Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Tu quis es?

Quid dicis de te ipso[1]?

§1

O juízo de cada um para consigo, matéria gravíssima em qualquer parte do mundo, e em Portugal ainda mais grave e importante.

Também hoje temos juízo, e é já este o terceiro. No primeiro sermão vimos o juízo de Deus para com os homens, no segundo o juízo dos homens uns para com os outros, neste hoje, que é o terceiro, veremos o juízo de cada um para consigo: Tu quis es? Quid dicis de te ipso? Contêm estas palavras uma proposta ou embaixada que fizeram ao Batista os sacerdotes e levitas, mandados pelo Supremo Conselho eclesiástico de Jerusalém. Querem dizer: Tu quis es? Vós quem sois? Quid dicis de te ipso? Que dizeis de vós mesmo? Esta questão determino tratar, porque, sendo matéria gravíssima, e de grande importância em qualquer parte do mundo, em Portugal é ainda ao presente mais grave e mais importante.

§II

Uma pergunta e duas questões. Nesta matéria de vós quem sois todo o homem mente duas vezes: uma vez mente-se a si, e outra vez mente-nos a nós. Ninguém é tão reto juiz de si mesmo que, ou diga o que é, ou seja o que diz. A resposta do anjo Rafael ao velho Tobias, e a resposta do anjo a Abraão no vale de Mambré. Por que repetem tanto os evangelistas e por que exageram tanto os santos doutores da Igreja a resposta do Batista: E confessou, e não negou, e confessou que não era o Messias?

Tu quis es? Quid dicis de te ipso? A primeira coisa em que reparo, é que estes embaixadores de uma pergunta fizeram duas questões: iam perguntar ao Batista quem era, e para isto parece que bastava dizer: Vós quem sois? E eles disseram: Vós quem sois, e vós quem dizeis que sois? Tu quis es? Quid dicis de te ipso. Ora, os embaixadores não eram homens de capa e espada, senão cá do foro da Igreja: Sacerdotes et levitas - mas eles falaram muito discretamente, e entenderam o negócio, como quem tinha grandes noticias do mundo. Quando iam saber do Batista quem era, perguntam-lhe: Vós quem sois, e vós quem dizeis que sois, porque os homens, quando testemunham de si mesmos, uma coisa é o que são, a outra coisa é o que dizem. Ninguém há neste mundo que se descreva com sua definição: todos se enganam no gênero, e também nas diferenças. Que diferentes coisas são ordinariamente o que dizes de vós e o que sois! E o pior é que muitas vezes não somos coisas diferentes: Porque o que sois é nenhuma coisa, e o que dizes são infinitas coisas. Nesta matéria de vós quem sois, todo homem mente duas vezes: uma vez mente-se a si, e outra mente-nos a nós: mente-se a si porque sempre cuida mais do que é: e mente-nos a nós porque sempre diz mais do que cuida. Bem distinguiram logo os embaixadores o tu quis es do quid dicis de te ipso; e quando iam perguntar ao batista o que era, perguntaram o que era e o que dizia, porque ninguém há tão reto juiz de si mesmo que, ou diga que é, ou seja o que diz.

Entrou o anjo Rafael a falar com o velho Tobias em trajo de caminhante ou ainda de caminheiro; e antes de Tobias entregar o filho ao anjo para aquela peregrinação tão sabida, fez-lhe esta pergunta: Rogo te, indica mihi, de qua domo, et de qua tribu es tu (Tob 5, 16)? Por vida vossa, que me digais de que família e de que tribo sois. - A pergunta verdadeiramente era para embaraçar um anjo, mas a resposta foi notável: Ego sum Azarias, Ananiae magni filius (ibid. 18): Eu sou Azarias, filho de Ananias, o Magno. - Como se disséssemos de Carlos Magno, de Pompeu Magno, de Alexandre Magno. Há tal resposta de um anjo! Em Deus há pai e filho, nos homens e nos animais há pais e filhos, nas mesmas plantas há seu modo de geração: só nos anjos, de todos os viventes do mundo entrando o criado e o inchado- só nos anjos não há geração, nem pai, nem filho. Pois, se nos anjos não há geração, se nos anjos não há nem pode haver pai e filhos, como diz o anjo Rafael que é filho do grande Ananias? Aposto eu que estava agora cuidando alguém que, para encarecimento do meu assunto, havia eu de dizer que em matéria de vós quem sois, até os anjos mentem. Não digo eu esses arrojamentos: este lugar é de verdades sólidas. Os anjos não podem mentir nem errar - falo dos bons. - Mas agora fica a dificuldade mais apertada. Pois, se os anjos não podem entender, nem dizer contra a verdade, como diz o anjo Rafael que é filho do grande Ananias? Variamente respondem os doutores à dúvida: eu o farei com uma comparação. Entra um comediante no teatro, representando a Lúcifer, e, batendo com o tridente, começa a fulminar blasfêmias contra Deus; entra outro representando a Nero, e, tirando a espada, manda que cortem cabeças e que corram tios de sangue cristão por Roma; sai outro representando um gentio e encontrando uma estátua de Júpiter, prostra-se por terra, bate nos peitos e oferece incenso. Pergunto agora: aquele primeiro homem é blasfemo? Aquele segundo homem é tirano? Aquele terceiro homem é idólatra? Claro está que não: o primeiro não é blasfemo, ainda que diz blasfêmias, porque ele não é Lúcifer, faz figura de Lúcifer; o segundo não é tirano, ainda que manda matar cristãos, porque ele não é Nero, faz figura de Nero; o terceiro não é idólatra, ainda que se ajoelha diante da estátua de Júpiter, porque ele não é gentio, faz figura de gentio. O mesmo digo do nosso caso. O anjo não mentiu nem pode mentir: ainda que disse uma coisa que pareça alheia da vontade, porque ele não era homem, fazia figura de homem, e falou como se o fora.

Seja outro anjo fiador desta minha resposta. Apareceram a Abraão no vale de Mambré três anjos, um de maior autoridade, a quem ele adorou, e outros dois menores que o acompanhavam. E como Sara, mulher de Abraão, fosse estéril, prometeu-lhe o anjo principal que dali a um ano, por aquele mesmo tempo tomaria, se Deus lhe desse vida e que já então teria Sara um filho: Revertens veniam ad te tempore isto, vita comite, et habebit filium Sara uxor tua[2]. - Quem haverá que não repare naquele vita convite: se eu for vivo - dito por um anjo? E não só falou o anjo por estes termos uma vez, senão duas, porque, pondo Sara dúvida à promessa, tornou ele a ratificar a sua palavra, dizendo: Juva condictum revertar ad te hoc eodem tempore, vita comite[3]. Pois, se os anjos por natureza são imortais, e a sua vida por nenhum acontecimento pode faltar, por que promete este anjo, não absoluta, senão condicionalmente, que tornará dali a um ano, se for vivo: vita comite? A razão, não só humana, mas angélica, foi porque este anjo, e os outros dois, como declara o texto, apareceram a Abraão em figura de homens: Apparuerunt ei tres viri (Gên. 18, 2) - e ele os tratou, e eles se deixaram tratar em tudo como homens, aceitando a sua mesa e os outros agasalhos da hospedagem. E porque os homens prudentes na consideração da incerteza e contingência da morte, quando prometem alguma coisa de futuro, acrescentam: se Deus me der vida, por isso o anjo acrescentou a mesma condição: vita comite - porque não falava como anjo que era, senão como homem, cuja figura representava. Do mesmo modo, e com a mesma e ainda maior propriedade, falou o anjo Rafael na resposta que deu a Tobias. Fazia figura de homem, e para fazer bem a figura, uma vez que lhe perguntaram: Vós quem sois? - não havia de dizer o que era, havia de dizer o que não era: e assim o fez, porque não há propriedade mais própria dos homens que, perguntados o que são, dizerem uma coisa e serem outra. E notai que vindo o anjo vestido em um pelote, e representando um caminheiro, parece que era mais natural dizer que era filho de um lavrador, ou de um pastor daqueles campos, e, contudo, não disse senão que era filho de Ananias, o Grande, porque não há homem de pé tão de pé, nem caminheiro tão caminheiro que, se lhe perguntarem donde vem, não diga que vem lá do grande Ananias: Ego sum Ananiae magni filius,

Assim como Tobias ao anjo, assim perguntaram hoje os sacerdotes e levitas ao Batista: Tu confessos est et non negavit, et confessus est: Quia non sum ego Christus (Jo, 1, 20): E confessou, e não negou, e confessou que não era ele o Messias. - Em toda a Sagrada Escritura não há tal modo de falar como este. Repetiu o evangelista três vezes a mesma afirmação - dizem os doutores - porque lhe pareceu que fora tão grande coisa confessar o Batista que não era o Messias, que, se o disseram menos vezes, nem ele se acabara de explicar, nem nós acabáramos de o crer.Ora, a mim nunca me pareceu esta ação do Batista tão grande como a fazem. Que havia de fazer o Batista: havia de dizer que era o Messias? O Batista nem o podia cuidar com razão, nem o podia dizer em consciência: não o podia cuidar com razão, porque ele sabia mui bem que era da tribo de Levi, e que o Messias havia de ser da tribo real de Judá: não o podia dizer em consciência, porque seria pecar na mais grave matéria que houve nunca no mundo. Pois, por que repetem tanto os evangelistas, e por que exageram tanto todos os santos e doutores da Igreja esta ação do Batista? Porque é tão natural aos homens cuidarem mais de si do que são e dizerem mais de si do que cuidam, que não negar o Batista a razão, e não atropelar a consciência neste caso, se tem pela maior de todas as façanhas humanas. Que lhe perguntassem a um homem: Tu quis es? E que estivesse em sua mão dizer que era o Messias, e que o não fizesse! Diga-o três vezes o evangelista, para que acabe de o crer a fé: Et confessus est, et non negavit, et confessus est: Quia non sum ego Christus.

§ III

A uma légua de Belém, sem ser em Palestina, os sacerdotes e levitas haviam de encontrar o Messias. Verdadeiramente se vêem hoje muitas coisas daquelas que os profetas antigamente deram por sinais dos tempos do Messias. Os sinais dos tempos do Messias em Portugal.

Enfim, os embaixadores se tornaram do deserto sem acharem quem lhes dissesse que era o Messias. Mas povoado sei eu donde eles não haviam de levar a embaixada debalde. Se os sacerdotes e levitas desembarcaram em outras praias, e vieram pelas casas mais altas perguntando: Tu quis es? - como é certo que a poucos passos haviam de achar o Messias! E aonde? A uma légua de Belém, sem ser em Palestina. Um havia de dizer que ele é o Messias, porque a ele se deve a nossa Redenção: Ipse veniet, et salvabit nos[4]. Outro havia de dizer que ele é o Messias, porque sobre seus ombros carrega todo o peso da monarquia: Cujus imperium super humerum ejus[5].Outro havia de dizer que ele é o Messias, porque o seu conselho é o nosso anjo da guarda: Et vocabitur magni consilii angelus[6]. Outro havia de dizer que ele é o Messias, porque na sua pena consiste a nossa saúde: Et sanitas in pennis ejus[7]. Outro havia de dizer que ele é o Messias, porque a paz que estes anos se gozou, foi fruto da vara de sua justiça: Erit in diebus ejus justitia, et abundantia pacis[8]. Outro havia de dizer que é o Messias, porque ele é o Deus das armas, que com seu valor nos sustenta: Vocabitur nomen ejus Deus fortis[9]. Só havia de haver quem dissesse, que era o Messias por se apressar aceleradamente a vencer e tirar despojos: Voca nomen ejus: Accelera, festina, spolia detrahere[10] - porque, ainda que às guerras nos inclinamos com grande valor, às vitórias caminhamos com grande madureza.

Por todas estas razões me parece que havia de haver maior demanda na nossa corte sobre o messiado do que a houve entre os apóstolos sobre a maioria, E verdadeiramente que se vêem hoje muitas coisas daquelas que os profetas antigamente deram por sinais dos tempos do Messias. O Messias, dizem os profetas que havia de dar olhos a cegos, pés a mancos, limpeza a leprosos, e vida a mortos: Tunc saliet sicut cervus claudus, et aperta erit lingua mutorum, etc[11]. E todos estes milagres vemos em nossos dias. Quantos cegos vemos hoje com olhos, quantos mancos e paralíticos postos em pés, quantos aleijados com mãos, e com muita mão, quantos leprosos limpos e quantos mortos, ou que deveram estar mortos e sepultados, ressuscitados e com vida? Pois, o poder, em cuja virtude se fazem estes milagres, como se há de negar de Messias? Dizem mais os profetas, que no tempo do Messias, as lanças e as espadas se converterão em foices: Conflabunt gladios suos in vomeres, et lancear suas in falces[12]. E em tempo que, ou por benefício da paz presente, ou por esquecimento da guerra futura, as armas que se fizeram para ferir, se ocupam em segar: em tempo que as caixas tocam a marchar, e as tropas marcham a recolher, e em que os despojos que haviam de ornar os tempos e armar os armazéns comuns, enchem os celeiros particulares: como não há de haver quem se jacte de Messias? Dizem mais os profetas, que no tempo do Messias os montes se humilhariam, e se encheriam os vales: Omnis vallis implebitur, et omnis mons et collis humiliabitur[13]. Oh! quantos montes que em tempos passados tocavam com o cume as estrelas, se vêem hoje, ou já se não vêem de humilhados, e quantos vales, pelo contrário, pouco há tão humildes, hoje tão levantados e tão cheios! E a fortuna que fez estes altibaixos, ou seja desigualdade, ou se chame justiça, como se não há de ter por fortuna de Messias? Dizem mais os profetas, que no tempo do Messias viveriam os lobos juntos com os cordeiros, e que o leão e o boi se sustentariam do mesmo mantimento: Habitabit lupus cum agno, et leo quasi bos comedet paleas[14]. Se os lobos não fossem tão sagazes em despintar a pele, com os olhos se pudera provar hoje o cumprimento desta profecia. Ainda mais que dos lobos, me temera eu dos leões com palhas na boca. Mas, quando há quem domestique leões a que sejam animais de presépio, os autores destas indústrias, ou destes milagres, por que não presumiriam de Messias?

§ IV

A grande analogia da nossa era com a do Messias, A condição principal do Messias: ser bênção para todos. Quando o anjo anunciou à Senhora que havia de ser Mãe do Messias, por que não diz que reinará o Messias na casa de Abraão, ou na casa de Isac, senão na casa de Jacó? A desigualdade das bênçãos de Jacó. A bênção dos animais e das plantas na criação. Se cada um se medira com os compassos da sua esfera, quantos se haviam de achar gigantes! A bênção de José e de Rúben. Crescer por crescimento e crescer por crescença.

Não há dúvida que tem grande analogia a nossa era com a do Messias, e que parece podem competir os milagres - não digo os vícios - dos nossos tempos com as felicidades dos seus. Mas pelo mesmo caso, que se parecem tanto, não quisera eu que a muita semelhança mal entendida acertara de se nos converter em tentação. E porque não fio tanto de nossa modéstia, como da de S. João Batista, saiba cada um e desengane-se, por mais que se pinte maravilhoso no seu conceito, que lhe falta para Messias a condição principal. E qual é a principal condição de Messias? É aquela com que o definiu e sibilou Deus, quando o prometeu a Abraão: In semine tuo benedicentur omnes (Gên. 22, 18): No Messias, que nascer de vós, serão abençoados todos. - Se tendes bênção para todos, dou-vos licença que entreis em presunção de Messias: mas se tendes bênção para uns, e para outros não, despedi-vos desse pensamento.

Quando o anjo anunciou à Senhora que havia de ser mãe do Messias, acrescentou estas palavras: Dabit illi Dominus Deus sedem David patris ejus: et regnabit in domo Jacob in aeternum (Lc. 1, 32): Dar-lhe-á o Senhor Deus o trono de Davi seu pai, e reinará na casa de Jacó para sempre. - Nesta última cláusula reparam com razão todos os intérpretes: por que diz o anjo que reinará o Messias na casa de Jacó, e não na casa de Abraão ou na casa de Isac? Se Abraão e Isac não foram reis, também Jacó não teve cetro nem coroa: antes, Abraão foi vencedor famoso de cinco reis, que em certo modo é mais que ser rei. Isac e Abraão eram mais antigos que Jacó, e a promessa do Messias foi feita a Abraão, quando acabava de embainhar a espada daquela grande façanha do sacrifício de Isac: pois, por que não diz o anjo que reinará o Messias na casa de Abraão, ou na casa de Isac, senão na casa de Jacó? Vede a razão, que é altíssima. Na casa de Abraão houve dois filhos, Isac e Ismael: mas para Isac houve bênção, para Ismael não houve bênção. Na casa de Isac houve outros dois filhos, Esaú e Jacó; mas houve bênção para Jacó, e não houve bênção para Esaú. Na casa de Jacó, pelo contrário, houve doze filhos, e foi tão abençoada aquela casa que para todos os doze filhos houve bênção. Por isso, pois, diz o anjo que reinará o Messias na casa de Jacó, e não na casa de Isac, nem na casa de Abraão, porque o Messias não é como Abraão, nem como Isac, que tem bênção para uns, e para outros não: é como Jacó, filho de um, e neto do outro, no qual se cumpriu a profecia, e teve bênção para todos: In semine tuo benedicentur omnes. Só quem teve bênção para todos os do mundo foi verdadeiro Messias do mundo, e só quem tiver bênção para todos os de um reino será verdadeiro Messias dele.

Se lançarmos os olhos pelo nosso na mudança ou fortuna presente, não me atreverei eu a provar que todos têm bênção. Mas que têm bênção muitos mais daqueles que o cuidam as mesmas bênçãos de Jacó no-lo farão evidente. Chamou Jacó a seus filhos, para lhes deitar a bênção a todos antes de morrer, e é notável a diferença de palavras e comparações com que fez esta última cerimônia, Chegou Judas, e deu-lhe bênção de leão: Sedens accubuisti ut leo[15]. Chegou Neftali, e deu lhe bênção de cervo. Nephtali cervus emissus[16]. Chegou Dá, e deu-lhe bênção de serpente: Fia Dan coluber in via[17]. Chegou Issacar, e deu-lhe bênção de jumento: Issachar, asinus fortis[18]. Chegou Benjamim, e deu-lhe bênção de lobo: Benjamin, lupus rapax[19]. Valha-me Deus, que desigualdade de bênçãos, umas a uns tão altas, e outras a outros tão baixas! A um bênção de serpente e a outro de cervo? A um bênção de leão, a outro de lobo, a outro de jumento? Sim, e era pai quem as dava, e eram filhos os que as recebiam, para que se entenda que a diversidade das bênçãos não argúi desigualdade de amor em quem as dá senão diferença de merecimentos em quem as recebe. A Judas, que tinha valor e generosidade, dá-se-lhe bênção de leão; a Neftali, que tinha presteza, mas não tinha valor, dá-se-lhe bênção de cervo; a Dá, que tinha prudência, mas tinha peçonha, dá-se-lhe bênção de serpente: a Issacar, que tinha forças, e não tinha juízo, dá-se-lhe bênção de jumento: a Benjamim, que tinha ousadia, mas junta com voracidade, dá-se-lhe bênção de lobo. Não estão mui bem repartidas as bênçãos? Quem haverá que o negue? Mas sabeis por que ninguém está contente com a sua bênção? Porque a todos falta o conhecimento do tu qui es. Conheça-se cada um, e estarão contentes todos. Conheça o leão, que é leão; conheça o cervo, que é cervo: conheça a serpente, que é serpente; conheça o lobo, que é lobo; conheça o jumento que é jumento, e logo estarão contentes. Mas, como todos se cegam no juízo de si mesmos, todos querem bênção fora da sua espécie.

No princípio do mundo deitou o Criador a sua bênção aos animais e às plantas: Benedixit eis (Gên. I, 22). Disse-lhes a todos que crescessem: Crescite, et multiplicamini (Gên. 1, 22); mas nota a Escritura que tudo isto foi secundum species suas (Gên. 1, 24): cada criatura conforme a sua espécie. - Contente-se cada um de crescer dentro de sua espécie, contente-se cada um de crescer dentro da esfera do talento que Deus lhe deu, e logo conhecerão todos que tem bênção cada um no seu elemento. No ar, contente-se a andorinha com ser andorinha: e que maior bênção que poder morar nos palácios dos reis? No mar, contente-se a rêmora com ser rêmora: e que maior fortuna que, sendo tamanina, poder ter mão em uma nau da índia? Na terra, contente-se a formiga com ser formiga: e que maior felicidade que ter o celeiro provido para o verão e para o inverno? Mas por todos os elementos se adoece de melancolia, porque nenhum se contenta com crescer dentro da sua espécie: a andorinha quer subir a águia, a rêmora quer crescer a baleia, a formiga quer inchar a elefante. Porque as formigas se fazem elefantes não basta toda a terra para um formigueiro. Nas plantas temos iguais exemplos deste engano e desta verdade. A árvore mais anã é maior que a erva gigante; e, contudo, de quantas coisas aquenta o sol, nenhuma lhe é mais agradecida que esta erva. Desde que o sol nasce, até que se põe, vai sempre a erva gigante acompanhando-o desde a terra, seguindo-o com tanta inclinação, e adorando-o com tanta reverência, como vemos. - Pois, ervazinha do campo, que agradecimentos ao sol são estes? Não vedes tantas árvores e tantas plantas que recebem do sol tanto mais que vós? Pois, porque lhe haveis vós de ser a mais agradecida de todas? - Porque me meço dentro da minha esfera: conheço, que sou erva, e acho que ninguém deve ir mais ao sol que eu, porque me fez gigante das ervas. - Se cada um se medira com os compassos da sua esfera, oh! quantos se haviam de achar gigantes! Por que vós haveis de descontentar da vossa bênção, por que haveis de ser ingrato ao sol, se vos fez gigante das ervas? Não digo bem: se das ervas vos fez gigante? Oh! quantos gigantes há desagradecidos! Muito é de notar a tristeza de um cipreste em tanta altura! Se o cipreste lá de cima olha para o vulgo das plantas, e ainda para a nobreza das arvores que lhe ficam abaixo, ele vivera não só contente, senão ainda soberbo. Mas o cipreste lá do alto descobre os cedros do Monte Líbano, e como vê que a natureza os fez torres, vive ele descontente de ser pirâmide. Como cada um se não mete e se não mede dentro da sua esfera, ainda que seja cipreste, que tantas vezes vê seus troncos sobre os altares, não pode viver contente, Não digo que não trate cada um de crescer, mas conheça cada um o que é: Tu quis es? E depois cresça conforme a sua espécie: Secundum speciem suam.

Desenganemo-nos, que o crescer fora da própria espécie não é aumento, é monstruosidade: ao menos bênção não é. Uma das coisas dignas de reparo que tiveram as bênçãos de Jacó a seus filhos, foi a bênção de Rúben e de José. A José deu-lhe Jacó por bênção que crescesse: Filius accrescens Joseph, filius accrescens[20]: A Rúben deu-lhe Jacó por bênção que crescesse: Ruben, primogenitus meus, non crescas[21]. É possível que também um non crescas se dá por bênção! É possível que também pode ser bênção o não crescer! Diga-o a lua: nenhuma bênção se podia dar à lua mais venturosa, que o não crescer, por que se não crescera, não minguara. A quantos tem servido o demasiado crescer, não de bênção, senão de maldição! Mas, por que razão em José é bênção o crescer, e em Rúben é bênção o não crescer? Os procedimentos e as ações do mesmo Rúben e do mesmo José o digam. O crescer nos que o merecem é crescimento: o crescer nos que o não merecem, é crescença: e o crescimento é grandeza, a crescença é fealdade. Se podeis crescer por crescimento, crescei com a bênção de Deus: Filius accrescens; mas, se não podeis crescer senão por crescença, tende por bênção o não crescer: Non crestas. Conheça cada um a sua esfera: Tu quis es - e acharão todos, ou quase todos, que têm a bênção: In semine tuo benedicentur omnes. Com este conhecimento acabarão de entender que tem entre si o verdadeiro Messias, como disse o Batista: Medius vestrum stetit quem vos nescitis[22] - e deixarão de o ir buscar aos desertos, onde o não há: Et confessus est, et non negavit, guia non sum ego Christus.

§V

Continuação das perguntas ao Batista: Sois vós porventura Elias. Os Elias daquém Tejo. Cuidais que sois um homem único, e sois homens de milhares. A capa de Elias e a capa de Aias, Aqueles a quem o zelo come, e aqueles que comem o zelo. Por onde se hão de conhecer uns e outros: O dedo meminho de Roboão e a cintura de Salomão. Os extremos do zelo de Elias. Por que o Espírito Santo compara o zelo ao inferno. O zelo nas visões de Ezequiel.

Desenganados os embaixadores de que o Batista não era o Messias, foram por diante com a questão do Tu quis es, e perguntaram se era ao menos Elias: Elias es tu (Jo. I, 21)? Sois vós porventura Elias? - Às vezes as menores tentações, principalmente em gente escrupulosa, são mais dificultosas de vencer que as maiores; mas a constância do Batista de todos os modos era invencível. Assim como à primeira pergunta respondeu que não era Messias: Non sum ego Christus - assim respondeu à segunda que não era Elias: Non sum. Que tem irem-se buscar as coisas onde as não há! Diz o texto que: Haec facta sunt trans Jordanem (Jo. 1, 18): que isto aconteceu da banda dalém do Jordão. - Se vierem os embaixadores da banda daquém do Tejo, eu vos prometo que eles acharam a Elias; Tu quis es? Vós quem sois? - Elias es tu? Sois porventura Elias? - Porventura? E disso se duvida? Pois, quem é o Elias, senão eu? O meu zelo do bem comum, o meu zelo da fé e da cristandade, o meu zelo do serviço do rei, o meu zelo da conservação e aumento da pátria. Se ser Elias é isto, ninguém é Elias como eu. Ao menos na presunção eu vo-lo concedo. Só isso me parece que tendes de Elias: cuidar que não há outro Elias, senão vós. Dizia Elias antigamente: Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum: et relictus sum ego solus[23]: Eu só sou o que zelo a honra de Deus: todos os outros são idólatras e não tem Deus no mundo mais que a mim. - No mesmo dia em que Elias disse isto, lhe mostrou Deus que tinha na mesma terra sete mil que não dobravam o joelho diante de Baal: Derelinquam mihi in Israel septem milha virorum, quorum genua non sunt incurvata ante Baal[24]. Quando Elias cuida que não há outro Elias no mundo como ele, há quando menos sete mil. Cuidais que sois um homem único, e não só sois homem de dúzias, senão de milhares, ou de milheiros: há sete mil como vós, e pode ser que melhores.

Não se queixará Elias de lhe medirmos o seu espírito pela sua capa, pois ele assim o fez. Ora, cotejemos a capa de Elias com outra doutro profeta quase do mesmo nome - Aías - e verá Elias, o que se reputa por único, quanto vai de capa a capa, de espírito a espírito, e de zelo a zelo. Encontrou-se uma vez Aías com Jeroboão - então era criado de Salomão, e não rei, - e trazia o profeta naqueles dias uma capa nova: Pallium suum novum (3 Rs. 11, 30), diz o texto, para que não cuideis que é malícia reparar na novidade das capas: o mesmo Espírito Santo, autor das Escrituras repara nestas novidades, Enfim, Aías tirou a sua capa nova dos ombros, puxou logo de umas tesouras, cortou uma vez, cortou outra, até onze vezes, com que ficou a capa dividida em doze partes, e disse que do mesmo modo se dividiria o reino de Salomão em doze tribos, das quais as dez seriam de Jeroboão: Ecce ego scindam regnum de manu Salomonis, et Babo tibi decem tribus[25] . Assim o disse o profeta, e assim foi porque o reino das doze tribos se dividiu em reino de Israel e reino de Judá. Mas vamos à capa. De maneira que Aías, antes da divisão dos reinos, tinha a sua capa muito nova e muito sã; depois que os reinos se dividiram, anda com a capa feita em retalhos. Oh! quantos vemos vestidos hoje com o avesso da capa de Aías! Antes da divisão dos reinos traziam a capa em retalhos; depois que os reinos se dividiram, trazem uma capa muito nova e muito sã. Pois, por certo que esta era a ocasião em que as capas se haviam de fazer em retalhos: um retalho para cobrir o soldado que anda despido; outro retalho para vestir o órfão, cujo pai morreu pelejando na campanha; outro retalho para fazer uma mantilha à viúva, que por zelo da pátria chegou a tirar o manto, por não faltar à décima, Que diz agora Elias? Quid dicis de te ipso? Cortastes algum dia algum retalho da vossa capa? Tiraste algum fio dela? Calar. Eis aí os vossos zelos. Mas vamos aos nossos.

Já eu me contentara com que os nossos zelosos, ou zeladores, fossem como Elias. Todos dizem: daremos as capas mas o menos avarento é o que guarda só a sua. Quando Elias se partiu para o outro mundo, não teve de que testar, mais que da sua capa, que deixou a Eliseu. Se Deus hoje quisesse levar para o Paraíso terreal alguns dos valentes Elias do nosso Carmelo, para depois pelejarem com o nosso anticristo, eu vos prometo que, se quisessem fazer bem e verdadeiramente seu testamento, que haviam de testar de ametade das capas do lugar. E então, muito comidos e muito carcomidos do zelo: Zelus domus tuae comedit me[26]! Vós estareis comidos do zelo, mas estais muito bem comidos. Há uns a quem o zelo come, e há outros que comem do zelo. E por onde se hão de conhecer uns e outros? Tomando-lhes as medidas pela cintura. Se o zelo vos come a vós, a vossa substância converte-se em zelo: se vós comeis o zelo o vosso zelo converte-se-vos em substância. Oh! quantos zelosos há que todo o seu zelo se lhes converte em substância! Tomem-se as medidas, como dizia Roboão, e achar-se-á que sois mais grosso hoje pelo dedo meminho do que éreis antigamente pela cintura. Bom proveito vos faça o zelo que tão bem se vos logra: sinal é que o comeis vós a ele, e não ele a vós. Mas, ou o vosso zelo coma ou jejue - que me não quero meter nisso -.Ao menos venhamos a um partido. Se o zelo não há de comer, jejue em todos; e, se há de comer, coma de todos: seja o vosso zelo convosco, e com os vossos, como com os demais, e não haverá quem se queixe dele.

Zeloso Elias contra os pecados do povo, chegou a tal extremo, que disse estas palavras: Vivit Dominus, in cujas conspectu sto, si erit tos et pluvia (3 Rs. 17, 1): Vive Deus, em cuja presença estou, que não há de chover do céu, nem cair uma gota de orvalho sobre esta má terra. - Assim o jurou Elias, e assim o cumpriu, porque três anos inteiros estiveram os céus como se fossem de bronze, sem os abrandarem, nem os clamores dos homens, nem os balidos e mugidos dos animais inocentes, que pastavam pelos campos e pereciam de sede. Secaram-se as fontes, secaram-se os rios, e até as lágrimas se secaram, sendo circunstância cruel de calamidade, não poderem chorar o mal os mesmos que o padeciam. Tudo isto via Elias podendo-o remediar facilmente, por que Deus lhe entregara na mão as chaves das nuvens: mas ia o rigor por diante. Tudo estava seco, mas as entranhas de Elias mais que tudo. Que se portasse com este rigor um profeta, não me espanto, que a quem conhece bem a graveza dos pecados, todo o castigo, que não é o eterno, lhe parece muito pouco. O que me espanta é que sofressem os homens a Elias. É possível que se há de estar abrasando o mundo, e que tenha Elias em sua mão o remédio, e que o não queira dar? É possível que esteja abrasando o mundo, e que não querendo Elias dar o remédio que tem em sua mão, que sofram os homens a Elias? Sim. Sabeis por que o sofriam? Porque ainda que Elias tinha as chaves, tanto fechava as fontes para si como para os demais. Os outros estavam necessitados, e Elias andava mendigando; os outros estavam a ponto de morrer, e Elias vivia de milagre; os outros secavam-se à sede, e Elias abrasava-se e mirrava-se. Isto sim que é ser zeloso. Mas, que na vossa casa corram as fontes, e que nas outras se sequem! Que sobre as vossas searas chovam as nuvens a rios, e que sobre as outras fira o sol a raios! Isto não é zelo. Se o tempo pede que havia sol, sequem-se todos: Qui solem suum oriri facit super bonus et malos[27]. E se é razão que haja chuva, molhem-se todos: Qui pluit super justos et injustos[28]. E se o mesmo zelo ditar que entre os maus e bons, entre os justos e os injustos haja diferença, haja diferença, mas seja qual convém: o mal carregue para os maus, mas seja para todos os maus; e o bem incline para os bons, mas seja para todos os bons. Esta é a condição do verdadeiro zelo: Dura sicut infernus aemulatio (Cânt. 8, 6): diz o Espírito Santo que o zelo é como o inferno. - Notável comparação! O zelo, uma virtude tanto do céu, há de comparar-se ao inferno? Sim: não conheceis as virtudes do inferno. Sabeis por que se compara o zelo ao inferno? Porque o inferno é um fogo que a nenhum bom ofende e a nenhum mau perdoa. Mas o fogo do vosso zelo é assim: entre os maus tem seus predestinados, a quem não toca, e entre os bons tem seus preceitos, a quem abrasa. Oh! rigor mais que infernal! Não digo já que sejais como os santos do paraíso: ao menos não sereis como o fogo do inferno? E então - muito prezados de Elias! - quando muito tereis a sua capa. Elias foi-se para o céu, e deixou a Eliseu a sua capa. O zelo foi-se, e ficou a capa do zelo. E quantas maldades se cometem debaixo desta honrada capa!

Levou Deus um dia em espírito ao profeta Ezequiel a Jerusalém, e o que viu o profeta foi uma parede ou fachada em que estava um ídolo do zelo: Et ecoe idolum zeli in ipso introitu[29]. - Cuidas tu, Ezequiel, diz Deus, que não há aqui mais que o que aparece? Ora, rompe essa parede, e verás. - Rompeu a parede Ezequiel, entrou, e viu uma casa em que estavam pintadas pelas paredes cobras, lagartos, basiliscos, serpentes, e outros monstros horríveis, e no meio setenta homens de cãs, que com turíbulos na mão os incensavam: Et septuaginta viri de senioribus domus Israel, stantium ante pictura, et unusquisque habebat thuribulum in manu sua[30]. Adiante - diz Deus a Ezequiel. - Passa Ezequiel a outtra parede: Et ecce sedebant mulheres plangentes Adonidem (Ez. 8, 14): E viu muitas mulheres assentadas que estavam chorando por Adônis. - Sabida é a fábula, ou a história de Adônis, e as gentilidades que nasceram de sua gentileza: e por este estavam chorando vestidas de luto e desgrenhadas. - Por diante, Ezequiel - diz Deus terceira vez. - Passa Ezequiel a terceira parede: Et ecce quasi viginti quinque viri dorso habentes contra templum Domini (ibid, 16): E viu vinte e cinco homens que estavam com as costas viradas para o templo do Senhor. - Et faties ad orientem; et adorabant ad ortum solis: E todos estavam com os olhos postos no oriente, e com os joelhos em terra, adorando ao sol que nascia. - Eis aqui o que Deus mostrou a Ezequiel, e o que passa no mundo, ainda que se não veja. Se olhardes aos homens, e para as primeiras paredes, não vereis mais que um ídolo do zelo. Tão zelosos e tão zeladores que parecem uns idólatras do zelo; mas detrás dessa parede do zelo, que é o que se faz? Uns estão chorando por Adônis; outros estão adorando o sol que nasce; outros estão incensando altares proibidos; e muitos, ainda mal, com as costas viradas para o templo de Deus. Por fora não há mais que zelo, mas dentro há cobras e lagartos, há basiliscos e serpentes, há monstros e monstruosidades, há coisas que estão fechadas a três paredes. Elias por fora, idolatrias por dentro. Se houvesse quem rompesse paredes oh! quantas coisas havia de ver o mundo! Este é o zelo, estes são os zelosos, estes são os Elias: Elias es tu.

§ VI

A terceira pergunta dos sacerdotes e levitas: Já que não sois Elias, ao menos sois profeta? Os profetas da corte de Portugal. Por onde se hão de conhecer os verdadeiros profetas. Os quatrocentos profetas de el-rei Acab, e o profeta Miquéias. Os profetas hão-se de pesar, não se hão de contar.

Ouvida a resposta do Batista, que não era Elias, instaram a terceira vez os embaixadores, e perguntaram: Propheta es tu (Jo. 1, 21)? Já que não sois Elias, ao menos sois profeta? - A esta pergunta respondeu o Batista ainda mais seca e mais abreviadamente: Non: Não. - Já sabeis que havemos de fazer a mesma pergunta na nossa terra. Propheta es tu? Quid dicis de te ipso? Vós que tantas coisas dizeis de vós, sois também profeta? Propheta, et plusquam propheta[31]. Os vossos discursos são vaticínios; as vossas proposições são revelações; os vossos ditames são profecias; os vossos futuros não têm contingência: o que sucede depois é tudo o que dissestes antes; tendes inteligências na secretaria do Espírito Santo: não se decreta lá coisa que se não registre primeiro convosco. Basta isto? Ainda tendes mais. Se se tratam matérias de estado, sois um profeta Daniel; se se tratam matérias de guerra, sois um profeta Isaías; se se tratam matérias de mar, sois um profeta Jonas; se se tratam matérias eclesiásticas sois um profeta Ezequiel; se fazeis advertências aos reis, sois um profeta Natã; se chorais as calamidades do povo, sois um profeta Jeremias; se pedis socorros ao céu, sois um profeta Baruc; e se tendes algum interesse, como tendes muitos, sois um profeta Balaão. Muitas graças sejam dadas a Deus, que nos deu tantos profetas na nossa idade. Não debalde sertão prognosticadas tantas felicidades ao nosso reino. Não poderá ele deixar de ser muito glorioso, tendo dentro em si tantos e tais profetas. Cristo, Senhor nosso, nasceu entre dois animais, morreu entre dois ladrões e transfigurou-se entre dois profetas; entre dois animais esteve pobre, entre dois ladrões esteve crucificado, entre dois profetas esteve glorioso. Tenham os reis profetas ao lado e eles terão seguras as suas glórias. Mas, que profetas? Moisés e Elias: um morto, outro vivo, mas ambos do outro mundo. Ora, já que importa tanto ao reino o ter profetas, examinemos o propheta es tu, e vejamos por onde se hão de conhecer os verdadeiros profetas.

Primeiramente advirto que os profetas não se hão de conhecer nem avaliar pelo número. Ainda que sejam mais os que dizem uma coisa, nem por isso se não de ter por profetas. Ouvi uma grande história do Terceiro Livro dos Reis. Havendo três anos que el-rei Acab estava em paz com todas as nações vizinhas, entrou-lhe em pensamento se iria fazer guerra a el-rei da Síria, o qual lhe tinha tomado a cidade e terras de Rainot Galaad. Para isto chamou o conselho dos profetas, e diz o texto sagrado que se ajuntaram quatrocentos profetas: Congregavit rex Israel prophetas, quadringentos circiter viros (3 Rs. 22, 6). A proposta foi esta: Ire debeo in Ramoth Galaad ad bellandum, an quiescere? Devo ir fazer guerra a Romot Galaad, ou aquietar-me? E a razão da proposta era: An ignoratis quod nostra sit Ramoth Galaad, et negligimus tollere earn de marrar regis Syriae (3 Rs. 22, 3)? Que as terras de Ramot eram daquela coroa, e que parecia negligência não as recuperarem da mão dos sírios. - Ouvida a proposta e a razão dela, responderam todos os profetas a uma voz que se fizesse a guerra, que Deus daria a Sua Majestade vitória: Ascende, et dabit eam Dominus in manu tua[32]. Comeste bom anúncio dos profetas resolveu Acab de fazer a guerra, mas para entrar nela com vantagem, pediu a el-rei Josafá, seu confederado,que o quisesse ajudar na empresa. Disse Josafá que sim, mas que se houvesse algum profeta do Senhor, folgaria que o consultassem também. Respondeu Acab que ali havia um, Miquéias, homem a quem ele aborrecia muito, porque sempre lhe falava contra o gosto, e nunca lhe profetizara bem: Remansit vir urus, sed ego odi eum, quia non prophetat mihi bonum, sed malum[33]. Levou-se logo recado a Miquéias que viesse, e diz o texto que o que deu o recado disse a Miquéias que, suposto que el-rei tinha quatrocentos profetas que lhe aconselhavam a guerra, que fosse ele também da mesma opinião, e que falasse ao gosto: Sit sermo tuus similis eorum, et loquere Bona[34]'. Que responderia Miquéias? O que deve fazer em semelhantes casos todo o homem de bem: Vivit dominus, quia quodcumque mihi dixerit Dominus, hoc loquar (3 Rs. 22, 14): Vive Deus, que não hei de dizer outra coisa, senão o que o mesmo Deus me inspirar e o que entender em minha consciência.

Finalmente, chegou Miquéias à presença dos reis: propôs-se-lhe o caso, respondeu que se não fizesse a guerra, porque se havia de perder o rei e o exército. Notável encontro de profetas! Que vos parece que devia fazer Acab neste caso: por uma parte, quatrocentos profetas que lhe aconselhavam que fizesse a guerra, e por outra um profeta dizendo que a não fizesse? Resolveu el-rei Acab o que eu lhe aconselhara nas circunstâncias presentes, que fora da opinião de Miquéias. Mandou que se fizesse a guerra, e isto por três razões: Primeira porque havia muitos anos que estava em paz com todos os príncipes vizinhos: e, quando as armas estão desembaraçadas e ociosas, é bem que se empreguem nas gloriosas empresas; segunda, porque as de Ramot Gallaad pertenciam à sua coroa, e as terras da coroa hão de fazer os reis o possível e o impossível por que não estejam em mãos de inimigos: cada torrão das terras conquistadas, se se espremer, há de deitar muito sangue de vassalos, e o que custou este preço, não se há de dar por nenhum preço; terceira, e principal razão, porque ainda que as razões de Miquéias fossem boas, estavam pela outra parte quatrocentos profetas, a quem parecia o contrário: e nas matérias públicas, é bem que se conformem os reis, quanto puder ser, com o sentimento comum. Só por esta última razão - quando não houvera outras - aconselhara eu a Acab que, nas circunstâncias presentes, fizesse a guerra, e isto ainda depois de ouvir a Miquéias, em cujo parecer não havia risco, porque os ditames práticos devem-se mudar todas as vezes que se mudam as circunstâncias. O médico, conforme os preceitos da arte, manda que se corte o braço encarcerado, para que se salve o corpo; mas, se o enfermo repugna, e não se acomoda, tem a medicina outro ditame prático, com que manda aplicar remédios menos violentos, ainda que sejam menos seguros. Conforme a este ditame, seguiu el-rei Acab o parecer dos quatrocentos profetas, e resolveu que se fizesse a guerra: tocam-se as trombetas, marcha o exército, dá-se a batalha sobre Ramot, mas a poucas horas de peleja ficou o exército desbaratado, e Acab, perdido, Notável caso! Vede como são diversos os sucessos e os juízos humanos, e a diferença que vai de profetas a profetas. De uma parte estavam quatrocentos profetas, da outra parte estava um só profeta: o rei inclinou para a parte onde estavam quatrocentos, e o sucesso caiu para a parte onde estava um, Por isso digo que as profecias não se hão de julgar pelo número. As profecias chamam-se na Escritura peso: Onus Ninive, Onus Assyriae, Onus Aegypti: Peso de Nínive, quer dizer profeta de Nínive; peso de Assíria, quer dizer profecia de Assíria; peso de Egito, quer dizer profecia do Egito, Os profetas hão-se de pesar, não se hão de contar. Os quatrocentos profetas, contados, eram mais que Miquéias; Miquéias, pesado, era mais que os quatrocentos.

§ VII

Por onde se hão de conhecer os profetas? Os olhos, o coração e os sucessos. Os portugueses e as entranhas dos homens sacrificados aos deuses. O sinal dos profetas no Deuteronômio. Os profetas de antes e os profetas de depois. O escárnio da profecia na Paixão de Cristo. Profetizar depois de levar na cabeça é profecia de quem tem os olhos tapados.

Suposto, pois, que os profetas se não hão de conhecer pelo número, por onde se hão de conhecer? Por três coisas: pelos olhos, pelo coração e pelos sucessos. Conhecem-se os verdadeiros profetas pelos olhos, porque o ver é o fundamento de profetizar. Os profetas na Escritura chamam-se videntes: os que vêem. Só os que vêem são profetas, Assim como a mais nobre profecia sobrenatural consiste na visão, assim a mais certa profecia natural consiste na vista. Só quem viu pode profetizar naturalmente com certeza. E a razão é muito clara. A profecia humana consiste no verdadeiro discurso, o discurso verdadeiro não se pode fazer sem todas as notícias; e todas as notícias só as pode ter quem viu com os olhos. Nenhuma coisa houve mais assentada na antiguidade, que ser inabitável a zona tórrida; e as razões com que os filósofos o provavam, era ao parecer, tão evidentes, que ninguém havia que o negasse. Descobriram, finalmente, os pilotos e marinheiros portugueses as costas da África e da América, e souberam mais e filosofaram melhor sobre um só dia de vista, que todos os sábios e filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação, Os discursos de quem não viu são discursos; os ditames de quem viu são profecias.

O outro sinal da profecia é o coração, porque, conforme cada um tem o coração, assim profetiza. Os antigos, quando queriam prognosticar o futuro, sacrificavam os animais, consultavam-lhes as entranhas, e, conforme o que viam nelas, assim prognosticavam. Não consultavam a cabeça que é o assento do entendimento, senão as entranhas, que é o lugar do amor, porque não prognostica melhor quem melhor entende, senão quem mais ama. E este costume era geral em toda a Europa antes da vinda de Cristo, e os portugueses tinham uma grande singularidade nele entre os outros gentios. Os outros consultavam as entranhas dos animais: os portugueses consultavam as entranhas dos homens. Assim o diz Estrabo no livro terceiro:Lusitanis vetus mos erat ex intestinis hominum extra prospicere, atque inde omina et divinationes captare[35]: Era costume dos antigos portugueses - diz Estrabo - consultar as entranhas dos homens que sacrificavam, e delas conjecturar e adivinhar os futuros. - A superstição era falsa, mas a alegoria era muito verdadeira. Não há lume de profecia mais certo no mundo que consultar as entranhas dos homens. E de que homens? De todos? Não. Dos sacrificados. As entranhas dos sacrificados eram as que consultavam os antigos: primeiro faziam o sacrifício, então consultavam as entranhas. Se quereis profetizar os futuros, consultar as entranhas dos homens sacrificados: consultem-se as entranhas dos que se sacrificaram e dos que se sacrificam, e o que elas disserem isso se tenha por profecia. Porém, consultar entranhas de quem não se sacrificou, nem se sacrifica, nem se há de sacrificar, é não querer profecias verdadeiras: é querer cegar o presente e não acertar o futuro.

O último sinal de conhecer profetas são os sucessos. No Deuteronômio prometeu Deus a seu povo que lhe daria profetas, e o sinal que lhe deu para os conhecer foi só este: Hoc vobis signum: quod propheta praedixerit, et non evenerit hoc Dominus non est locutus (Dt, 18, 22): Quando duvidardes de algum se é profeta ou não, observareis esta regra: se o que ele disser antes suceder depois, tende-o por verdadeiro profeta; mas, se o que ele não suceder, tende-o por profeta falso. - Não pode haver sinal nem mais fácil nem mais certo. Sabeis a quais haveis de ter por profetas? Sabeis de quais haveis de cuidar que acertarão com os futuros? Aqueles de quem tiverdes experiência que tudo, ou quase tudo o que disseram antes, veio a suceder depois. Este ditame seguiu Faraó com José, Nabucodonosor com Daniel, e todos os príncipes prudentes com seus conselheiros. Mas assim como há profetas de antes, assim há profetas de depois. Há muitos mui prezados de profetas que, depois de acontecerem os maus sucessos, então profetizam pelo arrependimento o que fora melhor ter profetizado antes pelo discurso. Este foi um dos tormentos da Paixão de Cristo. Ataram a Cristo um pano pelos olhos, davam-lhe com as mãos sacrílegas na sagrada cabeça, e diziam por escárnio que profetizasse quem lhe dera: Prophetiza nobis, Christe, quis est qui te percussit[36] Profetizar depois de levar na cabeça é profecia de quem tem os olhos tapados: é escárnio da Paixão de Cristo. Não haveis de profetizar quem vos deu, senão quem vos pode dar, porque é melhor reparar os golpes que curá-los, e, se o sucesso mostrar que a profecia foi certa, a quem a disser tende-o por profeta: Propheta es tu.

§ VIII

A última pergunta dos sacerdotes e levitas ao Batista: Quem sois? Se os embaixadores lhe perguntavam quem era, como lhes responde o que fazia? Se Cristo diz que o Batista era Elias, como diz o mesmo Batista que não era Elias? Quando vos perguntarem quem sois, não vades revelar o nobiliário de vossos avós: ide ver a matrícula de vossas ações. Dois reparos à Gramática Portuguesa nos vocábulos de nobiliário. A verdadeira definição de fidalguia.

Cansados, finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batista que não era Messias, nem Elias, nem profeta, pediram-lhe, finalmente, que pois eles não acertavam a perguntar, lhes dissesse ele quem era. A esta instância pôde deixar de deferir o Batista. E que vos parece que responderia? Ego suum vox clamantis in deserto (Jo. 1, 23). Eu sou uma voz que clama no deserto. - Verdadeiramente não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao Batista o que fazia, então estava bem respondido com a voz que clamava no deserto, porque o que o Batista fazia no deserto era dar vozes e clamar; mas, se os embaixadores perguntavam ao Batista quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu discretissimamente. Quando lhe perguntavam quem era, respondeu o que fazia, porque cada um é o que faz, e não outra coisa. As coisas definem-se pela essência: o Batista definiuse pelas ações, porque as ações de cada um são sua essência. Definiu-se pelo que fazia, para declarar o que era.

Daqui se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de ponderar. O Batista, perguntado se era Elias, respondeu que não era Elias: Non sum. E Cristo, no capítulo onze de S. Mateus, disse que o Batista era Elias: Joannes Baptista ipse est Elias (Mt. 11, 14). Pois, se Cristo diz que o Batista era Elias, como diz o mesmo Batista que não era Elias? Nem o Batista podia enganar, nem Cristo podia enganarse: como se hão de concordar logo estes textos? Muito facilmente. O Batista era Elias e não era Elias: não era Elias, porque as pessoas de Elias e do Batista eram diversas: era Elias, porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas. A modéstia do Batista disse que não era Elias, pela diversidade das pessoas; a verdade de Cristo, afirmou que era Elias, pela uniformidade das ações. Era Elias, porque fazia ações de Elias. Quem faz ações de Elias, é Elias, quem fizer ações de Batista, será Batista, e quem as fizer de Judas, será Judas. Cada um é as suas ações, e não é outra coisa: Oh! que grande doutrina esta para o lugar em que estamos! Quando vos perguntarem quem sois, não vedes a matrícula de vossas ações. O que fazeis, isso sois, nada mais. Quando ao Batista lhe perguntaram quem era, não disse que se chamava João, nem era filho de Zacarias: não se definiu pelos pais nem pelo apelido. Só de suas ações formou a sua definição: Ego vox clamantis.

Muito tempo há que tenho dois escândalos contra a nossa Gramática Portuguesa nos vocábulos do nobiliário. A fidalguia chamam-lhe qualidade e chamam-lhe sangue. A qualidade é um dos dez predicamentos a que reduziram todas as coisas os filósofos. O sangue é um dos quatro humores de que se compõe o temperamento do corpo humano. Digo, pois, que a chamada fidalguia não é somente qualidade, nem somente sangue, mas é de todos os dez predicamentos, e de todos, os quatro humores. Há fidalguia que é sangue, e por isso há tantos sanguinolentos; há fidalguia que é melancolia, e por isso há tantos descontentes; há fidalguia, que é cólera, e por isso há tantos mal sofridos e insofríveis; e há fidalguia que é fleuma, e por isso há tantos que prestam para tão pouco. De maneira que os que adoecem de fidalguia, não só lhes peca a enfermidade no sangue, senão em todos os quatro humores. O mesmo passa nos dez predicamentos. Há fidalguia que é substância, porque alguns não têm mais substância que a sua fidalguia; há fidalguia que é quantidade: são fidalgos porque têm muito de seu; há fidalguia que é qualidade, porque muitos, não se pode negar, são muito qualificados; há fidalguia que é relação: são fidalgos por certos respeitos; há fidalguia que é paixão: são apaixonados de fidalguia; há fidalguia que é ubi: são fidalgos, porque ocupam grandes lugares; há fidalguia que é sitio, e desta casta é a dos títulos, que estão assentados, e os outros em pé; há fidalguia que é hábito: são fidalgos, porque andam mais bem vestidos; há fidalguia que é duração: fidalgos por antigüidade. E qual destas é a verdadeira fidalguia? Nenhuma. A verdadeira fidalguia é ação. Ao predicamento da ação é que pertence a verdadeira fidalguia. Disse o grande fundador de Lisboa: Nam gentis, et proavos, et quae non fecimus ipsi, vix ea nostra voco[37]. As ações generosas, e não os pais ilustres, são os que fazem fidalgos. Cada um é suas ações, e não é mais nem menos, como o Batista: Ego vox clamantis in deserto.

§ IX

Os dois documentos do sermão: fundar as eleições nas ações, e segurar a predestinação nas ações. A ordem dos animais e do homem na visão de Ezequiel. S. Pedro e a predestinação segurada pelas boas obras. Advertência final.

Desta doutrina tão verdadeira, e desta última conclusão do Batista, tiro dois documentos, com que acabo: um político, outro espiritual. Digo politicamente que nas ações se hão de fundar as eleições; digo espiritualmente que nas ações se devem segurar as predestinações. As eleições ordinariamente fundam-se nas gerações, e por isso se acertam tão poucas vezes. Não nego que a nobreza, quando está junta com talento, deve sempre preceder a tudo; mas como os talentos Deus é o que os dá, e não os pais, não se devem fundar as eleições nas gerações, senão nas ações. Este ditame é o verdadeiro em todo o tempo, e muito mais no presente. No tempo da paz pode-se sofrer que se dêem os lugares às gerações; mas no tempo da guerra, não se hão de dar senão às ações. Viu o profeta Ezequiel, no primeiro capítulo das suas revelações, aquele carro misterioso por que tiravam quatro animais: homem, leão, boi e águia; no capítulo décimo tornou a ver o mesmo carro com os mesmos animais, mas com a ordem trocada; porque na primeira visão tinha o primeiro lugar o homem, na segunda visão tinha o primeiro lugar o boi. Notável mudança! Que o homem na primeira visão, se anteponha ao leão, à águia e ao boi, muito justo, porque o fez Deus senhor de todos os animais; mas que o boi, que foi criado para o trabalho e para o arado, se anteponha a três cabeças coroadas; ao homem, rei do mundo, ao leão, rei dos animais, à águia, rainha das aves! Sim: a razão literal e a melhor que dão os expositores, é esta. Na primeira visão estava o carro dentro do templo: na segunda visão saiu o carro à campanha: Egressa est gloria Domini de limine templi[38] - e quando o carro está quieto, dê-se embora o primeiro lugar a quem melhor é: mas quando o carro caminha, há-se de dar o primeiro a quem melhor puxa: e porque o boi puxava melhor que o homem por isso se deu o primeiro lugar ao boi. Quando o carro estiver no templo da paz, dêem-se embora os lugares a quem melhor for; mas enquanto o carro estiver na campanha, hão-se de dar os lugares a quem melhor puxar.

E, assim como politicamente é bem que nas ações se fundem as eleições, assim espiritualmente digo, que nas ações se hão de segurar as predestinações. S. Pedro, na Epístola Segunda: Fratres satagite, ut per bona opera certam vestram vocationem, et electionem faciatis (2 Pdr. 1, 10): Irmãos meus - diz S. Pedro - trabalhai com grande diligência de fazer certa a vossa vocação e predestinação, por meio das vossas ações, - Se perguntarem a um homem: Tu qui es? - quanto ao temporal, em qualquer matéria pode responder com certeza; se perguntarem a um homem Tu quis es? - quanto ao espiritual, ninguém há no mundo que possa responder a esta pergunta: cada um de nós espiritualmente é o que há de ser, o que há de ser cada um ninguém o sabe, e assim ninguém há que possa responder com certeza à pergunta: Tu qui es? A maior miséria, a maior perplexidade, a maior aflição de espírito que há na vida humana é saber um homem que há de ser, ou eternamente ditoso, ou eternamente infeliz, e não saber qual destas duas há de ser: não saber um homem se é precito ou se é predestinado. A este maior de todos os cuidados, a esta maior de todas as perplexidades acode S. Pedro com o único remédio que ela pode ter: Satagite, ut per vestra bona opera certam vestram electionem faciatis. Se quereis ter segurança de vossa predestinação, a maior que sem revelações se pode ter nesta vida, apelai para vossas ações boas obras: fazei obras boas, e estais moralmente seguros que sois predestinados. Este e o verdadeiro entendimento das palavras de S. Pedro, e assim as explicam Santo Tomás e todos os teólogos. Oh! que felicidade tão grande, que tenhamos na nossas obras um seguro da nossa predestinação! Na outra vida há-nos de pagar Deus as boas obras com a posse da glória; nesta vida já no-las começa a pagar com a segurança dela. Ora, cristãos, já que nas nossas ações, já que nas nossas obras está depositado um tesouro tão grande, não o percamos. Satagite: trabalhemos por segurar nossa predestinação. Apliquemo-nos muito deveras à observância dos preceitos divinos; rompamos por tudo o que nos pode ser estorvo e impedimento; conheçamo-nos, e conheçamos o mundo e seus enganos; quebremos, com uma grande resolução, os laços e as cadeias que nos detêm, quaisquer que sejam: convertamo-nos de todo o coração a Deus, disponhamo-nos com todas as forças para receber sua graça, e asseguremos para sempre o prêmio da glória.



[1] Quem és tu? Que dizes de ti mesmo (Jô.1, 22)?

[2] Eu tornarei a vir ter contigo neste mesmo tempo, havendo vida; e Sara, tua mulher, terá um filho (Gên.18, 10). - Segundo a tradução clássica do Pe. Antônio de Figueiredo. Martini traduz vita comite referindo-se a Abraão e não ao anjo: Vivendo tu, Abraão. Outros tradutores omitem a tradução dessas duas palavras.

[3] Eu sem falta tornarei a vir ver-te, como te prometi, a este mesmo tempo, havendo vida (ibid. 14).

[4] Ele mesmo virá, e vos salvará. (Is. 35, 4).

[5] Na Vulgata: - Et factos est principatus super humerurn ejus: - E foi posto o principado sobre o seu ombro (Is. 9, 6).

[6] E será chamado o Anjo do grande conselho.

[7] E estará a salvação nas suas penas (Mal. 4, 2).

[8] Nos dias dele aparecerá justiça e abundância de paz (SI. 71, 7).

[9] E o nome com que se apelide será Deus forte (Is. 9, 6).

[10] Põe-lhe por nome: Apressa-te a tirar os despojos (Is. 8, 3).

[11] Então saltará o coxo como o cervo, e desatar-se-á a língua dos mudos (Is. 35, 6)

[12] E das suas espadas forjarão relhas de arados, e das suas lanças foices (Is. 2, 4).

[13] Todo o vale será alteado, e todo o monte e outeiro será rebaixado (Is. 40, 4).

[14] O lobo habitará com o cordeiro, e o leão comerá palha como o boi (Is. 11, 6 s).

[15] requiescens, na vulgata:- deitaste-te para descansar como o leão(Gên.49,9)

[16] Neftali será qual cervo despedido (ibid.21).

[17] Venha a ser Dá como uma serpente no caminho (ibid. 17).

[18] Issacar, asno forte (ibid. 14).

[19] Benjamin será como um lobo arrebatador (ibid. 27).

[20] José, filho que cresce, filho que se aumenta (Gên. 49, 22).

[21] Rúben, meu primogênito, não cresças (ibid. 3 s).

[22] No meio de vós esteve quem vós não conheceis (Jo. 1, 26).

[23] Eu me consumo de zelo pelo Senhor Deus dos exércitos: e eu fiquei só (3 Rs. 19, 14).

[24] Eu me reservarei para mim em Israel sete mil homens que não dobraram os joelhos diante de Baal (3 Rs. 19,18).

[25] Eis aqui eu rasgarei o reino das mãos de Salomão, e dar-te-ei dez tribos (3 Rs. 11, 31).

[26] O zelo dai tua casa me devorou (SI. 68. 10).

[27] O qual faz nascer o seu sol sobre bons e maus (Mt. 5, 45).

[28] E manda a chuva sobre justos e injustos (Mt. 5, 45).

[29] E eis que vi o ídolo do zelo posto bem à entrada. (Ez. 8, 5).

[30] E setenta homens dos anciãos da casa de Israel estavam em pé diante destas pinturas, e cada um tinha na mão um turíbulo (ibid. 11 ).

[31] Profeta, e ainda mais que profeta (Mt. 11, 9).

[32] Vai, e o Senhor a entregará nas tuas mãos (3 Rs. 22, 6).

[33] Ficou um homem, mas eu o aborreço, porque ele me não profetiza o bem, mas sempre o mal (ibid. 8).

[34] Sejam as tuas palavras semelhantes às deles, e anuncia novas favoráveis (ibid. 13).

[35] Srta.. lib. 3.

[36] Adivinha-nos, Cristo, quem é o que te deu (Mt. 26, 68).

[37] Pois, a raça, os ancestrais e tudo  que não é obra própria, a custo chamo tais coisas como nossas (Ovid. Met. Lib. 13, 140).

[38] Saiu a glória do Senhor da entrada do templo (Ez. 10, 18).



 

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
 

Apoio
CNPq / CAPES
UFSC / PRPG

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Terceira Dominga do Advento, de Padre António Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio