro do Egito: Affligent eos quadringentis annis, generatione autem quarta revertentur hic[7]. Donde consta com evidência que uma geração é um século, ou cem anos, pois quatrocentos anos são quatro gerações. Isto suposto, vem a dizer Cristo por conclusão do que acabava de ensinar e revelar acerca do dia do Juízo que tudo se havia de cumprir naquele mesmo século, e dentro daqueles cem anos. Aqui está a dificuldade. Daquele tempo para cá, tem passado mais de mil e seiscentos anos, e já temos contado dezesseis séculos, e estamos no século dezessete, e o dia do Juízo ainda não chegou. Além desta demonstração, segundo as opiniões que acima referimos, o mundo provavelmente ainda há de durar, ou muitos ou alguns séculos, antes do dia do Juízo, pois, como diz o Senhor, e com tão particular asseveração, que tudo se havia de cumprir dentro do mesmo século que então corria, e que se não havia de acabar aquele século sem que viesse o dia do Juízo: Non praeteribit generatio haec donec omnia fiant? Assim o disse e afirmou a verdade eterna, e assim se cumpriu naquele século, e cumprirá nos seguintes, porque nenhum homem houve naquele século, que dentro do mesmo século não tivesse o seu dia do Juízo. Como as vidas e as idades geralmente não passam de cem anos, nenhum homem há que não acabe a vida dentro do mesmo século a que pertence, e nenhum há que não seja julgado no tribunal de Cristo, e tenha o seu dia do Juízo no mesmo século. Os que morrem hoje têm o seu dia do Juízo hoje; os que morreram ontem, tiveram o seu dia do Juízo ontem; os que morrerem amanhã, e daqui a vinte anos, amanhã e daqui a vinte anos terão o seu dia do Juízo, mas sempre dentro do mesmo século e da mesma idade ou geração: Non praeteribit generation haec, donec, omnia fiant.
Bem sei que os doutos terão esta exposição por nova, e bem sabem eles também quão duras e dificultosas são as que até agora se têm dado. Eu a tenho por adequada, genuína e literal, mas não por minha, senão do mesmo Cristo, porque, como consta do evangelista S. Mateus, neste mesmo discurso aplicou o Senhor ao dia da morte tudo o que tinha dito do Juízo, exortando aos mesmos com quem falava, que se aparelhassem para ela (Mt. 24, 44). Aqueles com quem o Divino Mestre falava quando disse: Amen dico vobis (Mt. 24, 31) eram os apóstolos, os quais todos haviam de morrer, e morreram, naquele século, e por isso mui acomodadamente a eles lhes disse o Senhor que dentro do mesmo século se havia de cumprir tudo: Non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant.
Não faltará, porém, quem replique, e parece que com bom fundamento. Cristo, Senhor nosso, tinha dito que antes do Juízo havia de haver sinais no sol, na lua e nas estrelas: Erunt signa in sole, in luna et stellis, Tinha dito que havia de vir a julgar em trono de majestade, e que assim o haviam de ver: Tunc videbunt Filium hominis venientem cum potestate magna, et majestate. E naquele século, nem nos seguintes, não se viu coisa alguma disto: logo, não se verifica que naquele século se havia de cumprir tudo: Non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant. Aqui vereis qual é o tudo do dia do Juízo, e que o que Cristo chama tudo. O tudo do dia do Juízo é a conta da vida que o mesmo Cristo há de tomar; é a sentença que há de dar, segundo os merecimentos dela; é o céu ou inferno para sempre, a que cada um há de ser julgado; o demais são acidentes e aparatos do Juízo universal, e não a substância do mesmo Juízo, a qual se não distingue dos juízos particulares. Desta substância e deste tudo do Juízo universal é que falou o Senhor na sua conclusão, e porque esta substância e este tudo se não distingue dos juízos particulares que se fazem na morte, por isso disse que tudo se havia de cumprir dentro daquele século, como verdadeiramente se cumpriu. E se quisermos reparar na propriedade das palavras donec omnia fiant, ainda acharemos nelas mais particular energia, porque no dia do Juízo final, não se há de fazer coisa alguma de novo, senão declarar-se somente o que já está feito. Os juízos particulares, que se fizeram na morte, esses mesmos são os que se hão de publicar no Juízo universal, e o juízo não se faz quando se publica a sentença, senão quando se dá: logo no dia da morte é que propriamente se faz o Juízo, e tudo isto, que faz agora, e não depois, é o que o Senhor disse que se havia de fazer dentro daquele século: Non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant.
Para tirar toda a dúvida, ouçamos ao mesmo Cristo em caso muito mais apertado, e que a podia fazer maior. No capítulo quinto de S. João (Jo. 5, 25), fala o Senhor do dia do Juízo final com maiores e mais intrínsecas circunstâncias, porque faz menção da ressurreição universal dos mortos, e da sentença, também universal, dos bons e dos maus, segundo o merecimento de suas obras: Omnes qui in monumentis sunt, audient vocem Filii Dei: et procedent qui bona fecerunt, in resurrectionem vitae; qui vero mala egerunt, in resurrectionem judicii[8]. E declarando o mesmo Senhor quando há de ser este tempo, diz que há de vir, e que agora é: Venit hora, et nunc est. Pode haver proposição mais encontrada? Há de vir o dia do Juízo, e já agora é? Se o dia do Juízo estava tão longe, se há mil e seiscentos anos que ainda não veio, e se ainda não sabemos quando há de ser aquele dia ou aquela hora, como diz o oráculo de Cristo que já é: Venit hora, et nunc est? Admirável e literalmente S. Jerônimo[9], e se eu lhe pedira o comento, não o pudera escrever com mais ajustadas palavras: Quia quod in die judicii futurum est omnibus, singulis in die mortis completur.
Diz o Senhor que o dia do Juízo há de vir, e que já é, porque, ainda que o dia do Juízo há de ser depois, e muito depois, o dia da morte é já agora; e que se há de cumprir em todos no dia do Juízo, cumpre-se em cada um no dia da morte: Singulis in die mortis completur. Notai o completur. As outras profecias cumprem-se a seu tempo, esta do dia do Juízo, tem o seu cumprimento antes de tempo, porque aquilo mesmo que se faz agora, é o que se diz que há de ser então. Então hão-se de examinar as obras, então há-se de pronunciar a sentença, então hão de sair uns absoltos, outros condenados, e tudo isto que então se há de fazer no dia do Juízo é o que se faz ou está já feito agora no dia da morte. Por isso diz o Senhor que aquele dia está por vir e já é: Venit hora, et nunc est. Nunc: agora. Estes dois advérbios de tempo, então e agora, sempre são opostos; mas no dia do Juízo, comparado com o da morte, ainda que a morte seja dois mil anos antes que o Juízo, não tem oposição. O agora é então, e o então é agora. No nosso Evangelho diz o mesmo Senhor: Tunc videbunt: então verão, e aquele então é agora, aquele tunc é nunc: Tunc videbut, et nunc est.
E não obsta que no dia do Juízo universal haja de haver outras circunstâncias muito notáveis, que não há no Juízo particular do dia da morte. Por isso, havendo referido Cristo neste mesmo texto essas mesmas circunstâncias, afirma contudo absolutamente que já agora é o que há de ser então, porque fala o Senhor como eu dizia da substância do Juízo, que no final e no particular é a mesma, e não dos acidentes, aparatos e circunstâncias em que o sinal será muito diverso. Mas acrescentemos à autoridade de S. Jerônimo a de Santo Agostinho, que na interpretação das Escrituras são as duas maiores. Movidos destas mesmas circunstâncias, Esíquio bispo de Jerusalém[10], e da dificuldade de outros textos do Evangelho, em que parece se encontram ou equivocam as coisas do Juízo futuro com as do tempo presente, e não se satisfazendo da solução que ele lhes dava, consultou a Santo Agostinho. E que responderia aquele grande doutor e oráculo da Igreja? A verdade entre todos os que a alcançam é a mesma. Respondeu Santo Agostinho o mesmo que tinha dito S. Jerônimo, mas com palavras e termos muito próprios de Agostinho. Alega aquele texto de Cristo por S. Marcos: Quod autem vobis dico, omnibus dico[11]; e pergunta por que diz e prega Cristo a todos o que só pertence aos que forem vivos no dia do Juízo? Cur itaque omnibus dicit, quod ad eos solos pertineat, qui tune erunt? E responde com estas divinas palavras: Tunc enim unicuique veniet dies ille, cum venerit ei dies, ut talis hinc exeat, qualis judicandus est illo die. Avisa, diz Agostinho, e acautela Cristo a todos para o dia do Juízo, porque a todos há de vir o dia do Juízo, quando a cada um vier aquele dia no qual sairá deste mundo tal qual há de ser julgado no último dia. - No último dia, que é o do Juízo, cada um há de ser julgado tal qual for julgado no dia da morte: logo, no dia da morte vem a cada um o dia do Juízo. Ainda se explica no mesmo lugar o mesmo Santo Agostinho por outros termos mais claros e igualmente seus: In quo quemque statu invenerit suus novissimus dies, in hoc eum comprehendet mundi novissimus dies: Quoniam qualis in die isto quisque moritur talis in die illo judicabitur. Afirma Cristo, diz outra vez Agostinho, que o que há de ser no dia do Juízo também há de ser agora, e já agora é, porque haveis de advertir que o novíssimo do Juízo se divide em dois novíssimos: o novíssimo do mundo, que é o último dia do mundo, e o novíssimo da vida, que é o último dia da vida; e qual for este primeiro novíssimo, tal há de ser o segundo. - Logo, já é o que há de ser, porque não há de ser outra coisa senão o que é. Se o juízo do último dia do mundo houvera de ser diverso do juízo do último dia da vida, então eram propriamente dois juízos: um futuro, outro presente; mas como são verdadeiramente um só juízo dividido ou multiplicado em dois dias, feito em um, e repetido no outro, mais propriamente é já agora, no dia em que se faz, do que há de ser depois, no dia em que se repete. Por isso diz a suma Verdade que há de vir, e que já é: Venit hora, et nunc est.
