Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Maria, de qua natus est Jesus[1].

§I

A dificuldade da novidade em assunto tantas vezes debatido. Terêncio, Sêneca e os autores antigos. o autor fará como o pai de famílias do Evangelho, o qual tira do seu tesouro o novo e mais o velho.

Como em todas as matérias controversas dizer o já dito é supérfluo, assim na de que hoje sou obrigado a falar, dizer o que ainda não esteja dito, é dificultoso. Entre os mistérios, todos soberanos de Maria Mãe de Deus, o que hoje celebra a Igreja, e todos desejam ouvir estabelecido com alguma novidade, é o de sua Conceição imaculada. Mas todas aquelas estradas por onde se pode caminhar seguramente, ou ao templo desta adoração, ou ao castelo desta defensa, estão tão batidas e debatidas que, como bem dizia há muitos anos um dos maiores oradores de Espanha, ninguém pode pôr o pé, senão sobre pegada alheia. Boa satisfação para a desculpa, mas muito desconsolada para o desejo. Desta mesma se valeu Terêncio, aquele tão celebrado Cômico, o qual pedia perdão ao teatro romano de lhe representar o que já tinha ouvido, e alegava em seu abono que o mesmo tinham feito os velhos, e assim o faziam os modernos: Nullum est jom dictum, quod non dictum sit prius. Quare aequurn est vos cognoscere, et ignoscere: Quod veteres factitatunt, sic faciunt novi[2].E se isto se usava na cabeça do mundo há mais de mil anos, que será hoje entre nós, onde não é tão fácil inventar novos argumentos, como novos trajos?

Eu, porém, não me acabo de sujeitar a este ditame, porque, ainda que os antigos beberam primeiro nas fontes, nem por isso as esgotaram: Multum egerunt qui ante nos fuerunt, sed non peregerunt, diz Sêneca[3]: Muito fizeram os que vieram antes de nós, mas não perfizeram. Entre o fazer e o perfazer há grandes intervalos: Multum autem restat operis, multumque restabit. Assim como eles acrescentaram sobre o que tinham dito os mais antigos, assim nós podemos acrescentar e descobrir de novo o que eles não acharam, como também sobre nós os que depois vierem. Isto escreveu animosamente o maior espírito dos estóicos. E nem a mim me mete medo dizer Salomão que não há coisa nova debaixo do sol: Nihil sub sole novum (Ecl. 1, 10) - porque a matéria de que hoje hei de tratar não é de debaixo do sol, senão do mesmo sol, e acima dele.

Duvidoso, pois, entre o que tem de verdadeiro uma destas sentenças, e o que opõe de dificultoso a outra, o meio que determino, e devo tomar, é o que ensinou o Mestre divino, em que ambas se conciliam e se concordam: Ideo omnis scriba doctus similis est patrifamilias, qui profert de thesauro suo nova et vetera (Mt. 13, 52): Por isso todo o estudioso douto nas Escrituras é semelhante - diz Cristo - ao pai de famílias rico, o qual tira do seu tesouro o novo e mais o velho. - Assim o farei eu hoje, posto que reconheço a minha pobreza: Ergo vir videns paupertatem meam[4]. Dos tesouros da Teologia e da Escritura suporei na matéria presente o velho, e verei se posso dizer o novo. A Virgem Imaculada, cuja graça sempre foi antiga e sempre nova, me assista com a sua. Ave Maria.

§II

Promete o autor supor o velho para dizer o novo. A redenção que remedeia e a redenção que preserva. Assunto do sermão: o modo com que Cristo derramou singularmente por sua Mãe, com muitos primores de redenção até agora não ponderados, o sangue que de suas puríssimas entranhas tinha recebido.

Maria, de qua natus est Jesus (Mt. I, 16).

Prometi supor o velho para dizer o novo. E posto que esta proposta na matéria da Conceição imaculada seja mais fácil de prometer que de desempenhar, comecemos brevissimamente pelas suposições. Suponho como certas três coisas geralmente recebidas, cada qual, porém, dentro do seu grau de certeza: a primeira científica, a segunda mais que provável, a terceira expressamente de fé. A primeira e científica é que há dois modos de remir, ou de redenção, uma que tarda e remedeia o cativeiro, outra que se antecipa e preserva dele. A segunda, e tão provável que já se não pode afirmar em público o contrário, é que pela redenção que remedeia, remiu Cristo a todo o gênero humano, e pela que se antecipa e preserva remiu a sua santíssima Mãe. A terceira, e expressamente de fé, é, que ao preço de uma e outra redenção foi o merecimento e valor infinito do sangue do Filho de Deus, oferecido e derramado por todos. Este sangue, pois, e o modo com que Cristo o derramou singularmente por sua Mãe, com muitos primores de redenção até agora não ponderados, será a novidade que, para maior glória da Mãe e do Filho, desejo provar. A tudo me dão fundamento as palavras do Evangelho que tomei por tema: Maria, de qua natus est Jesus. Em Maria temos a remida e preservada; no nome de Jesus, que quer dizer Redentor, temos a redenção; e nas duas palavras: de qua natus est, temos o preço, que foi o sangue, porque, encarnando e nascendo Jesus de Maria, dela o recebeu para o dar universalmente por nós, e muito particularmente pela mesma Mãe.

§ III

A Senhora, preservada do cativeiro do pecado de Adão por valor e virtude do sangue de Cristo. Séfora, esposa de Moisés e o cativeiro do pecado, figurado no cativeiro do Egito. o filho de Séfora circuncidado e o Filho de Maria crucificado. Se o mesmo Cristo havia de derrancar e derramou o sangue por todos, por que não diz.' Este é o cálix do seu sangue, o qual se derramará por vós e por todos, senão por vós e por muitos?

Entrando, pois, nas considerações e modos particulares com que o bendito Filho da Virgem Maria, enquanto Jesus e enquanto Redentor, em obséquio e benefício singular da mesma Senhora deu o sangue que de suas puríssimas entranhas tinha recebido: de qua natus est - seja o primeiro, e mais geral, como fundamento de todos, ser a mesma Senhora preservada do cativeiro do pecado de Adão por valor, e virtude do mesmo sangue.

Mandando Deus a Moisés que dos desertos de Madiã, onde vivia, fosse ao Egito resgatar o seu povo, que lá estava cativo, levou Moisés em sua companhia a Séfora, sua esposa. E foi esta ação de seu enviado tão estranhada e abominada do mesmo Deus que, antes de chegar ao Egito, lhe tornou a aparecer tão indignado contra ele, que queria não menos que tirar-lhe a vida Cum que esset in itinere, in diversorio occurrit et Dominus, et volebat occidere eum[5]. Paremos, e reparemos aqui com S. Agostinho, Teodoreto, Eusébio Cesariense, Emisseno, e outros, os quais colhem do mesmo texto que esta, e não outra, foi a causa de uma notável e impensada demonstração. - Pois, Senhor, a Moisés, a quem acabais de eleger por redentor do cativeiro do vosso povo, tão de repente quereis privar, não só do ofício, senão da vida? Tão grande culpa, e tão mal sofrida de vós, que foi querer levar sua esposa consigo? Sim. Porque quando eu mando a Moisés que vá libertar aos que estão cativos no Egito, que queira ele meter no mesmo cativeiro a sua esposa, que tão livre estava dele quanto vai do Egito a Madiã, não sofro eu tal deslumbramento e tal erro em um homem que fiz redentor universal do meu povo, e por isso representador de meu Filho. - Reparem neste juízo de Deus os que interiormente se não acabam de conformar com o que hoje pregamos, se porventura há ainda algum. Se Deus quis matar a Moisés, porque não sofreu que ele metesse no cativeiro do Egito com os outros cativos a esposa que era de Moisés, se a esposa fosse do mesmo Deus, como o sofreria? Sendo, pois, verdadeiramente Esposa sua a Virgem Maria, como sofrerá aos que lha querem cativar e meter com os demais no mesmo cativeiro? Mas, advertido isto de passagem, vamos por diante com a história ao nosso ponto.

Postos Moisés e Séfora em termos tão apertados e perigosos como vimos, ele debaixo da espada de Deus condenado à morte, e ela caminhando para o Egito, onde todos eram cativos, que sucedeu? Levavam ambos um filhinho consigo, ao qual naquele estado circuncidou a mãe, dizendo ao pai que ele era a causa de lhe derramar o sangue: Sponsus sanguinum tu mihi es[6] - e no mesmo ponto, aplacado

Deus, a Moisés lhe foi perdoada a culpa, e Séfora ficou livre de ir ao Egito, apartando-se dele: Et dimisit eum[7]. Quem se não admira neste caso do modo tão fácil e tão breve com que dois nós tão fortemente apertados se desataram, e dois perigos tão grandes se resolveram? De sorte que em se derramando o sangue do filho, o pai ficou absolto da culpa e a mãe livre do cativeiro? Com razão disse S. Paulo que tudo o que naquele tempo sucedia eram figuras, e uma como comédia do que depois havia de ser: Omnia in figura contingebant illis[8]. o filho inocente era figura de Cristo; o pai era figura de Adão, de quem tomou a natureza; a mãe era figura da Virgem Maria, de quem nasceu. E tanto que o sangue do filho se derramou, o pai ficou livre da culpa, pela qual estava condenado à morte, e a Mãe ficou livre do cativeiro, para onde a levava o mesmo pai. Pode haver representação por todas suas circunstâncias mais própria? Mas ainda faltam por advertir duas, para maior gala do mistério. A primeira, que a mãe foi livre do cativeiro, não depois de ir ao Egito e estar cativa, senão antes e preservada, para que o não fosse. A segunda, que o mesmo cativeiro do Egito naquela ocasião já estava acabando, e havia de durar muito pouco; mas, como o filho de Séfora representava o Filho de Maria, não permitiu o seu sangue que sua Mãe estivesse cativa, nem por um só instante.

Parece que depois de tal figura não pode haver prova real que a iguale, mas será tanto maior e melhor quanto vai da luz à sombra. Quando o mesmo Cristo, na última Ceia, consagrou o seu preciosíssimo sangue no cálix, foi com estas palavras: Hic est calix sanquinis mei, qui pro vobis, et pro multis effundetur: Este é o cálix de meu sangue, o qual se derramará por vós e por muitos. - Terrível palavra foi esta última! o sangue de Cristo, é de fé que se derramou por todos, porque por todos morreu, de que temos, contra o herege moderno, o texto expresso de S. Paulo: Pro omnibus mortuus est Christus[9]. - Pois, se o mesmo Cristo havia de derramar, e derramou o sangue por todos, por que não diz: este é o cálix do meu sangue, o qual se derramará por vós e por todos, senão por vós e por muitos: Pro vobis, et pro multis? - Lede as palavras seguintes, e vereis quão admiravelmente resolvem a dúvida. Qui pro nobis, et pro multis effundetur in remissionem peccatorum: Será derramado, diz o Senhor - o meu sangue por vós e por muitos. Mas como? In remissionem peccatorum: em remissão de pecados. Aqui está a diferença. o sangue de Cristo absolutamente derramou-se, não só por muitos, senão por todos; mas, em remissão de pecados, não se derramou por todos, senão por muitos, porque do número dos todos foi excetuada a Mãe, que lhe deu o mesmo sangue. Por todos os mais foi derramado o sangue de Cristo, e em remissão de pecados: só por sua Mãe foi também derramado, sim, mas em remissão de pecados, não, porque não teve pecado. - Oh! bendito Filho de Maria, que bem mostrastes ser juntamente Filho de Deus, pois tão altamente acudistes pela honra de vossa Mãe! havia de dizer S. Paulo que todos pecaram em Adão, e que o sangue de Cristo se derramou por todos. Mas, para que o mundo se não enganasse, e soubesse que no contrair o pecado houve exceção, e no derramar o sangue diferença, por isso declarou o Senhor, com duas limitações tão expressas, que o seu sangue se derramaria por muitos, e em remissão de pecados. Por muitos, e não por todos, para excluir a sua Mãe; e em remissão de pecados, e não por outro modo, para a eximir de toda a culpa, da qual não foi perdoada por remissão, senão prevenida e preservada por graça. Assim o disse e protestou em tal hora, em tal ato, e como o cálix do sangue, que havia de derramar, nas mãos, como Filho, enfim, e Redentor que era da Mãe de quem recebera o mesmo sangue: De qua natus est Jesus.

§ IV

Quando, onde e como obrou Cristo o grande e oculto mistério da redenção antecipada de sua Santíssima Mãe? S. Bernardino Senense e as primeiras e segundas feridas de Cristo. o Filho, primogênito da Mãe, enquanto homem, e a Mãe, primogênita do Filho, enquanto redentor Prerrogativas do primeiro sangue do Horto em respeito ao sangue da cruz. o convite da Esposa ao Esposo para que colha os frutos de seu jardim. A redenção do Calvário e a redenção do Horto. o monte da mirra e o outeiro do incenso. Qual foi o mistério por que o sangue da cruz saiu juntamente com água, e o do Horto não?

Estabelecido este fundamento geral, em que ficam tão bem provadas e não sei se com alguma novidade as suposições do que chamei velho, para entrarmos no que mais propriamente é novo, e tudo sobre o sangue que Cristo derramou para remir singularmente a sua Mãe e a preservar do pecado, saibamos quando, onde e como obrou o bendito Filho este grande e oculto mistério, e nunca até agora distintamente examinado.

S. Bernardino Senense diz que remiu Cristo a sua Mãe com o primeiro sangue que derramou na Cruz, e com grande preferência a todos os que nela foram remidos[10]. Funda-se naquelas palavras dos Cânticos: Vulnerasti cor meum, soror mea, sponsa; vulnerasti cor meum[11] - nas quais reconhece o santo primeiras e segundas feridas, e diz que as primeiras ofereceu Cristo na Cruz pela redenção de sua Mãe, para que a mesma Senhora, sendo remida primeiro que todos, fosse a primogênita do Redentor. As palavras do devotíssimo e doutíssimo padre são estas:Vulnerasti cor meum, soror mea sponsa, vulneraste cor meum: pro tuo aurore carnem sumpsi, et vulneribus primis in cruce vulnerasti cor meum: nam primogenita Redemptoris Filii sui Jesu est virgo Beata. Alto sentir, e digno de seu autor. De sorte que, assim como o Filho foi o primogênito da Mãe enquanto homem: Peperit Filium suum primogenitum[12]- assim a Mãe foi a primogênita do Filho, enquanto Redentor: Primogenita Redemptoris Filii sui. E esta foi a primeira fineza, ou primorosa correspondência com que o Filho Jesus, enquanto Jesus e redentor da Mãe, de quem nasceu, lhe pagou o benefício do ser, não que dela tivesse já recebido, senão que havia de receber. o Filho primogênito da Mãe e a Mãe primogênita do Filho: o Filho primogênito da Mãe no nascimento, a Mãe primogênita do Filho na Conceição,

Até aqui S. Bernardino, declarada a sua sentença quanto ela o permite. E, verdadeiramente, que quando o Santo disse: vulneribus primis, se não acrescentara in cruce, na cruz, não tinha eu mais que desejar, e dera o parabém ao meu pensamento de se encontrar com o de tão alumiado e sublime espírito. Mas, porque tenho outras Escrituras mais claras que citarei, conformando-me em que o sangue, que o Redentor derramou por sua Mãe foi o primeiro, digo que não foi na cruz, senão no Horto. Abra-nos o caminho à prova desta novidade o grande doutor da Igreja S. Ambrósio, o qual, florescendo mil anos antes, já então deixou escrito que, dando o Filho de Deus princípio à obra da universal redenção, começou por sua Mãe, Nec mirum si Dominus redempturus, mundum, operationem suam inchoviat a Matre, ut per quam salus omnibus parabatut; eadem prima, frectum salutis hauriret ex pignore[13]. Elegante e eloqüentemente, como sempre, Ambrósio. Quer dizer que ninguém se deve maravilhar de que, havendo de dar princípio o Redentor à obra da redenção do mundo, começasse por sua Mãe, para que ela, que o havia de ajudar na redenção de todos, fosse a primeira que na mesma redenção colhesse os frutos do fruto do seu ventre.

Isto posto, se alguém perguntasse ao mesmo Filho e à mesma Mãe onde colheram estes primeiros frutos da redenção, não há dúvida que ambos haviam de responder, que no Horto, e assim o dizem expressamente a Mãe e mais o Filho. É passo que se não podia desejar nem inventar melhor, e foi um diálogo que tiveram entre si o Esposo, que é Cristo, e a Esposa, que é a Virgem, no mesmo livro dos Cânticos. Veniat dilectus meus in fortum suum, - diz ali a Senhora - et comedat frutum pomorum suorum (Cân 5,1): Venha o meu amado ao seu horto, e colha o fruto dos seus frutos - isto é, os primeiros e as primícias deles. Isto disse a Esposa; e logo, tendo satisfeito o Filho ao desejo da Mãe, diz assim: Veni in hortum meum, soror mea, sponsa, et messui myrrham meam (ibidem): Vim no meu Horto, irmã e Esposa minha, e o que ali colhi foi a minha mirra. - A mirra propriamente não é fruto, senão um licor que se sua e estila das árvores do mesmo nome. Pois, se a Esposa tinha convidado o Esposo para que fosse ao seu Horto colher os primeiros frutos: Veniat in hortum suum, et comedat fructum pomorum suorum - como, indo o Esposo ao mesmo horto, em vez de colher frutos, colheu mirra: Veni in hortum meum, et messui myrrham meam? Assim o disse, porque assim foi, nem se podia declarar melhor, como a mirra é aquele licor aromático que suam as árvores, o fruto que Cristo colheu no Horto, satisfazendo ao desejo de sua Mãe, foi o sangue, que, por amor dela suou na oração do mesmo Horto. Expressa, e concordemente S. Cirilo Jerosolimitano, Filo Carpácio e Ruperto: Christus enim, in Horto orans, myrrham messuit, cum San guinem sudavit. - Pode haver coisa mais clara, mais breve e mais exata, em que se exprima como desejávamos o onde, o como e o quando? o onde, no Horto: in Horto; o como, orando: orans; o quando, quando suou o sangue: cum sanguinem sudavit?

À vista, pois, desta primeira conclusão tão nova, tão provada, que diremos? Diremos, porventura, que andou tão finamente primoroso o soberano Redentor na redenção de sua Mãe, que não só quis que fosse imaculada a remida, senão também imaculada a mesma, redenção? E porque a redenção que obrou no Calvário era redenção de pecado e de pecadores, para que a de sua Mãe de nenhum modo se envolvesse e misturasse com ela, a dividiu e separou no tempo, no lugar, no sangue e no modo de o derramar, fazendo no Horto um novo Calvário sem monte, e no suor uma nova cruz sem cravos? Assim o cantou elegantemente Hildeberto Turonense: Sanguineus sudor cruz fuit ante crucem. Mas, ouçamos a S. Paulo. S. Paulo parece que faz distinção entre um e outro sangue, atribuindo a redenção universal só ao sangue da Cruz: Pacificans per sanguinem crucis ejus, sive quac in terris, sive quae in caelis[14] - e estes são os termos gerais com que comumente falam os santos padres. Donde se segue que, se o sangue da Cruz foi só o preço da redenção universal, no tal caso todo o sangue do Horto foi unicamente aplicado pelo Filho à redenção da Mãe, e por isso propriamente não só primogênita, como queria S. Bernardino, mas unigênita, porque a primogênita tem segundos, a unigênita é singular e única. Mas esta fineza de nenhum modo se deve nem pode entender com exclusão do sangue da Cruz, porque é certo que o Filho da Virgem também morreu pela Mãe, de quem nasceu, que foi nova correspondência de reconhecimento e gratidão, pagando-lhe o nascimento com a morte. Que diremos logo à vista destes dois teatros, ou anfiteatros, ambos sanguinolentos, um do Horto, outro do Calvário? Digo que em um e outro obrou o Filho de Maria, como Jesus e como redentor, a sua redenção, mas no Calvário como universalmente remida, no Horto como singularmente preservada, e em um e outro como puríssima e sem mácula. Em tudo quanto digo, falo pela boca da mesma Mãe e do mesmo Filho, e neste ponto com texto milagrosamente feito só para ele.

Um dos mais notáveis textos da Escritura no que diz, e na ordem e conseqüência com que o diz, são aquelas palavras do Esposo divino, falando primeiro consigo, e depois com a Esposa: fadam ad montem myrrhae, et ad collem thuris. Tota pulchra es, amica mea, et macula non est in te (Cânt. 4, 6 s): Eu -diz o Esposo - irei ao monte da mirra e ao outeiro do incenso, E vós, Esposa, e amiga minha, toda sois formosa, e toda pura sem mácula. Supérfluo é repetir que a Esposa é a Virgem Maria, e o Esposo Cristo, seu Filho. Mas que correspondência tem dizer o Filho que há de ir ao monte da mirra e ao outeiro do incenso, e logo inferir e concluir que a Mãe toda é formosa, e toda pura sem mácula? Vadam ad montem myrrhae, et ad collem thuris e logo de repente,sem outro motivo: Tota pulchra es, amica mea, et macula non est in te? Para entendimento desta notável conseqüência, em que se infere com tanta clareza e expressão a pureza imaculada da Virgem, é necessário saber que monte, e que outeiro, que mirra e que incenso é este? A mirra significa a morte, o incenso significa a oração: e neste sentido, que é de todos os santos padres, o monte da mirra é o Calvário, onde Cristo morreu, e o outeiro do incenso é o Horto de Getsêmani, onde orou porque Getsêmani estava situado em um teso sobre o Vale de Cedron. - E de Cristo morrer na Cruz e orar no Horto, tira por conseqüência e conclui o mesmo Senhor que sua Mãe toda é pura e sem mácula: com razão e conseqüência, torno a dizer, milagrosa, porque, para Cristo remir o gênero humano depois do pecado, bastava o sangue que derramou na Cruz, mas para remir e preservar a sua Mãe sem mácula de pecado, quis ele, por fineza particular, acrescentar ao sangue da Cruz o sangue que derramou na oração do Horto. Isto é ir ao monte da mirra: Vadam ad montem myrrhae - e juntamente ao outeiro do incenso: Et ad collem thuris. E, tanto que se uniam os efeitos destas duas jornadas, e se ajuntou um sangue com outro sangue, então exclamou e declarou a vozes o Filho que sua Mãe era toda pura e sem mácula: Tota pulchra es, amica mea, macula non est in te - porque o efeito geral do sangue da Cruz foi remir, e o particular do sangue do Horto remir preservando.

