Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Filha dos condes de Afougia, Dama de Palácio.

No Convento de S. Francisco de Enxobregas. Ano de 1649.

Maria optimam partem eleget.(1)


 
 
 
  

§ I







Ditosa a alma a quem caiu o dia do Senhor no dia da Senhora. Nas festas da Senhora, e muito mais ainda na festa da Assunção, estão mais franqueadas as portas do céu. Os ossos de José, no cortejo da Arca do Egito à Terra de Promissão, e os funerais de D. Maria de Ataíde.
 

Estas palavras — que são de Cristo por S. Lucas — cantava solenemente a Igreja em vinte e dois de agosto, que foi o dia — entre tantos funestos deste ano — a cuja memória, a cujo sentimento e a cujo alivio se dedica o religioso e o humano desta piedosa ação. O mesmo dia que nos levou o assunto nos deixou o tema. Era a oitava gloriosa da Assunção da Mãe de Deus: feliz dia para deixar a terra, formoso dia para entrar no céu. O dia da morte chama-se nas Escrituras temerosamente dia do Senhor: Veniet dies Domini ut fur (2).Ditosa alma a quem caiu o dia do Senhor no dia da Senhora. Concorrer um dia tão temeroso com um dia tão privilegiado, grande argumento foi de felicidade! É opinião de doutores, piedosa e bem recebida, que em todos os dias consagrados a alguma festa da Senhora, estão mais franqueadas as portas do céu. Mas que este privilégio seja particularmente concedido à maior festa de todas, que é a da Assunção gloriosa, não tem só a probabilidade de opinião, mas é coisa certa. Afirma-o S. Pedro Damião, e o confirma com graves exemplos. Até nesta circunstancia soube escolher Maria a melhor parte: Maria optimam partem elegit.

Príncipes houve que, decretando sentenças capitais, deram a escolher o gênero de morte, como Nero a Sêneca. Se Deus, quando decreta a morte, dera a escolher o dia, todo o mundo se guardara para morrer neste. Que dia se pode desejar mais fausto para acometer a perigosa jornada da outra vida, que em seguimento dos passos daquela Senhora, que para guiar é estrela, para subir é escada, para entrar é porta: Estrela da manhã, Escada de Jacó, Porta do céu, lhe chama a Igreja. Quando os filhos de Israel caminhavam do Egito para a Terra de Promissão, a ordem com que marchavam, era esta: ia adiante a Arca do Testamento, em distância de dois mil passos; seguia-se logo o corpo de todo o exército, repartido e ordenado em esquadrões: por fim — que este é o lugar que lhe dão os expositores — eram levados em um túmulo portátil os ossos de José. Este caminho dos israelitas — que quer dizer os que vêm a Deus — era figura da jornada que fazem as almas do Egito deste mundo para a Terra de Promissão da glória. Mas em nenhuma ocasião com tanta propriedade, como nesta. Foi diante a verdadeira Arca do Testamento, a Virgem Maria, no dia de sua triunfante Assunção, que em tal dia nomeadamente lhe chamou Arca do Testamento Davi: Surge Domine, in requiem tuam, tu et arca sanctificationis tuae (3).Seguiu-se logo em proporcionada distância, quanto vai do dia à oitava, não o do exercito, mas o exército da alma. Uma alma armada com todos os sacramentos da Igreja, assistida dos anjos, acompanhada das boas obras, seguida de tantos sufrágios e sacrifícios, que outra coisa e um exército ordenado e terrível? Assim lhe chamam, não sem admiração, aqueles espíritos sentinelas do céu, que desde suas ameias estão vendo subir uma alma: Quae est ista quae ascendit terribilis ut castrorum acies ordinata (4)? Por fim de tudo — que tal é o fim de tudo — remata-se hoje esta pompa gloriosa e invisível no que só vêem e no que só podem ver nossos olhos, em umas cinzas e túmulo. Também aquele túmulo e aquelas cinzas vão caminhando, mas com passo tão vagaroso, com movimento tão tardo, que não chegarão ao céu, donde já descansa a alma, senão no dia da ressurreição universal. Cedo as perderemos de vista, para nunca mais. Agora são só presentes a nossos olhos para nova comiseração, para último desengano, para perpétuo exemplo. À mesma Senhora, que já tem dado a glória ao bem-aventurado assunto de nossa oração, peçamos nos queira também dar a graça que havemos mister para falar dele: Ave Maria.
 
 

§ II


A queixa piedosa de Marta deu ocasião à sentença de Cristo: Maria escolheu a melhor parte. As três novas queixosas a modo de Marta: a idade, a gentileza e a discrição.

Maria optimam partem elegit.
 
 

Deu ocasião a esta sentença de Cristo uma queixa piedosa, mas tão atrevida, que chegou a lhe tocar ao Senhor, não menos que no atributo de sua providência: Domine, non est tibi curae(5)?Senhor, não tendes cuidado? — Casos sucedem no mundo que parece se descuida Deus do governo dele, e, se alguns são à nossa admiração maiores motivos, são os da vida e da morte. Esta admiração introduziu no juízo dos homens o erro de fados e de fortuna, que, se bem entre nos perderam a divindade, ainda conservam os nomes. Se repararmos com atenção, quem vive neste mundo e quem morre, e necessária muita fé para crer que há providência. Todo o motivo desta queixa de Marta foi ver que a deixara Maria, e que estava com Deus. Tal é o motivo que temos presente, mas com maiores circunstancias de dor — não sei se diga de sem-razão — e assim havemos de ouvir hoje mais queixas.

Enfim, Maria está com Deus: Sedens secus pedes Domini (6): desatou-se dos cuidados e das obrigações do mundo, rompeu os laços da humanidade, deixou em soledade, o sangue, o amor e a mesma vida: Reliquit me solam (7).Contra este não esperado apartamento, temos três queixosas a modo de Marta, e não queixosas de Maria, porque o executa, senão de Deus, porque o permite: Domine, non est tibi curae (8)? E que queixosas são estas? A primeira é a Idade, a segunda a Gentileza, a terceira a Discrição. Pararam todas — como Marta: Quae stetit, et ait (9). — E que conformemente se queixam! Corpo, alma e união, e toda a fabrica do imposto humano. Por parte da união queixa-se a idade cortada; por parte da alma queixa-se a discrição emudecida; por parte do corpo queixa-se a gentileza eclipsada. Chora a idade o golpe, chora a discrição do silêncio, chora a gentileza o eclipse, porque não lhe valeram contra a morte, nem à idade o mais florente, nem à gentileza o
mais florido, nem à discrição o mais florido. Vamos ouvindo estas queixosas: depois responderemos a elas.
 
