Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Sermão de Santo Antônio, de Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:

Sermão de Santo Antônio, de Padre Antônio Vieira.

Cidade: Editora, ano.

Na igreja e dia do mesmo santo, havendo os holandeses levantado o sítio que tinham posto à Bahia, assentando os seus quartéis e batarias em frente da mesma igreja.

Protegam urbem hanc, et salvabo eam propter me, et propter David servum meum[1].

§I

No Livro Quarto dos Reis a estampa do sítio dos holandeses à Bahia, com todas suas principais circunstâncias representadas ao vivo.

Este é o lugar, onde por espaço de quarenta dias e noites, como o dilúvio, sustentou a Bahia posta em armas, aquela furiosa tormenta de trovões, relâmpagos e raios marciais, com que a presumida hostilidade do inimigo, assim como tem dominado em grande parte os membros deste vastíssimo Estado, assim se atreveu a vir combater, e quis também conquistar a cabeça. E neste mesmo lugar – bendita seja a bondade e providência divina – trocados os receios em alegria, as armas em galas, e a guerra em triunfo, vemos junta outra vez a mesma Bahia, para render a Deus as devidas graças pela honrada e tão importante vitória com que, desenganado o mesmo inimigo, ocultou de noite a fugida, e de dia o vimos sair tão humilhado e desairoso, por onde tinha entrado tão orgulhoso e soberbo. Semelhantes sítios e vitórias, e outras muito menores que as semelhantes, se costumam logo estampar na Europa, para se fazerem públicas a todo o mundo. E, posto que nós na América carecemos destas trombetas mudas da fama, com que a mandar estampada aos olhos de Sua Majestade, que Deus guarde, e alegrar com ela a Portugal, a Espanha, e a toda a monarquia, nas palavras que propus – que são do Livro Quarto dos Reis, capítulo dezenove – me parece temos uma estampa tão própria desta nossa história, que, em todas suas principais circunstâncias representadas ao vivo, nem faltarão aos auxílios do céu as devidas graças, nem à cooperação e valor da terra os merecidos louvores. O que direi, ou repetirei, será somente ponderado o que todos vimos. E para que nos não, falte a assistência da soberana Palas da cristandade, a quem o primeiro templo que levantou Portugal na Bahia foi com nome da Vitória, dando os vivas à mesma Senhora, digamos: Ave Maria.

§ II

O sítio que Senaqueribe, rei dos assírios, pôs sobre Jerusalém e a salvação da Cidade do Salvador: A impropriedade com que os discípulos, ainda rudes, invocaram a Cristo no perigo da tempestade: Mestre, salvai-nos. – A cidade era do Salvador; e ao Salvador pertencia salvar a sua cidade.

Protegam urbem hanc, et salvabo eam propter me, et propter David servum meum (4 Rs. 19, 34): Tomarei debaixo de minha proteção esta cidade – diz Deus – para a salvar, e esta mercê lhe farei por amor de mim, e por amor de Davi meu servo. – Fala o texto à letra do sítio que com poderoso exército veio por sobre Jerusalém Senaqueribe, rei dos assírios. E, posto que as mesmas palavras e a pro¬messa delas se verificam propriamente em um e outro caso, não há dúvida que tem muito maior propriedade e energia no nosso. Protegam urbem hanc, et salvabo eam: reparemos bem nesta última palavra, em que consiste a promessa e efeito da proteção divina. –Tomarei, diz Deus, debaixo de minha proteção esta cidade para a salvar. – Pudera dizer: para a conservar, para sustentar, para a defender, para lhe dar vitória de seus inimigos; e por que não diz senão para a salvar nomeadamente: Et salvabo eam? Porque a Bahia é cidade do Salvador, e, ainda que o conservá-la,defendê-la, e dar-lhe vitória era efeito da mesma proteção, não era conforme o nome da cidade e do seu protetor. O efeito, a obra e a ação própria de salvador, é salvar; pois por isso diz Deus que há de salvar a cidade: Et salvabo eam. – A Deus, além dos nomes comuns de Deus e Senhor, umas vezes o invocamos como misericordioso, outras como justo, outras como todo-poderoso, ou com algum dos outros atributos e títulos de sua majestade e granito grandeza, de que estão cheias todas as Escrituras; mas quando o havemos de invocar para que nos salve, o modo que prescreve e ensina a mesma Escritura é que digamos nomeadamente a Deus: Salvai-nos, Salvador nosso. – Assim o manda e dispõe no primeiro Livro do Paralipômeno: Dicite; Salva nos Deus, Salvator noster[2]. – E por quê? Porque o salvar é efeito próprio de salvador, e com o nome de Salvador não só inclinamos e empenhamos, mas obrigamos a Deus a que nos salve, porque não seria Salvador se não salvasse, Essa foi a impropriedade com que os discípulos, ainda rudes, invocaram a Cristo no perigo da tempestade, dizendo: Magister; salva nos, perimus – (Mt. 8, 25 – Mc. 4, 38 – Lc. 8, 24): Mestre, salvai-nos, porque perecemos. – Não haviam de dizer, Mestre, senão, Salvador, porque a obrigação de Mestre é ensinar, e não salvar. E se Cristo então os salvou, não foi como Mestre, senão como Salvador: Salva nos, Salvator noster. – Este mesmo, pois, foi o título com que Cristo, na ocasião presente, salvou a Bahia. – Ela é a Cidade do Salvador, e ele salvou a sua cidade. Donde se segue que mais a salvou como sua que como nossa e mais a salvou para si que para nós.

É admirável a este propósito o texto de Davi no Salmo 97: Cantate Domino conticum novum quia mirabilia fecit. Salvavit sibi dextera ejus, et brachium sanctum ejus[3]. – Assim como nas suas grandes vitórias se costuma celebrar o valor dos capitães e soldados com letras ou cantigas novas, assim exorta Davi que se componham e entoem novos cânticos ao Senhor, pela admirável vitória com que o seu poderoso braço salvou para si: salvavit sibi. – Isto de salvar Cristo para si, é o primeiro reparo de Hugo Cardeal, e o segundo, também seu, não é menos bem fundado. O primeiro funda-se no que diz o profeta, o segundo no que não diz, porque não diz que salvou, ou a quem. Pois, se diz que salvou, e que salvou para si – salvavit sibi – por que não diz o que salvou, ou a quem salvou? Não diz a quem salvou, responde Hugo, porque falava o profeta de vitória futura, e do sucesso da mesma vitória se havia de entender de quem falava: Non dixit quid salvavit, sed intelligendum reliquit. – Suposto, pois, que do sucesso e da vitória havemos nós de entender o que Cristo salvou por meio dela, eu entendo e digo que o que salvou foi a Bahia. E do mesmo texto que excitou a primeira questão, provo a resposta desta segunda. O texto diz que salvou Cristo para si – salvavit sibi – logo, se salvou para si, sinal é que o que salvou era coisa sua. E como a Bahia é Cidade do Salvador, bem se segue que, salvando-a, salvou para si, porque salvou a sua cidade. O mesmo Hugo, tão claramente como se eu lhe ditara as palavras: Benedixit sibi, guia ad ipsum, non ad alium pertinebat salvatio. – Muito bem e muito propriamente disse que salvou para si, porque a ele, e não a outrem pertencia salvar o que era seu. – A cidade era do Salvador, e ao Salvador pertencia salvar a sua cidade. É verdade que também nós fomos salvos nela, pelo que deve¬mos infinitas graças ao mesmo Salvador, mas ele, como dizia, não nos salvou a nós tanto por amor de nós, quanto por amor de si. Não é consideração minha, senão cláusula expressa do mesmo Senhor no nosso tema: Protegam urbem hanc – notai agora – et salvabo eam propter me: Tomarei debaixo de minha proteção esta cidade, para a salvar por amor de mim. – De maneira que, não só diz que há de salvar a cidade, mas expressa e nomeadamente que a há de salvar por amor de si. Nós, salvos por amor da cidade, porque somos membros da cidade, mas a cidade salva pelo Salvador, porque é sua, e por amor de si: Propter me.