De maneira, senhores, que o conceito que ordinariamente fazemos do dia do Juízo é muito enganoso e muito errado. Consideramos o dia do Juízo como uma coisa medonha e espantosa, mas que está lá muito longe, como as serpes nas areias da Líbia, ou os crocodilos no Nilo, e por isso nos não faz medo. Não é assim; o dia do Juízo não está longe; está tão perto como o dia de amanhã, e como o dia de hoje, e como esta mesma hora em que estamos: Venit hora, et nunc est. O vale de Josafá não está só em Jerusalém, nem entre o Monte Sião e o Olivete; está em Lisboa, está neste mesmo lugar, e em todos os do mundo. Se vos tomar a morte no mar, ou na campanha, ou na vossa cama, o mar, a campanha, a vossa cama é o vale de Josafá, e esse dia, qualquer que for, é o vosso dia do Juízo, ou mais cedo, ou mais tarde, mas dentro deste mesmo século em que nascemos: Non praeteribit generatio haec, donec omniafiant.
IV
As circunstâncias da morte, mais espantosas que as do Juízo final. A transitoriedade do mundo em S. Paulo e S. João. O ocaso do mundo, e a invenção errada de Copérnico. Opinião de Sêneca. A ameaça do profeta Amós e as riquezas. O maior rigor da morte: ser apartamento. Semelhança entre o Juízo e o dilúvio. No dia do Juízo acabam-se os encargos da vida; no dia da morte acaba-se a vida, nias não se acabam os encargos.
Temos visto quando há de ser certamente o dia do juízo, e como é hoje, amanhã, e todos os dias, porque o juízo que se faz no dia da morte é o mesmo e não outro que o Juízo final. Agora, descendo às circunstâncias de um e outro juízo, se acaso vos parece que as do Juízo final são mais espantosas e horríveis, digo que também neste conceito vos enganais. Muito mais rigorosas, muito mais terríveis, e muito mais para temer são as circunstâncias do dia do Juízo de agora, do que hão de ser as do que vulgarmente se chama dia do Juízo.
Primeiramente o que faz grande horror na consideração do Juízo final é que naquele dia se há de acabar este mundo a que estamos tão pegados. E não cuidamos nem advertimos que também no dia da morte se acaba o mundo. Que importa que o mundo se acabe para mim, ou para todos? Que importa que o mundo se acabe para mim, ou eu para ele? S. Paulo, descrevendo este mundo, para nos desafeiçoar de suas vaidades, diz que é como um teatro em que as figuras cada uma entra a representar o seu papel, e passa: Praeterit enim figura hujus mundi[12]. Não diz o Apóstolo que passa o mundo, senão as figuras: porque as figuras vão-se e o teatro fica. Alude à sentença do Espírito Santo: Generatio praeterit, generatio advenit, terra autem in aeternum stat[13]. Uns nascem, outros morrem, uns vêm a este mundo, outros saem dele, e o mundo, como teatro destas representações, sempre está no mesmo lugar e não se move. Contudo, São João, na sua primeira Epístola, diz que não só nós, os amadores do mundo, somos os que passamos, senão que também o mesmo mundo passa: Et mundus transit, et concupiscentia ejus[14]. Pois se o mundo sempre está e permanece firme, e ainda que nós passemos, ele não se move, como diz S. João que também o mundo passa: Et mundus transit? Porventura encontra-se a doutrina dos dois Salomões da Igreja, Paulo e João? Não. Ambos, por diferentes termos, dizem a mesma verdade. Como nós, os que vivemos neste mundo, passamos e não permanecemos, ainda que o mundo permaneça, também ele passa: Et mundus transit. Não passa o mundo para si, mas passa para nós. Tanto que nós passamos desta vida, também ele passou; tanto que nos acabamos, também ele acaba. Para os que cá ficam, dura e permanece; para nós acabou juntamente conosco. E se não, perguntai aos que morreram se há para eles mundo, ou alguma coisa do mundo? Se navegavam, acabou-se para eles o mar; se lavravam, acabou-se a terra; se negociavam, acabaram-se os tratos; se militavam, acabaram-se as guerras; se estudavam, acabaramse os livros; se governavam, o secular ou eclesiástico, acabaram-se as varas, os tribunais, as coroas, as mitras, as púrpuras, as tiaras, tudo se acabou naquele momento. Nem para os reis, nem para os papas, que foram senhores do mundo, há já mundo, porque como eles acabaram e passaram, também o mundo passou e acabou para eles.
Copérnico, insigne matemático do próximo século, inventou um novo sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar - posto que erradamente - que não era o sol o que se movia e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move e anda sempre à roda. De sorte que, quando a terra dá meia volta, então descobre o sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta, então lhe desaparece o sol, e dizemos que se põe. E a maravilha deste novo invento, é que na suposição dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros e medidas dos tempos, com a mesma pontualidade e certeza com que até agora se tinham observado e estabelecido na suposição contrária, O mesmo passa sem erro, e com verdade, nesta passagem nossa e do mundo. Escolhei das duas opiniões qual quiserdes. Ou seja o sol o que se move, ou nós os que nos movemos, ou o sol se ponha para nós, ou nós para ele, os efeitos são os mesmos. Ou no dia do Juízo o ocaso seja do mundo, ou no dia da morte seja meu, ou o mundo então acabe para todos, ou eu agora acabe para o mundo, tudo vem a ser o mesmo, porque tudo acaba. Assim como o mundo hoje ainda não é para os que hão de nascer, porque eles ainda não são, assim o mesmo mundo já não é para nós quando morremos porque já não somos.
Daqui se segue com evidência que também hoje, amanhã, e cada dia é o fim do mundo. Agora vede, com a mesma evidência, quanto mais para temer, e quanto mais para desconsolar é este primeiro fim do mundo, no dia da morte, do que há de ser o último, no dia do Juízo. Sêneca disse que é grande consolação acabar juntamente com o mundo: Solatium est grande cum universo una rapi. Disse mais Sêneca do que entendeu, porque não teve conhecimento do dia do Juízo. Mas em que consiste esta consolação? Consiste em que, no dia do Juízo, se o mundo acaba para mim, acaba também para todos. No mal, que é de todos, perde-se a comparação, e, onde não há comparação, não há miséria: Nemo miser, nisi comparatus. Na morte de agora não é assim. Acaba-se o mundo para mim, mas para os outros não acaba. Aqueles morrem quando já ninguém pode viver; eu morro e deixo outros vivendo. Isto é padecer a morte própria, e mais a vida alheia. No dia do Juízo não há de haver esta dor, porque ninguém se poderá queixar de se lhe acabar o mundo e a vida, quando igualmente se há de acabar para todos, ainda para os que nascerem no mesmo dia. Então, diz S. João no Apocalipse, que se há de ouvir a voz de um anjo, o qual diga e apregoe que se acabou o tempo para sempre: Quia tempus non erit amplius. O tempo não é outra coisa senão a duração do mundo. Assim como o tempo começou com o mundo, assim há de acabar com ele. E acabar um homem o seu mundo, quando se acaba o mundo, acabar os seus dias quando se acaba o tempo, como pode ser matéria de sentimento, quando era o mais a que podia aspirar o desejo? E isto é o que sucederá aos que acabarem a vida no dia do Juízo. Mas que se acabe o mundo, e o tempo, os dias para mim, quando há mundo, e tempo, e anos para os outros? Esta é uma grande diferença de dor, com que agora acaba o mundo para nós, ou nós para ele. Vamos à outra.