 

§ III





Queixa-se a idade contra a morte. Se se queixam os oitenta anos de Davi, se se queixam os cento e quarenta e sete anos de Jacó, se se queixam os duzentos e setenta anos de Jó, como se não hão de queixar os vinte e quatro anos de D. Maria de Ataíde? Igualdade e desigualdade da morte. A morte a pé, a morte a cavalo, e a morte com asas, nas visões dos profetas e do Apocalipse. O cavalo verde em que S. João viu a morte. A visão do profeta Amós. O tempo de florescer e o tempo de cortar.
 
 

Primeiramente queixa-se a idade contra a morte: e que justificada se queixa! Davi pasmava de ver quão estreitamente lhe medira Deus a vida: Ecce mensurabiles posuisti dies meos (10) — e viveu oitenta anos Davi. Jacó chamava a seus dias poucos e maus: Dies peregrinationes meae parvi et mali (11) — e viveu cento e quarenta e sete anos Jacó. Jó assombrava-se da brevidade com que se via caminhar à sepultura: Dies mei breviabuntur, et solum mihi superest sepulchrum (12)— e viveu duzentos e setenta anos Jó. Pois, se a Jó, se ao espelho da paciência, sendo tão largos seus dias, lhe parecem breves; se a Davi, se à coluna da fortaleza, lhe parecem mal medidos; se a Jacó, se ao exemplo da constância lhe parecem poucos e maus: que razão não terá para queixar-se uma idade tanto mais curtamente medida, tanto mais brevemente contada, tanto mais apoucada nos dias, tanto mais em flor cortada? Se se queixam os oitenta, se se queixam os cento e quarenta, se se queixam os duzentos e setenta anos, como se não hão de queixar vinte e quatro? Oh! morte cruel! que enganados vivem contigo os que dizem que és igual com todos!

Tem-se acreditado a morte com o vulgo de muito igual, pelo despeito com que pisa igualmente os palácios dos reis e as cabanas dos pastores: Aequo pulsat pede pauperum tabernas, regumque turres. Que os palácios dos reis, por mais cercados que estejam de guardas, não possam resistir às execuções da morte, bem o experimentou esta vida. Justo era que aquelas portas, que tão cerradas costumam estar às verdades, lhe deixasse ao menos a natureza aberto este postigo aos desenganos. Mas nesta mesma igualdade comete grandes desigualdades a morte. É igual, porque não faz exceção de pessoas: é desigual, porque não faz diferença de idades, nem de merecimentos. Matar a todos, sem perdoar a ninguém, igualdade é: mas tirar a vida a uns tão tarde, e a outros tão cedo, deixar os que são embaraço do mundo, e levar os que eram o ornato dele, que desigualdade maior? Todos se queixam da pressa com que corre a vida: eu não me queixo senão da desigualdade com que caminha a morte. Notai.

Apareceu uma vez a morte ao profeta Hábacuc, e viu que ia andando no triunfo de Cristo: Ante faciem ejus ibit mors (13).Apareceu outra vez a morte a S. João no Apocalipse, e viu que vinha pisando sobre um cavalo Et ecce equns, et qui sedebat super eum, nomen illi Mors (14).Apareceu terceira vez a morte ao profeta Zacarias, e viu uma foice com asas: Vidi, et ecce falx volans (15).De maneira que temos a morte a pé, morte a cavalo, e morte com asas. A vida sempre caminha ao mesmo passo, porque segue o curso do tempo: a morte nenhuma ordem guarda no caminhar, nem ainda no ser. Umas vezes é uma anatomia de ossos que anda, outras um cavaleiro que corre, outras uma foice que voa. Para estes vem andando, para aqueles correndo, para os outros voando. Se a morte, ou para todos andara, ou para todos correra, ou para todos voara, era igual a morte. Mas andar para uns, para outros correr, e para mim voar? Oh! morte, quem te cortara as asas. Mas bem é que bata as asas, para que nos abatamos as rodas. Pinta-se a morte com uma foice segadora na mão direita, e um relógio com asas na mão esquerda. Se alguma hora foi assim a morte, troque-se daqui por diante a pintura, que já não é assim. Ecce falx volans. Tirou a morte as asas do relógio da mão esquerda, e passou-as à foice da mão direita, porque é mais apressada a foice da morte em cortar que o relógio da vida em correr. Ainda quando a morte não voa, corre mais que a vida.

Aquele cavalo em que S. João viu a morte, diz o texto, na versão de Tertuliano, que era verde: Et equus viridis (16). Quem viu jamais cavalo verde? Mas era o cavalo da morte. Veste-se este animal indômito da cor dos anos que corta, arreia-se das
esperanças que pisa, pinta-se das primaveras que atropela. Todos os anos estão sujeitos à morte, mas nenhuns mais que os que pareciam mais seguros, os verdes.

Mostrou Deus uma visão ao profeta Amós — que era homem do campo — e perguntou-lhe que via: Quid vides tu, Amos (Am 8, 2)? Respondeu o profeta: — Senhor, uncinum pomorum: — O que vejo é uma vara comprida e farpada com que os rústicos alcançamos a fruta e a colhemos das árvores.— Pois essa vara que vês, diz Deus, é a morte. — Todo este mapa do mundo é um pomar: as árvores, umas altas, outras baixas, são as diversas gerações e famílias; os frutos uns mais maduros, outros menos, são os homens; a vara que alcança ainda os ramos mais levantados é a morte: colhe uns, e deixa outros. Ah! Senhor! que essa é a morte como havia de ser, e não como é. Quem entra a colher em um pomar, passa pelos pomos verdes, e colhe os maduros; mas a morte não faz assim: vemos que deixa os maduros, e colhe os verdes. E já se colhera só os frutos verdes, colhera frutos; mas a queixa minha é que deixa de colher os frutos, e colhe as flores: Flores apparuerunt in terra rostra, tempus putationis advenit (17). Apareceram as flores na nossa terra, não lhe aguardou mais tempo a morte: apareceram, desapareceram. Alerta, flores, que a primavera da vida é outono da morte. A foice segadora, que traz na mão, instrumento é do agosto, e não do abril; mas arma-se assim com ardilosa impropriedade a morte, ameaça as espigas, para que se desacautelem as flores. Há tal crueldade! Há tal engano! Não me queixo do golpe, senão do tempo: Flores apparuerunt, tempus putationis! Que haja tempo de florescer e tempo de cortar é natureza; mas que o tempo de florescer e o de cortar seja o mesmo! Que a idade mais florida seja a mais mortal! Que a vida mais digna de viver seja a mais sujeita à morte! E que haja império superior que domine este tirano! Que haja providência no mundo que o governe! Domine, non est tibi curae (18).
 
 

§ IV






As queixas da gentileza. Raquel, primeira alegoria dessas queixas. Nas leis de Labão tem precedência para a casa a maior idade; nas leis da morte tem precedência pare a sepultura a maior beleza. A formosura de Cristo transfigurado no Tabor foi a maior confirmação de sua pouca dura, porque era formosura de neve e de sol.

A estas queixas tão justificadas da idade, se seguem as da gentileza, não menos lastimosa, mas mais para lastimar. Por isso lá Jeremias, no pranto de Belém, as lágrimas que houveram de ser de Lia, trasladou-as aos olhos de Raquel, não porque houvessem de ser mais sentidamente choradas, mas porque haviam de ser mais lastimosamente ouvidas. Queixa-se a gentileza contra a morte, por conceder a tanto luzimento tão breves dies, a tanta representação tão pouco teatro. E, pois, as queixas da boca de Raquel são melhor ouvidas, seja Raquel a primeira alegoria destas queixas. Muito tenho reparado em quão desigualmente se houveram com Raquel quem lhe deu o ser e quem lho tirou: Labão e a morte. Pedia Jacó a Labão o prêmio dos primeiros sete anos que servira, e deu-lhe Labão a Lia em lugar de Raquel, alegando que Lia era a filha primeira, e que havia de preceder. Teve paciência Jacó, serviu outros sete anos, e em uma jornada, que depois fez de Betel a Belém, morreu Raquel, e ficou sepultado no caminho; e Lia, depois deste sucesso, viveu ainda muitos anos. Não sei se notais a desigualdade. De maneira que Labão, quando houve de dar casa a uma das filhas, reparou na prerrogativa dos anos, e precedeu Lia; e a morte, quando houve de dar sepultura a uma das irmãs, não reparou nos privilégios da idade, e precedeu Raquel. Pois, se se há de dar primeiro casa a Lia que a Raquel, porque tem mais anos Lia, porque se há de dar primeiro sepultura a Raquel que a Lia, se tem menos anos Raquel? É possível que para a casa há de Raquel ser a última, e para a sepultura a primeira? Sim, que isso é ser Raquel. Nas leis de Labão tem precedência pare a casa a maior idade; nas leis da morte tem precedência para a sepultura a maior beleza.

Desde a terra até o céu está estabelecida esta lei. Na terra a rosa, rainha das flores, é efêmera de um dia: toda aquela pompa branca, toda aquela ambição encarnada de que se veste, pela manhã são mantilhas, ao meio-dia galas, à noite mortalhas. No céu a lua, rainha das estrelas, quem a viu cheia, retrato da formosura, que logo a não visse minguante, depois da mudança? Quando resplandece com toda a roda, então se eclipsa; quando faz oposições ao sol, então a encobre a terra. Ajunte-se a formosura da terra com a do céu, e na união de ambas veremos o mesmo exemplo. Transfigurou-se Cristo no Tabor, apareceram logo no mesmo monte com o Senhor Moisés e Elias: Et loquebantur de excessu, quem completurus erat in Hierusalem(19). Há tal prática em tal ocasião! Uma vez que a formosura de Cristo quis fazer ostentação de suas galas, que logo os profetas lhe hajam de cortar os lutos? Sim, e muito a seu tempo, porque a mesma formosura que viam era profecia da morte em que falavam: loquebantur de excessu; de um excesso argüíam o outro, que quem excedia tanto na formosura não podia durar muito na vida. Quanto se disse no Tabor foram pregões deste desengano. No Tabor falaram os dois profetas, e falou S. Pedro. S. Pedro falou como néscio, porque cuidou que formosura tão grande podia permanecer muito nesta vida: Bonum est nos hic esse(20). Os profetas falaram como discretos, porque, tanto que viram o extremo da formosura, logo deram por infalível o excesso da morte: Loquebantur de excessu(21). Antes, se bem repararmos, a mesma formosura de Cristo no Tabor foi a maior confirmação de sua pouca dura. Dizem os evangelistas: Resplenduit facies ejus sicut sol: vestimenta autem ejus facta sunt alba sicut nix (Mt 17, 2): Que o rosto de Cristo ficou resplandecente como o sol, e vestiduras brancas como a neve. — Formosura de neve e sol é grande, mas de dias breves. Quando o sol se vê junto com a neve, são breves os dias do sol; quando a neve se vê junta com o sol, são poucas as horas de neve. Bem se viu: tanta neve e tanto sol, que duração tiveram? Sabe-se que foi de um só dia; não se sabe de quantas horas.

Oh! neve derretida a raios do sol! Oh! sol sepultado em ocasos de neve! que larga matéria de afinar a queixa ofereceis neste passo à minha oração, se eu tivera, não digo já eloqüência, mas a confiança de um Jerônimo! Os que leram a S. Jerônimo, ou na consolação de Juliano, sobre a morte de Faustina, ou no epitáfio de Paula a Eustóquio, ou nas memórias fúnebres de Marcela e de Fabíola, sei que hão de culpar o humilde do estilo, o encolhido do encarecimento, o tíbio ou o tímido dos afetos com que falo neste caso. Mas, como naqueles — posto que não maiores — era outra a pessoa que falava, e em outra língua e a outros ouvidos, obriga-me a mim a discrição a que remeta ao silêncio o enternecido destas queixas para que ouçamos o poderoso das suas.

§ V



As queixas da discrição. O maior inimigo da vida é o entendimento. Entender muito e viver muito, ou no entendimento é engano ou na vida milagre. A Árvore da Ciência, primeira origem da morte. O entendimento e a loucura de Davi. Nas cortes, é tal a oposição que tem entre si a vida e o entendimento, que ninguém os pode conservar juntos. Por que S. Pedro investe a Malco, o que trazia luz, em vez de arremeter aos que traziam as armas? Injustiças da morte com
a ciência.
 
 

Queixa-se finalmente a discrição — que sempre a discrição é a última em queixar-se — e tomara eu que ela tivera melhor intérprete para declarar com quanto fundamento se queixa. O maior inimigo da vida quem vos parece que será? 0 maior inimigo da vida é o entendimento. Tão madrasta se houve com o homem a natureza, que, produzindo tantos antídotos nas entranhas dos animais, dentro na alma do homem lhe criou o maior veneno. Se buscarmos a primeira origem da morte, na Árvore da Ciência pôs Deus o fruto da mortalidade: por onde os homens quiseram ser mais entendidos, por ali começaram a ser mortais. Até no mesmo Deus teve lugar esta terrível conseqüência. Houve de encarnar e morrer uma das Pessoas divinas, e por que mais o Filho, que alguma das outras? A verdadeira razão sabe-a Deus. Eu só sei que a Pessoa do Filho se atribui o entendimento, e que à Pessoa do Filho se uniu a mortalidade. Como o Verbo ab aeterno procedeu por entendimento, ab aeterno propendeu para mortal. Se isto foi em Deus, que será nos homens? Todos os homens são mortais, mas o mais entendido, mais mortal que todos. Naquela parábola das dez virgens, as bodas significam a morte, e é muito de notar que, sendo cinco as entendidas, e cinco as néscias, todas as cinco entendidas morreram primeiro. Entender muito e viver muito, ou no entendimento é engano, ou na vida milagre. A razão disto a meu juízo deve ser porque cada um sente como entende. Quem entende muito não pode sentir pouco, e quem sente muito não pode viver muito. O homem é vivente, sensitivo e racional: o racional apura o sensitivo, e o sensitivo apurado destrói o vivente.

Mas, como os homens igualmente amam a vida e se prezam do entendimento, daqui vem que se persuadem dificultosamente a esta triste filosofia. Dizia Davi a Deus: Da mihi intellectum, et vivam (Sl 118, 144): Senhor, dai-me entendimento, e viverei. — Ah! Davi, e como, não sabeis o que pedis: se quereis morrer, pedi embora a Deus que vos dê entendimento; mas, se quereis viver, pedi-lhe que vos tire o entendimento que tendes. — Não havemos de ir buscar a prova a outra parte. Vai depois disto Davi à corte del- rei Aquis, tem noticia que o querem matar, e faz-se doido. — E bem Davi, não éreis vós o que dizíeis a Deus que vos desse entendimento para viver? Pois, como agora, para vos desfazeis do entendimento? — Dantes governava-se Davi pelo discurso e agora pela experiência. Pelo discurso parecia-lhe a Davi que não havia coisa para viver como ser entendido; mas a experiência mostrou depois a Davi que era necessário ser desentendido para viver. E se não, diga-o aquele entendimento grande, do qual se temia mais Davi, que dos exércitos de Absalão. O maior entendimento de todo o reino de Israel naquele tempo era Aquitofel. E de que lhe aproveitou a Aquitofel o seu entendimento? De se matar com suas próprias mãos, por não querer seguir Absalão a verdade de seus conselhos. De sorte que é tal a oposição que tem entre si a vida e o entendimento — principalmente nas cortes— que ninguém os pode conservar ambos juntos. Ou haveis de deixar o entendimento, ou haveis de deixar a vida: ou endoidecer como Davi, ou matar-vos como Aquitofel. Se amais mais a vida que o entendimento, como Davi endoideceis: se amais mais o entendimento que a vida, como Aquitofel matais-vos. Não há remédio.

Já demos a razão disto enquanto natureza: demo- la agora enquanto sem-razão. Seja por um exemplo. Entraram pelo Hôrto os soldados que vinham prender a Cristo: mete mão à espada S. Pedro, investe a Marco, e fere-o. Sempre reparei muito nesta investida e neste golpe. Se Pedro quer defender a seu Mestre, avance aos esquadrões armados, invista e mate-se com ele. Mas a Malco? A Malco, que não trazia na mão mais que uma lanterna com que alumiava? Eis aí como trata o mundo as luzes. Em aparecendo a luz, todos os golpes a ela. Em vez de arremeter aos que traziam as armas, arremete ao que trazia a luz, porque de nenhuma coisa se dão os homens por mais ofendidos que da luz alheia. Se vierdes com exércitos armados: Cum gladiis et fustibus(22) — ter-vos-ão quando muito por inimigo, mas não vos farão mal; porém, se vos coube em sorte a lanterna, se Deus vos deu uma pouca de luz — ainda que não seja para luzir, senão para alumiar — fostes mofino, aparelhai a cabeça que há de vir S. Pedro sobre vós. Grande miséria! Que nos ofendam mais as luzes que as lanças, e que queiramos antes ser feridos que alumiados? Grande miséria outra vez! Que nos mostremos valentes contra uma luz desarmada, e que, em vez de tratarmos de resistir a quem se arma, só nos armemos contra quem alumia! Oh! desgraçadas luzes, em tempo que tanto reinam as trevas!

Mas, no meio desta desgraça tão grande, acho eu à luz duas razões muito maiores, com que se consolar. Os golpes que se atiraram a luz foram repreendidos por Cristo, e foram atirados por Pedro. Por Pedro, que antes desta ação tinha dormido três vezes, e depois dela negou outras três. Sabeis, luzes, quem vos persegue? Quem dorme antes, e quem há de negar depois: quem antes falta ao cuidado e depois há de faltar a fé. Cantará o galo, e ver-se-á certa a profecia de Cristo. De tudo o dito se colhe que, quando vemos faltar ante tempo as luzes, ou porque morrem, ou porque as matam, ou porque matam, não temos matéria de espanto, posto que a tenhamos grande de queixa: de espanto não, porque este é o mundo; de queixa sim, porque o governa Deus: Domine, non est tibi curae? — É possível, Senhor, que tendes providência, e que hão de viver as trevas e morrer as luzes? O néscio, sepultado nas trevas da ignorância, há de ter pazes com a morte, e o entendido, alumiado com as luzes da razão, há de andar em guerra com a vida? Ameaçando Davi os poderosos com o inevitável da morte, diz que os néscios e os entendidos todos haviam de morrer juntamente: Cum viderit sapientes morientes ,simul insipiens et stultus peribunt(23). Se assim fora, ainda era desigualdade: mas que a morte apressada seja tributo do entendimento, e a vida larga atributo da ignorância? Não lhes bastava aos néscios um atributo? Não lhes bastava serem infinitos no número, senão também eternos na duração? Que no paraíso dê frutos de morte a Árvore da Ciência, e que no mundo a ignorância seja árvore da vida! Que dentro de nós seja enfermidade mortal o entendimento, e que fora de nós seja delito mortal o uso da razão! Que, sendo o racional natureza, ninguém possa ser racional sob pena da vida! E que estas injustiças da morte sejam disposições da providência: Domine, non est tibi curae?
 
 

§ VI




O silêncio das queixas do amor materno. O que quer dizer Cristo quando diz que os pais que não aborrecem a seus filhos não o podem servir? O discípulo a quem Cristo nega licença para enterrar o pai, e a mãe que não aceita a licença para assistir à morte da filha.
 
 

Temos ouvido contra as sem-razões da morte as três queixosas, que no princípio lhe opusemos. Mas vejo reparar a todos que entre estas queixas, sendo tão naturais, se não ouçam as do maior afeto da natureza, as do amor materno. Digno é de reparo este silêncio, mas mais digna de admiração e memória a causa dele. Não se ouvem, nem se ouviram nesta ocasião as queixas do amor materno, porque se portou nas mais apertadas circunstâncias dela, tão fino que pareceu cruel, tão generoso que não pareceu amor. Faltou as dívidas da natureza, por não faltar às obrigações do ofício, e assistiu com tanta pontualidade onde servia, que pareceu que aborrecia onde amava. Oh! raro exemplo de servir a príncipes! Servir aos príncipes como Deus quer ser servido, não se pode chegar a mais. Diz Cristo no Evangelho: — Os pais que não aborrecem a seus filhos não me podem servir a mim.— É tão encarecida esta doutrina, que tem necessidade de explicação. Não quer dizer Cristo absolutamente que os pais aborreçam aos filhos, porque os documentos divinos não encontram os preceitos naturais; mas per dizer que, quando se encontrar o amor dos filhos com o serviço de Deus, de tal maneira se há de acudir ao serviço de Deus, como se se aborreceram os filhos. Este é o mais alto ponto a que Deus subiu a fineza com que deseja ser servido. E tal foi neste caso a com que vimos servidos os nossos príncipes. Chegou com a obra no servir, onde Deus chegou com o desejo em querer ser servido. Oh! espírito generoso, e, na maior desgraça, feliz! Não sei se diga que pudera estimar a ocasião, só por lograr a fineza. O certo é que se pode pôr em dúvida, se foi mais digna de inveja pelo que obrou, ou de lástima pelo que perdeu. Não se lê mais em semelhantes casos, nem das Lívias e das Rutílias, nem das Paulas e das Melânias, que tanto honraram com seu valor uma e outra Roma: a gentílica e a cristã. Mas se as matronas romanas tiraram às portuguesas o serem as primeiras, grande glória é de nossa nação que tirem as portuguesas às romanas o serem singulares.

Oh! como se havia de perder neste caso o  juízo de Salomão, se nele dera sentença! Na demanda das duas mães sobre os dois filhos, morto e vivo, julgou Salomão que a que mais amava era verdadeira mãe: e acertou. Nesta controvérsia também havia de julgar que o mais amado era o verdadeiro filho, mas enganara-se; porque, sendo um o assistido, e outro o deixado, o deixado era o filho, e o assistido não. Salvo se dissermos que ambos eram verdadeiros filhos, mas mais filho — e por isso
mais amado — aquele a quem se dá o ensino, que aquele a quem se dera o ser. Lembro-me que, pedindo um filho a Cristo licença pare ir enterrar a seu pai, o Senhor lha negou, porque estava em seu serviço. Grande moralidade acho na desproporção destes dois casos. No primeiro pede um filho licença ao rei para assistir à sepultura de seu pai, e nega-lha o rei: no segundo oferece licença o rei à mãe para assistir a morte de sua filha — e tal filha— e não aceita a mãe, mas tudo bem merecido. No primeiro caso a imperfeição com que a licença se pediu mereceu o rigor de se negar; no segundo caso a benignidade com que a licença se ofereceu mereceu a fineza de se não admitir! Oh! que grande usura é nos príncipes a benignidade! Sejam os príncipes liberais do que não custa nada, e serão os vassalos agradecidos no que talvez dá muito. Enfim, viram-se aqui emendadas as queixas de Marta. La antepunha-se a soledade ao ministério: aqui antepõe-se o ministério à soledade: Reliquit me solam ministrare (24).
 
 

§ VII




Respostas às três queixosas: por meio da morte, Maria eternizou a idade, melhorou a gentileza e canonizou a discrição. Não merece queixa quem morre fênix. Quais são os dias nossos de quem fala Jó? Como se torna possível o acrescentar espaços à eternidade? A eternidade de Deus e a eternidade dos homens.

Mas acudamos já pela Providência divina, e respondamos às nossas três queixosas, que é tempo. A todas três satisfaz Cristo com a mesma resposta. Maria optimam partem elegit(25). Não se queixe a idade por cortada, nem a discrição por emudecida, nem a gentileza por eclipsada, que para todos escolheu Maria a melhor parte. É verdade que morreu, mas por meio da morte eternizou a idade, melhorou a gentileza, canonizou a discrição. Vede se têm razão de estarem queixosas ou agradecidas.

Primeiramente eternizou a idade, porque corta-la foi artifício de a eternizar. Dizia Jó: In nidulo meo moriar, et sicut phoenix multiplicabo dies meos(26). Morrerei e multiplicarei meus dias: — Notável modo de falar! Parece que havia de dizer Jó: — Morrerei e acabarei meus dias — mas morrerei e multiplicarei meus dias: Moriar et multiplicabo dies meos? Como pode ser isto? O mesmo Jó disse como: sicut phoenix. Reparo, diz Jó, que eu não falo como homem: falo como fênix; o homem diz: morrerei e acabarei meus dias — porque com a morte acaba; a fênix, pelo contrário, diz: morrerei e multiplicarei meus dias — porque na fênix o cortar a vida é artifício de multiplicar a idade. Cale-se logo a idade queixosa, que não merece queixas quem morre fênix. Entre todas as mortes só uma há no mundo que não seja digna de sentimento: é a da fênix. Se a fênix morrera para acabar, fora sua morte mais lastimosa e mais digna de sentimento que todas, porque é única; mas como a fênix morre para renascer, como a fênix diminui a vida para multiplicar a idade, não é digna de lágrimas a sua morte, senão de aplausos. Mas contra estes aplausos pode replicar alguém que a nossa fênix, se bem se considera, não multiplicou os dias, porque perder os dias em uma parte, para os lograr em outra, é mudá-los, não é multiplicá-los. Que bem acudiu a esta réplica o mesmo Jó, com a diferença dos dias: Multipticabo dies meos. Notai que não diz multiplicarei os meus dias, senão enfaticamente os dias meus. Os dias desta vida são dias nossos. Se foram nossos, tivéramo-los em nosso poder, e estivera em nossa mão lográ-los. Mas estão em poder de tantos tiranos quantas são as misérias da vida: só os dias da eternidade são dias nossos, porque ninguém no-los pode tirar. Bem diz logo Jó que este modo de morrer é artificio de multiplicar, porque perder os dias que são alheios, para multiplicar os dias que são meus, é verdadeiramente acrescentar os dias: Multiplicabo dies meos.

Sendo, porém, estes dias, da eternidade, parece, com nova instância, que de nenhum modo se podiam multiplicar, porque a eternidade não admite multiplicação nem aumento. Mas este foi o impossível que venceu o engenho da nossa fênix: cortar o
passo a vida, para acrescentar espaços à eternidade. A eternidade de Deus não pode crescer: a dos homens sim. A eternidade de Deus não pode crescer, porque é eternidade sem princípio e sem fim. A eternidade dos homens pode crescer, porque, ainda que não tem fim, tem princípio. Não pode crescer à parte posta da parte dalém, mas pode crescer à parte ante da parte daquém. E assim, quanto se corta à vida tanto se acrescenta à eternidade. Quis também uma hora o profeta Miquéias dar aumentos à eternidade, mas, com licença sua, não acertou: Ambulabimus in viis Domini in aeternum et ultra (27): Adoraremos e serviremos a Deus por toda a eternidade, e ainda mais além.— Acertou o profeta com o acrescentamento, mas não acertou com a parte, que este acerto ficou para a eleição de Maria: Maria optimam partem elegit. O profeta quis acrescentar a eternidade pela parte dalém, imaginário: Maria acrescentou a eternidade pela parte daquém e foi acrescentamento verdadeiro. O profeta quis acrescentar a eternidade e guardar a vida: Maria cortou pela vida por acrescentar a eternidade. Só desta maneira podia pagar a Deus. O amor de Deus para conosco, falando neste sentido, tem duas eternidades, porque nos amou sem princípio, e nos há de amar sem fim. O nosso amor para com Deus tem uma só eternidade, porque, ainda que o havemos de amar sem fim, amamo-lo com princípio. E como Maria não podia pagar a Deus duas eternidades de amor com outras duas eternidades, deu-lhe uma, mas acrescentada: acrescentou à eternidade toda a parte que tirou à vida: Optimam partem elegit(28).
 
 

§ VIII





Resposta à gentileza: morrer não foi perder, foi acrescentar a formosura. Quanta vantagem faz a formosura do espírito à formosura do corpo. Maria enterrou-se flor pare se congelar diamante; desfez-se em cinzas pare se formar em estrela. A morte e o tempo, tiranos da formosura. Por que quis Deus que não tivessem os homens notícia da sepultura de Moisés?

Também a gentileza não tem razão nas suas queixas. O morrer não foi perder, foi melhorar a formosura. Oh! se a cegueira do mundo tivera olhos para ver esta verdade, que menos idolatradas foram suas aparências! Apareceu um anjo a S. João no Apocalipse, e, com ser águia S. João, cegaram-no tanto os raios daquela formosura, que se lançou por terra para o adorar. Notável caso! S. João não tinha visto a Cristo na transfiguração? Não o tinha visto ressuscitado? Não o tinha visto subir ao céu, com tanta glória e majestade? Pois, se a vista gloriosa de Cristo não causou estes efeitos em S. João, como a vista de um anjo o cega quase a idólatra de sua formosura? Aqui vereis quanta vantagem faz a formosura do espírito à formosura do corpo. A formosura de Cristo, ainda que celestial, ainda que gloriosa, era formosura do corpo; a formosura do anjo era formosura do espírito, e com a formosura de um espírito nenhuma comparação tem a maior formosura do corpo. Virá tempo, e será depois da ressurreição universal, quando a natureza humana, restituída à sua natureza, poderá gozar juntamente ambas estas formosuras, e, suposto que antes de chegar àquele termo não se pode gozar mais que uma só, despir-se da formosura do corpo, por se revestir da formosura da alma, foi escolher das duas a melhor parte: Optimam partem elegit. Oh! que admiráveis transformações de formosura faz invisivelmente a morte debaixo da terra! Os químicos não acharam até agora a pedra filosofal, porque não fizeram ensaio nas pedras de uma sepultura. Falando Deus a Abrão na gloriosa descendência de seus filhos, umas vezes comparou-os a pó, e outras a estrelas, para ensinar — diz Filo — que o caminho de se fazerem estrelas era desfazerem-se em pó. Que cuidais que é uma sepultura, senão uma oficina de estrelas? Ainda a mesma natureza produz maiores quilates de formosura em baixo que em cima da terra. As flores, formosura breve, criam-se na superfície: as pedras preciosas, formosura permanente, no centro. Julgue agora a enganada gentileza se foi injuriosa a Raquel a sepultura, ou se soube escolher Maria a melhor parte. Enterrou-se flor, pare se congelar diamante; desfez-se em cinzas, pare se formar em estrela.

Mas, quando por meio da morte não alcançara a gentileza a melhoria da transformação, pergunto: e fora pequeno benefício livrar-se, por esta via, dos danos da mudança? Este engano aparente, a que os homens chamam formosura, ainda tem mais inimigos que a vida, com ser tão frágil. A vida tem contra si a morte: a formosura, ainda antes da morte, tem contra si a mesma vida: Forma bonum fragile est, quantumque accedit ad annos, fit minor. Os primeiros tiranos da formosura são os anos, e a sua primeira morte é o tempo. Debaixo do império da morte acaba, debaixo da tirania do tempo muda-se; e se alguém perguntara à formosura qual lhe está melhor, se a morte ou a mudança, não há dúvida que havia de responder: Antes morta que mudada. A formosura morta sustenta-se na memória do que foi: a formosura mudada afronta-se no testemunho do que é. A vitória que da formosura alcança a morte é um rendimento secreto: cobre-o a terra: a vitória que da formosura alcança o tempo é um triunfo público: todos a vêem; e trazer o epitáfio no rosto, ou tê-lo na sepultura, vai muito a dizer. Parece esta razão demasiadamente humana, mas Deus a fez divina. A maior formosura do mundo — sem ser afronta em um homem — foi a de Moisés, tão grande que era necessário cobrir o rosto com um véu, para que não cegassem os olhos que o viam. Morre
Moisés, sepulta-o Deus com suas próprias mãos: Et non cognovit homo sepulchrum ejus (Dt 34,6): E ninguém soube até hoje onde está a sua sepultura. — Pois, por que não quis Deus que tivessem os homens notícia da sepultura de Moisés? A razão não é menos que de Santo Agostinho: Ne faciem, quae radiaverat, supressam videreret: Porque aquele rosto, em que se tinham visto tantos resplendores, não se visse mudado. — De maneira que ocultou Deus o sepulcro de Moisés, não porque os homens o não vissem morto, mas porque não vissem sua formosura mudada: morta sim, mudada não; ninguém a há de ver. Assim trata Deus a formosura a que quer fazer o maior favor, e tão certo é o juízo do mesmo Deus, que lhe está melhor à formosura a morte que a mudança. Chegada, pois, a gentileza humana àquele termo preciso de sua perfeição, em que o parar é vedado, o crescer impossível e o diminuir forçoso, fazer tréguas com a morte, por não se sujeitar à tirania do tempo, se não foi eleger a melhor parte, foi ao menos. aceitar o melhor partido: Maria optimam partem elegit.
 
 

§ IX





Resposta à discrição: se a morte a emudeceu, a morte a canonizou. Em que consiste a verdadeira discrição? Por que Deus no princípio do mundo, aprovando todas as criaturas, só ao homem não aprovou? A eleição por providência e a eleição por conformidade. Mais perfeito modo de eleição é eleger por conformidade que eleger por deliberação. A caridade e a obediência na morte de Cristo.

Finalmente, a discrição não tem razão de queixar-se, porque, se a morte a emudeceu, a morte a canonizou. A discrição verdadeira não consiste em saber dizer: consiste em saber morrer. Até à morte ninguém se pode chamar com certeza néscio ou discreto. O último acerto ou o último erro é o que dá nome ao juízo de toda a vida. Por isso Deus, no princípio do mundo, aprovando todas as criaturas, só ao homem não aprovou, porque a aprovação do homem está sempre dependendo do fim. Non in exordio, sed in fine laudatur homo, disse Santo Ambrósio: Não se pode seguramente louvar o homem nem quando começa, nem quando é, senão quando acaba de ser. — Enquanto não chegou o dia último, estava em opiniões a prudência das dez virgens: assentou-se a morte na suprema cadeira, definiu quais eram as néscias e quais as prudentes. Em nenhuma coisa se vê tanto o acerto da eleição, como naquilo que, acertado uma vez, não pode ter mudança, ou errado uma vez, não pode ter emenda. É a eleição de que depende tudo e uma parte; que encerra em si o todo, e por isso a melhor parte: Optimam partem elegit.

Para prova desta última verdade, quero acudir a um escrúpulo, com que vejo me estão ouvindo desde o princípio, ainda os ouvintes de menos delicada consciência. A morte de que falamos foi caso, não foi eleição: logo, impropriamente parece lhe aplicamos as palavras: Maria optimam partem elegit. Primeiramente digo que o ser caso não impede ser eleição. No mesmo texto o temos. Onde a Vulgata lê: Optimam partem elegit: Escolheu a melhor parte — o original grego tem: Optimam sortem elegit: escolheu a melhor sorte. — Sorte é caso, e contudo chama o texto eleição: elegit  — porque não implica ser a mesma coisa caso e ser eleição. Mas há respostas que são mais fáceis de provar que de entender. Como pode ser eleição o que é caso? Ponhamos a questão em termos mais cristãos. O que vulgarmente chamamos caso e providência: providência nenhuma outra coisa é que aquela disposição ordenada dos decretos divinos. Como pode logo ser eleição nossa o que é disposição de Deus? Respondo que por virtude da conformidade. Todas as vezes que nos conformamos com as ordens de Deus, fazemos que a eleição, que é sua, seja também nossa. Neste sentido dizia Davi: Mandata tua elegi (Sl 118, 173); Senhor, eu elegi os vossos preceitos. — Nos preceitos elege quem manda, e não quem obedece: Davi obedecia, Deus mandava; logo, a eleição era de Deus. Pois se a eleição era de Deus, como diz Davi que é sua: Mandata tua elegi? Porque Davi, obedecendo, conformava-se com a vontade de Deus, e, por virtude da conformidade, a que era eleição de Deus era também eleição de Davi. Tal foi a eleição neste caso: ela voluntariamente forçosa, como ele felizmente adverso. Maria optimam partem elegit: Foi eleição de Deus, e foi eleição de Maria. Em Deus foi eleição por providência, em Maria foi
eleição por conformidade, e em ambos foi eleição do melhor: em Deus porque escolheu para si a Maria, em Maria porque se foi para Deus: Optimam partem elegit.

Só poderá cuidar alguém que eleger por conformidade será algum imperfeito modo de eleição. Digo e acabo que mais perfeito modo de eleição e  eleger por conformidade que eleger por deliberação, porque, quando elegemos por deliberação, queremos
pela vontade própria: quando elegemos por conformidade, queremos pela vontade divina. Quando eu elejo, faço a minha vontade: quando me conformo, faço minha a vontade de Deus. E não pode haver mais perfeito ato que aquele em que Deus e eu queremos pela mesma vontade. Não há ação mais parecida às de Cristo. As ações de Cristo eram divinas e humanas pela união das naturezas: esta ação é humana e divina pela transformação das vontades. Filosofia notável! Que se acrescente o meritório onde parece que se diminui o voluntário! O sacrifício mais voluntário que houve no mundo foi o da morte de Cristo: Oblatus est quia ipse voluit(29). Contudo, é muito para notar que se não atribui à morte de Cristo principalmente a caridade, senão a obediência: Factus obediens usque ad mortem(30). Pois, por que mais a obediência que a caridade? Porque a caridade segue os impulsos da vontade própria, a obediência segue a eleição da vontade alheia. E não era tão generoso ato em Cristo sacrificar-se à morte, por satisfazer à sua vontade, quanto por se conformar com a divina: Non mea, sed tua voluntas fiat(31). Todas aquelas repugnâncias do Hôrto foram encaminhadas, não a escusar a morte, senão a apurar a conformidade. Oh! que generoso conformar! Oh! que discreto morrer! Pareceu caso, e foi eleição; pareceu força, e foi vontade. E se alguma coisa teve de repugnante ou de violento, foi para dar circunstância ao mérito e essência ao sacrifício. Mude logo a discrição a linguagem, e dê graças à morte em vez de queixas, pois só na morte ficou qualificada e consumada a discrição, quando naquele ponto em que acaba tudo, e de que depende tudo, entre o voluntário e preciso, soube escolher Maria a melhor parte: Optimam partem elegit.
 
 

§ X





As queixas contra a morte e as queixas contra a vida. Como escolher, com Maria, a melhor parte?
 
 

Tenho acabado e satisfeito, se me não engano, às nossas três queixosas. Mas se elas tiveram tempo pare se queixar de novo, e eu forças para dizer, e vós paciência para ouvir, é certo que as queixas que se fizeram tanto sem razão contra esta morte se haviam de converter todas, e com muita razão, contra nossas vidas. Oh! idades cegas! Oh! gentilezas enganadas! Oh! discrições mal-entendidas! Vive a idade como se não houvera morte. Vive a gentileza como se não passara o tempo. Vive a discrição como se não temera o juízo. Oh! acabemos já algum dia de ser cegos. Ponhamos diante dos olhos estas imagens funestas, retratos de nós mesmos, que não sem particular providência nos mete Deus em casa tão repetidamente. Apenas há caso ilustre em Portugal que se não visse coberta de lutos este ano, e ainda não é acabado! Já que os parentes morrem para si e para Deus, morram também para nós. Deixem-nos por herdeiros de seus desenganos. Consideremos que foram o que somos. Que havemos de ser o que são. Que ali vai a parar tudo. E que tudo o que ali não aproveita é nada. Se nos dá confianças a idade, reparemos quão frágil é, e quão sujeita ao menor acidente. Se a gentileza nos engana, desengane-nos uma caveira, que é o que só tem durável a maior formosura. Se a discrição, finalmente, nos desvanece, saibamos ser discretos, que é saber salvar-nos. Já que tanta vida se tem dado ao mundo e à vaidade, demos sequer a Deus essa última parte que nos restar, que sempre será a melhor. E desta maneira ficaremos escolhendo com Maria a melhor parte: Maria optimam partem elegit.


(1) Maria elegeu a melhor parte (Lc 10,42).

(2) Virá como ladrão o dia do Senhor (2 Pdr 3, 10).

(3) Levanta-te, Senhor, entra no teu repouso, tu e a arca da tua santificação (Sl 131,8).

(4) Quem é esta que sobe terrível como um exército bem ordenado (Cânt 3, 6 e 6, 3).

(5) Senhor, a ti não se te dá (Lc 10, 40)?

(6) Sentada aos pés do Senhor (ibid. 39).

(7) Deixou-me só (ibid. 40).

(8) Senhor, a ti não se te dá (ibid. 40) ?

(9) A qual se apresentou, e disse (ibid. 40).

(10) Eis que puseste os meus dias em medida (Sl 38, 6).

(11) Os dias da minha peregrinação são poucos e trabalhosos (Gên 47, 9).

(12) Os meus dias se abreviam, e só me resta o sepulcro (Jó 17, 1).

(13) A morte irá diante da sua face (Háb 3, 5).

(14) E apareceu um cavalo, e o que estava montado sobre ele tinha por nome Morte (Apc 6, 8).

(15) A Vulgata traz volumen, livro e não falx, foice: E eis que vi um livro que voava (Zac 5, 1).

(16) Na Vulgata: equus pallidus: cavalo amarelo, na tradução clássica do Pe. Antônio Pereira de Figueiredo.

(17) Apareceram as flores na nossa terra, chegou o tempo da poda (Cânt 2, 12).

(18) Senhor, a ti não se te dá (Lc 10, 40).

(19) E falavam da sua saída deste mundo, que havia de cumprir em Jerusalém (Lc 9, 31).

(20) Bom é que nós aqui estejamos (ibid. 33).

(21) Falavam da sua saída deste mundo (ibid. 31).

(22) Com espadas e varapaus (Mt 26, 47).

(23) Quando vir morrer os sábios, igualmente o insensato e o néscio perecerão (Sl 48, 11).

(24) Deixou-me só com o serviço da casa (Lc 10, 40).

(25) Maria escolheu a melhor parte (Lc 10, 42).

(26) A Vulgata em vez de phoenix traz palma: Eu morrerei no meu ninhozinho, e multiplicarei os meus dias como a palmeira (Jó 29,18).

(27) Na Vulgata: — Ambulabimus in nomines Dei nostri, in aeternum et ultra: — Andaremos em nome do Senhor nosso Deus, ate a eternidade, e além dela (Miq 4, 5).

(28) Escolheu a melhor parte (Lc 10, 42).

(29) Foi oferecido porque ele mesmo quis (Is 53, 7).

(30) Feito obediente até à morte (Flp 2, 8).

(31) Não se faça a minha vontade, senão a tua (Lc 22, 42).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
 

Apoio
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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão nas exéquias de D. Maria de Ataíde, de Padre António Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio