Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Quarta Dominga da Quaresma, do Padre António Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

PREGADO EM LISBOA, NA CAPELA REAL, ANO DE 1655

Na ocasião em que o autor, tendo feito a primeira retirada da corte para o Maranhão, dispunha a segunda, que também executou.

Fugit iterum in montem ipse solus[1].

I

O sermão do deserto: Se o mundo conhecera quanto se tira de um retiro e quanto colhe quem se acolhe!

Não foge uma só vez quem foge de coração. Já o evangelista S. João tinha dito que o Senhor e Salvador dos homens fugira dos mesmos homens uma vez, e agora nos diz que fugiu outra: fugut iterum. Quando Herodes quis matar a Cristo para que não fosse rei, fugiu para o Egito; agora que o querem fazer rei, foge para o monte: In montem. Os amigos e os inimigos, todos por seu modo perseguem, e quem conhece que o amor de uns e o ódio de outros tudo é perseguição, foge de todos. Não só fugiu o Senhor hoje das turbas que o seguiam, mas também dos mesmos discípulos que o acompanhavam, e por isso fugiu só: ipse solus. Os apóstolos recolheram das sobras do banquete doze alcofas, uma para cada um, e parece que haviam de ser treze, para que ao obrador do milagre coubesse também a sua. Contudo, muito mais recolheu do banquete o Mestre que os discípulos: eles recolheram o pão, ele recolheu o recolher-se. Oh! se o mundo conhecera quanto se tira de um retiro, e quanto colhe quem se acolhe: fugit! O evangelista diz que os discípulos não entenderam o milagre dos pães: Non enim intellexerunt de panibus (Mc. 6, 52). E muito mais tem que entender o retiro de Cristo que o milagre. Ora, eu que neste lugar fiz antigamente alguns sermões de corte, quisera hoje fazer um sermão de deserto. Bem creio que será pregar em deserto, mas será pregar. Vós, Senhor, que tentado do demônio o vencestes em um deserto, e aplaudido dos homens fugistes deles para outro, sede servido de me assistir neste assunto com vossa mesma soledade, para que haja quem queira fugir de si para vós, e neste monte, onde estais tão só, viver só por só convosco.

II

Qual cuidamos que seria a sobremesa do famoso banquete de hoje? O que dizem os defensores das cortes? Resposta de Hipócrates aos abderitas. Conselhos de Sêneca ao discípulo Lucílio.

Fugit iterum in montem ipse solus (Jo. 6, 15).

Não é coisa nova em Cristo, Mestre divino e Senhor nosso, depois de dar o mantimento ao corpo, dar também o seu à alma. Assim o fez na mesa do fariseu, assim nas bodas de Caná, assim quando foi hóspede de Marta, e, sobretudo, na última ceia, em que ensinou e revelou aos discípulos os mistérios mais altos da sua divindade. A sobremesa, pois, do famoso banquete de hoje, qual cuidamos que seria? Foi o exemplo com que o Senhor fugiu dos mesmos que lhe queriam dar o que ele não queria nem havia mister, e a doutrina, não de palavra, mas de obra, com que se foi meter só consigo na soledade de um monte: fugit in montem ipse solus. Deixar o povoado pelo deserto, trocar as cidades pelos montes, fugir do trato e freqüência das gentes, para viver com Deus e consigo, grande ponto de doutrina em Cristo, e grande resolução de prudência em quem o imitar.

Bem sei que dizem os defensores das cortes, ou os enfeitiçados delas, que também se pode ser ermitão em México, como respondeu em nossos dias um varão de mui celebrado espírito a quem se queria retirar daquela grande cidade e lhe pedia conselho[2]. Mas nem todos os conselhos servem para todos os casos, como nem todas as receitas para todos os enfermos. Bem sei que dizem - e por modo de afronta - que o fugir é fraqueza. Como se quem foge se quisera acreditar de valente, e como se não fora valor quebrar as cadeias de que tantos se não desatam! Catão com César e Pompeu à vista, dizia: sei de quem devo fugir, mas não sei para onde. - E quem sabe e tem para onde, por que se envergonhará de que lhe chamem fraco quando foge com Catão? Dizem que a natureza fez ao homem animal sociável, e que trocar a sociedade e comunicação dos homens pela solidão dos desertos é querer acusar ou emendar a natureza, e como arrependerse de ser racional. Mas quem se ri de semelhantes ditos com provar o racional pelo risível, se exime desta calúnia, e não tem por crime emendar a natureza, quando ela está tão corrupta. Dizem, como disse Aristóteles, que quem gosta de estar só ou é Deus ou fera: aut Deus, aut bestia. Mas se ele alcançara que em Deus há três pessoas, não havia de supor que Deus estava só, e se soubera que quem se aparta dos homens é para mais se chegar a Deus, também o não havia de pôr no predicamento das feras, antes, como gentio, no número dos deuses. Dizem, finalmente, que deixar a corte, o serviço dos príncipes, e a benevolência e graça dos amigos, é falta de juízo e rematada loucura. Assim o digo, porque assim lho ouvi dizer.

Mas a esta censura, que mais pertence aos médicos que aos teólogos, responderá Hipócrates. Demócrito, aquele famoso filósofo que de tudo seria, e fez chorar a Alexandre Magno por dizer que havia mais mundos, cansado de zombar dos despropósitos deste, que tão mal conhecemos, deixou a pátria e todo o povoado, e foi-se meter em um deserto. Correu logo fama que Demócrito endoidecera, e, compadecidos os seus naturais, que eram os abderitas, mandaram rogar por uma embaixada a Hipócrates, que, pelo amor que tinha e honra que fazia às ciências, se dignasse de querer ir curar um sujeito tão notável e tão benemérito delas. E que vos parece que responderia Hipócrates? Respondeu, como refere Laércio, que se a enfermidade fosse outra, ele iria logo curar a Demócrito; porém que retirar-se das gentes e ir-se viver nos desertos, o que eles reputavam por doidice, mais era para invejar que para curar, porque nunca Demócrito estivera mais sisudo, nem tivera o juízo mais são, que quando fugia dos homens: Habere in eo magis quod suspiciat quam quod sauet: et illud schema vitae esse sartam, tectamque animae sanitatem: nulloque modo melius sibi consuli contra pestilentem hominum aurum, quam recipiendo se in tuta solitudinum loca.

Isto é o que faziam e isto o que ensinavam os filósofos -já que começamos por eles - e a razão ou razões que para isto tiveram, dá em vários lugares Sêneca, mais venturoso se os imitara. Escreve a seu amigo e discípulo Lucilio, o qual lhe tinha perguntado de que se havia de guardar para viver quieta e felizmente; e o primeiro documento que lhe dá, é que fuja da multidão e freqüência da gente: Quid tibi vitandum maxime existimem quaeris? Turbam[3]. Oh! quanto resumiu o grande filósofo em uma só palavra! E a razão é, diz ele, porque o trato e conversação dos homens é uma espécie de contágio com que, sem querer nem sentir, nos pegamos uns a outros cada um a sua doença. E assim como nos maiores lugares se acende mais a peste, assim nas cidades mais populosas é maior o perigo: Inimica est multorum conversado.' nemo non aliquod nobis vitium, aut commodat, aut imprimir, aut nescientibus allivit Itaque quo major est populus, cui comiscemur, periculiplus est. Já eu daqui pudera inferir que, assim como no tempo da peste deixam os que podem as cidades, e se retiram aos campos, assim é prudente cautela em qualquer tempo, pois todo é de peste, fugir para os desertos. Mas sigamos ao nosso filósofo, e à bandeira da saúde que ele nos levantou: Sanabimur, si modo separemur a caetu[4].

Prova Sêneca o seu documento, e alega a Lucilio um exemplo não alheio, senão doméstico e experimentado em si mesmo: Ego certe confiteor imbecilitatem meam: nunquam mores, quos extuli, refero. Aliquid ex eo, quod composui, turbatur; aliquid ex his, quae fugavi, redut: Confesso-te - diz o estóico - a minha fraqueza: Nunca saí a tratar com os homens, que não tomasse pior do que fui. Sempre se me descompôs alguma das paixões que já tinha composto, e sempre tomei a trazer comigo algum dos vícios que já tinha desterrado. - Cuidarás porventura que te hei de dizer que tomo mais avarento, mais ambicioso, mais incontinente? Pois, sabe - o que não imaginas - que também tomo mais cruel e mais desumano, só porque estive entre homens: Imo vero, et crudelior, et inhumanior, quoniam inter homines fui. Não se pudera mais altamente encarecer o perigo de tratar com homens! Se dissera que nos pegavam outros achaques, miséria é de século tão enfermo; mas pegarem os homens desumanidade? A humanidade não é essência do homem? As feras, com o trato do homem, não se humanam? Assim é, ou assim era; mas tem degenerado tanto a natureza humana de seu próprio ser que, em lugar de se tirar humanidade do trato com os homens, o que se bebe destas fontes é desumanidade, Éreis humano antes de tratar com eles, depois que os tratastes, sem o sentir nem saber como, achais-vos desumano: Et inhumanior, quoniam inter homines fui. Já se não contentam os homens com fazer desumanidades, mas chegam a fazer desumanos, que é muito pior. Fazer desumanidades é ser cruel; fazer desumanos é não ser homem, antes ser o contrário de homem. Se víssemos que o sol, devendo alumiar, escurecia, e que o fogo, devendo aquentar, esfriava, e que um homem, em lugar de gerar homens, gerava tigres e serpentes, não seria uma horrenda monstruosidade? Pois isso é o que fazem os homens. Não só têm desumanado a sua, mas desumanam a humanidade daqueles que os tratam. Vede se é prudência fugir dos homens quem quiser conservar o ser de homem.

A segunda razão que dá Sêneca para isto é serem muitos aqueles de quem se deve fugir. Nas facções ou parcialidades é muito natural seguir o partido dos mais: e facile transitur ad plures. E como a multidão dos homens toda propende para os vícios, que virtude haverá tão forte que possa resistir ao ímpeto e torrente de tantos? Socrati, Catono et Lelio excutere mentem suam dissimilas multitudo potuisset: adeo nemo nostrum, qui maxime concinamus ingenium, ferre impetum vitiorum tam magno comi tatu vem entium posest: Até Sócrates, até Catão, até Lélio, que entre gregos e romanos foram os Atlantes da virtude, se não poderiam sustentar firmes contra o peso e bataria dos vícios, acompanhados de tão numeroso exército. - E se estes, perdidas as cores da própria vida e costumes, se revestiriam das contrárias, posto que tão semelhantes, quanto mais os que conhecermos a fraqueza de nossa imperfeição e só temos o estudo de a enfeitar? Forçados, pois, da violência do exemplo comum, e quase necessitados entre os homens a ser como eles, que remédio pode haver em partido tão desigual, senão fugir? Assim o resolve o mesmo Sêneca com um argumento muito do seu engenho: Necesse est, aut imiteris, aut oderis. V runique autem vitandum est, ne vel similis malas fias, quia multi sunt, neve inimicus multis, quia dissimiles sunt. Sendo esta a condição dos que enchem o mundo, e porventura também a dos que o mandam, que pode fazer um homem entre tais homens? Ou os há de imitar, sendo tais, ou os há de aborrecer, porque são tais; e na dúvida de os imitar ou aborrecer, nem a imitação nem o ódio lhe pode estar bem, porque para imitá-los são maus, e para inimigos são muitos: Vel similis malis, vel inimicis multis. Logo, o que convém é fugir, e queira Deus que baste.

A terceira razão e que no mesmo Sêneca tinha grande lugar, e o pode ter em outros, declara ele com esta queixa da sua vida primeira: Omnem operam deli, ut me multitudini educerem et aliquam dotem notabilem facerem[5]: Trabalhei, diz, com todas as minhas forças, por me separar do número dos muitos, e por fazer alguma obra notável, a qual me servisse de dote para o crédito e estimação do mundo. - E que tirei deste meu trabalho? Quid aliud quam telis me opposui, et malevolentiae quod morderet, ostendi: O que tirei foi provocar contra mim e expor o peito às lanças, e dar matéria à malevolência em que empregasse os dentes, e tivesse que morder. - E por quê? Dá a razão, apontando-a com o dedo: Vides tu istos, qui eloquentiam laudant, qui opes sequuntur, qui gratiae adulantur, qui potentiam extollunt? Omnes aut sunt hostes, aut (quod in aequo est) esse possunt: Vês tu estes que louvam a eloqüência, que seguem a cobiça, que adulam a graça, que adoram a potência? Pois sabe que todos, ou são inimigos, ou o podem ser, que vale o mesmo. Quam magnus mirantium, tam magnus invidentium populus est: Quão grande é o povo dos que te admiram, tão grande é o número dos que te invejam. - A admiração estará por algum tempo suspensa e muda, como costuma, mas a inveja reconcentrada rebentará com mais força, como de mina, e o que foram aplausos serão estragos. Antes nos tenham inveja que compaixão, sentença foi nascida na gentilidade, que depois fez cristã São Gregório Nazianzeno; mas no mesmo Nazianzeno mostrou a experiência que antes se deve eleger o estado da compaixão que o da inveja, porque a de seus êmulos o perseguiu de tal modo - ou tão sem modo - que, obrigado a se lançar ao mar como Jonas, a mesma inveja lhe veio a ter compaixão. Enquanto ela não chega a se despicar assim, não descansa. Por isso Sêneca conclui que, arrependido do primeiro instituto da sua vida, e de se ter mostrado ao mundo, tomara por último conselho recolher-se consigo dentro em si mesmo, e cultivar a própria alma com tais exercícios, que ele só os pudesse sentir, e nenhum homem os pudesse ver: Quin potius quaero aliquid usu honum, quod sentiam, non quod ostendam.

Estas foram as razões por que se retiravam aos desertos e fugiam da comunicação dos homens aqueles grandes filósofos, um dos quais, perguntado que fruto tinha colhido de todos seus estudos, respondeu: Saber viver só comigo. - Assim o refere Estobeu, e o qualificou o mesmo Sêneca, dizendo: Primum argumentum bene compositae mentis existimo, posse consistere, et secum morari: O primeiro argumento, não de se ter alienado o juízo, como ao princípio se dizia, mas de estar muito em seu lugar, e bem composto, é saber um homem morar consigo: Secum morari. Mas passemos da filosofia à cristandade, e dos documentos da razão sem fé aos da fé e razão, que são os dos santos.

III

Arsênio, mestre de Arcádio, foge para o deserto. Resposta a Teófilo, bispo de Alexandria e ao presidente daquela real cidade. A vontade de Deus e as vontades dos homens. Resposta de Antônio, o Magno, ao convite do imperador Constantino. A profissão do anacoreta. Por que Antônio teme e foge dos homens, se todos os animais o obedeciam? O demônio Judas. Os homens, feras intelectuais. O silêncio do profeta Amós.

Arsênio, aquele insigne varão em todos os estados, pedido pelo Imperador Teodósio e nomeado pelo Papa São Dâmaso para mestre de Arcádio, já declarado sucessor do Império, era tão estimado do mesmo imperador, que entrando uma vez a ouvir dar lição a seu filho, e, vendo que Arsênio estava em pé e Arcádio sentado, repreendeu a ambos daquela que eles não tinham por indecência, e mandou que dali por diante Arsênio ensinasse assentado, e Arcádio ouvisse em pé, e com a cabeça descoberta[6]. Com este crédito e favor de um tão grande monarca, e com o aplauso de todo o paço e corte, que por reverência ou lisonja sempre seguem ou mostram seguir o afeto dos príncipes, vivia contudo inquieto e descontente Arsênio, não se fiando nem do que era, nem do que lhe prometia aquela fortuna. Duvidoso pois da resolução que devia tomar, não pediu conselho aos amigos de maior autoridade e mais fiéis, nem menos se quis aconselhar consigo, mas recorrendo a Deus, que só é o norte seguro das bonanças ou tempestades de um mar tão incerto, ouviu uma voz do céu que lhe dizia: Arseni, foge homines, et salvus eris: Arsênio, foge dos homens, e salvar-te-ás. - Com este aviso, que não era necessário ser em voz para se entender, sem pedir licença ao Imperador - porque sabia que lha não havia de dar - se embarcou ocultamente Arsênio de Constantinopla para o Egito, e metendo-se pelo mais interior do deserto, ali escolheu para perpétua morada uma cova, na qual, porque se soube enterrar em vida, tanto verificou o oráculo do céu em se salvar, como o tinha obedecido em fugir dos homens: Fuge homines, et salvos eris.

Oh! se tomássemos este aviso como feito a todos, e se entendesse cada um que fala com ele. Quando Cristo disse a Marta: Maria optimam partem elegit[7], quando disse ao outro moço rico: Vende quae habes, et da pauperibus[8], quando disse ao que tinha sarado na piscina: jam noli peccare[9], as palavras eram ditas a um só, mas o documento falava com todos. Tire cada um o nome de Arsênio, e ponha no mesmo lugar o seu, e desengane-se que, no deserto e no povoado, quem de coração se quer salvar há de fugir dos homens. Assim o fez ele constantemente, e vede como. Tanto que se soube que Arsênio era passado à África, informados do lugar onde se tinha recolhido, vieram logo a visitá-lo Teófilo, bispo de Alexandria, e o presidente daquela real cidade; e como Arsênio os recebesse, não com as cortesias que tinha deixado no paço, mas com as que são próprias do deserto, modéstia e silêncio, rogaram-lhe os hóspedes que os não quisesse despedir tão secamente, e ao menos lhes dissesse algumas palavras de edificação, com que tomassem consolados. E que responderia Arsênio? Respondeu que assim o faria, se ambos também lhe prometessem de fazer o que ele lhes dissesse. Aceitaram facilmente a condição, e o que disse Arsênio, como refere Metafrastes, foram estas palavras: Ubi esse Arsenium audieritis, hoc est vobis cavendum, ne velitis amplius eo venire: Se ouvirdes dizer onde está Arsênio, o que haveis de observar é que não tomeis mais ao lugar onde ele estiver. - Este foi o sermão que fez àqueles tão autorizados ouvintes, com o qual eles se partiram tão edificados como compungidos, e como prudentes que eram, e verdadeiros amigos que tinham sido de Arsênio, de tal sorte cumpriram o que tinham prometido e se conformaram com a sua resolução, que nem esperaram dele outra correspondência, nem inquietaram mais o seu silêncio.

Viviam no mesmo deserto, não juntos, mas apartados, cada um na sua cova ou choupana, outros anacoretas, e com estes falava algumas vezes Arsênio, ouvindo-os como a mestres da disciplina monacal e vida eremítica. E como um dos mais anciãos lhe perguntasse qual fora o motivo daquela sua retirada tão estranha, a resposta que deu foi esta: Non posse se cum Deo simul, et cum hominibus vivere: que o motivo que tivera para fugir do mundo fora ter experimentado no mesmo mundo que viver juntamente com os homens e mais com Deus, não é possível. - E, declarando a razão desta impossibilidade, dizia que era porque as vontades dos homens raramente se ajustam com a vontade de Deus, e porque, sendo a vontade de Deus uma só, e sempre a mesma, as dos homens, pelo contrário, são tantas, tão diversas e tão encontradas quantos são os mesmos homens, e seus interesses e apetites, e porque, ainda no mesmo homem, não dura muito a mesma vontade, por ser inconstante e vária. Assim provava e concluía a sua razão Arsênio, e desta demonstração infalível se tira uma das três conclusões igualmente certas: ou que os que cuidam que vivem com Deus e com os homens se enganam; ou que os que vivem com os homens não vivem com Deus; ou que quem quiser viver com Deus, há de deixar os homens.

Se o mesmo Deus não concorda as vontades dos homens com a sua, como poderá um homem, por mais que faça ou se desfaça, concordar as vontades dos homens com a de Deus? De Davi disse Deus que tinha achado um homem conforme seu coração, o qual faria todas as suas vontades: Inveni David virum secundum cor meum, qui faciet omnes voluntates meas[10], E com ser este homem singular entre todos os homens, e este rei a exceção de todos os reis, quando ele mandou tirar a vida a Urias, quando o fez portador de sua própria morte em uma carta aleivosa, e quando no primeiro ato desta tragédia lhe mandou roubar a mulher de casa, sem se lembrar que o mesmo Urias o estava servindo na campanha com tanto valor e lealdade, haverá algum adulador tão sábio e tão sem pejo, que pudesse concordar estas vontades com a de Deus? Mal podiam logo caber semelhantes concordatas em um ânimo tão amigo da verdade, tão reto, tão inteiro e tão constante como o de Arsênio. As experiências a que ele se referia eram as de Roma e Constantinopla, as duas maiores cortes do mundo, das quais costumava dizer que os três mais fortes inimigos que nelas lhe faziam guerra, um se chamava ver, outro ouvir, outro falar, e que de todos estes o livrara o deserto, onde se não vê, nem ouve, nem fala: Qui sedet in solitudine, quiescit, et a tribus bellis eripitur, id est, auditus, locutionis, et visus. E em um mundo onde se vêem tantas coisas que se não podem ver, e se ouvem as que se não podem ouvir, e se falam e são faladas as que se não podem dizer, como pode viver um homem que não for cego, surdo, nem mudo, senão fugindo dos homens: Fuge homines?

Assim o tinha já entendido, quase um século antes de Arsênio, o primeiro fundador depois de Paulo, e o segundo habitador daquele mesmo deserto. Movido o Imperador Constantino Magno da fama de Antônio, também por antonomásia o Magno, - que só os grandes homens sabem estimar e não desconfiam de ter junto a si os grandes - mandou-lhe rogar ao Egito se quisesse passar a Roma, porque o queria ter consigo, e ajudar-se de seu conselho e exemplos. Porém o santo anacoreta, que estimava mais as faias e ciprestes de seu ermo, que os palácios e torres da cabeça do mundo, dando as graças à majestade cesárea da mercê e honra que lhe desejava fazer, se escusou de a receber com os termos gerais da religião e modéstia, como convinha ao retiro da sua profissão e humildade do seu estado. Esta foi a resposta pública. Mas em particular e privadamente aos seus deu Antônio outra razão de não aceitar, tão enfática e discreta, que mais parece de algum político da mesma Roma, que de um ermitão da Tebaida. E foi esta: Si ad imperatorem venero, Antonius ero; sin minus, abbas Antonius[11]: Se eu for ao imperador, serei Antônio; se não for, serei Antônio, o abade. - Até nos desertos há razão de estado. Pesou o grande varão na balança da própria conveniência o que perdia com o que ganhava, e o que era com o que havia de ser, pesou Antônio no paço com Antônio no deserto, e porque no paço inventus est minus habens[12], quis antes ser no deserto Antônio abade, que no paço só Antônio, sem este sobrenome.

Mas, dai-me licença, político santo, que nem como santo, nem como político me parece bem fundada a vossa resolução. Se chamado do imperador não ides, por não deixar de ser Antônio abade, ide e sereis muito mais. Se não fordes Antônio abade, sereis Antônio bispo, sereis Antônio arcebispo, sereis Antônio presidente, sereis Antônio conselheiro de Estado, sobretudo sereis Antônio valido, que sem nome é a maior dignidade, e sem jurisdição o maior poder; enfim, sereis com Constantino o que foi José com Faraó e o que foi Daniel com Nabuco: ele terá o nome de imperador, e vós o império da monarquia. E se acaso, como político do deserto, vos não movem estas ambições cá do mundo, ao menos como santo deveis lançar mão de uma ocasião de serviço e glória de Deus, tão grande e tão oportuna como o imperador e o tempo vos oferecem. Ainda Roma não está de todo sujeita a Cristo, ainda no Capitólio é invocado e adorado Júpiter, ainda o ano acaba e começa com as festas e duas caras de Jano, ainda no redondo Panteão se ouvem os nomes e se vêem em pé as estátuas de todos os falsos deuses. Se até agora servistes a Deus no deserto com o silêncio, tempo é já de o servir também com a voz. Ide a Roma, pregai, confundi, convertei, e se o zelo de Constantino começa a edificar templos, acabe o vosso de derrubar os ídolos. Lembrai-vos que viu Esdras sair dos bosques um leão, o qual só com o bramido de sua voz derrubava uma águia que tinha usurpado a potência do mundo (Esdr 4, 13 s); e pois esta águia é a romana, sede vós o leão africano que, saindo das brenhas desse deserto, lhe tireis o cetro das mãos e o passeis às de Cristo, Pois, se Antônio tinha tantas razões humanas e divinas de deixar o deserto e vir a Roma, por que se escusa, por que não vem?

É certo que não recusou a jornada o grande Antônio por recear a passagem de Sila e Caribes, mas porque temeu vir-se meter outra vez entre os homens quem tantos anos havia fugido deles. Por isso diz que, se viesse, tomaria a ser o Antônio que dantes tinha sido, e não o abade Antônio que ao presente era. O que temia perder não era o nome da dignidade, senão o espírito da profissão. A profissão dos anacoretas era viver longe da comunicação dos homens, e isto é o que significa o mesmo nome, como escreve S. Jerônimo, que visitou pessoalmente aqueles desertos: Quod procul ab hominibus recederent anachoritae nuncupabantur[13]. E se a profissão de Antônio era viver longe dos homens, como podia conservar-se na sua profissão, nem conservá-la na sua inteireza, se se viesse meter não só na mais populosa cidade, mas na mesma cabeça do mundo, onde concorriam todas as gentes dele? Se Antônio, com o seu exemplo de fugir dos homens, tinha povoado os desertos, como agora os não tomaria a despovoar com o exemplo de tomar para eles? A mesma razão por que era chamado do imperador se desfazia, se viesse, e só não vindo, nem deixando o seu deserto, se conservava. Bem sabia Antônio que maior opinião granjeou ao Batista o seu deserto sem milagres, que a Cristo os seus milagres no povoado. Quanto mais que se viesse à corte de Roma, muito mais era o que devia temer, que o que podia esperar, Que fizeram a Davi os sátrapas de el-rei Áquis, e como trataram a Daniel os conselheiros de Nabuco e de Dado? Se Constantino acaso se cansasse da austeridade de Antônio, logo os lisonjeiros de palácio haviam de seguir o mesmo ditame, e, desacreditado o pregador, que fruto podia fazer a sua doutrina? Se, pelo contrário, o imperador o tivesse na sua graça, e essa graça fosse crescendo, que laços lhe não armaria a inveja para o derrubar e destruir? Finalmente, se o mesmo Constantino era de tão inconstante condição, e tão facilmente suspeitoso, que a seu sobrinho Licínio, e a Crispo, seu próprio filho, e à sua mulher Fausta tirou a vida sem causa, que podia não recear de tal homem qualquer outro homem? Fez muito como homem Antônio, e muito como político, e muito como santo, em se conservar no seu deserto longe dos homens.

Só resta nesta matéria um escrúpulo muito bem fundado, porque se funda nas forças e poderes do céu, com que o mesmo céu assistia e defendia a este grande varão. Ninguém alcançou maiores vitórias do inferno, ninguém desafiou a todos os demônios juntos e os venceu em todas as batalhas, como Antônio: os leões, os ursos, os tigres, as serpentes e os outros monstros da África, não só não ofendiam a Antônio, mas o obedeciam e reverenciavam. Pois, se nos dentes e peçonha das feras, se no poder e astúcias de demônios não tem que temer Antônio, por que teme e foge dos homens? Porque os homens são mais feras que as feras, e mais demônios que os mesmos demônios. Os demônios não têm carne nem sangue, porque são espíritos; as feras não têm entendimento nem vontade, porque se governam por instinto; e os homens são piores demônios que os demônios, porque são demônios com carne e sangue, e são piores feras que as feras, porque são feras com entendimento e vontade. Coisa admirável é que sujeitando Cristo em um momento e com uma só palavra uma legião de seis mil e seiscentos demônios, como lhe sucedeu em Genesaré, a Judas, com tantos benefícios, com tantos exemplos, com tantas exortações, e com tantas ameaças, o não abrandasse nem reduzisse em um ano inteiro. Assim consta da cronologia Evangélica, porque um ano antes de Judas consumar a traição, tinha o Senhor dito dele: Ex vobis unus diabolus est (Jo. 6, 71): Um de vós é demônio. - Pois se Cristo sujeitou tão facilmente a tantos mil demônios, ao demônio-Judas, por que o não pode reduzir? Porque os outros demônios eram puramente espíritos; o demônio-Judas era demônio com carne e sangue. Ajuntava-se em Judas o que São Paulo distinguiu, quando disse: Non est nobis colluctatio adversus carnem et sanguinem, sed adversus principes tenebrarum, contra spiritualia nequitiae[14]. E para reduzir demônios com carne e sangue, nem bastam razões, nem bastam exemplos, nem bastam milagres, nem bastam ameaças e terrores, nem há diligência alguma humana, ou mais que humana, que baste. Por isso não bastaram todas estas diligências juntas, tantas vezes repetidas, e por tanto tempo continuadas, para que Judas se reduzisse, nem bastou que o mesmo Cristo lhe desse sua própria carne e seu próprio sangue, porque era demônio com carne e sangue.

Esta foi a razão por que o grande Antônio, depois de vencedor de todos os outros demônios, não se quis tomar com demônios de carne e sangue; e para se não tomar com feras de entendimento, teve a mesma razão. Sendo assim que Deus desde o principio da criação deu logo a todas as feras as suas armas naturais, e só ao homem criou desarmado, contudo não só no estado de inocência, senão também depois do dilúvio, disse que o homem seria o terror das feras: Terror vester, ac tremor sit super cuncta animalia terrae[15]. Parece que antes as feras armadas haviam de ser terror do homem, e não o homem desarmado terror das feras. Por que diz logo o autor e legislador da natureza que todos os animais, por bravos e feros que sejam, temerão e tremerão do homem? Porque ao homem, ainda desarmado, deu-lhe entendimento, e às feras armadas não. E mais para temer é um homem desarmado, com entendimento, que todas as feras armadas sem ele, Mas se o entendimento dos homens se passasse e se unisse às feras, ou a fereza das feras se unisse ao entendimento dos homens, estas feras com entendimento, quem as poderia domar ou quem escaparia delas? Uma e outra coisa advertiu excelentemente São Lourenço Justiniano: Deserta sunt castra Dei, et refugia muni tissima ab incursibus intellectualium bestiarum valde secura[16]. - Sabeis, diz o grande patriarca - que como pastor deste gado o conhecia bem - sabeis o que são comumente os homens? São umas feras intelectuais, umas feras como as outras, mas com entendimento: Intellectualium bestiarum; e o único refúgio que Deus deixou no mundo para escapar destas feras não é outro mais que os desertos. - É verdade que esses mesmos desertos estão habitados das outras que vulgarmente se chamam feras, mas essas, ainda que sejam leões e tigres, reverenciam, como no primeiro Adão, a inocência, e respeitam a santidade dos que vivem entre elas; porém, das feras intelectuais, das feras que são feras com entendimento, e por isso com vontade, e má vontade, não há outro remédio seguro, senão fugir, e fugir para os desertos: Deserta sunt refugia munitissima ab incursionibus intellectualium bestiarum, Muita razão teve logo o grande Antônio, posto que domador das feras do deserto, de não querer provar forças com as feras do povoado, nem arriscar-se a perder com as feras intelectuais, o que tinha ganhado com as feras sem entendimento, e mais em Roma, onde os homens de tal modo eram feros e entendidos, que por jogo e recreação lançavam os homens às feras.

Mas aqui replicará alguém, ou replicarão todos, e com maior fundamento, que por isso mesmo devia Antônio vir a Roma. Venha como pedra de Davi à cabeça do mundo e da idolatria, pregue livremente a fé de uma só divindade, confute a falsidade dos que ainda são chamados deuses imortais, e se por esta causa o lançarem aos leões do anfiteatro, deixe-se comer vivo, e será o segundo Inácio; ou se os leões o respeitarem, como costumam, deixe-se cortar a cabeça, e será o segundo Batista. Confesso que esta última instância parece que tem dificultosa saída; mas assim como foi prudência em Constantino dissimular por então, e não conquistar a idolatria com as armas, assim foi prudência em Antônio não a impugnar com a pregação. É doutrina expressa de Deus pelo profeta Amós, a qual, como servia para aqueles tempos, pode também servir para outros: Odio habuerunt corripientem in porta, et loquentem perfecte abominati sunt. Ideo prudens in tempore illo tacebit, quia tempus malus est (Am. 5, 10. 13): Chegou a corrupção dos costumes a tal estado - diz o profeta - que os poderosos têm ódio a quem repreende suas injustiças, e abominam a quem lhes fala verdade, e nos tais casos o que deve fazer o prudente pregador é calar, porque ainda que a doutrina seja boa, o tempo é mau: Prudens in tempore illo tacebit, quia tempus malum est. Prudentemente fez logo o grande Antônio em antepor o silêncio do seu deserto à pregação da cabeça do mundo, porque no mundo não podia colher fruto para os outros, e no deserto podia frutificar para si. Enfim, fez Antônio então como Cristo hoje, que podendo pregar às turbas, fugiu delas: Fugit.

IV

Não diz o Evangelista qual fosse o monte para que fugiu Cristo. Prerrogativas dos montes e dos desertos. O monte Horeb, no deserto de Madiã. Os filhos de Jonadab e o cativeiro de Babilônia. O monte Sinai, nos desertos da Arábia, e a santidade e espírito das leis divinas, O monte Tabor e a escola da doutrina de Cristo. S. Bernardo e a escola muda dos bosques. O monte Olivete. O deserto na visão do Apocalipse.

Fugit in montem. Diz o evangelista que fugiu o Senhor para o monte, e não diz qual fosse o monte para que fugiu. Mas até o fugir para monte sem nome é circunstância que acredita o fugir. Fugiu como quem buscava o retiro e não a fama; fugiu como quem queria que não soubessem dele, nem onde estava. Assim sepultou Deus a Moisés, sem se saber jamais aonde, e assim se deve enterrar e esconder quem toma o deserto por sepultura. E por que o nome de sepultura não faça horror aos vivos, nem os ecos do deserto aos que não sabem viver sós, ainda teve maior mistério o evangelista em não dizer o nome do monte. Tinha dito que era deserto, e por isso lhe calou o nome próprio, porque todas as prerrogativas que fizeram celebrados os montes de grande nome se encerram neste nome, deserto. Ora vamos vendo estas mesmas prerrogativas de monte em monte e de deserto em deserto, para que lhes percamos o medo.

Apareceu Deus a Moisés no deserto de Madiã, para que fosse libertar o povo do cativeiro do Egito, e porque ele dificultava a empresa, o sinal com que o Senhor o assegurou do sucesso dela foi que naquele mesmo monte lhe faria sacrifício em ação de graças: Cum eduxeris populum meum de Aegypto, immolabis Deo super montem istum[17]. Este monte era o Monte Horeb, sito no mais interior daquele deserto: Cutuque minasset gregem ad interiora deserti, venit ad montem Dei Horeb[18]. E que quer dizer Horeb? Horeb em hebreu é o mesmo que desertum, e neste monte, que tinha por nome deserto, e se levantava no mais interior do deserto: ad interiora deserti, aqui é que os filhos de Israel deram as primeiras graças a Deus de se verem livres do cativeiro do Egito, porque a primeira prerrogativa de que gozam os que habitam o deserto é livrarem-se do cativeiro do povoado. Ouvi um lugar admirável, em confirmação desta figura. O Salmo setenta tem este título: Psalmus David filiorum Jonadab, et priorum captivorum: Salmo de Davi, o qual cantaram os filhos de Jonadab, que foram os primeiros cativos. - Os filhos de Jonadab, por outro nome os recabitas, eram uns como monges ou anacoretas da lei velha, os quais viviam solitários nos ermos de Jerusalém. E o cativeiro de que aqui fala a Escritura é aquele com que, sitiada a mesma Jerusalém, e conquistada pelos exércitos dos caldeus, todos os hebreus, que então estavam, foram levados cativos a Babilônia. Isto suposto, entra agora a dúvida, por que razão os filhos de Jonadab, que eram aqueles habitadores do ermo, se chamam os primeiros cativos: Filiorum Jonadab, et priorum captivorum? Porventura foram os primeiros cativos por que quando chegaram os exércitos dos caldeus, como eles estavam retirados no deserto, foram os primeiros que vieram às mãos dos inimigos? Não, porque os que governavam e defendiam a cidade de Jerusalém, tanto que tiveram novas do exército dos caldeus, a primeira diligência que fizeram foi obrigar aos mesmos eremitas que todos se retirassem dos seus desertos e se viessem meter na cidade. Pois se, rendida a mesma cidade, e com ela todo o reino, o cativeiro foi um só e comum a todos, e todos juntamente foram levados a Babilônia, como diz a Escritura que estes habitadores do deserto foram os primeiros cativos: priorum captivorum?

Dá a razão ou distinção S. Jerônimo, digna verdadeiramente da sua erudição e juízo: Filii Jonadab, qui in tabernaculis semper habitabant, ad extremum propter irruptionem Chaldaici exercitus Hierosolymam intrare compulsi, hanc primi captivitatem sustinuisse dicuntur, quod post solitudinis libertatem, urbe quasi carcere sunt reclusi: A razão - diz o Doutor Máximo - porque naquele cativeiro e transmigração geral os filhos de Jonadab se chamam os primeiros cativos, não foi porque os caldeus os cativassem a eles primeiro que aos demais, mas porque, sendo habitadores do deserto, os mesmos hebreus os obrigaram a se vir meter na cidade; e virem-se meter na cidade homens que eram costumados a viver nos desertos, este é o que para eles foi o primeiro cativeiro, porque nos desertos se tinham por livres, e no povoado por cativos. - Os outros foram cativos, quando de Jerusalém os levaram para Babilônia; mas eles, quando do seu deserto os trouxeram para Jerusalém, então começaram a padecer a sua Babilônia e o seu cativeiro: Quod post solitudinis libertatem, urbe quasi caecere sunt reclusi. Falou São Jerônimo como quem tão experimentado tinha a quietação do deserto e as perturbações do povoado. Tinha gastado a vida alternadamente já em Roma e nas cidades de Grécia, já nos desertos da Tebaida e da Palestina, e assim, escrevendo a Rústico, dizia: Mihi oppidum carcer est, solitudo paradisus: para mim o povoado é cárcere, e o deserto paraíso. - Livrar-se pois de tal cárcere, de tal Babilônia, de tal cativeiro, esta é, como dizia, a primeira prerrogativa dos que se deliberam a deixar o povoado e fugir com Cristo ao monte, onde por isso, como Moisés, lhe devam oferecer sacrifícios e dar infinitas graças.

Do Monte Horeb passemos ao Monte Sinai, ambos desertos, e ambos no deserto. Coisa notável e muito digna de reparar é que, havendo Deus de escrever e dar leis aos homens, escolhesse para isso um monte no meio de um deserto, qual foi o Monte Sinai, nos desertos da Arábia, As leis não se fizeram para os montes nem para os desertos, senão para o povoado e para as cidades. Da cidade de Jerusalém disse o mesmo profeta que havia de sair a lei: De Sion exibit lex et verbum Domini de Hierusalem[19]. As partes de que se compunha a mesma lei todas se ordenam a povo, a cidade, a congregação de homens, porque na parte moral o segundo preceito da primeira tábua, e os sete da segunda todos estão fundados na justiça e caridade do próximo, sem lesão nem ofensa do trato humano; a parte cerimonial, que pertencia ao culto divino, expiações e sacrifícios, também tinha todo o seu exercício não fora, senão dentro da cidade, porque o Templo era um só, e na cidade de Jerusalém, e a ele havia de concorrer todo o povo três vezes no ano; finalmente aparte civil e forense, no mesmo nome está dizendo cidade, comunidade, república, tribunais, juízes, partes.

Pois, se as leis se fizeram para os povos, porque as dá Deus no despovoado? Se para as cidades e repúblicas, porque as dá em um monte e no meio de um deserto? Porque só nos montes e nos desertos, diz Filo Hebreu, estão os homens capazes de receber em suas almas, como convém, os preceitos e ditames da Sabedoria divina. Quod ad sacras leges recipiendas animus purificatus requiritur citais maculis, quae haerent ex miscellaniae turbae in civitatibus degentis contagio: id vero non est possibile aliter quam in deserto efficere: Para receber e perceber a santidade das leis divinas é necessário que os ânimos estejam puros, e sem mistura nem mancha dos afetos e cuidados terrenos, que os descompõem e alteram; e esta pureza, tranqüilidade e serenidade de ânimo, não a pode haver entre a perturbação e tumulto dos povos, e labirinto das cidades, senão no retiro dos montes, e na quietação e silêncio dos desertos. - As leis de Deus são as regras da vida, os espelhos da alma e as balanças da consciência, e no meio dos embaraços, encontros e batalhas contínuas do povoado, as regras perdem a retidão, os espelhos a pureza, as balanças a igualdade, e tudo se descompõe e perturba; com que não é possível - diz Filo - que nem o que Deus manda se perceba, nem o que mal se percebe se guarde. E se não, vedeo nas tábuas da mesma lei. Enquanto estiveram no monte, conservaram-se inteiras; tanto que Moisés chegou com elas ao povo; logo se quebraram. E depois de quebradas, que remédio houve para se reformarem? Não houve outro remédio senão tornar Moisés a Deus e ao monte, porque só com Deus em um monte se guardam as suas leis sem se quebrar, e só com Deus em um monte se reformam depois de quebradas. Enfim, quando Deus deu a mesma lei, sendo lei universal para todos, em todos os preceitos dela sempre falou com um só: Non occides, non moechaberis, non furtum facies[20], para que entendêssemos que só os que vivem sós as veneram, só os que vivem sós as observam, só os que vivem sós colhem o fruto delas. E estes são os que, seguindo o nascimento das mesmas leis, do povoado se retiram para o deserto, e das cidades para o monte: In monte.

Mas por que não pareça que só na lei antiga nos deu Deus este documento, venhamos à lei nova. Publicou Cristo, Senhor e reparador nosso, a lei nova, e mais propriamente sua, e onde a publicou? Também em um deserto e em um monte: Ascendit in montem, et cum sedisset, accesserunt ad eum discipuli ejus, et aperiens os suum docebat eos[21]. Era este monte, na sentença comum de todos os padres, o Monte Tabor, alto sobre as campinas de Galiléia trinta estádios, e distante da corte de Jerusalém quarenta léguas, como descreve Egesipo; e neste monte, por todas as partes deserto, assentou o Mestre divino a sua cadeira: Cum sedisset; aqui ajuntou seus discípulos: Accesserunt ad eum discipuli ejus; e aqui lhes começou a ler as primeiras lições de sua celestial doutrina: Et aperiens os suum docebat eos. Bem pudera o Senhor escolher outro lugar no povoado, e ainda outro monte como o de Sião no meio de Jerusalém, para assentar nele a sua escola, mas elegeu este, tão distante da mesma cidade e tão apartado do mundo, para nos ensinar, com o primeiro exemplo, que a escola da sabedoria do céu é a vida solitária e do deserto. Assim o diz São Pedro Damião, aquele que pelo deserto trocou a Roma, e pelo saial a púrpura: Solitaria vita caelestis doctrinae scola est, et divinarum artium disciplina: illic enim Deus est totum quod discitur: A vida solitária é a escola da doutrina do céu, e as artes que nela se professam todas são divinas, porque tudo o que ali se aprende é Deus: Illic enim Deus est totum, quod discitur. Oh! quem levantara uma destas cadeiras, sem emulação nem oposição, em todas as universidades do mundo! Aqui se graduaram os já nomeados Antônios e Arsênios, aqui os Paulos, os Hilariões, os Pacômios, e todos aqueles doutíssimos idiotas laureados na eternidade, que, ou de ignorantes se fizeram sábios ou de sábios ignorantes por Cristo.

Os livros, porque estudavam sem especulação, e mais com o esquecimento que com a memória, são aqueles tão aprovados por São Bernardo, e tão alheios de toda a inveja, como de toda a censura. Escrevia São Bernardo a um desejoso de saber a quem ele desejava fazer mais sábio, e diz assim: Experto crede, aliquid amplius invenies in sylvis, quam in libris: Crede-me, como a experimentado, que mais haveis de aprender nos bosques que nos livros. - Que árvore há em um bosque, ou mais alta, ou mais humilde, que não cresça sempre para o céu? E se tanto anelam ao céu as que têm raízes na terra, que devem fazer as que não têm raízes? As do povoado e cultivadas dependem da indústria dos homens; as do deserto e sem cultura dependem só do céu e de Deus, e nem por isso crescem ou duram menos. As que despem o inverno ensinam a esperar pelo verão, e as que vestem e enriquecem o verão, a não fiar da presente fortuna, porque lhe há de suceder o inverno. As que se dobram ao vento ensinam a conservação própria, e as que antes querem quebrar que torcer a retidão e a constância. Enfim, cada árvore é um livro, cada folha uma lição, cada flor um desengano, e cada fruto três frutos: os verdes ainda não são, os maduros duram pouco, e os passados já foram. Esta é a escola muda do deserto, em que São Bernardo estudou no seu vale, e esta a que Cristo assentou no mesmo monte, onde disse a voz do céu: lpsum audite[22]. Mas deixemos o Tabor, e pare o nosso discurso no Olivete.

O Monte Olivete, desabitado de homens e povoado só das árvores que lhe deram o nome, foi o lugar deserto donde Cristo e por onde subiu ao céu, mostrando-nos, com sua subida, que o caminho mais direito e estrada mais segura, para nós também subirmos é o deserto, Duas vezes viram os anjos subir para o céu a alma santa; mas donde e por onde subia? Uma e outra coisa é bem notável. A primeira vez viam que subia pelo deserto: Quae est ista, quae ascendit per desertum[23]? E a segunda vez, que subia do deserto: Quae est ista, quae ascendit de deserto[24]? Quem sobe, aparta-se de um lugar e sobe por outro. Pois se esta alma subia do deserto para o céu: ascendit de deserto, como subia pelo deserto: ascendit per desertum? O deserto era o lugar donde subia, e o deserto também o lugar por onde subia? Sim, por que isso é ser o deserto Monte Olivete. Cristo em sua ascensão, primeiro subiu pelo monte acima, e depois subiu do monte; e este é o modo com que também se sobe do deserto. Por isso os anjos primeiro viram que a alma subia pelo deserto: Quae est ista quae ascendit per desertum; e depois viram que subia do deserto: Quae est ista quae ascendit de deserto? De sorte que o deserto é o donde e o por onde se sobe ao céu. E se eu disse que não só é o donde e o por onde, senão também o para onde, não direi coisa nova, posto que grande. Disse o mesmo Cristo, em uma parábola, que a certo pastor, o qual guardava cem ovelhas, se lhe perdera uma, e que para achar esta ovelha perdida deixou as noventa e nove no deserto: Nonne dimittit nonaginta novem in deserto[25]? O pastor é Cristo, a ovelha perdida o homem, as noventa e nove os nove coros dos anjos, e o deserto o céu. Mas se este mesmo céu o deixou o Senhor povoado com tantas jerarquias e tantos coros de anjos, como lhe chama deserto? Porque falava por comparação às coisas da terra, e na terra não há coisa que se pareça com o céu, e mereça o nome do céu, senão o deserto, Logo, o deserto é o donde, o deserto o por onde, e o deserto o para onde sobe quem sobe ao céu.

E para que a este encarecimento da suma verdade ajuntemos outro ainda maior, digo que se, depois de um bem-aventurado subir ao céu, lhe fora lícito descer de lá, por nenhum outro lugar trocara o céu, senão por um deserto. Viu São João no céu aquela famosa mulher vestida do sol: Signum magnum apparuit in caelo; mulier amicta sole[26]. E viu que a esta mulher se lhe davam duas asas de águia, proporcionadas à sua grandeza: Et datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae[27]. Mas para quê? Esta mulher posta no céu, e vestida de sol, significa qualquer alma santa, ilustrada já com o lume da glória, e por isso bem-aventurada. As asas de águia, que não são próprias da natureza humana, significam algum privilégio particular e sobrenatural, que a esta mulher se concedeu; e suposto que já é bem-aventurada, e está no céu, de que uso lhe podem ser as asas? O mesmo texto o diz: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae, ut volaret in desertum: Deram-se-lhe duas asas de águia grande, para que voasse ao deserto. - Pois ao deserto há de voar uma alma que já está no céu e na bem-aventurança? Sim, porque nenhuma alma está no céu, por mais bem-aventurada que seja, que, se tivesse licença e privilégio de Deus para deixar por algum tempo o céu, se não viesse de boa vontade meter em um deserto. O estado do céu excede à vida do deserto em lá se gozar a Deus com maior claridade; mas o deserto excede ao céu em cá se gozar a Deus com o merecimento, que lá não tem lugar; e por isso sem agravo, antes, com lisonja do amor de Deus, se pode trocar o céu por um deserto. E como estas prerrogativas do deserto excedem às do Monte Horeb, às do Monte Sinai, às do Monte Tabor, e do mesmo Monte Olivete, grande razão teve o evangelista em calar o nome próprio do monte onde o Senhor hoje se retirou, e por isso tendo já declarado que era deserto, se contentou com lhe chamar monte: In montem.

V

Ipse solus: ele só. Os horrores da soledade na sentença de Salomão: Ai do só. O que dizem S. João Crisóstomo e São Bernardo em louvor da soledade. Benefícios da soledade nos antigos patriarcas. A solidão, espelho da bem-aventurança.

Ipse solus. Esta é a última cláusula que só resta do nosso texto, e pesa-me de chegarmos a ela tão tarde. Retirou-se o Senhor, ou fugiu para o monte, e retirou-se ele só: Ipse solus. Nesta palavra estão recompilados ou feiamente pintados todos os horrores e medos da soledade. E quantos destes medrosos, cobrindo o mesmo medo com aparências de discretos, estarão alegando como Salomão, e dizendo com ele: Vae soli (Ecl. 4, 10): Ai do só. - Sentença foi esta daquele rei sapientíssimo, e sem lhe perguntarmos a razão, ele a deu logo: Quia cum ceciderit, non habet sublevantem se: Ai do só, porque, quando cair, não terá quem o levante. - Mas não é necessário ser Salomão para refutar este inconveniente. Se o só não terá quem o levante, também não terá quem o derrube. E maior felicidade é carecer do perigo de quem me derrube, que haver mister o socorro de quem me levante. Quanto mais que os que pedem e costumam derrubar são os muitos, e os grandes e os caídos, a quem estes derrubam, mais facilmente acharão uma lisonja que lhes ponha o pé em cima, que uma amizade constante e valorosa, que se atreva a lhes dar a mão. Mas se lhes faltar a mão dos homens, não lhes faltará a de Deus: Cum ceciderit, non collidetur, quia Dominus supponit manum suam[28], disse melhor que Salomão seu pai, Davi. Salomão dói-se do só, porque, se cair, não terá quem o levante, e Davi dá-lhe o parabém, porque, se cair, Deus lhe porá a mão debaixo, para que nada lhe faça mal. Aquele só achar-se-á só, porque lhe faltarão os homens; mas este só nunca estará só, porque sempre terá consigo e por si a Deus. Aquele só poderá cair, ainda que o não derrubem; este só, por mais que o queiram derrubar, nunca poderá cair, porque quem cai sobre as mãos de Deus, a mesma queda o levanta: Cum ceciderit, non collidetur, quia Dominus supponit manum suam.

Daqui se segue que na soledade tomada por Deus, o só nunca está só. Está só assim como Cristo esteve só, quando hoje se retirou ao monte: Ipse solus. Profetizando o mesmo Senhor aos discípulos que todos haviam de fugir e o haviam de deixar, disse-lhes assim: Venit hora, ut me solum relinquatis, et non sum solus (Jo. 16, 32): Virá hora em que todos me haveis de deixar só, mas eu nunca estou só, - E por que razão quando todos deixam a Cristo só, não está Cristo só? Porque, como Cristo é Deus e homem juntamente, nem enquanto Deus está só, porque está com o homem, nem enquanto homem está só, porque está com Deus; e isto, que faz em Cristo a união da pessoa, faz na soledade a união do lugar. O só na soledade nunca está só, porque Deus está com ele e ele com Deus. Profundamente São João Crisóstomo: Sendo este facundíssimo varão o mais eloqüente de quantos escreveram, e tendo composto um livro inteiro em louvor da soledade, conclui o seu discurso com esta protestação: Me etiam imparem tuae laudis fateor, sed unum pro certo scio, o vita benedicta, quod indubitanter affirmo: Confesso, ó soledade bendita, que eu, e tudo quanto tenho dito, é muito desigual a teu merecimento e muito inferior a teus louvores; mas uma só coisa sei de ti, a qual afirmo constantemente. - E que coisa é ou será esta? Quia quis quis in amoris tui desiderio perseverare studuerit, ipse quidem habitator est tui, sed ejus inhabitator est Deus: O que afirmo indubitavelmente, diz Crisóstomo, é que todo aquele que te habitar, ó soledade, será juntamente habitador e mais habitado: habitador, porque habitará em ti, e habitado, porque habitará nele Deus: Ipse quidem habitator est tui, sed ejus inhabitator est Deus. E como Deus habita no solitário, porque o solitário habita na soledade, daqui se segue que o mesmo solitário nunca está, nem pode estar só, porque mais é morar Deus nele, que morar ele com Deus. Por isso dizia São Bernardo: Nunquam minus solus, quam cum solus: Nunca estou menos só, que quando estou só, - porque, quando não estou só, estou com os homens, e quando estou só, estou com Deus. E é demonstração evidente que quem está com Deus está menos só que quem está com os homens, porque a companhia dos homens, ainda que sejam muitos, é limitada, e a companhia de Deus, ainda que seja um só, é imensa.

Oh! se acabassem de entender os homens quanto perdem de si e de tudo, em não saberem estar sós com Deus e consigo! Enquanto Adão esteve só, conservou-se no Paraíso, na graça de Deus e na monarquia do mundo; depois que esteve acompanhado, perdeu o Paraíso, perdeu a graça, perdeu o império, perdeu-se a si, perdeu-nos a nós, perdeu tudo. E desta diferença de Adão só a não só, não a notou algum ermitão ou anacoreta do deserto, senão um cortesão de Paris, o grande cancelário Gerson: Adam tandiu salvus mansit, quandiu solus.

Só saiu Jacó da casa de seus pais, e gloriava-se ele depois que, tendo passado o Jordão só com a companhia do seu cajado, quando da volta que fez para a pátria o tornou a passar, era tão acrescentado de família, que os filhos, criados, carros, cavalos e grossos rebanhos formavam duas grandes esquadras: In baculo meo transivi Jordanem istum, et nunc cum duabus turmis regredior[29]. Para bem vos sejam, Jacó, todas essas boas fortunas, e todos esses grandes aumentos de casa e fazenda. Mas fazei-me graça de ajuntar com essa tão notável diferença outra, em que vós não reparais, e eu sim. Quando viestes só, vistes a escada, mas agora, quando ides tão acompanhado, não a vistes. Quando vos fazem corpo de guarda esses dois esquadrões, não ides seguro dos temores de Esaú; mas quando jazíeis só com uma pedra por cabeceira, Deus e os anjos vos guardavam o sono. Só para os sós falta a terra, mas só para os sós se abre o céu, Só estava Abraão e só Moisés, quando lhes apareceu Deus; só estava Josué, só Gedeão, e só Elias, quando lhes acudiram os anjos; só estava Isaías, quando viu o trono da majestade divina cercado de serafins, e só Ezequiel, quando viu o carro triunfal de suas glórias. Só também São Pedro, quando lhe foi mostrado em um painel todo o mundo gentílico convertido, que descia e se tornava a recolher ao céu; e só finalmente João, o amado, quando se lhe abriram os sete sigilos do seu Apocalipse, e os mistérios secretíssimos de todos os tempos futuros lhe foram só a ele revelados.

E por que não pareça que ponho a felicidade da solidão em revelações interiores, ocultas aos sentidos humanos, outras visões têm os solitários manifestas, e que todos vêem, sendo eles, porém, mais ditosos que todos, porque as vêem de longe e em lugar seguro. Nesta mesma ocasião em que Cristo, Senhor nosso, se retirou ao monte, os discípulos que se tinham embarcado padeceram uma terrível tempestade, na qual, já desconfiados de remédio, faltou pouco que o mar os não comesse, e no mesmo tempo nota o evangelista que o Senhor estava só em terra: Et ipse solus in terra (Mc. 6, 47). O mesmo sucede a quem vive só no seu deserto. Os outros, que andam no mar deste mundo, lutam com os ventos e com as ondas: uns se perdem e se afogam, outros se salvam mal a nado, e todos correm fortuna, e só o só vê tudo isto de longe, porque está em terra: Et ipse solus in terra. Arde o mundo em guerras, uns vencem, outros são vencidos, combatem-se cidades, conquistam-se reinos, morrem os homens a milhares, e só o só, se lá lhe chegam os ecos, tudo isto ouve sem temor, porque a sua paz é segura: Et ipse solus in terra. Volta-se o mesmo mundo em perpétua roda, a uns derruba, a outros levanta, uns crescem até as nuvens, outros descem até os abismos, e só o só, que está fora da jurisdição da fortuna, nem à próspera tem inveja, nem da adversa tem medo, porque só o seu estado é incapaz de mudança: Et ipse solus in terra. Por isso disse altamente S. Cipriano: Una placida et fida tranquilitas, una sola et perpetua securitas est, si quis ab inquietantis saeculi turbinibus extractus, Deo suo mente proximus quidquid apud caeteros in rebus humanis sublime ac magnum videtur intra suam jacere conscientiam, gloriatur: Nesta vida - diz o santo - não há mais que uma só tranqüilidade fiel e uma só segurança perpétua, e esta só a goza aquele que, apartado das perturbações do mundo sempre inquieto, e unido só a Deus, quando olha para as coisas que os outros estimam e têm por grandes, ele as vê todas abaixo de si, e, como todas lhe ficam abaixo, nenhuma o altera nem lhe dá cuidado.

E para reduzir a breve compêndio tudo o que os outros santos disseram das excelências da solidão, e felicidade sem igual dos que a habitam, os que habitam a solidão são aqueles a quem Deus escolheu de entre os outros homens, e os chamou e levou consigo a viver sós nos desertos, não porque eles não fossem dignos de ilustrar o mundo, mas, como diz o Espírito Santo, porque o mundo não era digno de os ter a eles: In solitudinibus errantes, quibus dignos non erat mundus[30]. E a solidão é aquela que, não tendo semelhante na terra, só a tem na bem-aventurança do céu, sendo tão parecidas reciprocamente uma com a outra, que a solidão só se pode retratar pela bem-aventurança, como por seu original, e a bem-aventurança só se pode ver na solidão, como em seu espelho. E assim acabo com aquela famosa exclamação, que todos quisera levásseis na memória: O beata solitudo, o sola beatitudo[31]!

VI

Samuel e Davi, exemplos para eclesiásticos e políticos na repartição do tempo entre Deus, o deserto e as cidades. O tempo das caçadas, e o rei que era valente caçador diante de Deus. Cristo, Sacerdote e Rei, o maior exemplo assim para o estado eclesiástico como para o político.

Tenho dado fim ao meu discurso, largo para o tempo, mas muito breve e diminuto para o merecimento da causa. Vejo, porém, que não faltaria em todo ele quem estranhasse a matéria como imprópria do lugar e do auditório, e mais acomodada para os desertos do Bussaco, ou para as serras da Arrábida, que para a Capela Real e corte de Lisboa. Assim julgam os que sabem pouco do mundo, do cristianismo e das histórias, como se não fossem as cortes católicas em todas as idades as que mais ilustremente povoaram os ermos, e por isso com melhores e mais qualificados exemplos. No baixo - ou no alto - deste pavimento, e no mais alto de umas e outras tribunas, estou eu vendo muitas almas livres ainda daquelas cadeias que se não podem quebrar, as quais, se trocassem a vaidade pela verdade, a corte pelo deserto, o paço pela clausura, as galas pelo cilício e o cativeiro do mundo pelo jugo suave de Cristo, triunfando do mesmo mundo com a fé, e de si mesmos com o entendimento, não só teriam muito de que se gloriar na outra vida, mas também de que se não arrepender nesta.

Mas, vindo em particular aos que, por estado, profissão e ofício, têm para si que se não podem retirar do povoado e deixar o trato das gentes, saibam, que para satisfazer às obrigações do mesmo estado, da mesma profissão e do mesmo ofício, também eles devem alternar o exercício com o retiro, e partir os dias e a vida com o deserto, não sempre - que isso é alternar - mas a seus tempos. Todas estas obrigações do estado e do ofício, ou são eclesiásticas, ou seculares, e nenhum homem, por mais capaz que se imagine, as poderá administrar como convém, ou no espiritual, ou no político, senão por aprender na escola do deserto o modo justo e acertado com que as há de exercitar.

Quanto aos eclesiásticos, quem mais obrigado às ovelhas que o pastor? E que pastores mais obrigados à conta, que Deus lhe há de pedir delas, que os supremos? Mas estes, se retirados ao deserto com Deus e consigo, se não tomarem a si mesmos a mesma conta, nunca a darão boa. Que pastores mais zelosos e vigilantes, que bispos e arcebispos mais doutos e santos que um Crisóstomo em Constantinopla, um Basílio em Cesaréia, um Ambrósio em Milão, um Atanásio em Alexandria, um Agostinho em Hipona? E todos, se lerdes as suas vidas, já os vereis na cadeira, já no deserto, já anacoretas e sós, e Já cercados de infinito povo, convertendo gentios, confutando hereges, aperfeiçoando cristãos e cultivando de tal modo as suas igrejas e dioceses, que as casas pareciam religiões e as cidades paraísos, E donde nasciam estes efeitos tão maravilhosos, senão porque os mesmos prelados no deserto recebiam a luz e a graça, e na solidão, o espírito e fervor com que no povoado acendiam as almas, arrancavam os vícios e plantavam as virtudes? Quando Saul foi a Ramá, e perguntou por Samuel, responderam-lhe que chegara a bom tempo, porque naquele dia havia de vir à cidade a oferecer sacrifício: Hodie enim venit in civitatem, quia sacrificium est hodie populi in excelso[32]. E por que disseram que naquele dia havia de vir à cidade? Porque Samuel, que era o sacerdote e prelado do povo, em tal forma tinha repartido os dias, que parte deles gastava com Deus no deserto, e parte com os homens na cidade. E nota São Gregório Papa sobre as mesmas palavras que nesta repartição do tempo, a melhor e maior parte era a de estar só com Deus, porque, tanto que tinha satisfeito a obrigação dos sacrifícios e governo espiritual das almas, logo, sem se deter um momento no povoado, se tornava a recolher para o deserto: Quia raro videbatur in civitate, videlicet tarde veniens, et cito recedens[33]. E se isto fazia Samuel antes da vinda, antes da doutrina e antes do exemplo de Cristo, vejam os sucessores do mesmo Cristo o que devem fazer, e o que podem.

No estado secular e político parece que tem menos lugar este retiro pela freqüência e multidão dos negócios, e pela maior necessidade da assistência das pessoas públicas, em matérias tantas e de tanto peso, como as que ordinariamente ocorrem no governo de uma monarquia. Assim o supõe a política humana, ou mais verdadeiramente gentílica, como se o acerto dos negócios, por muitos e grandes, necessitara menos da Providência de Deus, e, a vista das coisas da terra, ou no claro ou no escuro, não dependera toda das luzes do céu. Rei era, e de populosíssimo reino, Davi; gravíssimos foram os pontos de estado, que em quarenta anos do seu reinado, assim na paz como na guerra, assim dentro como fora de casa, lhe puseram em perigo e contingência a coroa. E aonde ia ele buscar a luz, e consultar as resoluções, senão ao deserto? Ouçamo-lo de sua mesma boca: Cor meum conturbatum est in me, et formido mortis cecidit super me Timor et tremor venerunt super me, et contexerunt me tenebrae[34]. Oh! quantas vezes - diz Davi - se viu o meu coração confuso e perturbado no meio de perigos e temores mortais, que o faziam palpitar e tremer, e, sobretudo, cercado e coberto de escuridão, sem o menor raio de luz que me mostrasse o caminho por onde escapar! - E neste tempo, e nestas angústias, qual era o meu refúgio? Ecce elongavi fugiens, et mansi in solitudine. Expectabam eum, qui salvum me fecit a pusilanimitate spiritus, et tempestate[35]. O meu refúgio e remédio nos tais casos não era outro senão fugir muito longe das cidades e meter-me na solidão dos desertos, e, ali, só por só com Deus, esperar dele que me alumiasse e me tirasse a salvamento daquelas tempestades, das quais eu, como piloto areado, e com a nau quase perdida, me não sabia nem podia livrar. E se isto fazia um coração tão animoso e intrépido, e um juízo tão sábio, tão experimentado e tão prudente, como o de Davi, por que cuidarão os outros príncipes - e mais sobre a experiência de muitos erros - que sem se retirar a seus tempos das cortes, e sem consultarem sós por sós a Deus, poderão eles para si e por seus ministros conseguir os acertos do bem público, que talvez não sabem desejar, quanto mais conseguir?

E se me disserem que não há tempo para esses tempos e para esses retiros, ninguém me negará que há dias, e semanas, e meses para outros retiros, para outros desertos, para outros bosques e para outros montes, e não dentro ou perto das cortes, senão muito longe delas, sendo certo que o trabalho - chamado recreação - que se toma para cercar e ferir um javali, e, morto, o levar em triunfo, fora mais bem empregado em montear outras feras, que se tornam a trazer da caça tão vivas como se levam. Aos vícios coroados chama a Igreja vitiorum monstra; não vícios de qualquer modo, senão monstros; e a montaria destes monstros, e também a altaneria deles, é a que se faz nos desertos só por só com Deus. Ali se quebram as asas à vaidade, ali se dá em terra com a soberba, ali se atalham os passos à cobiça, ali se cortam as mãos à vingança, ali cai em si a injustiça e a sem-razão, ali morre e se desfaz escumando a ira, e todos os outros monstros da intemperança poderosa e sem freio, ou se matam, ou se afugentam, ou se domam. Do primeiro rei que houve no mundo diz a Escritura: Erat robustus venator coram Domino (Gên. 10, 9): que era valente caçador diante de Deus. - E estas caçadas que se fazem diante de Deus - são as recreações que devem tomar os príncipes, e as valentias de que mais se devem prezar, pois são as verdadeiras valentias, E se no tempo que tomam para a caça, ausentando-se das cortes, não temem perder a bênção e o morgado, como o perdeu Esaú, muito menos devem temer esta perda, ou outro detrimento da monarquia, no tempo em que se retirarem a tratar com Deus, e receber dele a luz com que só a podem conservar e reger. Muitos reis na caça perderam desastradamente a vida; porém aquele a que a Escritura, não sem mistério, chamou caçador diante de Deus, não só reinou sessenta e sete anos, mas fundou uma nova monarquia, que durou mil e duzentos e se conservou mais que todas as que floresceram no mundo.

Enfim - para convencermos com o maior de todos os exemplos, assim o estado eclesiástico, como o político - Cristo, Redentor e Senhor nosso, que juntamente era supremo Rei e Sumo Sacerdote, não só nos três anos em que exercitou no mundo uma e outra dignidade, repartiu sempre a vida entre o povoado e o deserto; mas neste mesmo dia, em que com as obras provou que o era, e todos o reconheceram por tal, uma parte do mesmo dia deu às turbas e ao povo, e a outra parte ao deserto e ao monte: Fugit in montem, ipse solus[36].

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
 



[1] Tornou-se a retirar para o monte ele só (Jo. 6,15).

[2] Gregor Lop.

[3] Queres saber o que, segundo a minha opinião, se deve mais evitar? A turba (Seneca, Epist. 7, 1. 1).

[4] Seneca, De Vita Beata, c.1.

[5] Seneca, lib.1, epist. 2.

[6] Metafrast, die 19 jul. et in vit. PP.

[7] Maria escolheu a melhor parte (U. 10, 42).

[8] Vende o que téns, e dá-o aos pobres (Mt. 19, 21).

[9] Não peques mais (Jo. 5, 14).

[10] Achei a Davi, homem segundo o meu coração, que fará todas as minhas vontades (At. 13, 22).

[11] Referi a Cornei. in cap. 3. Exod.

[12] Achou-se que tinha menos do peso (Dan. 5, 27).

[13] Relatas a Spondan.

[14] Não temos de lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os governadores das trevas, contra os espíritos de malícia (Ef. 6, 12).

[15] Temam e tremam na vossa presença todos os animais da terra (Gên. 9, 12).

[16] Laurent. Just, lib. 7, c. 8.

[17] 'Depois de haveres tirado o meu povo do Egito, tu oferecerás a Deus um sacrifício sobre este monte (Êx. 3, 12).

[18] E um dia em que ele tinha levado o gado para o interior do deserto, veio ao monte de Deus, Horeb

(Ex. 3, 1).

[19] De Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor (Is. 2, 3).

[20] Não matarás, não fornicarás, não furtarás (Êx. 20, 13 ss).

[21] Subiu a um monte, e depois de se ter sentado, se chegaram para o pé dele os seus discípulos, e ele abrindo a sua boca os ensinava (Mt. 5, 1 s).

[22] Ouvi-o (Mt. 17, 5).

[23] Quem é esta que sobe pelo deserto (Cânt. 3, 6)?

[24] Quem é esta que sobe do deserto (Cânt. 8, 5).

[25] Não é assim que deixa as noventa e nove no deserto (Lc. 15, 4)?

[26] Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol (Apc. 12, 1).

[27] E foram dadas à mulher duas asas de uma grande águia (Apc. 12,14).

[28] Quando cair não se ferirá, porque o Senhor lhe põe a mão por baixo (SI. 36, 24).

[29] Encostado a este meu báculo passei este Jordão, e agora volto com duas partidas (Gên. 32,10).

[30] Uns homens de que o mundo não era digno, errantes nos desertos (Hebr. 11, 38).

[31] Bem-aventurada solidão, única bem-aventurança!

[32] Porque ele veio hoje à cidade, porquanto hoje é o sacrifício do povo no alto (1 Rs. 9, 12).

[33] Porque vinha raramente à cidade e à tarde, retirando-se muito cedo.

[34] O meu coração está conturbado dentro de mim, e medo de morte caiu sobre mim. Temor e tremor vieram sobre mim, e cobriram-me trevas (SI. 54, 5 s).

[35] Eis aqui me alonguei fugindo, e permaneci na soledade. Ali aguardava aquele que me salvou do abatimento de espírito e de tempestade (SI. 54, 8, 9).

[36] Tornou-se a retirar para o monte ele só (Jo. 6, 15).