Uma das grandes penas com que Deus ameaçava pelo profeta Amós os ricos e poderosos daquele tempo - como pudera também ameaçar os do nosso - era que edificavam palácios magníficos e casas de prazer para delícia, mas que não as haviam de lograr: Domos quadro lapide aedificabitis, et non habitabitis in eis; vineas plantabitis amantíssimas, et non bibetis vinum earum[15]. Esta razão de mágoa corre igualmente em um e outro fim do mundo. Assim, os que morrerem então, como os que morrem agora, nenhuma coisa hão de lograr do que com tanto gosto e gasto, e com tanto esquecimento do fim da vida trabalham, ajuntam e edificam para ela. Mas esta mesma mágoa há de ser muito menor para os do dia do Juízo. Aquele rico do Evangelho, que fazia conta de viver muitos anos, e morreu na mesma noite, perguntou-lhe a voz do céu: Et quae parasti, cujus erunt (Lc. 12, 20)? E tudo isto que ajuntaste, de quem há de ser? Os que acabarem com o mundo, no dia do Juízo, estão livres desta pena porque não hão de ter a dor de que outros logrem o que eles trabalharam: Non aedificabunt, et alius habitabit; non plantabunt, et alius metet[16], diz o profeta Isaías, e o conta por uma grande felicidade. Mas esta não a podem ter os que morrem enquanto dura o mundo, e tanto menos, quanto mais tiverem dele. Perguntai a essas casas, a essas quintas, a essas herdades prezadas; perguntai a essas salas e galerias douradas, a esses jardins, a essas estátuas, a essas fontes, a essas alamedas e bosques artificiais, cujos frutos são somente a sombra, perguntai-lhes de quem foram, e de quem são, e de quem hão de ser? Isto é o que sucede aos que acabam o seu mundo antes que o mundo se acabe. Sabem o que deixam, mas não sabem para quem: Et ignorat cui congregabit ea[17]. Ou para o pródigo, que o há de dissipar, ou para o estranho, que o não há de agradecer, ou para o poderoso, que com violência o há de ocupar, ou para o inimigo, que com o vosso há de triunfar e crescer, ou para um pleito eterno, em que tudo se há de consumir. Quanto mais estimariam os que assim acabam que se sepultasse com eles tudo o que possuíam, como se há de sepultar com os do dia do Juízo?
Mais. Um dos maiores rigores que tem a morte é ser apartamento: apartamento e despedida geral de todos os que amáveis e vos amavam. Assim o ponderou el-rei Agag, vendo-se condenado à morte pelo profeta Samuel: Siccine separat, amara mors ?[18]. É possível, morte amarga, que assim me apartas? - Assim. Apartava-o da mulher, dos filhos, dos vassalos, dos amigos, e de tudo o que amava, ou de que era amado na vida. E a este apartamento chamou com razão a maior amargura da morte: Amara mors. A morte no dia do Juízo não tem esta amargura nem esta dor, porque, ainda que seja morte, não é apartamento. Todos então hão de ir juntos, sem ter de quem levar saudades, nem a quem as deixar. O dia do juízo diz Cristo que há de ser como o dilúvio de Noé: Sicut fuit in diebus Noe (Mt. 24, 37). E considerou discretamente Santo Agostinho que naquela desgraça geral do dilúvio morriam os homens com uma grande consolação, que era não deixar neste mundo quem os chorasse., Esta mesma consolação hão de ter no dia do Juízo todos os que então morrerem. Porém os que morrem agora não só têm a desconsolação contrária, mas muitas vezes dobrada. Apartam-se dos amigos e dos inimigos, e não só deixam depois de si quem chore sua morte, senão também quem se alegre com ela, que não é menor sentimento: Delectasti inimicos meos super me.
Finalmente no dia do Juízo há-se de acabar a vida com o mundo, mas com o mesmo mundo se hão de acabar também os encargos da vida; porém no dia da morte acaba-se o mundo para a vida, mas não se acaba para os encargos. Os encargos da vida que mais inquietam e afligem na morte, hão-se de acabar com o mundo, porque então não há de haver requerimentos de acredores, nem satisfação de criados, nem acomodamento de filhos, nem disposição da casa, nem dívidas, nem restituições, nem nomeação de herdeiros e testamenteiros, nem testamentos, nem codicilos, nem mandas ou demandas - tantas quantas são as cláusulas - nem sepultura, nem funerais, nem tantas outras perturbações e embaraços que primeiro afogam a alma, do que ela saia do corpo. Tudo isto, e infinitas outras coisas de aflição, de moléstia, de escrúpulo, e de risco da salvação, concorrem e se atravessam na hora da morte. Mas nenhuma delas há de haver no dia do Juízo, porque todas acabam com o mundo, que totalmente acaba, e não como agora, que acaba para a vida, senão para os encargos dela, Vede se é mais trabalhoso e mais estreito este dia: por isso dizia Davi: Omnis consummationis vidi finem, latum mandatum tuum nimis[19]: Olhei, Senhor, para o dia em que se há de acabar o mundo, e então me pareceu a vossa lei muito larga, porque todas as estreitezas, apertos e angústias em que agora nos põe a lei de Deus, na hora da morte, no dia do Juízo, em que tudo acaba com o mundo, também elas cessam e se acabam.
V
Também pelas circunstâncias com que Cristo nos vem julgar, é muito mais temeroso o dia da morte, do que há de ser o dia do Juízo. O terceiro advento de Cristo. O advento geral, de que fala S. Mateus, e o advento particular de que fala São Tiago. De que modo virá Cristo? Por modo intelectual ou real? As circunstâncias terríveis do juízo particular A morte, juízo sem avisos, juízo sem sinais. Sardanápalo e Baltasar
E se é mais para desconsolar e temer o modo com que o mundo se acaba agora para cada um, do que o fim com que no dia do Juízo se há de acabar para todos, também da parte do modo e circunstâncias com que Cristo agora nos vem julgar é muito mais temeroso e tremendo o dia da morte, do que há de ser o dia do juízo.
Para entendimento desta grande verdade, que por mal considerada o não parece, havemos de saber e supor que os adventos de Cristo não são só dois, como ordinariamente se cuida, senão três. O primeiro advento é o que hoje começa a celebrar a Igreja, no qual veio o Filho de Deus a remir o mundo, e começou no dia da Encarnação. O segundo advento é o que também hoje prega no Evangelho, no qual há de vir a julgar o mesmo mundo, e há de ser no dia do Juízo. E estes são os dois adventos dos quais somente faz menção o Símbolo, quando diz: Et iterum venturus est, porque são gerais e visíveis. O terceiro advento é particular e invisível, no qual vem o mesmo Cristo julgar na hora da morte a cada um de nós, e este juízo se faz no instante em que a alma se aparta do corpo. E porque esta doutrina ou nome de terceiro advento vos não faça novidade, como já fez, ouçamos a Escritura.
O apóstolo São Tiago, no capítulo quinto da sua Epístola, exortando os cristãos daquele tempo a se absterem de pleitos, em que sempre se ofende a caridade, diz assim: Quoniam adventus Domini appropinquavit, nolite ingemiscere, fratres, in alterutrum, ut judicemini. Ecce judex ante januam assistit[20]: Não vos queixeis, irmãos, uns dos outros, e se em alguma coisa vos sentis agravados, não vos demandeis em juízo, porque o advento do Senhor é chegado, e o juiz está à porta. - Não pode haver palavras nem mais parecidas, nem mais encontradas com o texto de S. Mateus na mesma história do nosso Evangelho. Umas e outras falam no advento do Senhor. São Tiago: Quoniam adventus Domini appropinquavit; S. Mateus: Et videbunt Filium hominis venientem[21]. Umas e outras dizem que está à porta. São Tiago: Ecce judex ante januam assistit, S. Mateus: Scitote quia prope est in januis[22]. Mas S. Mateus refere que tudo isto se há de verificar depois dos sinais e prodígios que hão de preceder ao dia do Juízo: Cum videritis haec omnid[23]. E São Tiago não fala do dia do Juízo, senão do mesmo tempo seu em que escrevia: Ecce. Que advento é logo este, não futuro, senão presente, de que fala São Tiago: Quoniam adventus Domini appropinquavit? É o terceiro advento, que eu dizia. O advento de que fala S. Mateus é o advento geral, em que Cristo no dia do Juízo há de vir julgar a todos: o advento de que fala São Tiago é o advento particular, em que o mesmo Cristo no dia da morte vem julgar a cada um. Naquele advento há de estar o juízo à porta, depois que os homens virem os sinais que o hão de preceder: Cum videritis haec omnia, scitote quia prope est in januís. Porém nestoutro advento - porque todos os dias e todas as horas morrem e podem morrer os homens - todos os dias e todas as horas está o juízo à porta: Ecce judex ante januam assistit. Do mesmo modo, e do mesmo advento fala S. Paulo, quando diz: Tempus resolutionis meae instat: Vem-se chegando o tempo da minha morte, - Reposita est mihi corona justitiae: já me está aparelhada a coroa merecida. - Quam reddet mihi Dominus in illa die justos judex. A qual me há de dar naquele mesmo dia o Senhor, como justo juiz. - E só a vós, Paulo, há de dar esta coroa o justo Juiz no dia da morte? Não: Non solum autem mihi, sed et iis qui diligunt adventum ejus: Não só a mim, senão a todos os que amam o seu advento (2 Tim. 4, 6. 8). - De sorte que, além dos dois adventos gerais, um em que veio remir, outro em que há de vir julgar a todos, tem Cristo, Senhor nosso, outro terceiro advento, em que no dia da morte vem julgar a cada um.
Sobre o modo deste advento ou desta vinda, têm para si graves autores, e entre eles o Padre Soares, que vem Cristo julgar-nos na hora da morte, não por presença e assistência real de sua própria pessoa, como há de ser no Juízo universal, mas só por modo intelectual, em forma que entenda claramente o que morre, que está julgado, e julgado por Cristo[24]. Outros, com o Papa Inocêncio Terceiro, seguem o contrário, e dizem que na morte de cada um o vem Cristo julgar real e presencialmente, no mesmo lugar onde morre[25]. Este segundo modo de dizer é muito mais verossímil, por ser mais conforme às Escrituras Sagradas, as quais se devem entender no sentido e propriedade natural que significam as palavras, e o vir propriamente é vir em pessoa. Logo neste sentido se hão de entender as Escrituras, tantas e tão expressas, as quais todas dizem que vem Cristo ao juízo particular. Só no capítulo doze de S. Lucas, diz o mesmo Senhor cinco vezes que há de vir, e fala da hora da morte: Ut cum venerit, et pulsaverit; Beati servi, quos cum venerit Dominus; Quod si venerit in secunda vigilia, quod si in tertia vigilia venerit; Et vos escote parati, quia qua hora non putatis, Filius hominis veniet[26]. E se queremos que o diga o mesmo Cristo mais vezes, aos criados dos talentos, a quem tomou conta: Negotiamini, dum venio[27]; às virgens, a quem abriu e fechou as portas do céu: Ecce sponsus venit[28]; ao bispo de Sardes, a quem ameaçava com a morte: Veniam ad te tanquam fur, et nescies qua hora veniam[29]; e, finalmente, aos discípulos, quando se despediu deles: Si abiero, et praeparavero vobis locum, iterum venio, et accipiam vos ad me ipsum[30]. onde se deve notar que, se o ir neste caso foi em realidade, como havia de ser o vir por entendimento? O iterum demonstra que o ir e o vir era pelo mesmo modo. Quanto mais que, se não havia de vir, bastava dizer: Accipiam vos ad me, e o venio era supérfluo e impróprio. Segue-se logo que no dia da morte, da qual o Senhor falava, não só vem de qualquer modo, senão própria e realmente, assim como própria e realmente tinha ido para o céu.
Nem as razões do autor alegado, posto que tão exímio, provam o contrário. A primeira é que para Cristo dar esta sentença não é necessário que venha em pessoa. Mas também não é necessário o Juízo universal, porque já todos estão julgados, e contudo é certo que há de haver este juízo, e que há de vir Cristo a ele em pessoa, só porque ele o diz. A segunda razão é porque, se assim fosse, andaria Cristo como em perpétuo movimento, e estaria no mesmo tempo em diversos lugares. Mas assim como o mesmo Cristo, sem esse inconveniente ou incômodo, se faz presente no Santíssimo Sacramento tão repetidamente, e em lugares tão diversos, e assim como vem à casa e à cama dos que estão para morrer, para os confortar como viático, por que não virá ao mesmo lugar, ou lugares, para os julgar como juiz? Enfim, é certo e de fé que Cristo vem fazer este juízo, posto que o modo não esteja definido.
Mas de qualquer sorte que o Senhor venha, as circunstâncias com que vem julgar na hora da morte, é sem dúvida, como dizia, que são muito mais temerosas e tremendas, que as do dia do Juízo. As circunstâncias que fazem horrendo o dia do Juízo são a escuridade total, que então há de suceder, do sol, o sanguinolento da lua, a ruína das estrelas, os bramidos do mar, e toda aquela discórdia e estrago da natureza com que se há de confundir o universo. Porém, todas estas coisas verdadeiramente grandes e espantosas, e nunca vistas, ainda que na primeira apreensão parecem muito para temer, bem consideradas em si mesmas, e em seus efeitos e fins, antes são muito para sossegar e aquietar os ânimos que para os intimidar ou perturbar.
O profeta-rei, falando dos efeitos do Juízo final, não como futuro, mas como já passado, a modo profético diz uma coisa admirável: Terra tremuit, et quievit, cum exurgeret in judicium Deus (S1. 75, 9 s): Quando Deus veio a juízo, a terra tremeu e aquietou-se. -'Que a terra trema quando Deus vem ajuízo, e quando todos outros elementos confusos e perturbados, e o mesmo céu e seus planetas, padecem um fracasso tão geral, que ela faça um grande abalo, e que não só tema e trema, mas se esconda debaixo dos abismos, como quando foi criada, e se suma dentro em si mesma, faz a terra o que deve, que o caso é para isso: Cum exsurgeret in judicium Deus. Mas se a terra neste mesmo caso tremeu: Terra tremuit, como logo se sossegou e aquietou: Et quievit? Tremeu à primeira vista dos horrores do Juízo, e aquietou-se logo, porque todos aqueles prodígios e estrondo do Juízo universal, tomados de repente e na primeira apreensão, são temerosos, são horríveis, são tremendos: Terra tremuit. Mas, bem considerados os fins e efeitos deles, antes são para sossegar esse mesmo temor, e para quietar os ânimos, que para os inquietar e perturbar: Terra tremuit, et quievit.
E qual é a razão deste segundo efeito, tão diverso do primeiro? O Evangelho o diz: Erunt signa in sole, et luna, et stellis. Todas essas mudanças do céu, toda essa escuridade dos astros, toda essa perturbação dos elementos, são sinais: Erunt signa. Sinais de que chega o fim do mundo, sinais de que está perto o dia do Juízo, sinais para que todos estejam notificados e advertidos - que por isso se põem os mesmos sinais no céu, onde possam ser vistos de todos. - E um juízo em que Deus, antes de vir, nos manda diante notificar, e nos avisa primeiro, não é tanto para temer. Muito mais temeroso é o juízo particular sem esses assombros, do que o universal com eles, porque os assombros e terrores do Juízo universal são sinais e avisos para os homens, e o juízo particular, a que nada disso precede, é juízo sem aviso, juízo sem sinal. Pinta o profeta Davi a Deus armado de arco e setas, e as setas não só embebidas já no arco, senão ervadas de venenos mortais, e abrasadas em fogo: Arcum suum tetendit et paravit illum. Et in eo paravit vasa mortis, sagittas
suas ardentibus effecit[31]. E que é o que faz ou intenta Deus assim armado, e com as setas já postas no arco? Umas vezes quer livrar a seus amigos, outras quer derrubar e destruir a seus inimigos. Se quer livrar os amigos, bate primeiro com as setas no arco, e dá sinal; se quer destruir os inimigos, dispara sem dar sinal, e executa o golpe, e antes de eles o sentirem, se vêem caídos a seus pés. Uma e outra coisa disse o mesmo Davi admiravelmente: Dedisti metuentibus te significationem, ut fugiant a facie arcus; et liberentur dilecti tui[32]. Sagittae tuae acutae, populi sub te cadent, in corda inimicorum regis[33], De maneira que a demonstração certa de Deus estar propício ou irado, de querer salvar ou não querer salvar, é dar sinal primeiro, ou não dar sinal. Se quer salvar, dá sinal, e isto é o que será no dia do Juízo: Erunt signa; se não quer salvar, não dá sinal, e isto é o que acontece no juízo de agora.
Os do Juízo universal não podem deixar de estar muito prevenidos, e com grandes disposições para a salvação, porque hão de morrer avisados de todos aqueles sinais do sol, da lua, do mar, e de todos os elementos. Porém nós, como morremos? O sol está muito claro, o céu sem nuvem, a lua como uma prata, o mar como leite, e no meio desta serenidade do mundo e nossa, dá a morte sobre nós, e põe-nos ajuízo: Cum dixerint pax et securitas, tunc repentinus eis superveniet interitus[34]. Quando estiverem mais descuidados, e se derem por mais seguros - diz S. Paulo - então virá sobre eles a morte repentinamente. - Todos os homens, ou quase todos, ainda que nós o não imaginemos assim, morrem de repente. Cuidamos que só morrem de repente aqueles que subitamente caem mortos, aqueles que matou o raio, a bala, a estocada, o desastre, a postema que rebentou, o bocado que se atravessou na garganta, a apoplexia, a peste, o terremoto, o naufrágio e tantos outros acidentes, ou naturais, ou violentos, ou casuais, a que anda exposta a vida e nos deveram trazer em perpétuo temor. Estes só cuidamos que morrem de repente, e é engano. Todos os que morrem quando o não cuidavam, morrem de repente. Os que morrem por via natural, uns morrem de velhice, outros de enfermidade. E que velho há tão decrépito que não cuide que ainda há de viver alguns anos? E que enfermo tão desconfiado, que não cuide que há de escapar da doença, como outros escaparam, por mais aguda que seja? Os maiores e mais poderosos são os mais infelizes e os mais enganados nesta parte, porque não se lhes dá o desengano, senão a tempo em que já não há tempo, e quando as que deveram ser prevenções para o Juízo, por falta de juízo já não são prevenções. Oh! quanto mais ditosos são os que hão de morrer e acabar com o mundo no dia do Juízo! Erunt signa. Aqueles hão de ver os sinais no céu, muito antes da morte; cá também se ouvem os sinais na paróquia, mas depois que morrestes.
Bem pudera Deus ordenar que no mesmo dia e na mesma hora em que hão de aparecer aqueles sinais tremendos, se executasse também o Juízo, Mas tem decretado sua misericordiosa providência, que entre os sinais e o dia do Juízo haja mais dias e mais tempo, no qual os homens que então viverem se preparem para a conta que se lhes há de tomar. E esta é outra segunda e mui considerável circunstância em que o juízo particular agora é mais horrendo e formidável para cada um, do que será então para todos o Juízo universal, No Juízo universal tomará Deus conta, mas dará tempo; no juízo particular toma conta, e não dá tempo, porque primeiro toma o tempo, e depois a conta. Um dos textos mais notáveis da Escritura Sagrada é dizer Deus que, como tomar tempo, então há de julgar os homens e ver se são justos ou injustos: Cum accepero tempus, ego justitias judicabo[35]. Deus para julgar, não há mister tempo, porque todas as nossas obras, palavras e pensamentos, desde sua eternidade lhe são e foram sempre presentes. Pois, que tempo é este que Deus toma, quando há de julgar os homens, e como o toma? O tempo que Deus toma é o que muitos haviam mister na morte, para ajustar suas contas. E o modo com que Deus toma este tempo é não lho dando, ou privando-os dele por seus justos juízos quando lhes vem tomar conta na hora em que menos o cuidam: Qua hora non putatis. Assim comenta o texto Lorino, e pudera citar a São Boaventura, cuja é esta interpretação, tão sutil como verdadeira. Quando Deus pede conta e dá tempo, ainda os que têm más contas as podem dar boas, como aconteceu àquele rendeiro do Evangelho, a quem o pai de família disse: Redde rationem villicationis[36], E como teve tempo de cuidar o que faria, achou traça de as ajustar. Porém, quando Deus toma conta e toma juntamente o tempo: Cum accepero tem pus, então é muito dificultoso dar boa conta, então nenhum que viveu mal a pode dar boa. E isto é o que sucede geralmente aos que morrem agora.
Aos que hão de morrer no dia do Juízo avisa Cristo no nosso Evangelho, com esta comparação: Videtis filcuneam et omnes arbores, cum jam producunt ex se fructus, scitis quia prope est aestas (Mt. 24, 32): Quando vedes que nas árvores começam a arrebentar e brotar os frutos, conheceis que o verão está perto. - Pois, da mesma maneira, quando virdes os sinais que vos tenho dito, sabei que está perto o dia do Juízo: Sic et vos cum videritis haec omnia, scitote quia prope est regnum Dei. De sorte que entre os sinais do dia do Juízo e o mesmo dia, há de dar Cristo de espaço quanto vai da primavera ao verão, ou do verão ao estio, e dos frutos verdes aos maduros. E a nós, quando na morte nos vem julgar, quanto espaço nos dá ou promete o mesmo Cristo? O que deu aos servos da parábola, quando lhes mandou que esperassem por sua vinda: Lucernae ardentes in manibus vestris: et vos similes hominibus expectantibus Dominum suum (Lc. 12, 35): Haveis de estar sempre esperando por mim, com as tochas acesas nas mãos. - E não bastará, Senhor, que as tochas estejam prevenidas, e o lume aparelhado, senão já acesas: ardentes? Não bastará que estejam arrimadas e prontas, senão já nas mãos: in manibus? Não - diz Cristo; hão de estar acesas, porque vos não prometo o espaço que é necessário para as acender; e hão de estar nas mãos, porque vos não seguro o momento que é necessário para as tomar. Tanto vai daquele vir a este vir, e daquele juízo a este juízo. Lá, há-se de esperar o tempo que basta para os frutos verdes amadurecerem; cá, não se espera por frutos maduros, nem ainda verdes, porque se cortam as flores ainda antes de estarem abertas: Flores apparuerunt, tempus putationis advenit[37].
Esta diferença dos sinais, que então há de haver e agora não há, é a que faz a diferença dos efeitos muito mais para temer no juízo de cada dia que no do fim do mundo. Que efeitos há de causar nos homens a vista daqueles sinais? O evangelista o refere por bem extraordinários termos: Arescentibus hominibus prae timore et expectatione, quae supervenient universo orbi (Lc. 21, 26): Andarão os homens atônitos e mirrados com o temor e expectação do que há de ser no dia do Juízo. - Atônitos, porque ninguém há de ter advertência nem coração para cuidar noutra coisa; mirrados, pela extrema abstinência ou inédia com que hão de passar aqueles dias, mais rigorosa que a dos ninivitas. Tudo há de ser orar, chorar, bater nos peitos, fazer penitência, pedir misericórdia e aparelhar para a conta, não havendo homem capaz deste nome que se haja de lembrar então do que foi, nem do que é, senão do que há de ser, e do que está para vir: Quae superventura sunt universo orbi. Parece-vos, cristãos, que farão bem estes homens naquele caso, e que terão justa causa de o fazer? Ninguém haverá que o negue, se é que tem fé. E nós, que a temos, por que não fazemos o mesmo, ou alguma parte disto? Direis que aqueles homens, pelos sinais do céu, saberão certamente que está perto o dia do Juízo. E sabe algum de nós que o seu dia do juízo está mais longe? Não sabemos todos com a mesma certeza que o nosso dia do juízo pode estar ainda mais perto, e que pode ser amanhã, ou hoje, e nesta mesma hora em que Cristo está julgando muitos milhares de homens? Aos ninivitas, que eram gentios, e ao seu rei, que era Sardanápalo, o mais mau rei e o mais mau homem que houve no mundo, deu Deus de prazo quarenta dias: Adhuc quadraginta dies (Jon. 3, 4). E assim o rei, como toda a corte, no mesmo ponto, sem esperar mais, se converteram com tão extraordinária penitência. Que seria se Deus lhes não segurasse nem um só dia? Pois este é o nosso caso, e este o estado e contingência em que nos achamos todos e cada um.
Ouvi o desengano de uma caveira, que era ou tinha sido de um vivo que morreu quando não cuidava:
Flores, si scires unum tua tempora mensem:
Rides, cum non sit forsitam una dies.
Se soubésseis que vos não restava de vida mais que um mês, havíeis de chorar, e rides, e andais alegres e contente, podendo ser que vos não reste um dia inteiro, - Quem dissera a el-rei Baltasar, quando com tanta festa e alegria estava brindando aos seus ídolos, os próprios vasos sagrados de ouro e prata, que Nabucodonosor, seu pai, tinha roubado ao templo de Jerusalém, quem lhe dissera que a mesma noite daquela ceia fatal era a última da sua vida e da sua coroa? Neste banquete em que eram mil os convidados, diz o texto que cada um bebia conforme a sua idade; porém a morte, que não guarda esta ordem nem conta os anos, sendo poucos os de Baltasar, e o primeiro de seu reinado, lhe apareceu de repente com a balança do juízo na mão: Appensus es in statera[38]. E na mesma noite executou a sentença, e lhe tirou a vida: Eadem nocte interfectus est Balthasar[39]. Isto é o que sucedeu aquela noite, e isto o que sucede cada dia, sem haver quem se desengane. Somos como aqueles incrédulos, dos quais refere Cristo Senhor nosso que, à vista dos sinais do dia do Juízo, todos seus cuidados hão de ser banquetes, festas, bodas, fábricas e edifícios, como se os alicerces da terra estivessem muito seguros, quando já as abóbadas do céu estarão caindo a pedaços: Stellae de caelo cadent. S. Agostinho diz que tudo isto causará naqueles loucos a falta de fé, e eu não sei o que diga da nossa, nem do nosso entendimento. Muito mais loucos somos, e muito mais incrédulos do que eles hão de ser. Eles não crerão o que há de suceder uma só vez no mundo, sem outro exemplo nem experiência, e nós não acabamos de crer o que vemos e experimentamos cada hora em tantos e tão formidáveis exemplos. Mas por isso são também mais tremendas as circunstâncias do juízo presente, sabendo de certo que é hoje para uns, amanhã para outros, e que, para os que nascemos e vivemos neste século, não há de passar dele: Non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant.
VI
Segunda parte: quais hão de ser no dia do juízo os que hão de ficar à mão direita, e quais à esquerda? Primeiro: quanto é o número dos que se salvam? A mais fundada sentença: dos católicos, parece que comumente se salva a metade. Por que das dez virgens da parábola só se salvaram cinco? E dos grandes e poderosos, quantos se hão de salvar? O juízo duríssimo dos poderosos, O elogio do Eclesiastes.
Deste primeiro e largo discurso, e da resolução dele, se pode colher facilmente a do segundo, em que vos prometi mostrar quais hão de ser no dia do Juízo os que hão de ficar à mão direita, e quais à esquerda. E para que este ponto tão importante se entenda com maior clareza, vejamos primeiro quantos hão de ser, e depois veremos quais.
Os teólogos disputam quanto é o número dos que se salvam, e fazem duas distinções: uma, considerando e compreendendo todos os homens do mundo, fiéis e infiéis; outra, separando somente os fiéis e católicos. Na primeira consideração é certo que o número dos que se condenam é incomparavelmente maior. Todos sabeis que no dia em que morreu São Bernardo, morreram sessenta mil, e só quatro se salvaram. Dos católicos, segundo muitos textos da Escritura, parece que comumente se salva a metade. De dois um: Unus assumetur, et anus relinquetur; de dez cinco: Quinque ex eis erant fatuae, et quinque prudentes[40]. Esta é a mais provável e mais bem fundada sentença, e se confirma eficazmente do texto proximamente alegado. Na parábola de dez virgens, falava Cristo Senhor nosso própria e literalmente do dia do Juízo, e não do juízo de todos, senão particularmente dos católicos. Por isso saíram todas com lâmpadas acesas, em que é significado o lume da fé. E porque fé sem obras não basta para a salvação, por isso também aquelas a que faltou óleo ficaram fora do céu, e só entraram as que o levavam prevenido. Mas, se o intento de Cristo era acautelar-nos aos católicos e meter-nos um grande temor do dia do Juízo, como consta de toda a parábola, por que não introduziu nela o Senhor que de dez se salvasse só uma ou duas, e se condenassem oito ou nove, senão que se salvaram cinco e se condenaram outras cinco? A razão verdadeira é porque só Cristo, Senhor nosso, conhece o número dos que se hão de salvar: Cui soli cognitus est numerus electorum in superna felicitate locandus. E, posto que, para o seu intento e para o nosso temor, servia mais diminuir o número dos que se salvam, segundo porém a sua presciência e a verdade da sua doutrina, não o podia alterar nem diminuir. Diz, pois, que de dez se salvaram cinco e se perderam cinco, porque das almas católicas, de quem falava, a metade comumente são as que se salvam, e a metade as que se perdem.
Conforme esta doutrina, que é de muitos santos e não a mais estreita, senão larga e favorável, se eu pregara hoje em outro auditório, dissera que a metade dos ouvintes pertenciam à mão direita, e a metade à esquerda, consideração verdadeiramente tristíssima e tremenda, que de homens cristãos e católicos, alumiados com a fé, criados com o leite da Igreja, e assistidos com tantos sacramentos e auxílios, se salve só a metade. Que de dez homens que crêem em Cristo, e por quem morreu Cristo, se percam cinco! Que de cento se condenem cinqüenta! Que de mil vão arder eternamente no inferno quinhentos! A quem não fará tremer esta consideração? Mas se olharmos para a pouca cristandade e pouco temor de Deus com que se vive, antes devemos dar graças à divina misericórdia, que admirar-nos desta justiça.
Isto era o que eu havia de dizer, se pregara, como digo, em outro auditório; mas porque o dia é de desenganos, e o auditório presente tão diverso, não cuidem, nem se persuadam os que me ouvem, que esta regra é geral para todos, posto que sejam ou se chamem católicos. Assim como nesta vida há grande diferença dos grandes e poderosos, aos que o não são, assim a há de haver no dia do juízo. Eles têm hoje a mão direita, mais como o mundo então há de dar uma tão grande volta, muito é de temer que fiquem muitos à esquerda. Dos outros, salvar-se-á a metade; e dos grandes e poderosos, quantos? Salvar-se-á a terça parte? Salvar-se-á a décima? Praza à divina misericórdia que assim seja! O que só digo - e não me atrevera a o dizer se não fora oráculo expresso e sentença infalível da suprema Verdade - o que só digo é que serão muitos poucos, e muitos raros, e por grande maravilha. Ouçam os grandes e poderosos, não a outrem, senão ao mesmo Deus, no capítulo sexto da Sabedoria: Praebete aures, vos qui continetis multitudines, quoniam data est a Domino potestas vobis[41]. Vós, príncipes, vós, ministros, que tendes debaixo de vosso mando os povos, vós a quem o Senhor deu esse poder, para mandar e governar a república: Praebete aurem: dai-me ouvidos. - E que hão de ouvir a Deus os que tão mal ouvem aos homens? Um pregão do dia do juízo muito mais portentoso e temeroso que o que há de chamar a ele os mortos: Judicium durissimum his qui praesunt fiet. Exiguo enim conceditur misericordia; potentes autem potenter tormenta patientur (Sab. 6, 65): O juízo com que Deus há de julgar aos que mandam e governam há de ser um juízo duríssimo, porque aos pequenos conceder-se-á misericórdia, porém os grandes e poderosos serão poderosamente atormentados: Potentes potenter tormenta patientur. Eis aqui em que hão de vir a parar os poderes que tanto se desejam, que tanto se anelam, que tanto se estimam, que tanto se invejam. Os poderosos agora não temem outro poder, porque eles podem tudo; porém quando vier o juízo duríssimo, então verão se há quem pode mais que eles: Potentes potenter patientur.
Mas se esse poder é dado por Deus aos poderosos: Quoniam data est a Domino potestas vobis, como é causa esse mesmo poder de que os poderosos se condenem e sejam poderosamente atormentados? Não é o poder a causa, mas é a ocasião. Ordinariamente tantos são os pecados como as ocasiões: quanta mais e maiores ocasiões, tanto mais e maiores pecados, e não há maior nem mais terrível ocasião que o poder. Tentação e poder? Tentado e poderoso? Tudo quanto tenta e intenta o diabo em um poderoso, tudo leva ao cabo, ou seja nos pecados de homem, ou nos de ministro. Nos pecados de homem, se se ajunta o poder com o apetite, não há honra, não há honestidade, não há estado, nem ainda profissão, por sagrada que seja, que se não empreenda, que se não conquiste, que se não sujeite, que se não descomponha. E nos pecados de ministro, se o poder se ajunta com a ambição, com a soberba, com o ódio, com a vingança, com a inveja, com o respeito, com a adulação, não há lei humana nem divina que se não atropele, não há merecimento que se não aniquile, não há incapacidade que se não levante, não há pobreza, nem miséria, nem lágrimas que se não acrescentem, não há injustiça que se não aprove, não há violência, não há crueldade, não há tirania, que se não execute, E como estes são os abusos, os excessos e as durezas do poder, justíssimo é que o juízo do Onipotente seja duríssimo, e que os poderosos - pois assim são poderosos - sejam poderosamente atormentados: Potentes potenter tormenta patientur.
Eu não nego que esta regra possa ter suas exceções. Nem a mesma Sabedoria divina o nega, antes concede, aponta e louva muito a exceção, mas ela é tal que confirma mais a mesma regra. Ouvi outra vez, não a outrem, senão a mesma Sabedoria divina, falando neste mesmo caso, no capítulo trinta e um do Eclesiastes: Qui potuit transgredi, et non est transgressus, facere mala, et non fecit, Quis est hic, et laudabimus eum? Fecit enim mirabilia in vita sua[42]. Poderoso que pode quebrar as leis sem ninguém lhe ir à mão nem pedir conta, e não as quebrou; poderoso que pode viver mal, e fazer com liberdade o que lhe pede seu apetite, e não o fez: Quis est hic, et laudabimus eum ? Que homem é este, para que o canonizemos? Fecit enim mirabilia in vita sua: porque fez milagres na sua vida. - Não falo nos milagres destes poderosos, porque destes estão cheias as certidões juradas, e, o que pior é, as histórias impressas. Se os ouvirmos e lhes tomarmos o depoimento, todos são retíssimos e santíssimos: não há neles paixão, nem interesse, nem vingança, nem má vontade, senão zelo, justiça, piedade, amor do bem comum, e todas as virtudes de um ministro cristão e perfeito. Mas o tribunal divino, que se não governa pelo que eles dizem, senão pelo que fazem, e estes são os autos por onde os há de julgar, vede e ponderai bem o que diz: Quis est hic? Quem é este? Não diz: Qui sunt hi? Quem são estes? Não fala de muitos ou de alguns, senão de um só, e unicamente. E por quê? Porque poderoso que possa quebrar as leis, e não as quebra: Qui potuit transgredi, et non est transgressus, poderoso que pode viver mal e fazer mal, e o não faça: facere mala, et non fecit, este tal, se acaso no mundo se acha algum, é um: Quis est hic? E esse um, não ordinariamente nem sempre, senão por milagre: fecit enim mirabilia in vita sua. Assim o diz e pondera Deus que sabe tudo, e bastava saber o que todos sabem. E como são tão poucos e tão raros os grandes e poderosos que façam o que devem, devendo não só dar conta das suas almas e das suas vidas, senão também, e muito estreita, de todas aquelas que têm debaixo do seu governo ou do seu domínio, vede se serão muitos os que no dia do Juízo se achem à mão direita.
VII
Que lugar teremos no dia do Juízo? A semelhança da árvore no Eclesiastes. As boas obras e a certeza da salvação na epístola de S. Pedro. A certeza das boas obras e a certeza da revelação. Resposta de Santo Inácio ao Padre Diogo Laines. O que dizem Santo Tomás e Aristóteles. A proposição do Batista.
Mas porque esta regra não é para todos os estados nem para todas as pessoas, concluamos com uma universal, que compreenda a todos, e pela qual possa conhecer cada um o lugar que há de ter no dia do Juízo. Cristo, Senhor nosso, deu hoje sinais para se conhecer ao longe o dia do Juízo; bem será que saibamos nós também algum sinal, por onde possamos conhecer o lugar que nele havemos de ter, e que seja hoje, pois o nosso juízo está mais perto. Para esta demonstração temos um famoso texto da mesma Sabedoria divina, tantas vezes alegada neste ponto, porque em matéria tão grave e tão sólida, não convém nem se requer menor autoridade. No capítulo onze do Eclesiastes, diz assim: Si ceciderit lignum ad austrum, aut aquilonem, in quocumque loco ceciderit, ibi erit (Ecl. 11, 3): se a árvore cair para a parte austral, ou para a parte aquilonar, no lugar onde cair, aí ficará para sempre. - Esta árvore é cada um de nós: cai ou há de cair na hora da morte, e para onde cair naquele momento, aí há de ficar para sempre, porque daquele momento depende a eternidade. Sendo porém quatro as partes universais do mundo para onde pode cair uma árvore, o norte, que é o aquilão, o sul, que é o austro, o leste, que é o levante, o oeste, que é o poente, faz menção o texto somente da parte austral, que é a direita do mundo, e da parte aquilonar, que é a esquerda, porque o homem só pode cair para uma destas duas partes, ou para a mão direita, com os que se salvam, ou para a esquerda, com os que se condenam.
Mas como poderá esse homem adivinhar este grande segredo? Como poderá conhecer desde agora o lugar que há de ter no dia do Juízo, e se há de ficar à mão direita, ou à esquerda? Também disto quis a Providência divina que tivéssemos um sinal muito claro e muito certo, e esse é o mistério com que o Espírito Santo o reduziu todo à semelhança da árvore quando cai: In quocumque loco ceciderit lignum. Uma árvore, antes de se cortar, não se conhece muito fácil e muito naturalmente para que parte há de cair? Pois assim o pode conhecer cada um de si dentro em si mesmo, E se não entendeis ainda, e me perguntais o modo, ouvi-o da boca de São Bernardo, o qual com grande propriedade e clareza o ensina por estas palavras: Quo vero casura sit arbor, si scire volueris, ramos ejus attende: unde maior est copia ramorum, et ponderosior, finde casuram ne dubites[43]: Se quereis saber para onde há de cair a árvore quando for cortada, olhai para ela, e vede para onde inclina com o peso dos ramos. Se inclina para a parte direita, para a parte direita há de cair, e pelo contrário, se o peso a tem dobrado para a parte esquerda, da mesma maneira há de cair para a parte esquerda, e uma e outra coisa é sem dúvida: Ne dubites. - Olhe agora cada um, e olhe bem para a sua alma, para a sua vida e para as suas obras, que estas são os ramos da árvore. Se vir que são de fé, de piedade, de temor de Deus, de obediência a seus preceitos, de religião, de oração, de mortificação das próprias paixões, de verdade, de justiça, de caridade, enfim, de pureza de consciência, de freqüência dos sacramentos, e das outras virtudes e obrigações do cristão, entenda que, perseverando, há de cair sem dúvida para a mão direita. Mas se as obras pelo contrário são de liberdade e soltura de vida, de ambição, de cobiça, de soberba, de inveja, de ódio, de vingança, de sensualidade, de esquecimento de Deus e da salvação, sem uma muito resoluta e verdadeira emenda e perseverança nela, entenda da mesma maneira que a árvore há de cair para a mão esquerda, e que tem certa a condenação.
Dir-me-eis, ou dir-vos-á o diabo, que entre a árvore e o homem há uma grande diferença, porque a árvore, depois que está robusta e crescida, não se pode dobrar, mas o homem, que é árvore com alvedrio e uso de razão, ainda que agora esteja tão inclinada, com o peso dos vícios, para a mão esquerda, em qualquer hora que se quiser voltar para a direita, com o arrependimento dos pecados e emenda deles, o pode fazer. Assim é, ou assim poderá ser alguma vez, e assim o insinuou o mesmo S. Bernardo, acrescentando às palavras referidas: Si tamen fuerit tunc excisa. Mas no dia do Juízo veremos que todos os católicos que estão no inferno, os levou lá esta mesma confiança ou esta mesma tentação.
S, Pedro, falando da certeza ou incerteza da salvação, e do modo com que não só apoderemos conhecer, mas fazer certa, diz estas notáveis sentenças no primeiro capítulo da sua segunda epístola: Quapropter fratres, magis satagite, ut per bona opera certam vestram vocationem et electionem faciatis. Haec enfim facientes, non peccabitis aliquando. Sic enim abundanter ministrabitur vobis introitus in aeternum regnum Domini nostri et Salvatoris Jesu Christi (2 Pdr. 1, 10 s): Se duvidais, cristãos, diz São Pedro, e estais incertos de vossa salvação, aplicai-vos com todo cuidado a fazer boas obras, e logo a fareis certa. - A palavra certam, no original grego, em que escreveu São Pedro, ainda tem mais apertada significação, porque quer dizer: firmam, stabilem, immutabilem, isto é, tão certa, firme e segura, que se não possa mudar. E por que seguram tanto as boas obras a certeza da salvação, que a fazem infalível e imutável? O mesmo Príncipe dos Apóstolos dá imediatamente a razão: Haec enim facientes, non peccabitis aliquando: Porque fazendo boas obras com o cuidado e diligência que digo, jamais caireis em pecado grave, - Donde se seguirá que certamente se vos abrirão com largueza as portas do céu, e entrareis a gozar o reino eterno de Nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo: Sic enim abundanter ministrabitur vobis introitus in aeternum regnum Domini nostri et Salvatoris Jesu Christi. Comentando este texto, o Padre Cornélio a Lapide, autor doutíssimo e eruditíssimo, e que nas Sagradas Escrituras busca sempre o sentido genuíno e sólido, depois de disputar teologicamente a matéria, reduz a forma silogística toda a sentença do Apóstolo, e diz assim: Hic est syllogismus Sancti Petri: Quicumque non peccat, seque purum a peccato conservat, hic certam facit suam vocationem et electionem, tum ad gratiam, tum consequenter ad gloriam: atque quis satagit, studetque bonis operibus, hic non peccat: Ergo qui satagit, studetque bonis operibus, certam facit suam vocationem et electionem. Quer dizer: Aquele que se conserva sem pecado, sem dúvida faz certa a sua salvação; aquele que se emprega com diligência em boas obras, conservar-se-á sem pecado: logo, aquele que se empregar assim em boas obras, faz certa a sua salvação.
A menor, ou segunda proposição deste silogismo, como verdadeiramente é notável, assim parece também dificultosa, se não fora revelação canônica e definição expressa de São Pedro, com a cláusula mais universal que pode ser: Haec enim facientes, non peccabitis aliquando, Eu bem sei que as boas obras só podem merecer de congruo a perseverança e graça final. Mas essa mesma congruência, a qual tem o efeito dependente da aceitação e vontade divina, depois de S. Pedro declarar que o dito efeito é certo, fica fora de toda a dúvida e contingência. Sendo pois assim, como parece que não pode deixar de ser, toda a conseqüência das três proposições do Apóstolo corre formalmente, porque a terceira segue-se com certeza da segunda, e a segunda da primeira. A primeira assenta o fundamento das boas obras: Ui per bona opera certam vestram vocationem et electionem faciatis. A segunda mostra os efeitos das mesmas boas obras, que é a perseverança: Haec enim facientes, non peccabitis aliquando. E a terceira conclui com o fim e prêmio da mesma perseverança, que é a salvação e reino do céu: Sic enim abundanter ministrabitur vobis introitus in aeternum regnum Domini nostri.
Contudo, vindo ao rigoroso exame desta certeza e da qualidade ou qualificação dela, a sentença comum dos teólogos é que deste texto de S. Pedro só se convence certeza moral, quanta podemos ter naturalmente, sem revelação. Comparada porém qualquer revelação não canônica com as boas obras, eu antes quisera a certeza das boas obras, que a da revelação, porque a revelação não me pode salvar sem boas obras, e as boas obras podem-me salvar sem revelação. Outros querem que a certeza de que fala o Apóstolo seja maior que moral, porque, com certeza somente moral, pode ser a salvação incerta[44]. Mas a incerteza da salvação com boas obras, em opinião que eu muito venero, também é certeza. Perguntou uma vez meu padre Santo Inácio ao Padre Diogo Laines, aquele tão celebrado teólogo do Papa no Concílio Tridentino, qual de duas escolheria, se Deus as pusesse na sua eleição: ou ir logo para o céu com certeza, ou ficar servindo a Deus neste mundo com incerteza da salvação? Laines respondeu que escolheria ir logo para o céu; Santo Inácio, porém, lhe disse que ele antes elegeria ficar servindo a Deus, posto que com incerteza de se salvar: Malle se beatitudinis incertum vivere, et interim Deo inservire, quam certum ejusdem gloriae statim mori[45]. Assim o refere a Igreja na lenda do mesmo santo, aprovando e canonizando esta sua resolução. Mas se esta resolução, ao que parece, era tão arriscada, como a louva e põe por exemplo a Igreja? E como elegeu também esta parte um espírito tão alumiado como o de Santo Inácio, trocando a certeza da salvação pela incerteza? Porque a incerteza da salvação, sobre servir a Deus e fazer boas obras, como era neste caso, é uma incerteza tal, que vem a ser a maior certeza. Assim o julgou e declarou logo o mesmo Santo Inácio, cujo juízo e espírito foi um dos maiores oráculos da sua idade, e o será de todas.
Mas porque a doutrina geral, em matéria de tanto peso, não deve ser heróica, senão vulgar e alheia de toda a dúvida ou controvérsia, concluo o que prometi com duas sentenças dos dois príncipes da Teologia e Filosofia, Santo Tomás e Aristóteles. Santo Tomás, no artigo oitavo da Questão 23, diz assim: Unde praedestinatis conandum est ad bene operandum et orandum, quia per hujusmodi praedestinationis effectus certitudinaliter impletur[46]. Tinha dito que na ordem da predestinação divina se contêm também as nossas boas obras, por meio das quais se alcança a salvação, e sem as quais se não pode alcançar, e conclui que todos se devem aplicar com toda a eficácia ao exercício das ditas boas obras, porque por elas conseguirão o efeito e fim da predestinação, e isto não em dúvida, senão certitudinaliter: com toda a certeza. Digo com toda, porque o Doutor Angélico não limita nem distingue grau ou qualidade nela. Mas porque alguns dos seus intérpretes[47] querem que fale somente de certeza moral, que é o que comumente e quase sempre sucede, esta, quando menos, é a certeza com que cada um pode conhecer hoje o lugar da mão direita ou esquerda que há de ter do dia do Juízo. E porque, em negócio de salvar ou não salvar, não é necessária maior certeza para o justo receio e cuidado de cada um, também esta deve parecer bastante a todos para o desempenho da minha promessa. Porque, como diz Aristóteles no Livro primeiro das Éticas, nenhum sábio deve procurar nem desejar maior certeza que a que pode ter a matéria de que se trata: Disciplinati est enim in tantum certitudinem inquirere secundum unumquodque genus, in quantum natura rei recipit[48].
O que resta é que cada um olhe atentamente e com a devida consideração para a árvore da sua vida, e que examine e veja sem engano do amor próprio, se os ramos das suas obras pesam para a mão direita ou para a esquerda: Ad Austrum, aut ad Aquilonem. E para que esta vista seja tão clara e certa, como quem vê de muito perto, e não de longe, só lembro por fim a todos, o que a todos pregava S. João Batista: Jam securis ad radicem arboris posita est (Luc. 3, 9). Para qualquer parte que a árvore penda, e qualquer que ela seja, -já o machado está posto às raízes. - Cada dia e cada hora é um golpe que a morte está dando à vida. E reparem os que a fazem tão delicada, que para derrubar as árvores grossas são necessários muitos golpes; para as delgadas basta um, Cristo, Senhor e Redentor nosso, que tanto deseja e tanto fez e padeceu por nossa salvação, nos desenganou hoje, que o nosso juízo não há de passar dos cem anos: Non praeteribit generatio haec, donec omnia fiant. Mas advirtamos que não nos promete que havemos de chegar a esses cem anos, nem aos noventa, nem aos oitenta, nem a dez, nem a um, nem a meio, antes nos avisa que o dia pode ser este dia, e a hora esta hora O mesmo Senhor, por sua misericórdia, no-la conceda a todos tão feliz, que todos naquele dia nos achemos à sua mão direita, e nos leve consigo a gozai daquela glória que se não alcança senão por boas obras, ajudadas da sua graça Amém.
LAUS DEO
[1] Em verdade vos afirmo, que esta geração não passará enquanto senão cumprirem todas estas coisas (Lc. 21, 32).
[2] Mil anos, aos teus olhos, são como um dia (SI. 89, 4).
[3] Card. Cusano Tract. De Durat. Mundi.
[4] Começa o seu cômputo este autor desde o dia da Encarnação de Cristo.
[5] Na Vulgata: Ne que angeli caelorum nisi solus Pater. Mas daquele dia, nem daquela hora, ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho senão só o Pai (Mt. 24, 36).
[6] Uma geração passa, e outra geração lhe sucede (Ecl. 1, 4).
[7] Será afligida por quatrocentos anos, mas na quarta geração tomarão a vir para aqui (Gên. 15, 13. 16).
[8] Todos os que se acham nos sepulcros ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que obraram bem, sairão para a ressurreição da vida, mas os que obraram mal, sairão ressuscitados para a condenação (Jo. 5, 28 s).
[9] Hieronym, in Joel. cap.IIl.
[10] Ezychius Epist. 79. Aug. Epist. 78 et 80.
[11] O que eu porém vos digo a vós, isso digo a todos (Mc. 13, 37).
[12] Porque afigura deste mundo passa (1 Cor. 7, 31).
[13] Uma geração passa, e outra geração lhe sucede, mas a terra permanece sempre firme (Ecl. 1, 4).
[14] Ora o mundo passa, e também a sua concupiscência (1 Jo. 2, 17).
[15] Edificareis casas de pedra de silharia, porém não habitareis nelas; plantareis vinhas as mais excelentes, porém não bebereis do vinho delas (Am. 5, 11).
[16] Não lhes sucederá edificarem eles casas, e ser outro quem as habite, nem plantarem eles vinhas, e vir outro que as desfrute (Is. 65, 22).
[17] E não sabe para quem ajunta aquelas coisas (SI. 38, 7).
[18] Assim me separa a morte amarga (1 Rs. 15, 32).
[19] Tenho visto o fim de toda a coisa acabada; o teu mandamento é largo sem medida (SI. 118, 96).
[20] Na Vulgata: Ut non judicemini: Porque a vinda do Senhor está próxima, não vos ressintais, irmãos, uns contra os outros, para que não sejais julgados. Olhai que o juiz está diante da porta (Tg. 5, 8 s).
[21] E verão ao Filho do Homem que virá (Mt. 24, 30).
[22] Sabei que está perto às portas (Mt. 24, 33).
[23] Quando vós virdes tudo isto (Mt. 24, 33).
[24] Suar. tom. 2, in 3 p. disp. 52, sect. 2.
[25] Innoc. lib. 2, De Contemp. Mundi.
[26] Para que, quando vier, e bater à porta (Le. 12, 36).
- E se vier na segunda vigília, e se vier na terceira vigília (Lc. 12, 38).
- Vós outros pois estai apercebidos, porque à hora que não cuidais, virá o Filho do homem (U. 12, 40).
[27] Negociai até eu vir (Le.19,13).
[28] Eis aí vem o esposo (Mt. 25, 6).
[29] Virei a ti como um ladrão, e tu não saberás a que hora eu virei (Apc. 3, 3).
[30] E depois que eu for, e vos aparelhar o lugar, virei outra vez, e tomar-vos-ei para mim mesmo (Jo. 14, 3).
[31] Armou o seu arco, e o tem pronto. Já pôs nele os instrumentos da morte, já preparou as suas setas ardentes (SI. 7, 13 s).
[32] Deste aos que te temem um sinal, para que fugissem da face do arco, e que se livrassem os teus amados (SI. 58, 6).
[33] As tuas setas são agudas nos corações dos inimigos do rei; debaixo de ti cairão os povos (SI. 44, 6).
[34] Quando disserem paz e segurança, então lhes sobrevirá uma morte repentina (1 Tes. 5, 3).
[35] Quando eu tomar o meu tempo, julgarei com justiça (secundum jus, na nova versão dos Salmos).
[36] Dá conta da tua administração (Lc. 16, 2).
[37] Apareceram as flores, chegou o tempo da poda (Cânt. 2,12).
[38] Tu foste pesado na balança (Dan. 5, 27).
[39] Naquela mesma noite foi morto Baltasar (Dan. 5, 30).
[40] Um será tomado, e outro será deixado (Mt. 24, 40).
Cinco dentre elas eram loucas, e cinco prudentes (Mt. 25, 2).
[41] Dai ouvidos, vós que governais os povos, porque o poder foi-vos dado pelo Senhor (Sab. 6, 3 s).
[42] Pôde transgredir a lei de Deus, e não a transgrediu; pôde fazer o mal, e não o fez (Eclo. 31, 10).
Quem é este, e nós o louvaremos? Porque fez coisas maravilhosas em sua vida (Eclo. 31, 9).
[43] Bern. Sem 49. Inter Parvos.
[44] Apud Lorinum, et Cornelium ibi.
[45] In off. S. Ignat. lect.
[46] D. Thom. p. 1, q. 23, art. 8.
[47] Vasq. Disput. 92.
[48] Arist.I Ethic.
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