§ III

A última cláusula do tema: Salvarei a cidade por amor de Davi, meu servo. Qual é o Monte Sião e o Davi da Cidade do Salvador? De que modo se repartiu a vitória da Bahia entre o Salvador e Santo Antônio? A quem cabe a defensa da Bahia de Todos os Santos? Santo Antônio, santo universal que, sendo um só na pessoa, nos graus e jerarquias da santidade era todos os santos, cabe a defensa da Bahia.

Ainda nos resta por declarar a última cláusula do tema, tão breve como a passada, mas não menos admirável, nem menos própria do nosso caso: Et salvabo eam propter me, et propter Dalvid servum meum: Salvarei esta cidade – diz o Salvador – por amor de mim, e por amor de Davi, meu servo. – Que bom Senhor é Deus! Buscai lá outro que, sendo toda a vitória sua, queira partir a glória dela entre si e um seu servo! Mas por que razão, tendo Deus tantos outros servos, e tão grandes, assim passados como presentes, esta parte de glória a atribui só a Davi: Et propter David servum meum? – No caso do sítio de Jerusalém a razão é manifesta, porque na mesma cidade de Jerusalém havia um monte, o mais forte e inexpugnável de todos, que era o Monte Sião, o qual se chamava Civitas David: Cidade de Davi; e assim como Deus salvou a Jerusalém por amor de si, pelo que tinha de cidade sua, assim a salvou também por amor de Davi, pelo que tinha de cidade de Davi: Propter me, et propter David servum meum. – Passemos agora de Jerusalém à Bahia.

0 Monte Sião da Bahia não há dúvida que é este monte em que estamos, posto que ao princípio tão mal fortificado, depois tão forte e inexpugnável, como as batarias e assaltos do inimigo tanto à sua custa experimentaram. E que o Davi desta Sião seja Santo Antônio, que nele assentou o solar da sua casa, facilmente se pode demonstrar até aos mesmos olhos, porque se do saial lhe fizemos a samarra, da corda a funda, da voz formidável ao demônio a harpa, de ser o menor da família de seu pai a família dos menores, e de ter sempre a Deus junto ao peito, ser aquele de quem disse o mesmo Senhor que tinha achado um homem conforme ao seu coração, com pouca diferença de cores veremos naquele altar, ou de Santo Antônio formado um Davi, ou Davi transformado em Santo Antônio. Deste segundo Davi, pois, disse Deus no nosso caso: Protegam urbem hanc, et salvabo eam propter me, et propter David servum meum. – E se me perguntardes de que modo se repartiu a vitória da Bahia entre o Senhor e o servo, entre o Salvador e Santo Antônio, digo que na mesma Bahia temos razão da semelhança, e tão semelhante, que não pode ser mais natural nem mais própria. A cidade da Bahia é Cidade do Salvador, e Baía de Todos os Santos, e assim como, enquanto cidade do Salvador, pertence a defensa da cidade ao Salvador, assim, enquanto Bahia de Todos os Santos, pertencia a defensa a Santo Antônio. E por quê? Mais admirável é ainda o porquê, que a mesma resposta. Porque, sendo a baía, Baía de Todos os Santos, a todos os santos pertencia a defensa dela. Logo, se a todos os santos pertencia a defensa da baía, por isso a defendeu Santo Antônio, porque Santo Antônio, sendo um só, é todos os santos. Ora vede.

Todos os santos do céu se dividem em seis jerarquias: patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, confessores, virgens, e em todas estas jerarquias tem eminente lugar Santo Antônio. Primeiramente é patriarca, sendo filho de S. Francisco, porque muitos dos filhos do mesmo santo o tomaram a ele por pai, e se chamam religiosos de Santo Antônio, quais são os de toda esta província. Assim se chamaram filhos de Israel os descendentes de Abraão, tomando o nome e reconhecendo por seu imediato patriarca a Jacó, não só filho, mas neto do primeiro e universal pai de todos. Foi Santo Antônio profeta, como consta de tantas coisas futuras que anteviu e predisse, não só pertencentes a esta vida, senão também à eterna, revelando-lhe Deus até os segredos ocultíssimos da predestinação das almas. Nem se confirma pouco a verdade deste espírito profético, com a necessária suposição de Deus haver arrancado da terra onde nascera, porque nemo propheta in patria sua[4]. – Foi apóstolo, e apóstolo de duas províncias tão dilatadas, como Itália e França, não só pregando nelas, depois de cristãs, a fé do Evangelho, e confirmando-a com infinitos e portentosos milagres, mas confutando e convencendo os erros, alumiando a cegueira, e quebrantando o orgulho, a dureza e contumácia dos hereges, por onde foi chamado Martelo das heresias. Perpetuus haereticorum malleus. – Foi mártir, porque foi buscar o martírio a África, e, posto que não derramou o sangue, tão mártir foi como se o derramara, porque, se Deus disse a Abraão que não perdoara a vida a seu filho, pela vontade e deliberação que tivera de o sacrificar: Non pepercisti unigenito filio tuo propter me[5] – não menos suspendeu Deus o braço e espada de Abraão, para que não executasse o golpe, do que teve mão nos alfanges e cimitarras dos turcos, para que na garganta e peito aberto de Antônio não empregassem a sua fúria. Que fosse confessor, não há mister prova. Mas a de ser perpetuamente virgem é tão milagrosa e sem igual que, sendo necessárias a S. Bento as espinhas e a S. Francisco os lagos enregelados para se livrarem das tentações próprias, a túnica que vestia Antônio, só por tocar ou ser tocada na carne virginal daquele corpo mais que angélico, bastava para que dela fugissem todas as tentações contrárias, à pureza, e aos pecadores mais forte e obstinadamente tentados, não só apagasse o fogo infernal, mas gerasse perpétua castidade. E como Santo Antônio, em todas as jerarquias dos santos, com os patriarcas é patriarca, com os profetas profeta, com os apóstolos apóstolo, com os mártires mártir, com os confessores confessor, e com as virgens virgem, pertencendo a todos os santos a defensa da Bahia de Todos os Santos, e tendo Deus prometido que a glória desta vitoriosa proteção não a havia de repartir com todos os seus servos, nem com muitos, senão com um só: Propter me, et propter David servum meum – este um não podia ser outro senão Santo Antônio, aquele santo universal, que, sendo um só na pessoa, nos graus e jerarquias da santidade era todos os santos.

Quando Barac, capitão do povo de Deus, alcançou aquela famosa vitória contra Sisara, general dos exércitos de el-rei Jabin, diz o texto sagrado que as estrelas do céu, conservando-se todas na sua ordem, pelejaram contra Sisara: Stellae manentes in ordine et cursu suo, adversus Sisaram pugnaverunt[6]. – E do mesmo modo concedo eu, e confesso, que todos os santos do céu, sem se moverem do lugar, nem da ordem, cada um da sua jerarquia, podiam defender a nossa cidade, e acudir à proteção em que ela os tinha empenhado com o nome de Bahia de Todos os Santos. Assim o suponho com o real profeta, o qual parece que não só tinha profetizado, senão pintado a nossa vitória. Fala Davi de todos os santos do céu dentro no mesmo céu, e diz que na boca tinham os louvores de Deus, e nas mãos as espadas desembainhadas, para com elas se vingarem de seus inimigos, e rendidos e manietados os meterem debaixo dos pés. Exaltationes Dei in gutture eorum, et gladii ancipites in manibus eorum: ad faciendam vindictam in nationibus, increpationes in populis; ad alligandos reges eorum in compedibus, et nobiles eorum in manicis ferreis[7]. – Que os santos do céu se empreguem todos em louvores de Deus, essa é a ditosa ocupação daquela pátria bem-aventurada; mas que juntamente estejam com as espadas desembainhadas nas mãos, para pelejarem e vencerem seus inimigos, que espadas são ou podem ser estas? São, no caso presente, as mesmas com que os nossos soldados pelejaram e venceram. A espada com que Gedeão pelejou e venceu chamava-se gladius Domini et Gedeonis(Jz. 7, 20): Espada de Deus e de Gedeão. – E por quê? Porque no mesmo tempo era meneada por duas mãos: visivelmente pela mão de Gedeão, e invisivelmente pela mão de Deus. Do mesmo modo no nosso caso. As armas com que vencemos o inimigo, visivelmente eram meneadas pelas mãos dos nossos soldados na terra, e invisivelmente pelas mãos de todos os santos no céu: Et gladii ancipites in manibus eorum. –E porque estas mãos invisíveis de todos os santos eram as que principalmente nos deram a vitória, por isso conclui excelentemente o profeta que a glória da mesma vitória é de todos os santos: Gloria haec est omnibus sanctis ejus (SI. 149, 9).