Comparemos um sangue com outro, o da cruz com o do Horto, e veremos com os olhos esta mesma diferença. Quando na cruz deram a lançada a Cristo, saiu sangue e água: Exivit sanguis et aqua: (Jo. 19, 34) - mas quando o Senhor suou no Horto, somente saiu sangue: Factus est sudor ejus sicut guttae sanguinis (Lc. 22, 44). Parece que não havia de ser assim. Mais próprio era do sangue do Horto que do sangue da cruz sair juntamente com água, porque, depois de exausto o suor natural, que é humor áqüeo, então se seguia o preternatural e prodigioso, que é o de sangue. Qual foi logo o mistério por que o sangue da cruz saiu juntamente com água, e o do Horto não? Todos os padres uniformemente dizem que o sangue da cruz significava a redenção e a água o batismo, primariamente instituído para lavar o pecado original. S. Atanásio: Exivit sanguis et aqua, ut ita redemptio et immundatio prioris Adae dimanaret[15]. E S. Ambrósio: Exivit aqua et sanguis: aqua, ut mundaret, sanguis, ut redimeret[16]. Assim os demais. E como o sangue da cruz era para remir e a água para lavar as manchas do pecado de Adão, por isso saiu na cruz o sangue juntamente com água: Exivit sanguis, et aqua. Porém, no Horto, como o sangue era para remir, não lavando, senão preservando da mesma mancha, porque só havia de remir, e não tinha que lavar, por isso o suor não foi de sangue junto com água, senão de sangue somente: Sicut guttae sanguinis. Esta é a razão e propriedade porque o Senhor, quando disse que havia de ir ao Calvário: Vadam ad montem myrrhae - não falou palavra na pureza da Mãe; mas, tanto que ajuntou que havia de ir também ao Horto: Et ad collem thuris - logo a publicou e canonizou por imaculada: Et macula non est in te. Bem pudera o sangue da cruz, como de infinita virtude, produzir por si só este efeito; mas, como a redenção da Mãe era tanto mais nobre, tanto mais alta, e tanto mais preciosa que a de todos, também era crédito da mesma redenção que fosse maior e mais subido o preço que se desse por ela. Por isso os empenhos sempre mais e mais primorosos do Filho não se contentam com menos que com dobrar a paga, acrescentando um preço sobre outro preço, e um sangue sobre outro sangue, como redentor, enfim, e Jesus da Mãe, de quem o tomou e nasceu: De qua natus est Jesus.

§V

Que razão de prerrogativa teve o sangue do Horto para ser ele o preferido no mistério da Conceição Imaculada ao da, cruz? Como Sansão se adiantou para livrar do leão a seu pai e à sua mãe, assim Cristo se antecipou a preservar do pecado original à sua Mãe que, como mãe virgem, é ao mesmo tempo mãe e pai. o segredo da façanha de Sansão e o segredo da Conceição imaculada. A pressa com que o pecado original se adiantou e antecipou em matar os homens. Como Cristo, antes de nascido, preservou do pecado à sua Mãe? A propriedade com que a Senhora diz que da boca de Cristo se estilava a mirra primeira. Primores e finezas da mirra primeira.

Temos provado a prerrogativa do sangue que Cristo suou no Horto em respeito do que derramou na cruz, e como foi particularmente aplicado pelo mesmo Filho à redenção imaculada de sua Mãe, mas ainda não temos dado nem inquirido a razão. No sangue de Cristo tanto valor tem uma gota como todo, e se no todo se quisesse especular alguma consideração de excesso ou vantagem o todo foi o da cruz, e as gotas o do Horto: Sicut guttae sanguinis. Que razão de prerrogativa teve logo o sangue do Horto, para ser ele o preferido neste mistério ao da cruz? Respondo que a razão, conveniência e primor desta preferência foi para que não só o Redentor e a redenção, senão também o preço dela, que foi o sangue, se unissem no mesmo modo singular e extraordinário de remir, com que o Filho remiu a Mãe, e ela foi remida. Como foi remida a Virgem Maria? Não depois, senão antecipadamente, que isso é ser remida por preservação. Pois, essa foi a razão, o primor e a fineza porque, não só o Redentor e a redenção, senão também o preço dela se antecipou. o Redentor apressou-se e adiantou-se à redenção: a redenção apressou-se e adiantouse ao pecado, e para que o preço, que era o sangue, se apressasse e adiantasse também, antecipou-se o sangue do Horto ao da cruz.

Caminhando o pai e mãe de Sansão por uma estrada deserta cerrada de bosques, adiantou-se o filho que os acompanhava, e saindo-lhe ao encontro um leão, tão feroz na catadura como soberbo nos bramidos, arremeteu a ele o valente moço, sem mais armas que as próprias mãos, e, afogando-o entre elas, o lançou morto no bosque. Grã façanha, e mais que humana! Assim o nota a Sagrada Escritura, dizendo que isto fez Sansão movido do espírito divino. Mas o primeiro movimento com que se adiantou, deixando atrás seu pai e sua mãe, parece que nem foi necessário nem conveniente. Necessário não porque as suas forças eram as mesmas, e tanto podia matar o leão adiantando-se, como indo ao lado dos pais; conveniente também não, e muito menos porque, acompanhando os mesmos pais, os assegurava melhor do perigo daquela ou de outra fera do bosque. Qual foi logo o fim - que não podia deixar de ser grande e misterioso - por que o moveu o mesmo espírito a que se adiantasse? o fim grande e misterioso foi, como já notaram alguns escritores modernos, porque nesta história de Sansão se representava maravilhosamente, e com todas suas circunstâncias, o mistério da Conceição imaculada. A estrada por onde caminhavam o pai e a mãe é aquela por onde descendemos de Adão todos os que recebemos o ser por geração natural; o leão feroz e soberbo é o pecado original, que naquela passagem espera a todos os homens, e antes de nascidos lhes não perdoa, e os mata; o Sansão, que o matou a ele, é Cristo, por natureza isento de pecado, e que só tem poder e forças para vencer e destruir, não só o original, mas todos. Assim, pois, como Sansão se adiantou e antecipou para livrar do leão a seu pai e sua mãe, antes que ele os encontrasse, assim Cristo se adiantou e antecipou a preservar do pecado original a sua Mãe, antes que ela o incorresse.

Até aqui os doutores alegados, não reparando nenhum deles nem acudindo a uma circunstância e impropriedade que, sendo esta figura tão natural do mistério, não só a deslustra e afeia, mas a nega ou põe em dúvida. Sansão livrou das garras do leão a seu pai e a sua mãe: Cristo não preservou do pecado original a homem algum, senão a uma mulher somente, que foi a Virgem imaculada: logo a história não diz com o mistério nem a figura com o figurado, antes desfaz e descompõe toda a glória e privilégio da Conceição, que consiste em ser a Senhora unicamente preservada? Mas, que seria se eu dissesse que nesta que parece impropriedade da história consistiu a maior energia e gala do mistério? Assim o digo. Porque Sansão livrou daquela fera, que representava o pecado original, não só a sua mãe, senão também a seu pai, por isso mesmo foi perfeitíssima figura de Cristo no mistério da Conceição. Mas de que modo? Por isso mesmo. Por que Cristo foi Filho da Virgem Maria, e a mãe, que é Virgem, não só é mãe, senão mãe e pai de seu Filho, porque não tem outro pai. Logo, para Sansão ser perfeitíssima figura de Cristo no mistério da Conceição, não só havia de livrar do leão a sua mãe, senão a sua mãe e a seu pai juntamente. Este é o fundamento por que graves teólogos tiveram para si que a Virgem Maria, em respeito de seu Filho, se havia ou podia chamar não só Mater como as outras Mães, senão Matripater, que quer dizer mãe e pai. E pela mesma razão lemos em muitos santos padres que o amor da Virgem em respeito do mesmo Cristo foi dobrado, porque o amor dos outros filhos naturalmente gerados divide-se entre o pai e a mãe, porém na Mãe-Virgem, como em mãe e pai, estava todo unido.

Ainda tem a mesma história de Sansão outra admirável propriedade em confirmação do mesmo mistério. Já vimos como Sansão, quando matou o leão, o lançou e escondeu no bosque. E declara a Escritura que, nem a seu pai, nem a sua mãe, nem a outrem descobriu aquela façanha, sendo de tanta honra sua, e tão bizarra, Assim esteve oculto o mistério deste silêncio e segredo, até que depois de muitos dias se manifestou que o intento de Sansão fora formar, como formou, da sua mesma história aquele famoso enigma, que propôs e expôs ao juízo dos homens com nome de problema. Proponam vobis problemas[17]. Já estou vendo que nenhum entendimento haverá tão rude, que nesta singular circunstância não reconheça mais e melhor a história da Conceição de Maria que a do mesmo Sansão. Adiantou-se Cristo a vencer e matar o pecado original, antes da Conceição de sua Mãe; e, estando por muito tempo oculta aquela singular façanha do Filho, que fez o mesmo Filho? Da mesma façanha oculta e do mesmo segredo só a ele manifesto, fez o mais célebre e mais altercado problema que nunca houve no mundo, disputando as mais doutas escolas da teologia se Maria fora concebida em pecado original ou não. Que escrituras se não têm desenterrado e desentranhado? Que livros se não têm mandado à estampa? Que discursos e argumentos se não têm inventado? E em quantas disputas públicas e secretas se não têm controvertido este mesmo ponto, seguindo uns doutores a parte afirmativa, e outros, com maior aplauso, a negativa? Mas todos até agora problematicamente, porque assim o quis, para maior celebridade e glória do mesmo mistério, o soberano Autor do mesmo problema: Proponam vobis problema. E será sempre problema? Não. Porque da mesma história consta que Sansão revelou o enigma a sua esposa. E assim como Sansão o revelou a sua esposa, e por meio dela o entenderão todos, assim Cristo finalmente acabará de o revelar a sua Esposa a Igreja, como já tem começado; e, como for definida por ela a verdade, cessará a controvérsia, e será conhecida e festejada por todos.

Tornando ao fio do nosso discurso, assim como o Filho se adiantou e antecipou à redenção da Mãe, assim a mesma redenção se adiantou e antecipou ao pecado, e com nova e admirável correspondência. Foi tão admirável a pressa com que o pecado original se adiantou e antecipou a matar os homens, que, sendo todos filhos de Adão, primeiro os matou seu pai com o pecado do que eles nascessem. E para que se veja que a redenção da Virgem Maria não foi menos apressada, nem seu Filho se adiantou e antecipou menos em preservar a Mãe do que Adão se tinha adiantado e antecipado em matar os filhos, pergunto: qual foi primeiro, o nascimento do Filho ou a Conceição da Mãe? Não há dúvida que a Conceição da Mãe foi muito primeiro que o nascimento do Filho. Pois, se o Filho ainda não era nascido, como preservou do pecado a Mãe antes de nascer? Respondo tornando a perguntar. E quando Adão pecou, eram já nascidos seus filhos? Não, e, contudo, pôde-os Adão matar com o pecado antes de nascerem? Pois, seria bem que os filhos de Adão os matasse seu pai com o pecado, antes de nascerem, e o Filho de Maria não preservasse do mesmo pecado a sua Mãe antes de nascer? É verdade que esta redenção tão antecipada foi efeito do sangue da Mãe que ele ainda não tinha recebido. Mas essa é a virtude do sangue de Cristo, como agora veremos.

Quando houveram de nascer Zarão e Farés, dois filhos gêmeos de Tamar, Zarão lançou primeiro fora um braço, no qual a que assistia ao perto lhe atou um fio de púrpura, entendendo que ele seria o primogênito; mas enganou-se, porque Farés se adiantou, e nasceu primeiro. Todos os santos padres reconhecem neste caso grande mistério, e concordam em que aquele fio de púrpura foi sinal do sangue de Cristo. S. Cirilo, comentando as palavras do texto: Unus potulit manum, in qua obstetrix ligavit coccinum[18] diz: Coccinum sanctissimum Christi sanguinea signat[19]. E o mesmo dizem S. Ambrósio, S. Bernardo e outros padres. Foi pois o caso, que os dois gêmeos Zarão e Farés cada um procurava nascer primeiro e ser o primogênito, para que do seu sangue nascesse o Messias, que era toda a ambição e emulação daquele tempo. E que fez o mesmo Messias? A Farés concedeu que receberia dele o sangue, e a Zarão que com o mesmo sangue o assinalaria: e assim foi. Mas a Zarão deu-lhe logo a púrpura e o sinal do sangue, e de Farés não o recebeu, senão muito tempo depois. E por quê? Porque é virtude própria do sangue de Cristo poder-se dar antes de se receber. o sangue de Farés não o recebeu Cristo, senão quando nasceu o mesmo Cristo, e o sinal e efeito do seu sangue recebeu-o Zarão antes de nascer o mesmo Zarão; e isto foi, nem mais nem menos, o que se verificou na Conceição de Maria e no nascimento de seu Filho. o Filho recebeu o sangue da Mãe, quando dela nasceu, que foi no dia do seu nascimento, e a Mãe recebeu o efeito do sangue, que deu ao Filho antes de nascer a mesma Mãe, que foi no dia da sua Conceição. De sorte que o Filho foi redentor da Mãe por meio do sangue que dela recebeu, antes de o receber, e a Mãe foi remida e preservada por meio do sangue que deu ao Filho, antes de lho dar. E temos fundada e declarada a razão por que este sangue foi o do Horto.

Assim como o Redentor foi redentor antecipado, porque se adiantou e antecipou à redenção, e assim como a redenção foi antecipada, porque se adiantou e antecipou ao pecado, assim foi conveniente, para maior lustre e glória do mistério, que o preço da mesma redenção, que era o sangue, fosse também antecipado, e por isso o sangue do Horto se adiantou e antecipou ao sangue da cruz. Assim o notou e celebrou, com admiráveis propriedades, a mesma Virgem tão primorosamente remida. Depois de dizer seu bendito Filho que o fruto que colheu no Horto foi a sua mirra: Veni in hortum meum, messui myrrham meam (Cânt. 3, 1) - a qual mirra, como vimos, é o sangue que no mesmo Horto suou, diz logo a Senhora, falando com o mesmo Filho, que essa mirra, a que chama primeira, foi o estilado de sua sagrada boca: Labia ejus distillantia myrrham primam[20]. Mas, se aquele sangue que o Senhor suou, saiu e brotou por todos os poros do sagrado corpo, como diz a Senhora, que foi estilado de sua boca? Agora se verá com quanta propriedade interpretamos do Horto e da oração do mesmo Horto o nome de collem thuris. Chama-se o sangue do Horto estilado da boca de Cristo porque a força e eficácia da oração do mesmo Senhor no Horto, como tão fervorosa e ardente foi a que acendeu, e sutilizou o sangue nas veias, e o fez manar em suor. Assim o diz, com a mesma conseqüência, o evangelista S. Lucas: Prolixius orabat, et factus est sudor ejus sicut guttae sanguinis[21]. - E Elias Cretense, comentando o mesmo texto: Ardenter orar, ac sudor guttarum sanguinearum ab ipso fluit[22]- . E, como ao passo que da boca saía a oração, das veias rebentava e corria o sangue, esta foi a propriedade com que disse a Senhora, que da mesma boca se estirava a mirra primeira: Labia ejus distillantia myrrham primam.

A palavra distillantia é a mesma com que o texto arábico explica o suor do Horto: Et factus est sudor ejus velut sanguis distillans. Mas por que razão chama a Senhora nas mesmas palavras ao sangue do suor do Horto não só mirra, senão mirra primeira: Distillantia myrham primam - nome tão singular que só neste texto se acha em toda a Escritura Sagrada? Toda a mirra não é aquele licor, ou humor precioso e aromático, que se estila da árvore onde nasce? Sim. Pois, por que se chama particular e singularmente o sangue e suor do Horto, não mirra de qualquer modo, senão mirra primeira: Distillantia myrrham primam?- Não se pudera mais própria e eruditamente declarar o mistério de ser sangue antecipado. A mirra, como descreve Plínio, colhe-se da árvore, onde se cria por dois modos[23] : o primeiro é suando a arvore por si mesma aquele licor mais sutil, estilado naturalmente e sem violência, e esta se chama mirra primeira; o segundo é picando primeiro a árvore, e dando-lhe golpes, pelos quais sai e se descarrega o licor mais grosso: e esta se chama mirra segunda. E quem não vê que tal foi com admirável propriedade a mirra e sangue do Horto, comparado com a mirra e sangue da cruz? o sangue da Cruz não saiu, senão depois de ferido e aberto o corpo do Redentor com os cravos e com a lança; o do Horto, porém, antecipando-se a todos os instrumentos da violência, ele saiu e se estilou por si mesmo das veias em suor e espontaneamente. o sangue da cruz, tirado à força do ferro, como mirra segunda: o sangue do Horto, suado sem força mais que a do amor, como mirra primeira: myrrham primam. E faz tanto caso a Virgem puríssima desta circunstância, e celebra e louva tanto a seu Filho por ela porque, consistindo não só a prerrogativa maior, senão a mesma essência da sua preservação em ser redenção antecipada, que mais primorosa e elegante fineza se podia esperar ou imaginar do mesmo Redentor, do que querer seu amor e inventar sua sabedoria que, assim como a redenção de sua Mãe foi antecipada, assim fosse antecipado o preço da mesma redenção, e o sangue com que a remiu também antecipado? Assim provou, finalmente, ser sangue daquele Jesus, e daquele Redentor: daquele Redentor que o foi de sua Mãe antes de ser homem, e daquele Jesus que o foi de Maria antes de ser Filho: De qua natus est Jesus.

§ VI

A maior fineza da redenção antecipada de Maria: o sangue que Cristo suou no Horto foi o mesmo que na Encarnação tinha recebido de sua santíssima Mãe. Se a bondade e amor de Cristo tinha julgado que devia empregar em saúde dos homens tudo o que tinha recebido dos homens, havendo de aplicar alguma parte de seu sangue para a antecipada redenção de sua Mãe, por que não seria aquela mesma parte que de suas entranhas tinha recebido? Se Cristo no Horto temia ver dadeiramente, como, em vez de se recolher o sangue para dentro, saiu e brotou para fora? A túnica tingida com o sangue do Horto, a melhor e mais rica gala do triunfo de Cristo no céu.

Já parece que as obrigações de Redentor, com as de Filho, se deverão dar por satisfeitas nos primores e finezas tão repetidas, com que singularizaram a redenção da puríssima Mãe; mas ainda resta a mais primorosa e a mais fina de todas. Foi sentença de alguns padres antigos, como hoje é comum entre os teólogos, que o sangue que o Verbo encarnado tomou da Virgem santíssima, sempre o conservou unido à divindade, sem permitir ao calor natural que o alterasse, mudasse ou diminuísse. o mesmo conserva hoje glorioso no Céu, como diz S. Agostinho, e o mesmo comungamos no Sacramento, como diz S. Pedro Damião. Isto suposto, não me julgará por temerário a piedade cristã, se eu disser que o sangue que Cristo suou no Horto foi o mesmo que na Encarnação tinha recebido de sua santíssima Mãe.

A primeira e natural razão em que me fundo é tirada do peito do mesmo Verbo encarnado, e dos arquivos de seu entendimento e vontade, e não em correspondência de outro mistério, senão do mesmo da Encarnação. Duas coisas recebeu de nós o mesmo Verbo naquele mistério, que foram a carne e o sangue. E que é o que fez delas, e por que razão? De ambas instituiu o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, e a razão foi, diz Santo Tomás, para que tudo o que tinha recebido dos homens o empregasse em saúde dos mesmos homens: Totum quod de nostro accepit, totum nobis contulit ad salutem[24] . Lembremo-nos agora que do Cenáculo, onde o Senhor tinha instituído o Sacramento, se partiu imediatamente para o Horto, onde a mesma carne, que tinha sacramentado, suou parte não de outro, senão do mesmo sangue. E haverá quem se persuada que, em tão pouco espaço de tempo e de lugar, mudasse de pensamento e afeto o mesmo entendimento e a mesma vontade de Cristo, e se tivesse esquecido daquele mesmo ditame da sua bondade, e daquela mesma correspondência de seu amor? Claro está que quem tal imaginasse seria com manifesta injúria tanto do Filho como da Mãe. Logo, se a bondade e amor de Cristo tinha julgado que devia empregar em saúde dos homens tudo o que tinha recebido dos homens, havendo de aplicar alguma parte de seu sangue para a antecipada redenção de sua Mãe, por que não seria aquela mesma parte que de suas entranhas tinha recebido? Quem tão inteiramente o tinha conservado e guardado trinta e três anos, sem dúvida que não seria senão para o empregar em tão devida e primorosa ocasião.

Isto é o que digo, e não só e sem autor, Eusébio Emisseno - que alguns querem fosse Euquério, ambos antigos padres da Igreja, e de grande autoridade - ou ambos, ou qualquer deles, dizem estas notáveis palavras: De carne Mariae coagulatus, de ejus formatus visceribus, de ejus substantia consummatus, sanguinem quem etiam pro Matre obtulit, de sanguine Matris accepit[25]. Querem dizer: Cristo gerado da carne de Maria, formado das entranhas de Maria e da substância de Maria feito homem consumado, o sangue que também ofereceu por redenção de sua Mãe foi o que do sangue da mesma Mãe tinha recebido: San guinem quem etiam pro Matre obtulit, de sanguine Matris accepit Notem-se muito nestas admiráveis palavras aquele sanguinem de sanguine Matris e aquele etiam. De sorte que o sangue de que se fala não é todo o sangue de Cristo, senão parte dele, e essa parte não outra, senão aquela mesma parte, que recebeu do sangue de sua Mãe: San guinem quem de sanguine Matris accepit. E aquele etiam: Etiam pro Matre obtulit denota que foi paga e preço particular, oferecido particularmente, só pela redenção da Mãe, além do preço geral oferecido por todos, o qual não foi só parte do sangue de Cristo, senão todo o sangue, e não só parte que tinha recebido do sangue da Mãe na Encarnação, senão todo o que adquiriu em todo o tempo da vida. Este sangue todo foi o preço da redenção universal do gênero humano, mas aquela parte recebida do sangue da Mãe, posto que foi parte deste todo, também enquanto parte separada: etiam-também, e por modo particular: etiam - também, e sobre o preço geral; etiam - foi especialmente aplicada, como dizíamos, à redenção da mesma Mãe: Quem etiam pro Matre obtulit.

E para que o mesmo sangue nos confirme altamente este pensamento, vamos ao mesmo Horto, e ao mesmo passo e modo com que se derramou. Quando Cristo, Senhor nosso, entrou e perseverou na oração do Horto tantas vezes repetida, as ânsias da mesma oração eram fundadas no temor natural da morte e dos tormentos, tendo dado licença o Senhor à parte sensitiva da sagra da Humanidade - assim para prova da verdade dela, como para mais padecer por nós - a que se sujeitasse a todos os efeitos da natureza, ainda com sinais de temerosa e fraca. Neste sentido disse S. Marcos: Coepit pavere et taedere[26] - o que entendem todos os padres de próprio, verdadeiro e natural temor. Mas este mesmo temor parece que faz dificultoso o suor de sangue, porque, não só a Filosofia, senão a experiência nos ensina que, com o temor se recolhe o sangue, e acode ao coração, e por isso ficam pálidos os que temem. Pois, se Cristo verdadeiramente temia, e assim o temor como o suor de sangue, posto que extraordinário, foi natural, como, em vez de se recolher o sangue para dentro, saiu e brotou para fora? A razão, também natural, é porque no mesmo sangue havia os impulsos e causas destes diferentes efeitos, assim como eram diferentes os afetos que então combatiam o coração do mesmo Senhor. Uma parte do sangue, seguindo o afeto do temor, era tímido; outra parte do sangue, seguindo o afeto contrário, era animoso; o tímido acudiu ao coração, o animoso faltou, e saiu fora; e esta parte do sangue animoso, que faltou e saiu fora, foi o sangue que o Verbo encarnado conservava e tinha recebido do sangue de sua Mãe. Provo. Quando o anjo deu a embaixada à Senhora, turbou-se um pouco o ânimo humilíssimo e modestíssimo da Virgem, como tão alheio do que ouvia: Turbata est in sermone ejus[27] . - Então o mesmo anjo lhe sossegou o cuidado e lhe tirou o temor, dizendo: Ne timeas, Maria. (Lc. 1, 30): Maria, não temas. - Sossegado, pois, o temor, então aceitou a Senhora animosamente a embaixada, e dizendo: Fiat mihi secundum verbum tuum[28] - então encarnou o Verbo em suas entranhas. E, como o sangue que o Verbo tomou do sangue de sua Mãe era sangue atualmente animoso: Ne timeas Maria - este foi o sangue que no Horto não acudiu ao coração como tímido, mas como animoso saiu e saltou fora das veias: Factus est sudor ejus sicut gutta sanguinis. Assim se portou galhardo e generoso o sangue do Horto, como lembrando-se só de quem era, mas de quem tinha sido, para acudir na causa original pela honra de sua própria origem: San guinem quem etiam pro Matre obtulit, de sanguine Matris accepit.

Enfim, e em suma, que Jesus, que nasceu de Maria, para se mostrar perfeito e perfeitíssimo Jesus, e perfeito e perfeitíssimo redentor de sua Mãe, não só a preservou sem mácula em sua puríssima Conceição, que é o mais perfeito modo de remir, mas, para que ela fosse a primeira entre todos os remidos, e a primogênita ou unigênita da redenção do mesmo Filho, antes de ele derramar todo o sangue por todos na cruz, o começou a derramar no Horto, ou única ou particularmente por ela, antecipando o preço da sua redenção, assim como a mesma redenção foi antecipada; mas quis também por último excesso de amor, gratidão e primorosíssima correspondência que a parte antecipada do sangue, que especialmente aplicou e dedicou à sua preservação, fosse aquela mesma que de suas puríssimas entranhas tinha recebido e guardado. Eu não sei ponderar nem admirar este extremo de finezas, mas darei por mim outros admiradores de mais alta esfera que todos os humanos.

Quando Cristo, como Redentor universal nosso, e como Redentor particular de sua Mãe subiu triunfante ao céu, admirados perguntavam, todos os espíritos angélicos: Quis est iste, qui venit de Edom, tinctis vestibus (Is. 63, 1)? Quem é este que vem da terra de Edom com as vestiduras tintas em sangue? - Iste formosus in stola sua, gradiens in multitudine fortitudinis suae: Vem acompanhado da multidão dos que libertou com a fortaleza de seu braço: e quão formoso ele, e quão gentil homem no seu vestido! - Ninguém haverá que não repare muito nessas últimas palavras, e ser o vestido do triunfador o principal motivo da admiração dos anjos, e fundarem no mesmo vestido todos os encarecimentos de sua formosura: Iste formosus in stola sua? Se era pela tintura do sangue: tinctis vestibus - não levava o Senhor no mesmo triunfo as suas chagas abertas? Pois, por que passam em silêncio as feridas do corpo, e só admiram o sangue do vestido? o que manou das chagas e na cor viva e brilhante com que nelas se via, não era o mesmo? Pois, por que se celebra tanto o do vestido, e não o das chagas? Porque as chagas eram recebidas na cruz pela redenção universal de todos, e o sangue do vestido era o suado no Horto, pela redenção particular e preservação de sua Mãe. Notai bem toda a história da Paixão, e achareis que o sangue de que se tingiu o vestido próprio de Cristo foi só o do Horto. Nos açoites estava o Senhor totalmente despido, e o sangue que deles correu ficou no pavimento do Pretório. Na coroação de espinhos, o sangue que eles tiraram da sagrada cabeça também caiu, e se recebeu na púrpura, de, que lhe fingiu a opa real a jocosa impiedade dos soldados. Na cruz também estava despido, e o sangue das  quatro chagas, e da quinta, todo regou a terra do Calvário. Assim que o sangue de que se tingiu a túnica e vestiduras próprias do Senhor, foi o sangue que por todos os poros do corpo suou no Horto. E como este sangue se singularizou nos extremos tantos e tão admiráveis, que vimos na preservação de sua Mãe, por isso o soberano Redentor o vestiu pela melhor e mais rica gala de seu triunfo, e por isso como tal a admiraram os anjos, e a celebraram pela maior gentileza do mesmo Redentor: Iste formosas in stola sua.

Tudo o mais que sucedeu no mesmo triunfo confirma ser este sangue tão admirado o que particularmente se aplicou à Conceição imaculada da Virgem santíssima. Perguntaram os anjos quem era o soberano triunfador: Quis est iste? E ele mesmo respondeu: Ego qui loquor justitiam et propugnator sum ad salvandum. (Is. 63, 1): Eu sou o que faço justiça, e sou defensor para salvar. - A todos salvou Cristo, mas só à sua Mãe propriamente como defensor: propugnator- porque aos outros salvou livrandoos do pecado, porém, à sua Mãe defendendo-a que o não incorresse. E essa é a distinção da justiça de que fala: Ego qui loquor justitiam - porque aos outros depois do pecado salvou-os, satisfazendo de justiça a lesa-majestade do Pai, porém, a Senhora, preservando-a e defendendo-a do pecado, salvou-a, satisfazendo também de justiça às obrigações que como Filho devia a sua Mãe. Instaram mais os anjos: Quare ergo rubrum est indumentum tuum, et vestimenta tua sicut calcantium in torculari (ibid. 2)? E que cor vermelha é a desse vestido semelhante à dos que pisam no lagar? - Com a mesma comparação tinham já dito acima: Tinctis vestibus de Bosra - porque bosra quer dizer vindemia, vindima. Respondeu o Senhor: Torcular calcavi solus, et de gentibus non est vir mecum (ibid. 3): Porque o lagar, em que se me tingiram os vestidos, eu só o pisei, sem estar ninguém comigo. - Donde se vê a diferença do sangue derramado na cruz, em que a mesma Mãe o acompanhou como co-redentora, e esteve cercado de tantos, assim seus, como estranhos à do sangue suado no Horto, em que esteve só e solitário, e até os que tinha deixado mais perto, dormindo. E porque este sangue do Horto, na metáfora de lugar, foi o aplicado particularmente à redenção da Virgem, aqui vem caindo, quando menos, o som das palavras de Jeremias: Torcular calcavit Dominus Virgini, filiae Juda (Sam. 1, 15): que'o mesmo Senhor foi o que pisou o lagar para a Virgem filha de Judá. - Finalmente, conclui o divino triunfador com umas palavras que, parece, desfazem quanto temos dito, porque diz que aquele sangue, de que estavam tintas as suas vestiduras, era dos que na sua batalha tinha vencido: Aspersus est sanguis eorum super vestimenta mea[29]. Logo, se o sangue era dos vencidos, não era seu, como supomos? Antes, por isso seu, porque dos vencidos. Deus não tinha sangue, e para ter sangue com que remir os homens tomou o sangue dos mesmos homens, e por isso, que o sangue que derramou era deles: sanguis eorum. Mas, se Cristo remiu os homens com o sangue que tinha recebido dos mesmos homens, aqui se confirma mais o que dizíamos: que o sangue com que remiu a Mãe foi o que tinha recebido da mesma Mãe. E para que acabemos com as primeiras palavras: Quis est iste, qui venit de Edom[30] - Edom e Adão é o mesmo, porque um e outro nome têm o mesmo significado. E diz a admiração dos anjos, em figura de Edom, que o soberano triunfador vinha de Adão, porque a glória deste triunfo, ou a parte mais gloriosa dele, toda pertencia à Virgem imaculada. o resto do gênero humano remiu Cristo não só do pecado de Adão, que é o original senão dos pecados atuais de todos e de cada um; porém, a Virgem Maria, que não teve pecado atual, só a remiu e preservou do original de Adão; e porque de lá começou o triunfo, de lá veio o triunfante: Quis est iste, qui venit de Edom?

§ VII

Para os devotos da Conceição Imaculada não nos fica mais que desejar nem que fazer senão nos acompanhar as admirações e aplausos dos anjos, e dar mil parabéns e mil vivas a tal Filho e a tal Mãe. o sangue de Cristo e o sangue com que os hebreus tingiram as portas de suas casas na matança dos primogênitos.

Este foi o famosíssimo triunfo de Jesus enquanto redentor, primeiro de sua Mãe, e depois do mundo, mais admirado dos anjos pela gala do vestido que pela própria pessoa, e mais galhardo pelas gotas de sangue do Horto, de que vinha matizado, que pelos rios que derramou na cruz, e regaram o Calvário. Para os devotos da Conceição Imaculada não nos fica mais que desejar nem que fazer, senão acompanhar com as vozes, afetos e júbilos do coração as admirações e aplausos dos anjos, e dar mil parabéns e mil vivas a tal Filho e a tal Mãe. E, posto que todos, pela graça do batismo, estamos livres do pecado original, como ficamos sujeitos à corrupção e fraqueza que com ele herdamos, e às tentações e perigo dos pecados atuais, o que muito nos convém, e de que muito necessitamos, é que por meio da intercessão poderosíssima da mesma Mãe nos valhamos da eficácia do mesmo sangue do Filho. Aleguemos a ambos que a virtude daquele preciosíssimo sangue, não só é remir e livrar dos pecados já cometidos, senão preservar antecipadamente deles, e digamos ao misericordiosíssimo Redentor o que tantas vezes repete a Igreja: Cito anticipent nos misericordiae tuae: que não só nos livre sua infinita misericórdia dos pecados com que o temos ofendido, mas se antecipe a nos preservar dos futuros, para que nunca mais o ofendamos. Naquela noite fatal, em que Deus tinha decretado matar os primogênitos do Egito, mandou aos filhos de Israel que  antecipadamente sacrificassem um cordeiro, e que com o sangue dele tingissem e rubricassem todas as portas de suas casas, para que o anjo, a quem estava encomendada aquela execução, onde visse o sangue, passasse e deixasse livres os que estavam dentro, e onde não visse, entrasse e matasse a todos os primogênitos. Este anjo é mais provável que não era anjo bom, senão demônio, e assim diz a Igreja que, por medo do mesmo sangue, não se atrevia nem a olhar para as casas, que ele defendia: Sparsum cruorem postibus vastator horret angelus. - Se as portas exteriores de nossa alma, que são os sentidos, e as interiores, que são a nossa memória, entendimento e vontade, estiverem sinaladas com o caráter e armadas com a proteção daquele sangue tão antecipado destruidor do pecado, não só desconfiará o demônio de nos vencer, mas ainda terá medo de nos tentar. E, finalmente, para que ninguém duvide que o mesmo sangue antecipado foi figura do sangue do Horto, e não do da cruz, o da cruz derramou-se doze horas depois, ao meio-dia, e o do Horto já se tinha derramado doze horas antes, à meia noite; e esta foi a hora em que o sangue triunfador obrou aqueles prodigiosos efei

tos: Factum est autem in noctis medio, percussit Dominus omne primogenitum in terra Aegypti[31]. Assim livrou Deus aos filhos de Israel do cativeiro do Egito, por meio do sangue do cordeiro, e assim nos livrará do cativeiro do pecado, por virtude do seu sangue o Cordeiro que tira os pecados do mundo, preservando-nos antecipadamente dos atuais, como antecipadamente preservou do original a Mãe de quem

nasceu: De qua natos est Jesus.



[1] Maria, da qual nasceu Jesus (Mt. 1, 16).

[2] Nada se diz hoje que antes já não tenha sido dito; por isso deveis julgar e ser indulgentes: os autores novos fazem agora o que os antigos fizeram tantas vezes (Terentius in Eunucho)

[3] Seneca, epist. 64.

[4] Homem sou eu que vejo a minha pobreza (Lam. 3, I).

[5] E quando Moisés ia no caminho, o Senhor se lhe pôs diante na pousada, e queria matá-lo (Êx. 4, 24).

[6] Tu és para mim um esposo sanguinário (Êx. 4, 25).

[7] E o deixou (Êx. 4, 26): isto é, Séfora a Moisés, como diz Lirano.

[8] Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura (I Cor. I0,11).

[9] Cristo morreu por todos (2 Cor. 5, 15).

[10] Bernardin. Sen. de Conception.

[11] Tu feriste o meu coração, irmã minha esposa, tu feriste o meu coração (Cânt. 4, 9).

[12] E deu à luz a seu filho primogênito (Lc. 2, 7).

[13] D. Ambr: in Luc. c. 2

[14] Pacificando pelo sangue da sua cruz tanto o que está na terra como o que está no céu (Col. l, 20).

[15] Athan. Serin. de Passion.

[16] Ambros. Lib. de Sacram. cap. I.

[17] Propor-vos-ei um problema (Jz. 14,12).

[18] Um deitou fora a mão, na qual a parteira atou um fio de púrpura (Gên. 38, 27).

[19] o fio de púrpura é sinal do sangue de Cristo (Cyrill. apud Lipontanum).

[20] Os seus lábios destilam a mais preciosa mirra (Cânt. 5, 13).

[21] Orava com maior instância, e veio-lhe um suor como de gotas de sangue (Lc. 22, 44).

[22] Elias Crer ibi.

[23] Plin. In Myrrha.

[24] D. Th. opuscul. 57.

[25]  Euseb. Emiss. homil. de Nativit. Domini.

[26] Começou a ter pavor e a angustiar-se (Mc. 14, 33).

[27] Turbou-se do seu falar (Lc. I, 29).

[28] Faça-se em mim segundo a tua palavra (ibid. 38).

[29] E o seu sangue veio salpicar os meus vestidos (Is. 63, 3).

[30] Quem é este que vem de Edom (Is. 63, I)?

[31] Aconteceu, pois, que no meio da noite feriu o Senhor todos os primogênitos na terra do Egito (Êx.12, 29).




 

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
 

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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Conceição Imaculada da Virgem Maria N. S., de Padre António Vieira.


Edição de Referência:

Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.


Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio