Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de Santo Antonio, de Padre António Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

PREGADO NA DOMINGA INFRA OCTAVAM DO MESMO SANTO,
EM O MARANHÃO, ANO DE 1657

Quae mulier habens drachmas decem, et si perdiderit drachmam unam, nonne accendit lucernam, et everrit domum, et quaerit diligenter, donec inveniat[1]?

Neque accendunt lucernam, et ponunt eam sub modio, sed super candelabrum, ut luceat omnibus, qui in domo sunt[2].

I

Concordância dos Evangelhos da dominga e da festa. A mulher é a Igreja, a dracma as almas dos pecadores, e a candeia o santo que depara as coisas perdidas. Argumento do sermão: Antônio, deparador de almas perdidas.

Quando a Igreja nos propõe dois Evangelhos, mais é obrigação que demasia tomar dois temas. O primeiro é da dominga, o segundo da festa, e ambos tão próprios do santo que celebramos, que um parece o texto, outro o comento.

No primeiro Evangelho, diz Cristo, Senhor nosso, assim: Se uma mulher tem dez dracmas - dracmas eram umas moedas de prata de pouco peso, que corriam naquele tempo entre os hebreus - se uma mulher, diz o Senhor, tem dez moedas destas, e perdeu uma, que é o que faz? - Notai, os que notais os pregadores, a lhaneza das comparações daquele pregador divino. - Acende, diz, uma candeia, varre a casa, busca a sua dracma com toda a diligência, e se acaso a achou, sai à rua com grande alvoroço, chama as amigas e as vizinhas, diz-lhes que se alegrem com ela e lhe dêem o parabém da sua boa ventura, porque achou a dracma que tinha perdido. Vedes esta festa? Vedes esta alegria? Pois o mesmo passa no céu, diz o Senhor. Fazem-se lá grandes festas, alegram-se os anjos e dão-se os parabéns os bem-aventurados, todas às vezes que um pecador perdido se acha e se converte pela penitência: Ita gaudium erit coram angelis Dei super uno peccatore paenitentiam agente[3]. Esta é a substância da parábola de Cristo, a qual se resume toda em três coisas particulares: a mulher, a moeda e a candeia. A mulher que perdeu, achou e festejou a moeda; a mesma moeda primeiro perdida e depois achada; e a candeia que se acendeu para se buscar e achar. Destas três coisas explicou o Senhor as duas, e deixou a terceira sem explicação. A mulher diz que é a Igreja, a qual, enquanto militante na terra, perde e acha os pecadores, e, enquanto triunfante no céu, celebra e festeja suas conversões. A dracma perdida e achada são as almas dos mesmos pecadores, que se perdem pelo pecado e se acham e recuperam pela penitência. A candeia que se acendeu para buscar a dracma, suposto que o Senhor não declarou qual fosse, haverá quem no-lo diga. Se não fora em tal dia, eu me não atrevera a o dizer facilmente; mas hoje qualquer de vós o dirá.

Dizei-me qual é no mundo o santo que depara as coisas perdidas? Qual é no mundo a luz com que as coisas perdidas se acham e se descobrem? Todos estais dizendo que é Santo Antônio. Pois essa é a candeia que no primeiro Evangelho se acendeu, e assim o diz o segundo: Neque accendunt lucernam, et ponunt eam sub modio, sed super candelabrum, ut luceat omnibus qui in domo sunt. O primeiro Evangelho diz que a candeia se acendeu para alumiar a casa: Accendit lucernam, et everrit domum[4]. O segundo diz que a candeia que se acendeu para alumiar a casa é o santo que hoje celebramos: Accendunt lucernam, ut luceat omnibus qui in domo sunt[5]. De sorte que um Evangelho em parábola, e outro na significação dela, nos dizem e pregam hoje, concordemente, que a luz com que se acham as dracmas ou almas perdidas, é o nosso glorioso Santo Antônio, mais glorioso por esta prerrogativa que por todas quantas dele se podem e costumam pregar. Suposta esta propriedade e concórdia de um e outro texto, nem eu posso tomar outro assunto mais evangélico, nem vós desejar outro mais útil, nem o mesmo santo querer de mim e de vós outro que mais lhe agrade. Será, pois, o argumento de todo o nosso discurso: Antônio, deparador de almas perdidas. E para que as nossas se aproveitem desta luz, que a todas mais ou menos é necessária, peçamos ao mesmo santo, como tão devoto servo e tão favorecido da Mãe da Graça, interceda por nós para que a alcancemos. Ave Maria.

II

Deu Deus a Santo Antônio melhor oficio do que tomou para si. Todas as coisas são mais estimadas e de maior gosto quando se recuperam depois de perdidas. A dracma, a estrela dos magos, e o filho pródigo.

Accendit lucernam, donec inveniat. Accendunt lucernam, ut luceat omnibus[6].

Ser Santo Antônio entre todos os santos o deparador das coisas perdidas é uma graça tão singular e um privilégio tão soberano, que parece deu Deus a Santo Antônio, melhor ofício do que tomou para si. Deus, como autor de todos os bens, é o que os dá; e quando esses bens se perdem, Santo Antônio, como deparador, é o que os recupera, e não há dúvida que todas as coisas são mais estimadas e de maior gosto quando se recuperam depois de perdidas, que quando se possuem sem se perderem. Diz o nosso texto que a mulher que perdeu a dracma tinha dez: Mulier habens drachmas decem. Pois, se tinha dez dracmas, e não pediu que lhe dessem o parabém de as ter, ou de as adquirir, como agora, quando achou uma só, convoca as amigas e vizinhas, e as convida para que a ajudem a festejar a sua ventura, e faz tantos extremos de alegria por ela? Porque, ainda que a dracma era uma só, era perdida. As outras eram adquiridas e possuídas; esta era recuperada depois de perdida, e por isso a estimou tanto. Quando a estrela apareceu aos Magos no Oriente, não fizeram festas ao seu aparecimento; mas quando, depois de a perderem e lhes desaparecer em Jerusalém, a tornaram outra vez a ver, não acham termos os evangelistas com que bastantemente encarecer o excesso de gosto e alegria com que a festejaram: Gavisi sunt, gaudio magno valde[7]. A estrela no Oriente e em Jerusalém não era a mesma? Sim, mas em Jerusalém era a mesma depois de perdida: Esta foi a razão das extraordinárias festas que o pai fez ao filho pródigo, tão invejadas do outro irmão. A mim, Senhor, que jamais me apartei de vós, nunca me fizestes um regalo, e para este que vos deixou, e se perdeu a si e a quanto lhe destes, tantas festas, tantos banquetes, tantas despesas? Sim, filho, respondeu o pai - e por isso mesmo. A ti, que sempre estiveste comigo, nunca te perdi; este, tinha-o perdido, e vejo-o recuperado: Perierat, et inventus est[8]. Tanto ganham de estimação as coisas quando se perdem, e tanto acrescentam de gosto quando se recobram, para que entendais que não deveis menos a Santo Antônio quando vos depara o perdido, senão tanto, e mais ainda, que se de novo vos dera o mesmo que perdestes.

E se isto é verdade nestas coisas materiais e exteriores, que tão pouco importam, que será nas da alma, e na perda das mesmas almas, de que também é deparador Santo Antônio, como hoje os pretendo mostrar? Voltemos sobre os mesmos exemplos que acabo de referir, mais interiormente considerados. Que filho pródigo, que estrela, que dracma é aquela? A dracma, como já dissemos, é a alma, a estrela a graça, o pródigo cada um de nós. A graça perdida, a alma perdida, o homem perdido, e sendo estas as maiores perdas que se podem padecer nem imaginar, porque juntamente com elas se perde a Deus, é pasmo do entendimento, e ainda da fé, ver o pouco sentimento com que se passa por elas, e o pouco caso que se faz de as reparar, fazendo-se tanto de outras, que por sua vileza e baixeza não merecem nome de perdas. Em se perdendo, ou desaparecendo alguma coisa de gosto ou de valor, e também as do uso doméstico mais miúdas, ver como chamais logo por Santo Antônio, e só com dizer Santo Antônio, sem outra oração, já vós entendeis e ele entende que lhe pedis vos depare o que perdestes. Verdadeiramente que em nenhum outro exemplo, sendo tantos e tão raros os seus, me admira mais a humildade e caridade deste santo, que em se não dar por ofendido de semelhantes petições, e acudir, calmo está sempre acudindo, tão prontamente a elas. Não digo que o não façais, nem que é afrontar os poderes de tão grande santo ocupá-lo em coisas tão baixas e tão miúdas, porque a Providência e Onipotência divina tanto mostra sua grandeza na formiga como no elefante, e tanto em criar o hissope da parede, como o cedro do Líbano. O que só vos digo, e peço em nome do mesmo Santo Antônio, e o intento de todo este sermão, em que o desejo agradar, é que ocupeis sua valia e empregueis seus poderes em que vos recupere as verdadeiras perdas, e vos depare as almas, que tão perdidas andam. Agora vos peço atenção.

III

Santo Antônio, deparador das almas perdidas, nos dois vícios universais em que mais ordinariamente caem os homens: as dracmas e as damas. As escusas dos convidados na parábola do banquete. Adão, a mulher, e o alheio. A sensualidade e a cobiça, os únicos vícios proibidos por dois preceitos.

Como com todos os pecados se perde a Deus, em todos os vícios se perdem também as almas; e porque seria matéria infinita discorrer por todos, para provar em cada um o meu assunto, assim como a dracma se perdeu em um lugar da casa, podendo cair em todos, assim eu ma contentarei com mostrar a Santo Antônio deparador de almas perdidas nos dois vícios universais em que mais ordinariamente caem os homens, e as almas se perdem. Quais sejam estes dois vícios, bem creio que antes de eu os nomear, o tendes já entendido; mas no Evangelho temos duas figuras que, sem mudar os trajos nem o apelido, por seu próprio nome nos dizem quais são. Diz o Evangelho que a mulher buscou a moeda, e estas são as duas coisas que perdem mais almas: a moeda e a mulher, Uns se perdem pelas dracmas, outros pelas damas. A cobiça cega a uns, a sensualidade cega a outros, e a cobiça e a sensualidade juntamente a quase todos. E estes são os dois feitiços que levam após si o mundo, e o trazem perdido.

No Evangelho de domingo passado, introduziu Cristo em parábola um banquete, que significava a glória e bem-aventurança do céu. Foram chamados muitos convidados a este banquete, e escusaram-se dele com três gêneros de escusas, O primeiro disse que tinha comprado uma quinta, e que a ia ver; o segundo que tinha comprado uns bois, e que os ia provar; o terceiro que se tinha casado naquele dia, e que não podia ir. De maneira que os dois primeiros escusaram-se com a fazenda, e o último escusou-se com a mulher, porque mulher e fazenda são as duas coisas que mais apartam os homens do céu, e os dois laços do demônio em que mais almas se prendem e se perdem. E notai que os dois primeiros escusaram-se com fazenda, mas com fazenda que compraram: Villam emi, fuga boum emi quinque[9]. O terceiro, escusou-se com mulher, mas com mulher com que se recebera: Uxorem duxi[10]. Pois, se a fazenda comprada vos impede que não vades ao céu, que fará a fazenda roubada? Se a mulher própria vos estorva que não vades às bodas da glória, que será a mulher alheia? Alheio e mulher? Deus vos livre, e isto é o que todos buscam.

Nenhum homem criou Deus neste mundo com maior segurança do paraíso que Adão, porque foi criado sem pecado, que é o que nos tira do paraíso, e criado no mesmo paraíso, sem lhe ser necessário fazer diligência para ir a ele. E que causas, ou que coisas houve tão poderosas, que puderam arrancar do paraíso a Adão.? As duas que dizemos: a mulher e o alheio. A mulher, porque Eva foi a que o fez comer do pomo vedado; o alheio, porque, sendo de Adão todas as coisas que havia no mundo, só o pomo vedado não era seu. Se o alheio botou a perder a Adão quando todas as coisas eram suas, que será a quem tem pouco de seu? Se a mulher botou a perder a Adão quando não havia no mundo outra mulher, que será quando há tantas e tais! Este é o triste patrimônio que herdaram os homens do primeiro homem: perdê-los a mulher e o alheio; perdê-los a sensualidade e a cobiça.

Agora entendereis a razão por que, proibindo Deus os outros vícios com um só preceito expresso, o da sensualidade e o da cobiça os proíbe com dois: o da sensualidade com o sexto e com o nono; o da cobiça, com o sétimo e com o décimo. Muitos dos outros pecados, ou todos, são geralmente mais graves que estes dois, porque, ou se opõem à maior virtude, ou contêm maior injustiça. Pois, por que ata e aperta Deus a cobiça com dois preceitos, e a sensualidade com outros dois, e aos outros vícios, sendo mais graves, com um só? Porque, entre todos os vícios da natureza corrupta, estes dois são os mais rebeldes e mais indômitos. Por isso os atou com duas cadeias. Os outros preceitos facilmente se guardam e raramente se quebram; nestes dois, não só é muito rara e dificultosa a observância, mas vaga e desenfreada a soltura. Tanto assim que, se bem repararmos nas quebras dos outros preceitos, acharemos que ou se quebram por sensualidade ou por cobiça. Levantam-se falsos testemunhos; mas ou é por cobiça, como o de Nabot, ou por sensualidade, como o de Susana. Matam-se homens, mas, ou é por sensualidade, como Davi a Urias, ou por cobiça, como Abimelec a seus irmãos. E se a cegueira chega a tanto desatino, que até contra o primeiro preceito se cometa o enormíssimo pecado da idolatria, ou é por cobiça, como a de Geroboão, que levantou os ídolos, ou por sensualidade, como a de Salomão, que os adorou. Finalmente, se quereis mais breve e mais prudente prova desta miserável verdade, meta cada um a mão na própria consciência, e achará que, se traz a alma perdida, ou é por algum destes dois vícios, ou por ambos juntos, que por isso também os ajuntou a lei: Non moechaberis, non furtum facies[11].

Sendo pois estes dois vícios as raízes universais donde nascem todos os outros, e os dois escândalos comuns da fragilidade humana onde mais tropeçam, caem e se perdem as almas, assim como a mulher do primeiro Evangelho, para achar a dracma perdida, acendeu a candeia, assim no-la mostra o segundo Evangelho acesa sobre aquele altar, para que vejamos quão eficaz luz é Santo Antônio em alumiar as almas que se perdem nestes dois vícios, e quão certa para as deparar depois de perdidas: Accendit lucernam donec inveniat: Accendunt lucernam, ut luceat omnibus.

IV

O vício da sensualidade. A virtude da túnica de Santo Antônio. Os vestidos de Santo Estêvão. A mulher de Putifar e a capa de José. O contágio da virtude e a túnica inconsútil de Cristo.

Começando pelas almas perdidas no vício da sensualidade - do qual, como também do outro, não referirei mais que um exemplo, para o poder ponderar com largueza, e nele a virtude admirável do Santo deparador - houve um monge mui combatido de tentações sensuais, ao qual não tinham bastado nem os desertos, nem os jejuns, nem as asperezas e penitências, para que, naquelas batalhas tanto mais cruéis quanto mais domésticas, ou não fraqueasse muitas vezes na resistência, ou não ficasse conhecidamente vencido, para que temam as outras árvores mais sujeitas à corrupção, quando aos ciprestes do paraíso não perdoa a deste vício. Perdida enfim a graça de Deus, e perdida sem Deus e sem graça esta pobre alma, veiose ter por último remédio com Santo Antônio. Confessou-se de todos seus pecados, manifestou-lhe toda sua consciência, deu-lhe conta, por uma parte, de seus bons desejos, e por outra, da rebeldia de sua carne, e da grande força ou fraqueza que experimentava nela. Não fez espantos Santo Antônio, como alguns confessores menos prudentes, porque sabia - como disse com grande juízo Tertuliano sobre as palavras: Caro autem infirma[12] - que aquela fraqueza é uma forte força. Ouviu ao monge com grande benignidade, e com que vos parece que e curaria? Recolheu-se para dentro, despiu a túnica que trazia vestida, trouxe-a ao monge, que estava esperando de joelhos, disse-lhe que vestisse aquela túnica, e que nunca mais seria tentado da sensualidade, e assim sucedeu. Oh! quem soubera ponderar dignamente este nunca visto e estupendo caso!

Quando os de Jerusalém apedrejaram a Santo Estêvão, diz o texto que puseram as suas vestiduras aos pés de um mancebo chamado Saulo, que foi o que depois, mudando de vida e nome, se chamou Paulo. Tem para si S. Bernardo que estas vestiduras, que se puseram aos pés de Saulo, não foram as dos apedrejadores, senão as do mesmo Santo Estêvão. E se perguntarmos ao santo, a que fim? Diz que da parte dos homens a um, e da parte de Deus a outro: da parte dos homens, a fim de que as guardasse; da parte de Deus, a fim de que, tocando aquelas vestiduras de Santo Estêvão em Saulo, o convertessem: Deposuerunt vestimenta sua secus pedes adolescentis, qui ad tactum sanctarum vestium fuerat convertendus[13], Alto pensamento de São Bernardo, e alto sentir e presumir da virtude dos vestidos de Santo Estêvão, se o sucesso o aprovara; mas não foi assim. Depois de Saulo ter a seus pés, e guardar aquelas vestiduras, tão longe esteve de ficar convertido, que antes podemos dizer que as pedras de Santo Estêvão lhe pegaram a fúria e a dureza, e não as suas vestiduras a fé e a santidade, porque depois deste caso se foi Saulo a pedir poderes e provisões contra os cristãos de Damasco, para os prender, para os castigar, para os destruir e para arrancar do mundo, se pudesse, a fé de Cristo; e assim ia como um leão, diz o texto, espumando ira e ameaças contra os discípulos do Senhor, quando, descendo segunda vez do céu, o mesmo Cristo o derrubou e o converteu. Oh! divino Antônio, quanto quis Deus levantar vossas glórias, não só sobre os grandes santos, senão sobre os maiores de toda a Igreja! Vós quisestes ser mártir, e não o alcançastes; mas que importa que vos não concedesse Deus, ou vos trocasse esta lauréola, quando vos levantou e sublimou não só sobre os outros mártires, mas sobre o mesmo protomártir. As vestiduras de Estêvão tocaram a Saulo, mas ficou como dantes. Era herege da lei nova, e ficou herege; era perseguidor da Igreja, e ficou perseguidor; era inimigo de Cristo, e ficou inimigo; era Saulo, e ficou Saulo. Porém as vossas vestiduras, tanto que tocaram o monge tentado e caído, no mesmo ponto ficou totalmente mudado, e outro do que era. Era sensual, e ficou casto; era fraco, e ficou forte; era combatido, e ficou em paz; era homem, e muito homem, e ficou anjo. Tanta é a eficácia, e tão singular a virtude do nosso deparador para almas perdidas neste vício.

E se algum douto escrupuloso me puser dúvida a este paralelo, por serem aquelas vestiduras de Estêvão só em opinião, posto que em opinião de tão grande autor, vistamos a comparação com outras, em que não possa haver dúvida, e sejam as daquele famoso herói, que entre todos os do Testamento Velho se levantou com o sobrenome de casto. Levado José cativo ao Egito, afeiçoou-se-lhe tão perdidamente a mulher de seu senhor Putifar que, não bastando menores demonstrações, chegou a querê-lo render com violências declaradas. Fugiu José, largando-lhe a capa, ficou o monstro da sensualidade com aqueles despojos da castidade nas mãos. E que se seguiu daqui? Porventura ficou mais casta? Ficou menos cega? Ficou mais desenganada? Ficou mais conhecida do erro e da baixeza a que seu vil apetite a sujeitara? Antes mais sujeita, antes mais escrava, antes mais enganada, antes mais cega, antes mais louca, antes mais furiosa que dantes. Não nos diz a Escritura de que pano fosse a capa de José, mas se ela fora cortada do burel do manto de Santo Antônio, eu vos prometo que, tanto que a má egiptana a teve nas mãos, a castidade lhe correria pela vista aos olhos, e a honra pelas veias ao coração. Esteve porém tão longe José de esperar ou presumir tais efeitos por sua capa por sua (...), que, só por ser tocada das mãos lascivas, a largou e fugiu dela, temendo, diz Santo Ambrósio, que pela mesma capa, como por roupa empestada, se lhe pegasse o contágio da sensualidade: Contagium judicavit, si diutius moraretur, ne per manus adulterae, libidinis incendia transirent. Ora, notai quanto vai de José a Antônio: pela capa de José, uma vez que a teve a egípcia nas mãos, pudera-se pegar a sensualidade a José; mas pela túnica de Antônio., uma vez que a vestiu o monge tentado, pegou-se a castidade ao monge. Serem contagiosos os vícios é mal ordinário de todas as enfermidades, mas serem contagiosas as virtudes, só em Santo Antônio se viu. Vistes já muitos enfermos que pegaram as suas enfermidades aos sãos? Sim, vistes. E vistes alguma hora algum são que pegasse a sua saúde ao enfermo? Isto nunca se viu, senão em Santo Antônio. José, sendo são e santo, temeu que a egípcia lhe pegasse a enfermidade; e o monge, sendo enfermo, e tão enfermo, pegou-lhe Santo Antônio a saúde. E tudo isto, para maior assombro, com o tato só da sua túnica: Ad tactum sanctarum vestium.

Mas por que não cuidem, os que me ouvem, que nestas duas comparações da túnica de Antônio com a capa de José e vestiduras de Estêvão tenho dito alguma coisa, passemos, ou voemos mais alto, e, com a devida reverência, peçamos licença àquele benigníssimo Senhor que Santo Antônio tem nos braços, para que neste caso nos lembremos também dos seus vestidos, pois está sem eles. Pregado Cristo na cruz, em cumprimento da profecia: Diviserunt sib vestimenta mea[14], tomaram os soldados que tinham crucificado ao Senhor suas sagradas vestiduras, para as repartirem entre si. Estas vestiduras, segundo o uso comum com que se vestiam os hebreus, eram uma túnica comprida até os pés, e com mangas, e sobre esta um manto quadrado, com que se cobriam, como nós com a capa. Entenderam, pois, os soldados primeiramente com o manto do Senhor, partiram-no em quatro partes, recolheu cada um a sua. Tomando, porém, e tendo nas mãos as vestiduras sacratíssimas do mesmo Filho de Deus humanado, e cingido porventura cada um ao redor de si a parte que lhe coube - como aquela gente costuma - nem por isso se lhes abriram os olhos, como a Longuinhos; nem por isso bateram nos peitos, como o centurião; nem por isso disseram: Senhor, lembrai-vos de nós, quando chegardes ao vosso reino, como o bom ladrão. O que fizeram foi passarem da repartição do manto à túnica, em cumprimento da segunda parte da profecia: Et super vestem meam miserunt sortem[15].

Era a sagrada túnica inconsútil, ou tecida de uma só peça; e como não tinha costura, resolveram-se os soldados não a partir entre os quatro, mas jogá-la, a ver quem a levava toda. Fez-se assim, veio uma caixa,-lançaram os dados, levou um aquele preciosíssimo tesouro, mais precioso que quanto vale o mundo; e que tal vos parece que ficaria este homem com atúnica de Cristo? Fora ela tecida pelas puríssimas mãos da Virgem Santíssima, e era tão milagrosa que ia crescendo juntamente com a sagrada humanidade, e não se gastava com o tempo nem com o Liso, e, o que é mais, que havia trinta e três anos que o Senhor a trazia vestida. Que tal pois vos parece que ficaria aquele venturoso soldado, não digo já depois de vestir a túnica do Filho de Deus, senão tanto que a tocou somente? Cuidava eu que no mesmo ponto havia de ficar alumiado pela fé e cercado de resplendores; que no mesmo lugar se havia de prostrar por terra; reconhecendo e adorando a divindade do Cristo; que havia logo de arremeter à Cruz, para desencravar o Senhor como o tinha pregado nela, ou, quando menos, que entrasse por Jerusalém publicando e confessando a gritos que aquele homem crucificado era o verdadeiro Messias, e verdadeiro Filho de Deus e de Jacó, e com a mesma túnica ensangüentada nas mãos, ou na ponta da lança, pregasse e perguntasse ao cego Israel: Vide utrum tunica filii tui sit, an non[16]? Isto é o que eu cuidava, mas nada disto fez o soldado; ficou tão soldado, tão gentio; tão infiel, tão cruel, tão tirano, tão algoz como dantes era E nós com esta túnica e a de Santo Antônio à vista, assombrados e atônitos, que diremos? Não há senão dizer e exclamar com Davi: Mirabilis Deus in sanctis suis (SI. 67, 36)! Admirável é Deus em seus santos! - Quando Deus não quis obrar nenhuma destas maravilhas por meio daquela túnica tecida por sua Mãe e vestida por seu Filho, deu tanta graça e tanta eficácia à túnica de Santo Antônio, que, tanto que o monge a vestiu, como se naquele hábito estiveram os hábitos de todas as virtudes, a sensualidade se converteu em pureza, a rebeldia em sujeição, a intemperança em modéstia, a tentação em sossego, a fraqueza em constância, a came em espírito, o fogo do inferno em açucenas do paraíso, e a natureza humana, não em natureza- que fora menos - mas em graça angélica, que maior maravilha é ser anjo em came, que anjo sem ela.

V

As graças que Cristo não quis conceder à sua própria túnica e aos vestidos de seu Corpo Sacramentado, concedeu-as à túnica parda de Santo Antônio. Os vestidos do Espírito Santo em que foram envoltos os apóstolos, e a isenção das tentações. A tentação de São Francisco e a túnica de Santo Antônio.

Os anjos, de sua própria natureza, nem podem pecar neste vício, nem ser tentados nele; e este segundo foi o maior privilégio que a túnica de Santo Antônio comunicou juntamente ao monge, o qual, desde o ponto em que a vestiu, como se o demônio a reverenciara, ou fugira dela, nunca mais foi tentado de sensualidade. Mas como poderei eu, Senhor, declarar a maravilha e grandeza desta graça, com que sublimastes a vosso servo, senão entrando outra vez rio Sancta Sanctorum de vossos divinos mistérios? O mistério altíssimo do Santíssimo Sacramento do Altar é a memória das maravilhas de Deus: Memoriam fecit mirabilium suorum[17]. E uma das principais maravilhas daquele sagrado mistério é fazer os homens castos: Frumentum electorum, et vinum germinans virgines[18], E de que sorte nos faz castos o Santíssimo Sacramento? Faz-nos castos de maneira que resistamos ao vício, mas não nos faz castos de tal modo que nos isente das tentações. Depois de comungarem muitas vezes os mais santos e os mais castos, ainda são tentados da sensualidade. E sendo isto assim verdade, que assombro de maravilha, ou que encanto de virtude é que vista a túnica de Santo Antônio um homem pecador e tentado, e que fique de repente não só isento de um tal vício, senão de toda a tentação dele? Não posso deixar de me lembrar neste passo de como em outro se portou aquele mesmo Senhor em respeito da sua própria túnica.

Vendo uma enferma os grandes milagres que Cristo obrava, teve tanta fé que disse: Si tetigero tantum vestimentum ejus, salva ero (Mt. 9, 21): Se esta multidão de gente me consentir que eu chegue só a tocar a ponta da sua túnica, eu ficarei sã. - Assim lhe sucedeu, como tinha imaginado. Mas, tanto que tocou a ponta da túnica, voltou o Senhor, e disse: Quis me tetigit? Quem me tocou? Nam ego novi virtutem de me exisse: Porque eu senti que saiu de mim a virtude (Lc. 8, 46). Não sei se reparais na exceção e resguardo destas palavras, A enferma prometeu-se que havia de receber a saúde com o toque da túnica, e o Senhor acudiu a declarar que a virtude milagrosa que a sarou não era da túnica, senão do seu corpo, para que a seu corpo se atribuísse, e não à túnica, posto que a tinha vestida. Pois se os milagres de seu corpo os não quer Cristo repartir com a sua própria túnica, como permite que obre a túnica de Santo Antônio um tão extraordinário milagre, que em seu próprio corpo não experimentamos? Basta, Senhor, que há de obrar a túnica de Antônio vestida por fora, o que não obra em nós vosso próprio e santíssimo Corpo recebido por dentro? Eu bem sei que Santo Antônio é muito benemérito desse diviníssimo Sacramento, e que pelejou grandes batalhas em defesa de sua fé contra os hereges, e que alcançou deles grandes vitórias, e que lhe fez outros muitos serviços, mas não cuidei que merecia tanto. Enfim, aquele Senhor que se fez tão pequenino para que Antônio junto de sua pessoa parecesse grande, lá tem com ele seus segredos: deixemos a ambos os porquês desta diferença.

A que só podem dar os filósofos e teólogos, neste caso, é que a túnica de Santo Antônio tocou o corpo do monge que a vestiu; mas o corpo de Cristo no Sacramento não toca o dos homens que o recebem. É verdade que real e verdadeiramente recebemos o Corpo de Cristo, mas como o Corpo de Cristo no Sacramento está por modo indivisível, assim como o sentido da vista o não vê, assim o sentido do tacto o não toca; e assim como o que só vemos são as espécies quanto à cor, assim o que só tocamos são as mesmas espécies quanto à quantidade. Mas nesta mesma diferença se confirma ainda com major proporção a glória de Santo Antônio. As espécies sacramentais são uma túnica branca, de que está vestido o corpo de Cristo no Sacramento; e a graça que Cristo não quis conceder aos vestidos do seu Corpo Sacramentado, concedeu-a aos de Santo Antônio. Aquela túnica branca não tira as tentações da castidade, e a túnica parda de Santo Antônio tirou-as.

Parece que se não pode passar daqui, e que já o encarecimento vai por cima dos altares; mas ainda há grandes passos que dar adiante. Quando Cristo, Redentor nosso, partiu deste mundo, encomendou a seus discípulos que se não saíssem de Jerusalém, até que fossem vestidos da virtude do alto: Donec induamini virtute ex alto (Lc. 24, 49). Desceu sobre eles o Espírito Santo, ficaram de repente vestidos daquela soberana virtude. Mas quais foram os efeitos destes vestidos? Foram, em suma, que ficaram confirmados em graça, com privilégio de não haver de pecar gravemente. E assim como ficaram isentos dos pecados, ficaram também isentos das tentações? Isso não. Tanto assim, que nesta mesma matéria de que falamos, confessa São Paulo de si, que era grave e importunamente tentado: Datus est mihi stimulus carnis meae angelus Satanae, qui me colaphizet[19]. Pois, se os apóstolos, por meio dos vestidos que Cristo lhes mandou do céu e a mesma pessoa do Espírito Santo lhes vestiu na terra, não ficaram livres das tentações, e de tentações neste mesmo gênero, como ficou livre delas o monge, por meio da túnica de Santo Antônio? Aqui não há senão levantar as mãos ao céu, e glorificar outra vez e infinitas vezes ao Altíssimo, que com tanto excesso de maravilhas quis honrar, como ele prometeu, a quem tanto o honrava. Eu não faço comparação, nem é lícito, entre os vestidos do Espírito Santo e a túnica de Santo Antônio; mas, comparados os efeitos em um e outro caso, só refiro o que se não pode negar. O vestido do Espírito Santo isentou os apóstolos de ser vencidos, mas de ser tentados não os isentou; a túnica de Santo Antônio não só isentou ao monge de ser vencido, mas também de ser tentado. São Paulo, com o vestido do Espírito Santo, estava livre do pecado da sensualidade, mas não se livrou dos estímulos da sensualidade; o monge, com a túnica de Santo Antônio, ficou livre do pecado da sensualidade, e também livre dos estímulos.

Daqui tiro eu quão escusado foi aquele grande empenho do Seráfico Patriarca, um dia que se viu apertado de semelhante tentação. Tentado um dia São Francisco do espírito da sensualidade, que imaginais que faria, como tão valente e famoso soldado e tão insigne da milícia de Cristo? Parte de corrida a um lago congelado, e a puras balas de neve apagou os incêndios daquele fogo, até afogar no mesmo lago a seu inimigo. Notável tentação, notável valor, mas escusado empenho. Notável tentação, que a um homem como São Francisco, a um serafim em carne, se atreva a tentar a carne! Notável valor, que não repare Francisco no rigor do regelo, e meta em tanto risco a vida, por não arriscar a pureza! Mas escusado empenho, glorioso Santo meu. Se, sem embargo de serdes serafim, pagais essa pensão à humanidade, se o demônio, tantas vezes de vós vencido, se atreve a tentar vossa pureza quando tendes o remédio em casa, e tão fácil, para que é ir buscá-lo fora, e tão custoso? Pedi a Santo Antônio - ou mandai-lho, pois é vosso súdito - pedi a Santo Antônio que vos empreste a sua túnica, vesti-a, e ficareis livre da tentação. Oh! grande glória de tal pai com tal filho! Trocassem as túnicas Santo Antônio e São Francisco, e ver-se-iam duas grandes maravilhas. A túnica de Francisco não obraria nada em Antônio, porque já estava consumado na perfeição do seu hábito, e a túnica de Antônio ainda teria que obrar em Francisco, porque lhe seria defensivo contra as tentações. Mas assim repartiu Deus as graças entre o pai e o filho, para que o pai fosse o exemplo dos fortes, e o filho o remédio dos fracos.

VI

A alma perde-se como a dracma, mas não se acha como a dracma. A alma não se há de buscar onde se perdeu, sob pena de não se achar, ou se tornar a perder Que fez São Pedro para achara sua alma perdida?

Concluindo pois com o nosso monge, dantes tão fraco, e agora tão forte, dantes tão perdido, e agora tão venturosamente achado, vede se é tão certo deparador de almas perdidas Antônio, como eu vos prometi. E se alguma das que me ouvem está perto de se perder, ou já perdida nas ondas, nas cegueiras, nos labirintos de um vício tão dificultoso de curar, e em que tanto periga a salvação, ponha diante dos olhos este exemplo de tão notável mudança, e, como o seguiu na perdição, imite-o também em lhe buscar o seguro e eficaz remédio. Recorra todo o caído ou tentado ao deparador das almas perdidas, pois é ofício ou graça em que Deus o constituiu; encomende-lhe muito de coração a sua, e não cesse de pedir, instar e buscar, até que a ache e tire do estado de perdição: Donec inveniat eam.

Só advirto, por fim, uma cautela muito necessária, e sem a qual tudo o que se intentar será sem efeito. A mulher do Evangelho perdeu a dracma na casa, buscou-a na casa e achou-a na casa. A alma perde-se assim, mas não se acha assim. Todas as outras coisas se acham onde se perdem, e aí se hão de buscar. A alma não se há de buscar onde se perdeu, sob pena de não se achar, ou se tomar a perder. Perdeu a sua alma São Pedro, negando três vezes a Cristo; e notai que uma mulher foi a primeira ocasião, e outra mulher a segunda. Pôs-lhe seus divinos olhos o Senhor, para que não perseverasse naquele estado, e o que logo fez São Pedro, para achar a sua alma perdida, foi sair-se do lugar onde a perdera: Egressus fora[20]. Esta é e há de ser a primeira diligência de quem tem a alma perdida, se a quer achar. É a alma como o sol, que se não pode achar no lugar onde se perdeu, senão no oposto. Perde-se o sol no ocaso, e, se o quiserdes buscar e achar, há de ser no oriente. Quando assim se acha a alma, então está segura de se tomar a perder, onde se perdia. Davi, que também perdeu a sua e a soube achar, o disse: Quantum distat ortus ab Occidente, longe fecit a nobis iniquitates nostras (SI.102,12): Tão longe estou, por mercê de Deus, do pecado em que me perdi, quanto vai do Ocidente ao Oriente. - À letra se podia entender este verso de um sujeito bem qualificado, que eu conheci, o qual só por se livrar de uma ocasião, se embarcou para a índia. Assim faz quem se quer salvar, não só fora, como Pedro, mas longe, e muito longe, como Davi. O piloto que fez naufrágio em um baixo, o seu primeiro cuidado é fugir muito longe dele. Por falta desta cautela, as almas perdidas, que alguma vez se acham, se tornam logo a perder. Se São Pedro perseverara no mesmo lugar, assim como negou três vezes, havia de negar trinta: as três, em cumprimento da profecia, e as demais, por força da ocasião; por isso, a primeira coisa que fez foi sair-se dela: Egressus foras.

VII

As almas perdidas pelo pecado da cobiça. A conversão dos vinte e dois ladrões, o maior milagre de Santo Antônio. Por que Cristo nunca pregou contra os ladrões? Os três ladrões que morreram no dia da morte de Cristo. A pregação de Cristo ao mau ladrão. As sete pregações de Cristo dirigidas particularmente a Judas, e a pregação de Santo Antônio aos vinte e dois ladrões.

Sobre esta advertência, em que da nossa parte consiste o remédio do primeiro vício, passemos à consideração do segundo, e vejamos como não é menos eficaz, nem menos certo deparador o nosso santo para almas perdidas pelo pecado da cobiça, de que também, como dizia, ponderarei um só exemplo.

No tempo em que Santo Antônio pregava por Itália, assim como a fama dos milagres de Cristo chegava aos cárceres: Cum audisset Joannes in vinculis opera Christi[21], assim a das maravilhas de Santo Antônio penetrava até as charnecas e covis dos ladrões. Andavam vinte e dois de companhia ou de alcatéia em uma mata, os quais, ouvindo que todo o homem que ouvia pregar a Santo Antônio se convertia, parecendo-lhes coisa mui dificultosa, e ainda impossível, quiseram fazer a experiência em si. Deixam os rebuços e os disfarces, vestem-se à cortesã, vão-se ao povoado, cada um por seu caminho, entram na Igreja onde o santo pregava, e ainda o sermão não era acabado, quando j á cada um não era o que ali entrara. Converteram-se todos, todos se confessaram com o santo, e todos mudaram de ofício e de vida, Um dos santos prodigiosos de que se escrevem maiores milagres, é Santo Antônio; mas se entre todos os seus milagres quiséramos averiguar o maior, a minha opinião havia de estar por este. Vinte e dois ladrões convertidos em um dia, e em um sermão? É a maior coisa que se pode dizer nem imaginar, porque não há almas mais desalmadas nem mais dificultosas de reduzir que as dos ladrões.

Coisa é muito notada e muito notável que, pregando Cristo, Senhor nosso, contra todos os vícios, nunca pregasse contra os ladrões. Lede todos os quatro evangelistas; achareis que no Sermão do Bom Pastor, na parábola do samaritano, na dos servos vigilantes, e em outros muitos lugares fala o Senhor em ladrões; mas que lhes pregasse, nunca. O que só lemos que fizesse em matéria de ladrões é que no dia em que entrou por Jerusalém aclamado por rei, foi logo ao Templo, e, fazendo um açoite das cordas com que vinham atadas as reses para os sacrifícios, com ele lançou fora os que as vendiam, dizendo que o seu templo era casa de oração, e que eles o tinham feito cova de ladrões: Vos autem fecistis illam speluncam latronum (Mt. 21, 13). Que Cristo, como rei, açoitasse os ladrões, foi ação mui própria do ofício e obrigação de rei; mas Cristo não só era rei, senão rei e pregador juntamente: Ego autem constitutus sum Rex ab eo super Sion, montem sanctum ejus, praedicans praeceptum ejus[22]. Pois, se Cristo açoitou os ladrões como rei, por que lhes não pregou também, e mais estando no Templo, como pregador? Porque os ladrões são casta de gente em que se emprega melhor o castigo do que se pode esperar a emenda. A pregação é para emenda, e converter aqueles a quem se prega, e gente costumada ao vício de furtar é tão dificultosa e quase incapaz de emenda, que nunca ou quase nunca se converte. Cinco dias depois deste se viu por experiência, e com tais circunstâncias que excedem toda a admiração.

O maior dia que houve no mundo foi aquele em que o Filho de Deus deu a vida no Monte Calvário pela redenção do gênero humano. Neste mesmo dia morreram três ladrões: dois aos lados de Cristo, e um do seu lado, que era mais. Morreu o bom ladrão, morreu o mau ladrão, morreu Judas. E que sucesso e fim foi o destes três ladrões? O bom ladrão converteu-se, o mau ladrão e Judas condenaram-se. De maneira que, no maior dia do mundo, em que o Redentor dele estava com cinco fontes de graça e de misericórdia abertas, de três ladrões, condenam-se dois e converte-se um; e em um dia particular em que Santo Antônio sobe ao púlpito, vêm-no ouvir vinte e dois ladrões e convertem-se todos vinte e dois. Se Santo Antônio, dos vinte e dois convertera sete, fazia o que fez Cristo, e era assaz maravilha, de ladrões converter a terça parte; mas que sendo tantos, e todos, torno a dizer, ladrões, se convertessem todos? É caso tão admirável e tão singular, que nem em si mesmo, nem no dia da Redenção quis Cristo que tivesse exemplo.

Ponderai comigo, por caridade, a salvação ou condenação de cada um destes três ladrões do dia da Paixão, e vereis quão grande maravilha foi esta do nosso santo. Ao mau ladrão, quem lhe pregou para o converter? Pregou-lhe para o converter a paciência e inocência de Cristo; pregou-lhe o cumprimento com a repreensão que lhe deu, e muito mais, com o exemplo; pregou-lhe o sol, escurecendo-se, pregaram-lhe as mesmas pedras, partindo-se, pregou-lhe, finalmente, o maior pregador que há no mundo, que é a morte, e não só lhe pregou uma morte, senão três mortes: a morte de Cristo, a morte do outro ladrão, e a sua. E quando nem a inocência e paciência do Filho de Deus, nem a exortação, conversão e exemplo do companheiro, nem o portento de se escurecer totalmente o sol por tantas horas, nem a novidade tremenda de se quebrarem as pedras, nem o horror da mesma morte, e de três mortes à vista, bastaram para converter um ladrão, bastou um só sermão de Santo Antônio para converter vinte e dois ladrões.

Vamos a Judas. Judas ouvia, como os demais apóstolos, todas as pregações de Cristo, e ultimamente fez Cristo ao mesmo Judas em particular sete pregações: a primeira, um ano antes da Paixão, quando disse aos apóstolos que ele tinha escolhido doze, e que um dos doze era o demônio; a segunda, cinco dias antes, quando Judas murmurou do ungüento da Madalena, com pretexto dos pobres, e o Senhor, para o admoestar a ele com decoro, repreendeu a todos; a terceira, na mesa do cordeiro, quando protestou que o que metia com ele a mão no prato o havia de entregar; a quarta, no lavatório dos pés, quando, tendo dito a Pedro que ele e os outros discípulos estavam limpos, acrescentou: Mas não todos; a quinta, na consagração do pão quando disse: Este é o meu corpo, o qual por vós será entregue; a sexta, na prática depois da mesa, quando exclamou: Ai daquele por quem será entregue o Filho do homem: melhor lhe fora a tal homem nunca ser nascido; a sétima, quando Judas saiu do Cenáculo a executar a venda, e o Senhor lhe disse por ironia que só ambos entenderam: O que vais fazer, faze-o depressa. - Tudo isto eram setas que Cristo uma sobre outra ia atirando ao coração de Judas, tanto mais fortes, quanto mais breves, tanto mais eficazes, quando mais secretas, e tanto mais honestamente dirigidas a ele, quanto ditas universalmente a todos. Mas que aproveitou tanta e tão bem repartida retórica, em que o amoroso Mestre empregou toda a arte de sua sabedoria divina? Acabou Judas obstinado, e com a morte e paga que merecia quem vendeu a Vida. E quando todas as pregações de Cristo juntas, e sete pregações de Cristo dirigidas em particular a reduzir e converter um ladrão, o não convertem nem reduzem, que uma só pregação de Santo Antônio, não em particular, senão em comum, não dirigida de propósito àquela espécie de pecado, senão pregada e ouvida a caso, converta e reduza de uma vez a vinte e dois ladrões? vede se se pode imaginar maior maravilha! Pois ainda não está ponderada.

Ponderai e adverti o cabedal que meteu Cristo para converter a Judas, e o que meteu Santo Antônio para converter os vinte e dois ladrões, e então acabareis de conhecer melhor a maravilha. Santo Antônio, para converter os ladrões que converteu, não fez mais que continuar a pregação que tinha começado; Cristo para converter a Judas, que não converteu, fez-lhe tantas admoestações em comum e em particular, como temos visto: prostrou-se de joelhos diante dele, lavou-lhe os pés com suas sagradas mãos, acrescentou à água do lavatório muita de seus olhos, com que também lhos lavava, deu-lhe a comungar depois de sacramentado, assim na hóstia como no cálix, finalmente deu-lhe a face, e admitiu a falsa paz com que o entregava, chamou-lhe amigo, e desejou de o ser muito de coração; e quando Cristo - notai agora - e quando Cristo, com a boca exortando, com os joelhos prostrandose, com as mãos lavando, com os olhos chorando, com a face sofrendo, com o coração perdoando, e com todo o seu corpo e sangue, e com toda a sua alma e divindade metendo-a dentro no peito de Judas, não pode converter um ladrão, Santo Antônio, só com a língua, converteu vinte e dois ladrões. Quis Deus, sem dúvida, nestes dois exemplos, mostrar quanto pode chegar a dureza do coração humano, e quanto pode obrar a eficácia da graça divina. Mas a maravilha é que, repartindo-se estes dois efeitos, a dureza humana se provasse contra a pregação e contra todos os empenhos de Cristo, e que a eficácia divina se mostrasse só na pregação de Antônio, sem nenhum outro empenho.

VIII

Circunstâncias da conversão do bom ladrão e dos vinte e dois ladrões, Os ladrões e as aves do céu. Adão, o primeiro ladrão. O sabor e a suavidade do alheio no Livro dos Provérbios. El rei Acab e as vinhas de Nabot. O fastio de D. João, o Terceiro, e o sabor do alheio.

Mas vamos ao ladrão que se converteu, e veremos, entre ladrão convertido e ladrões convertidos, quão grande diferença houve. Converteu-se o bom ladrão com todos aqueles atos heróicos e concurso de excelentes virtudes, que os santos celebram e eu não comparo; mas nos ladrões que converteu Santo Antônio, além do excesso do número, houve uma circunstância ou suposição mui diversa, a qual, assim como fazia a sua conversão muito mais dificultosa, assim a fez nesta parte muito mais admirável. Não falo nos privilégios daquele grande dia, na presença e vizinhança do mesmo Cristo visto e ouvido, na assistência da Virgem Santíssima, na sombra da cruz, na semelhança do suplício, nos prodígios do céu e da terra, e na mesma terra regada com o sangue fresco e manante das veias divinas, que ainda naquele pão seco - melhor que na vara de Arão - não podia deixar de produzir no mesmo tempo flores e frutos. Toda esta constelação de influências próprias e únicas daquele dia e daquele lugar concorreu e cooperou poderosissimamente para facilitar a fé e penitência do bom ladrão, e não havendo, nem podendo haver nada disto na conversão dos ladrões de Santo Antônio, convertidos só pelas palavras do santo nuas e desacompanhadas de todo o outro influxo exterior que lhe pudesse acrescentar a eficácia, bem se está vendo a diferença tão venturosa da parte daquele ladrão, como admirável da parte destes. Mas não é esta, como dizia, a circunstância e suposição muito diversa entre um e outros, a qual só quero ponderar.

Abstraindo, pois, de tudo o mais, e fazendo a comparação igual de homem a homens e de ladrão a ladrões, digo que a conversão dos de Santo Antônio era muito mais dificultosa, e por isso foi muito mais admirável. O bom ladrão era um homem preso e cercado de guardas: estes andavam soltos e livres; estes não estavam em poder da justiça, aquele estava não só condenado, mas atualmente justiçado e posto no suplício; aquele tinha a morte atravessada na garganta, com que já não podia viver, e tinha as mãos pregadas na cruz, com que já não podia furtar: e estes podiam furtar, como até então, livremente, e viver do que furtassem. Donde se segue que só os ladrões de Santo Antônio mudaram propriamente a vida e deixaram o ofício, o que não fez nem podia fazer o do Calvário, porque antes a vida e o ofício o deixou a ele. E converter-se um ladrão, por duro e obstinado que seja, com o desengano dos últimos embargos, quanto mais ao pé da forca e já posto nela, é coisa muito fácil; porém, converter-se e converterem-se tantos, e passarem-se de uma vida tão solta e larga à moderação e estreiteza da lei da razão e de Cristo, e resolver-se uma comunidade inteira, sem discrepância, a mudar de instituto e a granjear dali por diante o sustento com o trabalho de suas mãos, aqueles que as tinham tão costumadas a se encherem dos trabalhos alheios, esta era a grande dificuldade, e esta foi a maravilha.

É coisa tão dificultosa acomodar-se a trabalhar para viver quem está costumado a outra vida, que esta mesma dificuldade é a que inventou a arte e artes de furtar. Aquele feitor do pai de famílias, que refere o Evangelho, vendo-se privado da administração da fazenda de que comia, e não se acomodando a trabalhar para viver, que conselho tomou? Falsificou as escrituras, diz o texto, e fez-se ladrão por tal arte, que o amo lhe perdoou o fruto pela indústria. Esta é a providência do diabo, com que ele compete com Deus em sustentar o mundo. Para que não desconfieis da Providência divina, olhai, diz Cristo, para as aves do céu: Respicite volatilia caeli (Mt. 6, 26), As aves não aram a terra, nem semeiam, nem colhem, e, contudo, sustentam-se; o mesmo fazem por providência do diabo estas aves de rapina. Os outros cavam, os outros trabalham, os outros suam, e o que estes recolheram na eira, ou venderam na praia, embolsam eles na estrada. O primeiro ladrão que houve no mundo foi o primeiro homem - tão antigo costume é serem os primeiros homens os primeiros ladrões. - Condenou Deus este primeiro ladrão a que comesse o seu pão com o suor do seu rosto: In sudore vultus tui vesceris pane tuo (Gên. 3, 19). Mas os ladrões que vieram depois souberam e puderam tanto, que trocaram a sentença, e em lugar de comerem o seu pão com o suor do seu rosto, comem o pão não seu com o suor do rosto alheio. E homens costumados a esta vida tão sem cuidado nem trabalho, que a trocassem de comum consentimento, e se deixassem prender e roubar das palavras de Santo Antônio? Tomara saber o motivo com que o Santo os persuadiu, para vo-lo pregar; mas, suposto que a história o não diz, devendo andar escrito em lâminas de bronze, quero continuar a maravilha do caso com maior ponderação da

dificuldade dele.

Pouco era, se o comer do alheio tivera só o alívio do trabalho de o cavar e suar, mas dizem que é tão gostoso e saboroso, que é nova e muito maior maravilha haver quem se abstivesse dele. Se o disseram os mesmos ladrões, eu os não crera, como apaixonados do ofício e subornados da própria inclinação. Mas é dito e sentença do Espírito Santo: Aquae furtivae dulciores sunt, et panis absconditus suavior (Prov. 9, 17): A água furtada é mais doce, e o pão que se come às escondidas mais suave. - O que me admira nestas palavras, e deve admirar a todos, é que, para declarar o grande sabor do alheio e do furtado, se ponha à comparação em pão e água. A água não tem sabor, e se tem sabor não é boa água; o sabor do pão também é tão pouco que se não se acompanha ou engana com outro, só a muita fome o pode fazer tolerável; enfim, sustentar-se um homem com pão e água não é comer, é jejuar, e o mais estreito e rigoroso jejum. Como declara logo o Espírito Santo, não só o sabor, senão a doçura e suavidade do alheio com pão e água: Aquae furtivae dulciores, et panis absconditus suavior? Não se pudera melhor declarar, nem ainda encarecer. Como se dissera o Divino Oráculo: é tão grande o sabor do alheio, é tal a doçura e suavidade do que se furta, que até pão e água, se é furtado; é manjar muito saboroso. Viver do próprio a pão e água é a maior penitência; viver do alheio, ainda que seja a pão e água, é grande regalo. Tão saboroso bocado é o alheio.

Muito me pesa ser de rei o exemplo com que hei de confirmar esta verdade. Mas não debalde disse Santo Agostinho: Quid sunt magna regna, nisi magna latrocinia? Que coisa são os grandes reinos, senão grandes latrocínios? - Andava el-rei Acab desejoso de roubar a Nabot a sua vinha, e como achasse dificuldade na execução - que até os maus reis daquele tempo achavam dificuldade em tomar os bens dos vassalos - tomou tanto sentimento de não conseguir tão depressa como queria este apetite que, chamado para a mesa, não quis comer: Noluit comedere panem suum (3 Rs. 21, 4 LXX), diz o texto dos Setenta; e acrescenta Santo Ambrósio: Quia cupiebat alienum: Não quis comer o seu pão, porque apetecia o alheio. - Ora, grande sabor é o do alheio, até para o gosto e paladar daqueles que o trazem costumado aos mais esquisitos manjares. De maneira que, posta de uma parte a mesa real e da outra o pão do pobre Nabot, porque Acab não pôde comer o pão alheio, perdeu todo o apetite à mesa real.

Pôs-se uma vez à mesa el-rei D, João, o Terceiro, e trazia grande fastio. Estava, entre os fidalgos, que o assistiam, um muito conhecido por discreto. Disse-lhe el-rei: Que remédio me dais, Dom Fulano, para comer, que de nenhuma coisa gosto? - Coma Vossa Alteza do alheio, como eu faço, e verá como lhe sabe bem. - Assim respondeu aquele cortesão, e, rindo, disse a verdade. Quereis que vo-la acabe de encarecer? Ora, ouvi quão saboroso é o alheio. O alheio é uma pírola do inferno, ouro por fora, mas inferno por dentro, porque ninguém come o alheio, que não trague o inferno juntamente. E manjar que, levando de mistura todo o inferno, ainda se come com tanto gosto, vede se é grande o seu sabor. Sendo, pois, tal o apetite, o gosto e o feitiço do alheio, que a pessoas de tão diferente suposição, e que têm e possuem muito de próprio, prende, cativa e cega com tanto extremo, que vinte e dois homens de ofício e de costume ladrões, e que não tinham outro patrimônio ou remédio de vida mais que os roubos contínuos de que a sustentavam, sem reparar na diferença daquela mudança, a fizessem todos resolutamente sobre a palavra de um homem vestido de burel e atado com uma corda, não há dúvida que da sua parte foi a mais maravilhosa e prodigiosa conversão, e da parte de Santo Antônio a maior façanha, a maior vitória e o maior triunfo que nenhum pregador alcançou.

IX

Os ladrões por oficio e os ofícios em que se pode furtar Os que morrem como São Paulo. Como varrer a casa antes de morrer? Não entrou a salvação na casa de Zaqueu quando entrou nela Cristo, senão quando saiu dela o alheio.

Eis aqui outra vez quão admirável deparador de almas perdidas é o nosso santo, tanto neste segundo vício, como no primeiro. Se eu agora vos quisesse exortar a que também vos aproveitásseis deste exemplo, ou destes vinte e dois exemplos, tê-lo-íeis por afronta. Bem sei que nesta terra não há ladrões por ofício, mas há ofícios em que se pode furtar; e tudo o que é tomar, ou reter, ou não pagar o alheio, por mais honrado nome que lhe deis, igualmente pertence ao sétimo mandamento. E assim vos digo que, se debaixo de qualquer título trazeis a alma perdida ou desejosa de se perder no vício da cobiça, que recorrais ao patrocínio de Santo Antônio, para que vo-la depare a tempo. Pedi-lhe que vos ouça, e ouvi-o, pois tanta é a eficácia de suas palavras. Sobretudo, não vos enganeis com opiniões que alargam e perdem as consciências; conhecei, primeiro que tudo, que onde cuidais que ganhais fazenda, perdeis a alma, e, pois, sem dúvida a tendes perdida, não descanseis até a achar: Donec inveniat eam.

Por fim, assim como fiz uma advertência necessária, e sem a qual se não pode curar o vício da sensualidade, assim quero que ouçais outra igualmente, ou mais importante ainda, para o da cobiça, e para desembaraçar a alma dos laços do alheio. A mulher do Evangelho, diz o nosso texto que, para achar a dracma perdida, varreu a casa: Accendit lucernam, et everrit domum (Lc. 15, 8). Todos, para se salvar, ao menos na hora da morte, querem restituir, mas não querem varrer a casa. É muito para ver ou para chorar lá na nossa terra, como morrem os poderosos; testam de quarenta, de sessenta e de cem mil cruzados de dívida, fazem seu testamento, em que carregam a seus herdeiros que paguem, e, deixando no mesmo tempo a casa cheia de baixelas, de jóias, de tapeçarias e de outras peças de muito valor, além das fazendas desobrigadas com que logo puderam pagar o que devem, feita a diligência do testamento, abraçam-se com um Cristo, e ficam os parentes e amigos muito consolados, dizendo que morreu como um S. Paulo, Esta é a frase com que se declaram e consolam, e porventura com que se animam a morrer do mesmo modo. Senhores meus, ouvi-me, posto que de tão longe. São Paulo não tomou nem devia nada a ninguém, e disso fez um protesto ou manifesto público quando disse: Argentum et aurum, aut vestem, nullius concupivi, sicut ipsi scitis[23]. E ainda que São Paulo devera alguma coisa, ou muito, como não tinha nada de seu, a impossibilidade o desobrigava de restituição. Porém, morrer sem restituir, deixando a casa cheia, e salvar? Não ensina esta teologia a lei de Cristo. Há-se de varrer a casa de todo esse cisco - que cisco é em comparação da alma - e depois da casa assim varrida, então se pode segurar ao dono a salvação.

Entrou Cristo, Senhor nosso, em casa de Zaqueu, e os sinais evidentes de que entrou naquela casa foram os efeitos: Ecce dimidium bonorum meorum, Domme, do pauperibus; et si quid aliquem defraudavi, reddo quadruplum (Le. 19, 8): Senhor, diz Zaqueu, ametade de todos os meus bens dou logo aos pobres, e com a outra ametade pago quatro vezes em dobro tudo o que devo, para satisfazer o principal, os réditos e os danos. - Isto disse Zaqueu; e que respondeu Cristo? Hodie salus huic domui facta est (Ibid 9): Hoje entrou a salvação nesta casa. - Notai aqui muitas coisas, e todas tão dignas de grande reparo, como de suma importância. Primeiramente disse Cristo que a salvação entrara naquela casa; mas quando o disse? Não quando entrou o mesmo Senhor, senão quando Zaqueu se resolveu a restituir logo. Não entrou a salvação na casa quando entrou nela Cristo, senão quando saiu dela o alheio. Zaqueu varreu a casa de maneira que não ficou nela coisa alguma: ametade para os pobres e ametade para os acredores: tudo fora. E quando assim se varreu e assim ficou varrida a casa, então se achou a dracma perdida e entrou a salvação. Mais. Zaqueu fez duas disposições: a primeira da primeira ametade de seus bens para esmolas; a segunda da segunda ametade, para satisfação das dívidas; e Cristo, com ser tão amigo dos pobres, enquanto ele falou só nas esmolas, não disse palavra; mas quando passou à satisfação das dívidas, então disse e assegurou que entrara a salvação na casa. Pagai prontamente o que deveis, e não deixeis esmolas nem legados. Tantas mil missas, tantos ofícios, tantos funerais, tantas pompas, tantos acompanhamentos: estes cantando, e os acredores chorando. Restitui, e se não tiverdes mais, não mandeis dizer uma Missa por vossa alma, porque a Missa sem restituição não vos há de salvar, e a restituição sem Missa sim. Mas, para o que é pompa e vaidade, fazem-se novos empenhos e novas dívidas, acrescentando nova circunstância ao pecado irremissível de não pagar as contraídas.

Dizeis, e dizem porventura os que vos aconselham, que com as confessar no vosso testamento, e com as mandar pagar, satisfazeis. Enganais-vos, e enganamvos; e, se não, respondei-me. Quando herdastes a casa de vosso pai, deixou dívidas? Muitas. E mandou-vos e encomendou-vos muito que as pagásseis? Sim. E pagastelas vós? Não, antes acrescentastes outras maiores. Pois se vós não cumpristes o testamento de vosso pai, e sabeis com certeza moral que vosso filho não há de cumprir o vosso, como cuidais que enganais a Deus, e vos quereis enganar e condenar a vós mesmo, deixando a casa cheia do que é alheio e não vosso? Zaqueu não encomendou a restituição a outro; ele mesmo a fez. Não disse: reddam, restituirei, senão: reddo, restituo. Não disse depois, senão logo: ecce. E, porque o não guardou para amanhã, por isso Cristo lhe disse: Hoje: Hodie salus huic domui facto est.

X

Em qual destes dois vícios são mais dificultosas de recobrar as almas que se perdem? O filho pródigo e o escrúpulo do alheio. Recorrer a Santo Antônio, não só pedindo e rogando, senão requerendo e demandando. Como atar a Santo Antônio mais apertada e mais fortemente.

Parece-me que vos tenho bastantemente mostrado quão certo deparador de almas perdidas é o nosso santo. E porque reduzi toda esta demonstração aos dois vícios capitais em que mais geralmente se perdem as almas, perguntar-me-eis, com cristã curiosidade, em qual deles são mais dificultosas de recobrar as que se perdem? Por uma parte, a sensualidade tem por objeto o deleitável, a cobiça o útil; a sensualidade inclina à conservação da espécie, a cobiça à do indivíduo; a sensualidade é inimigo natural, interior e doméstico, a cobiça exterior, e, por todas estas razões, parece mais dificultoso de arrancar e vencer o vício da sensualidade. Por outra parte, a cobiça cresce com a idade, a sensualidade diminui; a matéria da cobiça permanece ainda depois da morte, a da sensualidade acaba antes da vida; para emenda da sensualidade basta arrepender, para a da cobiça é necessário arrepender e restituir, com que parece mais dificultoso o remédio deste vício, e mais certa nele a condenação, por onde os gentios, que a cada vício sinalavam o seu deus, ao deus da cobiça puseram-no no inferno. Assim que a verdadeira decisão desta proposta, e o conselho certo e seguro, é fugir, e guardar, renegar de ambos estes vícios. Contudo, para responder com a distinção que entre um e outro pode haver, digo que mais facilmente se deve esperar a conversão de uma alma perdida na sensualidade que na cobiça, e que, se na matéria da cobiça e do alheio for ajustada coma lei de Deus, posto que na da sensualidade tenha pecados, se pode ter por grande indício de sua salvação.

Não houve homem mais perdido e desbaratado, nas desordens da sensualidade, que o filho pródigo; contudo, tornou em si, arrependeu-se, confessou seus pecados, restituiu-se à graça de Deus, enfim achou-se depois de perdido, como vimos: Perierat, et inventus est[24]. E que indício ou disposição houve neste homem para uma tal mudança de vida? Lede toda a que tinha feito antes de sua conversão, e achareis que, sendo tão estragado no vício da sensualidade, na matéria do alheio era de tão ajustada consciência, e tão escrupuloso como o pudera ser um santo. Depois de consumir quanto tinha herdado de seu pai - Vivendo luxuriose[25] - chegou a tal extremo de miséria, que se pôs com amo, e lhe servia de pastor de um gado tão imundo e asqueroso como sua própria vida: Ut pasceret porcos[26]. Notai agora o que diz o texto: Cupiebat ventrem implere de siliquis, quas porci manducabant: et nemo illi debat (Ibid 16): Desejava matar a fome que padecia com as landes ou bolotas de que se sustentava o seu gado, mas nem estas lhe davam, e perecia. - Pois, se aquele era o pasto do seu gado, que ele tinha em seu poder, por que o não tomava também para si, posto que lho não dessem? Porque era tão escrupuloso do alheio, sendo tão estragado do seu, que ainda em tão grave necessidade se não atrevia a o tomar sem licença de seu dono. E homem tão escrupuloso em matéria do alheio, que nem para o miserável e preciso sustento da vida, ousa lançar a mão a quatro bolotas agrestes que saíam do montado, ainda que na matéria da sensualidade seja tão perdido, grandes indícios tem de que se há de converter e salvar. Deus livre a toda a alma de uma e outra perdição, mas desta segunda ainda mais, como tanto mais perigosa.

E suposto que no nosso santo deparador temos tão pronto e tão certo remédio de ambas e de todas as almas perdidas, ou nestes, ou em qualquer outro vício, o que resta é que todas as que se acham em semelhante estado, ou perigo, recorram a seu poderosíssimo patrocínio, com segura confiança de que serão ouvidas, e, sem dúvida, remediadas. E para que vos confirmeis mais na certeza desta confiança, ouvi o modo com que haveis de recorrer a Santo Antônio. Não haveis de pedir a este santo, como aos outros, nem como quem pede graça e favor, senão como quem pede justiça. Quem pede justiça a quem tem por ofício fazê-la, pede requerendo; e quem pede a dívida a quem está obrigado a pagá-la, pede demandando. E assim haveis de pedir a Santo Antônio: não só pedindo e rogando, mas requerendo e demandando: requerendo, como a quem tem por ofício deparar tudo o perdido, e demandando, como a quem deve e está obrigado a o deparar. E, se não, dizei-me por que atais e prendeis este santo, quando parece que tarde em vos deparar o que lhe pedis? Porque o deparar o perdido em Santo Antônio não é só graça, mas dívida; e assim como prendeis a quem vos não paga o que vos deve, assim o prendeis a ele. Eu não me atrevo nem a aprovar esta violência, nem a condená-la de todo, pelo que tem de piedade. Mas dar-vos-ei outro modo com que ateis a Santo Antônio muito mais apertada e fortemente.

O Menino Jesus, como aquele a quem tanto custaram as almas, também atou a Santo Antônio, para que lhe deparasse as suas almas perdidas. Primeiro, atou-o com a correia de Santo Agostinho, depois com o cordão de São Francisco, e ultimamente com os braços, como o vedes: Ligat amplexu, disse São Pedro Crisólogo, e este é o mais decente, o mais nobre, o mais devoto, o mais pio e o mais apertado medo de o atar. Lançai-vos àqueles pés descalços de Santo Antônio, abraçai-vos com eles apertadissimamente, e dizei-lhe como Jacó: Non dimittam te, nisi benedixeris mihi[27]. Aqui estou a vossos pés, gloriosíssimo santo, e não vos hei de largar, nem apartar-me deles, até que me comuniqueis a bênção de que Deus vos dotou entre todos os santos para remédio de tantas almas. A minha há tantos tempos que anda perdida, sem eu saber dela nem de mim. Assim como deparastes as de tantos outros pecadores, cuja perdição eu segui, mereça eu também alcançar daquele ardentíssimo zelo, que está hoje igualmente vivo em vós, a piedade que eles alcançaram. Alumiai-me, guiai-me, encaminhai-me e ensinai-me a buscar e achar esta perdida alma, e não me desampare vossa luz, vosso patrocínio e vossa poderosa eficácia e intercessão, até que a ache: Donec inveniat eam.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
 



[1] Que mulher há que, tendo dez dracmas, e perdendo uma, não acenda a candeia, e não varra a casa, e não a busque com muito sentido, até que a ache (Lc. 15, 8)?

[2] Nem os que acendem uma luzerna a metem debaixo do alqueire, mas põem-na sobre o candeeiro, a fim de que ela dê luz a todos os que estão na casa (Mt. 5,15).

[3] Assim vos digo eu que haverá júbilo entre os anjos de Deus por um pecador que faz penitência (Lc.15,10).

[4] Acende a candeia e varre a casa (U. 15, 8).

[5] Acendem uma luzerna, a fim de que ela dê luz a todos os que estão na casa (Mt. 5. 15).

[6] Acende a candeia até que a ache (U. 15, 8).

- Acende a luzerna a fim de que ela dê luz a todos os que estão na casa (Mt. 5,15).

[7] Foi sobremaneira grande o júbilo que sentiram (Mt. 2, 10).

[8] Era morto, e achou-se (U. 15, 32).

[9] Comprei uma quinta, comprei cinco juntas de bois (Lc. 14, 18 s).

[10] Casei (Lc. 15, 20).

[11] Não fornicarás, não furtarás (Êx. 20, 14 s).

[12] Mas a carne é fraca (Mt. 26, 41).

[13] Bernard. in hunc locum (At. 7, 57).

[14] Repartiram entre si os meus vestidos (SI. 21, 19).

[15] E lançaram sorte sobre a minha túnica (SI. 21, 19).

[16] Vê se porventura é a túnica de teu filho (Gên. 37, 32).

[17] Deixou memória das suas maravilhas (SI. 110, 4).

[18] Pão dos escolhidos e vinho que gera virgens (Zac. 9, 17).

[19] Permitiu Deus que eu sentisse na minha carne um estímulo, que é o anjo de Satanás, para me esbofetear (2 Cor. 12, 7).

[20] Tendo saído para fora (Lc. 22, 62).

[21] Como João, estando no cárcere, tivesse ouvido as obras de Cristo (Mt. 11, 2).

[22] Eu, porém, fui constituído rei sobre São, seu monte santo, para promulgar o seu decreto (SI. 2, 6).

[23] Não cobicei prata, nem ouro, nem vestido de nenhum, como vós mesmos sabeis (At. 20, 33).

[24] Era morto, e achou-se (Lc. 15, 32).

[25] Vivendo dissolutamente (Lc.15,13).

[26] A guardar os porcos (Lc. 15,15).

[27] Não te largarei se me não abençoares (Gên. 32, 26).