Bem suponho eu logo, e devemos supor todos, que todos os santos do céu por si mesmos podiam defender a nossa ou a sua Bahia de Todos os Santos. Mas, como Deus tinha demitido de si, e dedicado a parte desta proteção e desta glória a um só santo – et propter David servum meum – nenhum outro podia ser, como foi, senão Santo Antônio, pela eminência com que este santo contém em si as jerarquias e dignidades de todos. E se na universalidade do texto de Davi seria grande glória de todos os santos se todos concorressem por si mesmos para a defensa e vitória da Bahia de Todos os Santos, maior glória foi na singularidade do nosso, que a mesma Bahia de Todos os Santos a defendesse um só santo, mas um santo que, sendo um só, é todos os santos: Gloria haec est omnibus sanctis ejus.

§ IV

O Salvador e Santo Antônio, o muro e o antemural da cidade da Bahia. As três coisas em que consistiu a segurança do exército inimigo, maravilhosamente cumpridas no ataque à cidade da Bahia. A parte da vitória que tocou ao muro, que foi o Salvador. As portas do mal; e as guerras chovidas de que fala Jó. A providência e previdência do divino defensor da cidade, e como começou a defender e segurar a Bahia dentro em Pernambuco, provendo superabundantemente o Salvador a sua cidade com tantas prevenções de mimo e regalo que, quando a Holanda lhe fazia a guerra, toda a Europa a servia à mesa.

Temos visto em comum a defensa e vitória da nossa cidade da Bahia, repartida entre o Salvador e Santo Antônio: entre o Salvador, como Cidade do Salvador e entre Santo Antônio, como Bahia de Todos os Santos. Desçamos agora ao particular, e alegremos os ouvidos, com que ouçam com certeza e segurança o que os olhos testemunharam não sem dúvida e receio. O texto do nosso tema, tresladado ao capítulo 19 do Quarto Livro dos Reis, foi tirado do capítulo 37 de Isaías o qual, como historiador, escreveu o sucesso do sítio de Jerusalém, e, como profeta, pintou nele o da Bahia. E para que não faltasse também ao ofício de comentador e intérprete, no capítulo 26, cantando a vitória da cidade que tem por nome Salvador, diz que para sua segurança e fortaleza se porá nela o muro e o antemural: Urbs fortitudinis nostrae Salvator, ponetur in ea murus et antemurale[8]. – Em frase da milícia antiga, o muro significa a fortificação mais estreita, e do recinto da cidade e o antemural as que hoje se chama fortificações ou obras exteriores, que a defendem no largo. Assim que propriamente no nosso caso, o muro da cidade da Bahia foi o Salvador, e o antemural, Santo Antônio. Ouçamos agora, com esta mesma divisão, quão seguramente nos defendeu dos inimigos o muro, e quão fortemente os resistiu e rebateu o antemural.

Em três coisas consistiu a segurança que Deus prometeu a Jerusalém na invasão do exército inimigo. Primeira, que ele não entraria na cidade: Non ingreditur urbem hanc[9]; – segunda, que não lançaria dentro nela as suas setas: Nec mittet in eam sagittam[10]; – terceira, que a não poria de cerco: Nec circumdabit eam municio[11] – e tudo se cumpriu com maravilhosas circunstâncias no nosso caso. Primeiramente, não entrou o inimigo na nossa cidade, antes esteve tão longe de entrar, e nós tão seguros de que ele entrasse, que em todos os quarenta dias do combate, assim de dia como de noite, sempre estivemos com as portas abertas. Nisto mostrou bem a cidade do Salvador que o seu Salvador e defensor de impe¬dir e cerrar as era Deus, porque só Deus pode impedir e cerrar as entradas com portas abertas. Uma das coisas notáveis que lemos no Livro de Jó é que Deus cerrou as portas ao mar, para que não entrasse pela terra: Qui conclusit ostiis mare[12]. – E acrescenta o mesmo Deus, que essas portas do mar as tem muito bem ferrolhadas e muito bem trancadas: Circumdedi illud terminis meis, et posui vectem et ostia[13]. – Agora pergunto: O mar não está aberto por todas as partes? Entre o mar e a terra há alguma coisa que lhe impila o entrar e passar adiante? Todos vemos que não. Que portas são logo estas, e que ferrolhos com que estão tão cerradas e tão seguras? O mesmo Deus o diz: Et dixi: Usque huc venies, et non procedes amplius (Jó 38, 1 I ): – Eu disse ao mar: Até aqui chegarás, e não passarás daqui – e esta minha palavra são as portas sem portas com que, estando aberto o mar em todas as praias do mundo, o tenho fechado e ferrolhado a ele, e a terra tão segura que, por mais bravo que a ameace, não pode dar um passo adiante: Non procedes amplius. – Sabeis, senhores, quem deu tanta segurança à nossa cidade, que, combatida do inimigo, sempre estiveste com as portas abertas de dia e de noite? Foi unicamente aquela poderosa palavra do Salvador, posto que a nós oculta: Non ingredietur urbem hanc: Não há de entrar nesta cidade – e com este seguro da divina proteção estavam as nossas portas abertas, tão forte e tão inexpugnavelmente cerradas, que não houve antigamente aríetes, nem há modernamente petardos, ou outros instrumentos e máquinas bélicas, que pudessem abrir na sua mesma abertura a menor brecha.

A segunda promessa de Deus foi: Nec mittet in eam sagittam: que o inimigo não lançaria dentro na cidade as suas setas. – Este gênero de guerra tem muito mais dificultoso reparo, porque, voando as setas por cima dos muros, caem pela parte do céu sobre os que estão dentro. No mesmo Livro de Jó, pouco antes alegado, faz menção a Escritura Sagrada de guerra chovida: Pluat super illum bellum suum[14]. – E que guerra chovida é esta? É aquela, cujos tiros vêem pela parte do céu. Destes tiros disse Davi: Pluet super peccatores laqueos[15] – e tais foram os tiros e as balas que choveram sobre a nossa cidade, depois que o inimigo assentou as suas batarias. As balas, que se atiravam às nossas trincheiras por linha tendente, e a ponto fixo, ordinariamente ficavam enterradas nas mesmas trincheiras; mas as que se lançavam contra a cidade, como iam por elevação, voavam por cima dos muros e caíam como chuva do céu, sem nenhum reparo humano, mas com milagrosos efeitos da proteção divina: Qui habitat in adjutorio Altissimi, in protectione Dei caeli commorabitur (Sl. 90, 1): Aqueles – diz Davi – a quem defende o Altíssimo, morarão seguros debaixo da proteção do Deus do céu. – Notai a palavra commorabitur, que significa morar juntos, e fala particularmente dos moradores da cidade. Mas, por que chama nesta ocasião o profeta a Deus o Altíssimo, e o Deus do céu? Porque, ainda que as balas podiam passar por cima dos muros altos, não podiam avançar até o Altíssimo que os defendia: Qui habitat in adjutorio Altissimi – e, ainda que caíam ou choviam pela parte do céu, não podiam ofender aos que estavam debaixo da proteção do Deus do céu: in protectione Dei caeli commorabitur. – Assim foi. Os tiros da artilharia inimiga, que se contaram, foram mais de mil e seiscentos, e, chovendo a maior parte deles sobre a cidade, que faziam? Uns caíam saltando, e rodavam furiosamente pelas mas e praças; outros rompiam as paredes, outros destroncavam os telhados, despedindo outras tantas balas quantas eram as pedras e as telhas, e foi coisa verdadeiramente milagrosa que a nenhuma pessoa matassem, nem ferissem, nem ainda tocassem dentro da cidade, sendo que chegaram a levar ou despir a algumas ainda as roupas mais interiores, mas sem nódoa nem sinal nos corpos. E para maior excesso da maravilha, quando as balas que choviam por elevação na cidade, nenhum dano fizeram nos moradores, é certo que as nossas, culebrinas, que também jogavam por elevação desde as portas da Sé, caindo no vale, onde o inimigo tinha assentado o seu arraial, mataram muitos dos hereges. Não deixarei de continuar aqui o texto que referi de Davi, em que já fala nos tiros que chovem do céu, e, declarando-os como se descrevem os da pólvora, diz que é uma tempestade de fogo e enxofre dada a beberem um copo: Ignis et sulphur, et spiritus procellarum, pars calicis eorum[16]. – Note-se muito o calicis eorum. Estes eram os brindes que o flamengo fazia à cidade, mas ela lhe respondia muito à portuguesa, porque, recebendo tão pouco dano da chuva das suas balas, como se fosse de água, a nossa o executava neles tão verdadeiro como de fogo e ferro. Eles brindavam à nossa saúde, e nós à sua morte.

A terceira cláusula da promessa divina foi que o inimigo não poria de cerco a cidade: Nec circumdabit eam munitio – e assim o vimos cumprido. Se o inimigo queria render a cidade por assédio, por que a não cingiu e cerrou por fora com as linhas de circunvalação, por que ao menos não intentou fortificar-se nas três eminências que a dominam, mas se reduziu todo a um quartel? Aqui se vê a providência e previdência do nosso divino defensor, e como começou a defender e segurar a Bahia dentro em Pernambuco. O primeiro lugar em que o inimigo se perdeu, foi a cidade que ele chamou de seu nome Maurícia, e a primeira ação foi o seu próprio conselho. Pode haver maior erro militar que impossibilitar primeiro a vitória, e depois empreender a guerra? Pois isto é o que Fez o general holandês, mais como obediente às disposições do nosso soberano defensor, que como capitão nem soldado. Determina conquistar a Bahia, e resolve de arrancar primeiro de Ceregipe de El-rei as relíquias do exército pernambucano, que ali estavam alojadas, e constavam de mil e duzentos soldados, endurecidos em tantos trabalhos e campanhas, que eram os ossos da guerra, e, por seu valor e experiência, merecedores de ser venerados como relíquias. Se Deus não cerrara os olhos a este conselho, veriam os menos cegos no seu mesmo leão bélgico, com as sete setas juntas todas em uma mão, quão poderosas são as forças unidas para resistir. E se as mesmas províncias, para resistir ao mais poderoso monarca, tomaram o nome de Províncias Unidas, também as nossas milícias unidas resistiriam mais facilmente à sua, se deixasse em paz a umas e pelejasse com as outras separadas e divididas. Mas não é coisa nova em Deus, quando quer desbaratar os efeitos, corromper os conselhos. Arrancado pois de Ceregipe aquele famoso troço de soldados e cabos, a quem a fortuna adversa na sua roda tinha lavrado como fortíssimos diamantes, e incorporados com os do nosso período, menos exercitados, mas não menos valorosos, alentada com esta segunda e nova alma a Bahia, logo ficou mais certa da vitória que receosa da guerra. Tal foi o estado em que o inimigo achou a nossa cidade, e por isso, conforme a promessa divina, se não atreveu a lhe pôr cerco: Nec circumdabit eam munitio – mas, ensinado no seu próprio erro, reconhecendo o risco a que se expunha se dividisse as forças, tratou de as conservar unidas.

Mas como poderá a nossa cidade dar as devidas graças a seu Salvador, pela abundância com que a sustentou e conservou neste meio cerco, o que não pudera ser, se fosse cerrado? Davi, como tão cortado dos trabalhos e apertos da guerra, o que pedia a Deus, e exortava a todos lhe pedissem, é que desse paz à cidade de Jerusalém, para que nela e suas fortalezas houvesse abundância do necessário: Rogate quae ad pacem sunt Jerusalem, et abundantia diligentibus te Fiar pax in virtute tua, et abundantia in turribus tuis[17]. –E a razão destas instâncias tão repetidas de paz e mais paz, era pela experiência do que padeceram na guerra, sitiadas dos inimigos, a mesma Jerusalém e outras cidades de Israel, em que chegaram os homens a se sustentar dos couros das arcas, e das solas dos sapatos, e de outras coisas que não têm nome, ainda mais indecentes, obrigando a fúria da fome até às mesmas mães a que comessem seus próprios filhos. E nós estivemos tão fora de pedir a Deus paz, para que nos não faltasse a abundância do sustento, que em todo o tempo da guerra, não só se sustentaram os que nos sustentavam de carne sempre fresca, nem só abundava a cidade de todos os bastimentos naturais da terra, mas ainda os mais hortenses e verdes, mas, sem figura alguma de encarecimento, posto que sobre todas as da admiração, um só termo me ocorre de se poder declarar a verdade da abundância que logramos. E qual é? É dizendo que quanto se acha em Lisboa, desde S. Paulo até à Confeitaria e Ribeira, assim do reino, como de fora dele, tudo se via aberto e exposto em cada uma das vendas da Bahia, sendo tantas, e sem a guerra lhe alterar os preços. Não só tão abundante e superabundantemente proveu o Salvador a sua cidade, mas com tantas prevenções de mimo e regalo que, quando Holanda lhe fazia a guerra, toda Europa a servisse à mesa.

§V

A parte da Vitória e defensa da cidade que tocou ao servo, que foi o ante-mural. Por que não continuou a marcha o inimigo? Santo Antônio, Arca do Testamento nas águas do Jordão. A milagrosa resistência da pequena trincheira de Santo Antônio. A queda das outras fortalezas, e a nesga da capa de Saul, cortada por Davi. Resistência de Moisés e Santo Antônio ao poder de Deus.

Até aqui temos visto a parte da vitória e defensa da cidade que tocou ao Senhor – propter me – que foi o muro. Agora veremos a que tocou ao servo – et propter servum meum –que foi o antemural. Nesta passagem, porém, do muro ao antemural, a mesma que dos muros a dentro parecia paz, deles afora mudou tanto de semblante e trajo, que a catadura, como verdadeiramente de guerra, era cheia de fereza e de horror, e as roupas, não inteiras, mas rasgadas, tintas todas em sangue. O nosso texto só refere ou promete em suma o sucesso, e diz que o inimigo, desenganado da empresa, tornará por onde veio: Per viam, qua venit, revertetur[18]. – Isto é o que nós agora mais sossegadamente havemos de ver. E não só veremos o visto, senão também o invisível, porque se verá manifestamente a fortíssima resistência do nosso antemural, e quão a ponto pelejou sempre por nós e conosco o nosso segundo defensor, Santo Antônio.

Eram as horas do meio dia, quando o inimigo com todo o seu poder apareceu em marcha no monte fronteira a este, não havendo nele outra prevenção de defensa mais que os vestígios de uma trincheira rota; e quando se presumia que, passando adiante, naquele mesmo dia se sentenciasse o pleito em uma bem confusa batalha – porque ainda não estava posta em ordem a confusão – subitamente vimos que as bandeiras, que vinham tendidas, nem se avançavam, nem faziam alto, mas, voltando o passo no mesmo lugar, desciam e se escondiam para o vale, onde assentaram o seu arraial. Agora pergunto: por que não continuou a marcha o inimigo? Se depois que teve as forças mais cansadas e diminuídas nos acometeu com tanta resolução, agora que as traz frescas e inteiras, por que nos não acomete? Se depois que estivemos fortificados, investiu denodadamente as nossas trincheiras, e as pretendeu levar à escala e render-nos dentro nelas, agora que nos acha descobertos e sem defensa, por que em vez de avançar se retira? Antes de responder a esta pergunta quero fazer outra, não minha, senão de Davi. Quando os filhos de Israel chegaram às ribeiras do Jordão, o rio que levava sua costumada corrente, não só parou, mas voltou atrás. Admiraram-se todos de tão desusado prodígio, e Davi, que quis examinar a causa, perguntou-a ao mesmo rio: Quid est tibi, mure, quod fugisti? Et tu, Jordanis, guia conversus es retrorsum[19]? – Que a parte inferior do rio corra ao mar, isto é natureza, mas que a superior, que se vem precipitando com todo o peso das águas, pare e torne atrás? Se pára, quem a teve mão? E, se torna atrás, quem lhe tirou pelas rédeas? O mesmo profeta responde: A facie Domini mota est terra, a facie Dei Jacob[20]: – Na vanguarda do exército dos israelitas marchava a Arca do Testamento, e tanto que o rio deu de rosto com a arca do Deus de Jacó, esta súbita vista lhe infundiu tal respeito e tal temor, que não só parou a corrente, mas voltou atrás: Jordanis conversus est retrorsum. – Tem respondido Davi à sua pergunta, e também à minha. Santo Antônio, por autoridade e canonização do supremo oráculo da Igreja, é a Arca do Testamento. Assim lhe chamou o Sumo Pontífice, reconhecendo pela voz de sua mais que humana eloqüência, os profundíssimos mistérios da divindade que naquela grande alma estavam encerrados: Tantamque sui admirationem commovit, ut eum Summus Pontifex aliquando concionantem audiens Arcam Testamenti appellarit. – Pois, assim como o ímpeto do Jordão, tanto que avistou a Arca do Testamento, parou e tornou atrás com a sua corrente, assim o orgulho do exército inimigo, tanto que do monte oposto descobriu o de Santo Antônio, não só foi obrigado desta vista a fazer alto, mas a voltar a marcha que trazia. É verdade que ele não conheceu nem podia conhecer a força oculta que o detinha, mas também o Jordão a não conheceu nem podia conhecer, e, contudo, é certo que ele o deteve.

Mais fez na tarde deste meio dia Santo Antônio. Fatais foram as horas que ela durou, e chegariam até a última fatalidade, se não houvera mão oculta que invisivelmente a impedisse. Defendiam a marinha, nas raízes do monte oposto, o forte do Rosário e o reduto da Água dos Menimos; mas, dominados do sítio superior, que pela parte da terra tinha ocupado o inimigo, como incapazes de toda a defensa, rebentada a artilharia que foi possível, lhe ficaram logo sujeitos. Cortados do mesmo modo os dois fortes de Monserrate e S. Bartolomeu, com igual pressa se renderam, sem preceder ao menos a cerimônia militar da resistência, que ainda nas praças condenadas pede a cortesia da guerra. E quem não cuidaria, à vista deste desamparo, que o açoite do Brasil, que tínhamos à vista, era meneado pelo braço da divina Justiça, a qual nestes primeiros golpes, descarregados sobre as costas da Bahia, sem movimento seu, mais que os da dor, lhe ameaçavam a total e breve ruína? Mas não era menos digno de admiração, que no mesmo tempo em que as praças fortes artilhadas e presidiadas espontaneamente se entregavam, só a trincheirinha de Santo Antônio, arruinada, aberta, e quase rasa com a terra, mostrasse espíritos de resistência! Pusemos em uma das suas aberturas uma única peça, assentada sobre a terra nua e desigual, sem esplanada ou outro pavimento fixo em que pudesse correr, e, posto que ao disparar se enterravam as rodas, com este só tiro, que podia parecer reclamo aos contrários para que a mandassem render, não só se mostrou o nosso defensor forte contra eles, senão também contra Deus.

São termos de que usou o mesmo Deus, dizendo a Jacó: Si contra Deum fortis fuisti, quanto magis contra homines praevalebis (Gên. 32, 28)? – Se foste forte contra Deus, quanto mais facilmente prevalecerás contra os homens? – Na facilidade com que outras fortalezas se entregaram ao inimigo mostrou Deus quão facilmente lhe podia também entregar as demais, e castigar toda a Bahia; na resolução com que a trincheirinha arruinada de Santo Antônio se opôs tão fortemente à resistência, nos assegurou que só o mesmo santo era poderoso para ter mão no braço de sua justiça, para nos não castigar. Em uma e outra coisa falo pela boca da Escritura. Marchava Saul com um exército de dez mil homens em demanda de Davi, retirou-se acaso a uma cova, e quis sua fortuna que nela estava escondido o mesmo Davi, que tão capaz era. – Eia, Davi, lhe dizem os companheiros: Ecce dies, de qua locutus est Dominus ad te: Ego tradam tibi inimicum tuum (4 Rs. 24, 5): Este é o dia em que Deus tem prometido de vos entregar nas mãos vosso inimigo, para que vos vingueis dos agravos que vos tem feito. – Levanta-se Davi, e que vos parece que faria? Praecidit oram chlamydis Saul (4 Rs. 24, 5): Conten¬tou-se somente com cortar uma nesga da capa de Saul. – E para quê? Para naquele retalho cortado tanto a seu salvo lhe mostrar quão facilmente lhe pudera tirar a vida e acabar com ele de uma vez. Por que se entregaram senhores, essas outras fortalezas? Porque se viram cortadas do inimigo. E contentou-se Deus de cortar a Bahia esta nesga de terra – que em forma triangular propriamente é nesga – para que entendêssemos que, assim como entregou uma parte ao holandês, sem lhe custar duas onças de pólvora, com a mesma facilidade lhe pudera entregar tudo.

Mas, se o não executou assim Deus, foi porque Santo Antônio, que nas ruínas das suas trincheiras resistia visivelmente, desci para com o mesmo Deus lhe fez tão forte e poderosa resistência que lhe teve mão no braço, para que nos não castigasse, como ameaçava e podia; antes, em lugar do castigo nos desse a vitória. Vai a outra Escritura. Quis Deus, não castigar, mas destruir cabalmente o povo que se chamava seu; e como por parte do mesmo povo se opusesse Moisés a esta resolução, refere o caso o real profeta, e são estas as suas palavras: Dixit ut disperderet eos, si non Moyses, electus ejus, stetisset in confractione, id est, in ruptura muri (SI. 105, 23): Decretou Deus, e disse que os havia de destruir e acabar a todos, e assim havia de ser, sem duvida-se Moisés, seu grande valido, lhe não resistisse. – E onde? –In confractione, in ruptura muri: nas ruínas do muro desbaratado e roto. – Pode haver propriedade mais própria? Pois, ainda foi mais própria do nosso caso que no de Moisés. Porque no de Moisés é metáfora, e no nosso foi pura e mera realidade. Bem vimos os vestígios da pobre trincheira velha, aberta, desfeita, arruinada, rota. Mas, como era de Santo Antônio, dali resistiu o nosso defensor, não digo ao inimigo senão a Deus, que se não fora meneado por Deus não era nada o poder do inimigo. De Moisés diz o texto que lhe dizia Deus: Dimitte me, ut irascatur furor meus (Êx. 32, 10): Moisés, deixa-me, deixa-me castigar. – E se Moisés, que estava prostrado aos pés de Deus, tanto o apertava com as suas resistências, que faria o nosso santo, que o tem nos braços? O certo é que lhe diria como Jacó: Non dimittam te, nisi benedixeris mihi[21] – e a bênção que alcançou, sendo tão forte contra Deus, foi que muito melhor prevaleceria contra os homens, como mostrou o efeito.

§ VI

O ataque noturno dos holandeses e a vitória portuguesa de 18 de maio. A parte que teve Santo Antônio em um e outro assalto. Os dois combates da Arca do Testamento e do ídolo Dagon na cidade de Azoto. Dagon, meio-homem e meio-peixe, figura dos holandeses, homens anfíbios. Por que o salmista chama aos inimigos, na investida e combate da sua trincheira, abelhas, e diz que arderão como fogo nas espinhas?

Enquanto o inimigo trabalhava nas suas batarias, crescia tanto a nossa trincheira quanto nele o ciúme de a ver crescer. Determinado de ganhar o posto, a investiu de repente com mais de mil clavinas acompanhadas da escuridade da noite, sempre traidora ao valor que se funda na honra menos constante, onde não é vista. Assim se experimentou na confusão das primeiras cargas; mas, acudindo os de maiores obrigações ao reparo, retirados logo os combatentes, amanheceram com a luz estendidos na campanha os que não puderam retirar consigo. Não podia sofrer a nossa bizarra infantaria, nem os cabos menores e maiores dela, que fossemos réus onde desejavam ser autores. Todos clamavam que investíssemos o inimigo nos seus quartéis, onde foi necessária ao governo das nossas armas toda a paciência e prudência de Fábio Máximo – Cujus non dimicare vincere fuit[22] – como dele diz Valério, também Máximo. Obedecendo, contudo, ao desejo e voz comum, se decretou de público o assalto para a madrugada da Ascensão, mas de secreto se tocou uma arma falsa, com que, fazendo-se entender que os nossos intentos eram descobertos ao inimigo, se desistiu felizmente deles. Havia de ser o mesmo inimigo o agressor, para que no sucesso da sua perda total reconhecêssemos o perigo da nossa. Chegou enfim a noite decretória e fatal de 18 de maio, em que acometeram a requestada trincheira três mil holandeses ajuramentados de ou a ganhar ou morrer, dos quais muitos cumpriram a segunda parte do juramento, mas nenhum a primeira. E, posto que depois foram socorridos com todo o grosso do exército, sendo já na campanha batalha o que na trincheira era assalto, e durando a porfia do combate três horas inteiras, foi o sucesso tão desigual que eles, sem escrúpulo de perjuros, em boa consciência se retiraram vencidos, e nós, concedendo-lhes que levassem os seus mortos a sepultar em muitas carroçadas, celebramos com salvas e repiques a memorável vitória. Os mesmos holandeses confessaram, segundo o seu modo de contar, que entre mortos e feridos perderam naquela noite vinte e oito centos. Vede se foi memorável.

Mas eu também vejo que estais esperando ouvir a parte que nela teve Santo Antônio em um e outro assalto. Sou contente, e não vos há de faltara Escritura Sagrada, com toda a propriedade do caso. Levada a Arca do Testamento à cidade de Azoto, puseram-na os filisteus no templo junto ao seu ídolo Dagon, para que parecesse troféu e despojo do mesmo ídolo. Feito isto de dia, o que a Arca fez de noite foi que amanheceu o ídolo prostrado por terra diante dela: Et ecce Dagon jacebat pronus terra ante arcam Domini (I Rs. 5, 3). – Admirados e sentidos, mas não desenganados da vaidade do seu erro, os filisteus tornaram a restituir o ídolo ao seu lugar; porém, sobrevindo a noite, se na passada lhes tinha sucedido mal, muito pior lhes sucedeu na seguinte porque, com a luz da manhã, não só apareceu Dagon prostrado por terra, mas com a cabeça e as mãos cortadas e lançadas à porta do templo: Invenerunt Dagon jacentem super faciem suam coram arca Domini: caput autem autem Dagon, et duae palmae manuum ejus abscissae erant super limen (1 Rs. 5, 4). – De maneira que a Arca e o Dagon tiveram dois combates em duas noites diferentes, e em ambas ficou a Arca vencedora, e na segunda com muito maior e total vitória. Vamos agora à significação destes dois combates. A Arca do Testamento já sabemos que é Santo Antônio; o Dagon, quem será? Entre todas as nações do mundo, nenhuma se achará mais representada nele que a holandesa. A figura do ídolo Dagon, como diz S. Jerônimo e os outros intérpretes, era de meio homem e meio peixe: e tal é a terra de Holanda por sítio, e por exercício e modo de viver tais são os seus habitadores. Toda a terra é retalhada do mar, com que juntamente vem a ser mar e terra, e os homens, a quem podemos chamar marinhos e terrestres, tanto vivem em um elemento como no outro. As suas ruas por uma parte se andam, e por outra se navegam, e tanto aparecem sobre os telhados os mastros e as bandeiras, como entre os mastros e as bandeiras as torres. Sendo tão estéril a terra, que somente produz feno, as árvores dos seus navios, secas e sem raízes, a fazem abundante de todos os frutos do mundo. Em muitas partes toma o navio porto à porta de seu dono, amarrando-se a ela, e deste modo vem a casa a ser a âncora do navio, e o navio a metade da casa, de que igualmente usam. Aos animais que vivem no mar e na terra chamaram os gregos anfíbios; e quem poderá negar que tão anfíbio era o Dagon como os holandeses, e tão compostos de peixe e homem os holandeses como o Dagon? Estes Dagões, pois, e estes anfíbios, são os que como homens nos queriam tomar a cidade, e como peixes a Bahia, cuidando que, levando a trincheira, ganhavam ambas. Mas não advertiram os cegos que a trincheira era de Santo Antônio, e que assim como eles são os Dagões, Santo Antônio é a Arca do Testamento. Na primeira noite e no primeiro combate ficaram prostrados por terra, e na segunda, não só prostrados, mas degolados, e com ambas as mãos cortadas e tão desfeitas que, dizem e tresladam os Setenta intérpretes, que cada mão ficou espedaçada em cem partes: Ambo vestigia manus ejus erant ablata per partes centum. – Vede se tiveram razão de contar os seus feridos e mortos aos centos.

Oh! como estou vendo o nosso santo lembrar-se da porfiada e estrondosa bateria daquela noite, e, como Deus nesta ocasião lhe deu o nome de Davi: Et propter David servum meum – gloriar-se da vitória, e triunfar, dizendo com ele: Circumdederunt me sicut apes, exarserunt sicut ignis in spinis, et in nomine Do-mini, quia ultus sum in eos (SI. 117, 1 I ): Cercaram-me como abelhas, arderam como fogo em espinhas, mas eu, em nome do Senhor, vinguei-me deles. – Bem mostram as comparações serem de uma eloqüência tão alegórica de Santo Antônio. Mas por que chama aos inimigos na investida e combate da sua trincheira abelhas, e diz que arderam como fogo nas espinhas? Não se pudera mais vivamente declarar o que vimos e ouvimos. Pudera chamar abelhas aos holandeses, pela arte e bom governo que se lhes não pode negar da sua república, e abelhas nesta facção, pelo apetite que cá os trouxe do nosso mel; mas chama-lhes abelhas, que lhes basta ser pequenas para serem coléricas, pelo ímpeto raivoso e fúria com que acometeram, e mais particularmente, porque é próprio da abelha, em picando, cair morta: Ponuntque in vulnere viram, – Assim lhes sucedeu aos que investiram a cortina e traveses que a nossa trincheira já tinha, porque quantos a picaram com os instrumentos que para isso traziam, todos caíram, e ficaram sepultados no mesmo fosso.

Também vieram armados de infinita munição de granadas, e outros artifícios de fogo que, disparados incessantemente entre a tempestade das cargas, alumiavam a noite, atroavam o ar, e choviam raios sobre os que dentro e no alto da fortificação a defendiam, presumindo os escaladores que com estes aparatos de horror sacudiriam dela os nossos, e franqueariam os dificultosos passos por onde insistiam em subir, e a pretendiam ganhar. Mas a toda esta representação de relâmpagos e trovões chama o nosso defensor, com maior energia, fogo que arde nas espinhas: Exarserunt sicut ignis in spinis –porque do fogo que se ateia em semelhante matéria, como bem comenta Lorino, é maior o estrondo e o ruído do que são os efeitos: Spinas ignis corripiens horribili cunctas crepitationes inflammationeque partes pervadit, sed brevi sonus ille flammaque conquiescit. – Tão fora estiveram aqueles medos artificiais de enfraquecer ou quebrantar a constância e resistência dos nossos, que as granadas que caíam acesas e inteiras, rechaçadas intrepidamente, tornavam outra vez para donde vieram, e as que rebentavam entre eles, rara ou nenhuma feria mortalmente. Enfim, conclui o oculto protetor do seu terreno, que em nome do Senhor se vingou deles: Et in nomine Domini, quia ultus sum in eos. – Não diz que venceu, senão que se vingou, porque a vitória responde à guerra, e a vingança à injúria. E porque os hereges lha faziam grande, atrevendo-se aos que pelejavam à sombra da sua casa, como a descomedidos profanadores daquele sagrado, não os trata como vencedor, mas como vingativo, e não com o decoro de vencidos, mas com a afronta de sacrílegos e castigados: Quia ultus sum in eos.

§ VII

Por que, no segundo combate da Arca e do ídolo, apareceram as mãos de Dagon, não só cortadas mas postas à porta do templo? Razões da retirada dos holandeses. A vergonha da fuga. A grande diferença entre a fugida de Senaquerib no sítio de Jerusalém e a dos holandeses vencidos na Bahia.

Não debalde depois da noite do segundo combate da Arca, amanheceram as mãos do Dagon, não só cortadas, mas postas à porta do templo, para significar, como diz Hugo Vitorino, que aquela vitória, não só fora a segunda, senão a última, e que ele, desenganado, não havia de tratar já de pelejar, senão de sair e se ir embora. Tanto como isto, depois daquela fatal e felicíssima noite, se mudaram em ambos os arraiais as idéias da guerra, a qual no general inimigo e nos nossos se fazia já só com o pensamento: o do inimigo posto na retirada, e o dos nossos em que se não pudesse retirar. Como contra as suas duas baterias tínhamos em frente outras duas, e a terceira pelo lado esquerdo, que lhe desquartinava todos os quartéis, só restava a quarta pela retaguarda. E me constou então – donde só podia constar com certeza – que, levantada esta ocultamente entre o bosque da eminência oposta, na manhã em que, cortadas as árvores, aparecesse, tendo-se lançado na campanha de noite dois mil infantes, batendo-se ao mesmo tempo de todas as quatro partes o arraial inimigo, se lhe mandaria recado, por um trombeta, que se entregasse, pois já não tinha defensa nem retirada. Este era o galhardo pensamento dos nossos generais, em que o inimigo de sitiador ficaria sitiado, e nós, com roda de fortuna poucas vezes vista, de sitiados sitiadores. Antecipou-se porém o medo ao valor, a cautela ao perigo, e a fuga secreta do inimigo à pública declaração do nosso desígnio, de que quase estou queixoso de todos os santos, os quais nesta defensiva representou a pessoa de Santo Antônio, se afirma com termos bizarros que eles, quando pelejam, não só atam as mãos aos inimigos com algemas, senão também os pés com grilhões: Ad alligandos reges eorum in compedibus, et nobiles eorum in manicis ferreis[23]. – Pois, se o nosso vitorioso defensor lançou as algemas ao inimigo, por que o não pôs também em grilhões? Se lhe atou as mãos, para que não pudesse mais pelejar, por que lhe não atou também os pés, para que não pudesse fugir?

A razão verdadeira, e que não admite outra, é a que já referimos do mesmo texto, o qual, resumindo todo o sucesso desta proteção do céu, diz que o inimigo tornaria pelo mesmo caminho por onde veio: Per viam, qua venit, revertetur (4 Rs. 19, 33). – Assim se cumpriu na fugida de Senaquerib, rei e general do exército com que viera sitiar a cidade de Jerusalém. E se curiosamente quisermos inquirir a razão desta mesma razão, acharemos que a que Deus teve não foi outra, senão querer, em castigo daquele atrevimento, que Senaquerib, não só ficasse vencido, mas tornasse a aparecer diante dos seus afrontados. A prova é evidente. Porque em uma noite matou um anjo cento e oitenta e cinco mil soldados do exército de Senaquerib. Pois, se matou a tantos, por que o não matou também a ele? Porque o morrer na guerra pode ser e comumente é honra, mas o fugir sempre é afronta. Pois, para que o soberbo infiel leve da cidade de Deus o merecido castigo de seu atrevimento, escape com a vida, mas fugindo. Por isso não quis Deus que acometêssemos o inimigo nos seus quartéis, como tanto desejavam os soldados, nem que acabássemos de o sitiar neles, como tinham determinado os generais, mas que, vencido o temor, e convencido da própria desesperação, sem nova violência fugisse, e com uma fugida tão precipitada e torpe, deixando artilharia, munições, armas, bastimentos, e até o pão cozendo-se nos fornos, e nos ranchos a comida dos soldados ao fogo, para que os negros da Bahia tivessem com que banquetear a vitória. Mais ainda: que nas fortalezas rendidas, estando à beira-mar, e dominadas dos seus navios, nem das armas levassem um arcabuz, nem da artilharia um bota-fogo, e ficassem tão inteiras em tudo como as acharam! Mas também este milagre em corsários corria pelas obrigações de Santo Antônio, como tão pontual recuperador do perdido.

Enfim, o inimigo nos deixou tudo o nosso e parte do seu. Mas não deixarei de advertir na história do nosso texto uma grande diferença daquela fugida a esta. – Antes de Senaquerib aplicar o seu exército ao sítio de Jerusalém, ordenou Deus lhe chegassem novas, que Taraca, rei da Etiópia, vinha sobre ele com todo o poder, em socorro da mesma cidade. E, posto que a mortandade executada pelo anjo tinha sido de tantos mil, a esta nova atribui o mesmo Deus a sua fugida: Ecce ego dabo ei spiritum, et audiet nuntium, et revertetur ad terram suam[24] – Também cá o nosso sitiador nos quis conquistar com novas. Como nunca faltam humores melancólicos e amigos de as darem más, em um navio de Lisboa, que no tempo do sítio tomaram os holandeses, se acharam algumas cartas – poucas – em que se dizia que lá se falava em armada, mas que cá não esperássemos por ela, porque os muitos empenhos em que de presente se achava Espanha não permitiam que se diminuísse das forças marítimas. Estas cartas, cotadas à margem, remeteu por um trombeta o general holandês aos nossos com outra sua, em que dizia lhas enviava, para que tivessem entendido que não podiam ser socorridos. Julgava que esta bala era a que maior brecha podia abrir nos corações dos cercados, e por isso se teve em segredo. Mas a resposta foi tão desassustada como discreta, porque, depois de satisfazerem, também por escrito, a outros pretextos da embaixada, acabava assim: – E quanto às cartas de Lisboa, que Vossa Senhoria nos enviou, respondemos às que cá vieram, com as que lá ficaram. – Assim era, porque todas as outras certificavam que vinha armada, como efetivamente veio. Mas, ou a nova fosse falsa, ou verdadeira, nem o inimigo aguardou a que viesse o socorro, nem nós o houvemos mister, para que também por esta circunstância a sua fugida fosse menos desculpável, e a nossa vitória mais luzida. Embarcado, finalmente, levou as âncoras na segunda noite, que também lhe não foi favorável, porque lhe faltou o vento, para que a olhos de todos, conforme o nosso texto, se visse voltar por onde veio. Pelas nove e dez horas do dia saiu pela Bahia fora a armada, triste, desembandeirada e muda, e se com a sua e nossa artilharia a despediu a cidade do Salvador em três salvas, nelas publicamos ao céu, ao mar e à terra quão gloriosamente desempenhou o mesmo Salvador com a mesma cidade a sua palavra: Protegam urbem hanc, et salvabo eam.

§ VIII

Os dois amores de Deus que concorreram para a vitória dos portugueses. Os capitães portugueses, como os vinte e quatro anciãos do Apocalipse, devem depor aos pés de Deus e de seu trono, Santo Antônio, as coroas da vitória. Os trabalhos de Jacó para conquistar Raquel, e as lutas de Pernambuco para reconquistar Olinda. Oração.

Esta é, cidade, milícia e povo da Bahia, a vitória que Deus nos fez mercê, tão gloriosa como sua, e de que todos lhe vimos render as graças, tão obrigados como nossa. Dois amores concorreram da parte de Deus para ela: propter me, por amor de mim — et propter servum meum por amor de meu servo. – E se a este dobrado amor devemos dobrada correspondência, seja a primeira em lhe confessar o todo da glória, que é sua, e a Segunda, em lhe atribuir também a parte que pode parecer nossa. Se a Bahia fora Roma, todos os nossos valorosíssimos capitães e soldados haviam de aparecer hoje neste monte, como no do Capitólio, coroados com três coroas: cívicas, murais e castrenses. Cívicas, porque não só defenderam um cidadão, mas uma tão numerosa e populosa cidade; murais, porque, sendo tão fracas as faxinas da nossa trincheira para a sustentar e fortalecer, fizeram dos próprios peitos muros; e castrenses, porque não só desejaram tantas vezes investir o inimigo nos seus próprios arraiais, mas o obrigaram a que ele espontaneamente no-los rendesse. Mas a coroa com que todas estas se coroam é a da fé – que a ele faltava – oferecendo-as todos como verdadeiros católicos, e lançando-as aos mesmos triunfantes pés do Salvador e do santo que o tem em seus braços. Viu S. João no Apocalipse a Deus sobre um trono de grande majestade, eque vinte e quatro anciões, os quais em roda lhe faziam corte, todos coroados, prostrando-se de joelhos, adoravam profundissimamente ao supremo Senhor, e, tirando as coroas da cabeça, as lançavam aos pés do seu trono: Adorabant viventem in saecula saeculorum, et mittebant coronas suas ante thronum (Apc. 4, 10) – Santo Ambrósio, São Bernardo, Ruperto, e os outros expositores, perguntam que coroas eram estas, e por que as tiravam da cabeça e as lançavam aos pés do trono de Deus? E todos respondem uniformemente que as coroas eram as das vitórias que neste mundo tinham alcançado, e que todos as tiravam das próprias cabeças, e as lançavam diante do trono de Deus; para as atribuir a seu verdadeiro autor, reconhecendo que mais eram de Deus que suas. Cristo, nosso Salvador, é o verdadeiro Deus dos exércitos e das vitórias; o seu trono é Santo Antônio, que tão de assento o tem nos braços; e diante deste Deus e deste trono vêm lançar as coroas que mereceram na presente vitória os famosos Martes da nossa milícia, mais gloriosas pés de Deus que quando as quando as põem aos pés de Deus que quando Deus lhas pôs na cabeça. E chama-se Deus nesta ocasião viventem in saecula saeculorum, porque as vitórias temporais, tão sujeitas à variedade da fortuna, só postas aos seus pés podem ser eternas.

Bem acabava aqui o sermão, se me não faltara a última cláusula, que o nosso agradecimento não deve passarem silêncio. Os que lançaram as coroas aos pés do trono de Deus eram os anciãos, em que mais particularmente são significados os veteranos, cabos e soldados da milícia pernambucana, cujas valorosas ações nesta guerra, assim como as admiraram os olhos dos presentes, assim serão perpétuas nas línguas da fama, e nas letras e estampas dos anais as lerá imortalmente a memória dos vindouros. No meio, porém, desta mesma alegria universal não posso deixar de considerar neles algum remorso de dor. A vista dos bens alheios cresce o sentimento dos males próprios. E tais podem ser as memórias dos desterrados de Pernambuco – como as lembranças de Sião sobre os rios de Babilônia – vendo a Bahia defendida, e a sua pátria, pela qual trabalharam muito mais, em poder do mesmo inimigo. Assim o permitiu e ordenou Deus; mas, como podemos esperar de sua providência e bondade, para maior glória e consolação de todos ainda nos dará restaurado Pernambuco. Serviu Jacó por Raquel sete anos, e ao cabo deles, em vez de lhe darem Raquel, achou-se com Lia. Queixou-se desta diferença, tão sentido como o pedia a razão e o amor, e respondeu-lhe Labão: – Filho, o que fiz não é porque te não queira dar a Raquel, mas porque te quis dar a Lia, e esta primeiro porque é a irmã mais velha. – O mesmo digo eu agora. Serviram os filhos de Pernambuco pela sua formosa Raquel, pela sua Olinda, outros sete anos, ao cabo dos quais, não só a não recuperaram, mas a perderam de todo. Argumento grande de seu valor que houvessem mister os holandeses sete anos para conquistar Pernambuco, quando bastaram outros sete aos mouros para conquistar Espanha. Mas, se ao cabo de tantos trabalhos e serviços não concedeu Deus aos pernambucanos a sua Raquel, não foi por lha negar, senão por lhe querer dar também a Lia. Quis-lhes dar primeiro a Bahia, como irmã mais velha e cabeça do Estado, e depois de levarem esta glória, de que ela sempre lhe deve ser agradecida, então lhes cumprirá seus tão justos desejos, e com dobrado e universal triunfo os meterá de posse da sua tão amada pátria, como digna de ser amada. Assim o confiamos da bondade de Deus, e o esperamos da poderosa intercessão do nosso Davi, não menos interessado naquela perda, nem menos milagrosa a sua virtude para recuperar a Bahia que Pernambuco. – Lembrai-vos, glorioso Santo, dos muitos templos e altares em que éreis venerado e servido naquelas cidades, naquelas vilas, e em qualquer povoação, por pequena fosse, e que nos campos e montes onde não havia casa só vós a tínheis. Lembrai-vos dos empenhos e grandiosas festas com que era celebrado o vosso dia, e, sobretudo, da devoção e confiança com que a vós recorriam em suas perdas particulares, e do prontíssimo favor e remédio com que acudíeis a todos. O mesmo sois, e não menos poderoso para o muito que para o pouco. Apertai com esse Senhor que tendes nos braços, e apertai-o de maneira que, assim como nos concedeu esta vitória nos conceda a última e total de nossos inimigos. E nós, como tão faltos de merecimento, a reconhecere¬mos sempre como sua e como vossa: como sua, dada por amor de si, e como vossa, alcançada por amor de vós: Propter me, et propter David servum meum[25].



[1] Protegerei esta cidade, e a salvarei por amor de mim, e por amor de meu servo Davi (4 Rs. I9, 34).

[2] Dizei: Salva-nos. ó Deus, nosso Salvador (I Par. 16.35).

[3] Cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele fez maravilhas. A sua destra o livrou, e o seu braço santo (SI. 97. I ).

[4] Ninguém é profeta na sua pátria (Lc. 4, 24).

[5] Não perdoaste a teu filho único por amor de mim (Gên. 22, 12).

[6] As estrelas, persistindo na sua ordem e no seu curso, pelejaram contra Sisara (Jz. 5, 20).

[7] Altos louvores de Deus se acham na sua boca, e espadas de dois tios nas suas mãos, para fazer vingança nas nações, castigos nos povos. Para meter os reis deles em grilhões, e os seus nobres em algemas de ferro (SI. 149, 6 ss).

[8] Na Vulgata: Urbs fortitudinis nostrae Sion; salvator ponetur ia ea murus et antemurale: Sião. cidade da nossa fortaleza, é o salvador: ele será posto nela por mural e antemural (Is. 26, 1).

[9] Ele não entrará nesta cidade (4 Rs. 19, 32).

[10] Nem despedirá setas contra ela (ibid.).

[11] Nem será cercada de trincheiras (ibid.).

[12] Que pôs diques ao mar (J(5 38. 8).

[13] Eu o encerrei nos limites que lhe prescrevi, e lhe pus ferrolhos e portas (ibid.).

[14] Faça chover sobre ele a sua vingança (Jó 20, 23).

[15] Fará chover laços sobre os pecadores (SI. 10, 7).

[16] 0 fogo, e o enxofre, e as tempestades são a parte que lhes toca (SI. 10, 7).

[17] Pedi — a Deus — graças de paz para Jerusalém, e abundância para os que a amam. Seja feita a paz no teu exército, e abundância nas tuas torres (SI. 121, 6 s).

[18] Ele voltará pelo caminho por onde veio (4 Rs. 19. 33).

[19] Que tiveste tu, ó mar, que fugiste? E tu, Jordão, para retrocederes (SI. 113, 5)?

[20] Comoveu-se a terra na presença do Senhor, perante o Deus de Jacó (ibid. 7).

[21] Não te largarei se me não abençoares (Gên. 32, 26).

[22] Cujo talento consistiu em vencer sem combater (Valer. Max. lib. VII 3, 7).

[23] Para meter os reis deles em grilhões, e os seus nobres em algemas de ferro (SI. 149, 8).

[24] Eis aqui estou que lhe darei um espírito, e ele ouvirá uma nova, e voltará para a sua terra (Is. 37, 7).

[25] Por amor de mim, e por amor de meu servo Davi (4 Rs. 19, 34).

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística