Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão das Obras de Misericórdia à Irmandade do Mesmo Nome, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DAS OBRAS DE MISERICÓRDIA À IRMANDADE DO MESMO NOME

Na Igreja do Hospital Real de Lisboa, em dia de Todos os Santos, com o Santíssimo exposto, ano 1647.

Beati pauperes, beati misericordes[1].

§I

A beatificação da pobreza e a beatificação da misericórdia. A união da substância da misericórdia em Cristo e dos acidentes da pobreza em nós. Assunto do sermão: Na pobreza de uns e na misericórdia de outros instituiu Cristo um novo Sacramento, não de outra, senão de sua própria pessoa, transformando-se a si mesmo em todos os pobres do mundo, e consagrando-se neles.

Não só uma, senão duas vezes sacramentado, vos contempla a minha consideração, e vos reconhece e adora a minha fé neste dia, e neste lugar, todo-poderoso Senhor. Nas duas cláusulas ou nos dois oráculos de vossa divina pala­vra, que propus, vejo beatificada a pobreza: Beati pauperes (Mt. 5, 3) – e também beatificada a misericórdia: Beati misericordes (ibid. 7). A misericórdia em vós é substância, a pobreza em nós são acidentes; e se eu desta substância e destes aci­dentes quisesse formar algum sacramento, este Sacramento seria só um, e não só vosso, mas vosso por uma parte e nosso por outra. Contudo, torno a dizer que neste dia e neste lugar vos contemplo e adoro, não uma, senão duas vezes sacra­mentado, e não a outro título, senão da mesma misericórdia, nem a outro benefício, senão da mesma pobreza. Ó bem-aventurada pobreza, e bem-aventurada misericór­dia! Bem-aventurada a pobreza dos pobres, que a este hospital real vêm buscar o remédio, e bem-aventurada a misericórdia dos misericordiosos, que nele os socor­rem e remedeiam, pois, a pobreza de uns e a misericórdia de outros, para uns e para outros vos sacramentou outra vez. Este será, Senhor, com vossa licença e graça, o argumento do meu discurso hoje. Vós o encaminhai como novo, vós o alentei como fraco, vós o alumiei como rude, e por intercessão de vossa Santíssi­ma Mãe, vós o assisti como vosso. Ave Maria.

§II

A pobreza que é miséria e a pobreza que é virtude. Qual a pobreza canoni­zada por Cristo? Por que cremos que Cristo está nos pobres?

Neste grande e formoso teatro da piedade cristã – em que a mesma piedade, junta em corpo de congregação, é a principal e melhor parte do mesmo teatro – as duas figuras ou personagens que hoje entram a representar é a pobreza e a misericórdia, ambas em hábito de bem-aventurança: Beati pauperes, beati misericordes.

Começando pela pobreza, este nome tão mal avaliado entre os homens tem duas significações. Há pobreza, diz Santo Agostinho, que é virtude, e pobreza que é miséria. A pobreza que é virtude é a pobreza voluntária, com que se despre­zam todas as coisas do mundo. A pobreza que é miséria é a pobreza forçada, com que se carece dessas mesmas coisas, e se padece a falta de todas. Suposta esta divisão, em que se não duvida, duvido agora, e pergunto se a pobreza que é misé­ria é também bem-aventurada ou não? A pobreza que é virtude, essa é a canoniza­da por Cristo, e a essa se promete o reino do céu: Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum[2]. – Porém a pobreza que é miséria, à qual nem se prometem os bens do céu, nem ela possui os da terra, antes padece a falta de todos, parece que não pode ser bem-aventurada. Mal-aventurada sim, porque para esta pobreza não há ventura; mal-aventurada sim, porque todos a desprezam e fogem dela; mal-aventurada sim, porque ainda para se conservar na mesma miséria, há de pedir e depender da vontade alheia, que é a sorte mais triste. Contudo, é tal a bondade de Deus, e tão larga a imensidade de sua Providência, que até a pobreza que é e se chama miséria fez bem-aventurada. E por que, ou de que modo? Porque nessa mesma pobreza instituiu Cristo um novo e segundo Sacramento, não de outra, senão de sua própria pessoa, transformando-se a si mesmo em todos os pobres do mundo, e, do modo que logo vereis, consagrando-se neles. De sorte que, assim como naquela hóstia consagrada, e em todas e cada uma está todo Cristo, assim está todo em todos os pobres, e todo em cada um. Os pobres da pobreza que é virtude são bem-aventurados, porque hão de ver a Deus; os pobres da pobreza que é miséria são bem-aventurados, porque neles está Deus. Esta é a razão e o fundamento por que se atreveu a dizer a minha fé que neste dia e neste lugar está Cristo duas vezes sacramentado. Os que hoje com tanta piedade e devo­ção visitastes as enfermarias deste hospital, que vistes nelas, senão pobres miserá­veis, em que a pobreza veio buscar o remédio, e a miséria a misericórdia? Pois, sabei que em todos esses pobres está o mesmo Cristo que adoramos naquela hós­tia. Por que cremos que está Cristo naquela hóstia? Porque ele o disse. Pois, essa mesma, e não outra, é a prova que temos para crer que está nos pobres.

§ III

Os embargos dos bem-aventurados à venturosa sentença de Cristo no Juí­zo final: Quando vos vimos enfermo, quando vos vimos peregrino, quando vos vimos despido? De que modo está Cristo no pobre? Paralelo entre as palavras da consagração da Eucaristia com as da sentença do Juízo final. A transubstancia­ção e a transefusão.

No dia do Juízo, quando Cristo chamar para o prêmio da bem-aventurança a todos os santos – que não era bem nos faltasse ao menos a sua memória no seu dia, pois a obrigação é outra – as palavras e o relatório daquela gloriosa sen­tença serão estas: Venite, benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum:esurivi, enim, et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis mihi bibere, hospes eram, et collegistis me: nudus, et cooperuistis me; infirmus, et visitastis me: in carcere, et venistis ad me (Mt. 25, 34 ss): Vinde, benditos de meu Padre, possuir o reino que vos está aparelhado: porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era peregrino, e me hospedastes; andava despido, e me vestistes; estava enfermo e no cárcere, e me visitastes. – Ouvida esta sentença tão alegre e venturosa para todos os que a mereceram ouvir, que fariam? Cuidava eu que, prostrados por terra, dariam a Cristo as graças, e logo a si mesmos o parabéns, não cabendo dentro de si de prazer; mas o que fizeram foi como por embargos à sentença, e apelar ou agravar dos fundamentos dela. Diz o evangelista que res­ponderam: – E quando fizemos nós, Senhor, essas obras que alegais por nossa parte, e premiais como merecimentos nossos? Quando te vidimus esurientem, et pavimus te: sitientem, et dedimus tibi potum (Mt. 25, 37): Quando vos vimos nós com fome, e vos demos de comer, ou com sede, e vos demos de beber? – Quando te vidimus hospitem, et collegimus te: aut nudum, et cooperuimus te (ibid. 38): Quando vos vimos peregrino, e vos hospedamos, e despido, e vos vestimos? –Aut quando te vidimus infirmum, aut in carcere, et venimus ad te (ibid. 39): Ou quan­do vos vimos enfermo e no cárcere, e vos visitamos? Isto é o que replicarão sobre a sua sentença os bem-aventurados, e com réplica muito bem fundada e verdadeira, porque todos, ou quase todos, não tinham visto a Cristo, e muito me­nos naquelas ocasiões de necessidade ou pobreza em que o socorressem. Pois, Senhor, se estes homens nem vos viram, nem vos socorreram com essas obras de caridade que referis, como as alegais na sua sentença, e por elas os premiais com a bem-aventurança?

Só Cristo podia responder a esta réplica, e assim foi ele o que logo respondeu, declarando a mesma sentença e a verdade do que nela tinha alegado: Et respondens rex, dicet illis: Amen dito vobis,quamdiu fecistis uni ex his fratri­bus meis minimis, mihi fecistis (Mt. 25, 40): É verdade – respondeu o Senhor – que vós não me vistes como dizeis; mas eu vos digo e vos afirmo com juramento sei também verdade que me fizestes tudo o que eu aleguei na vossa sentença, porque bem lembrados estareis que todas aquelas obras de caridade as fizestes aos pobres, e tudo o que fizestes a cada um deles, me fizestes a mim: Quod uni ex his minimis fecistis mihi fecistis. –De sorte que quando o pobre padece o seu trabalho e a sua necessidade, padece-a Cristo: Esurivi, sitivi – e quando vós socorreis e fazeis a esmola ao pobre, fazei-la a Cristo: mihi fecistis; logo, ou Cristo está no pobre, ou é o mesmo pobre. A primeira destas conseqüências é de S. Cipriano, a segunda de S. Pedro Crisólogo, e ambas de todos. Para o homem socorrer e fazer esmola ao pobre, bastava ser homem como ele; mas quis Cristo estar no mesmo pobre, diz Cipriano, para que quando não fosse bastante motivo de o socorrermos, este respeito do que ele é nos obrigasse a não deixar de o fazer a reverência e dignidade de quem nele está, que é Cristo: Ut qui respectu fratris non movetur; vel Christi contemplatione moveatur; et qui non cogitat in labore et egestate conser­vam, vel Dominam cogite! in illo ipso, quem despicit, constitutum. – Notem-se com particular advertência estas últimas palavras in illo ipso constitutum, que não só significam estar Cristo no pobre de qualquer modo, senão estar nele permanen­temente. Mas menos era, ou seria, se Cristo se contentasse só com assistir e estar no pobre; o mais é, diz S. Pedro Crisólogo, que não só quis assistir e estar nele, mas o mesmo Cristo se fez e quis ser o mesmo pobre: Quod se Deus amore paupe­ris sic deponat, ut non adsit pauperi, sed ipse sit pauper. – O assistir e o estar no pobre pode-se entender conservando-se a diferença das pessoas entre a de Cristo e a do pobre; mas o ser não se pode verificar senão passando a diferença a consti­tuir identidade, e sendo o pobre o mesmo Cristo e o mesmo Cristo o pobre: Ut ipse sit pauper.

E como neste oculto e profundo arcano da misericórdia e bondade divina, Cristo, por particular modo de assistência, está no pobre, e o pobre, por particular modo de identidade, se converte em Cristo, este é o segundo Sacramen­to do mesmo Senhor, com que eu dizia que a pobreza e misericórdia o tornou a sacramentar segunda vez. Excelentemente S. João Crisóstomo, comparando as palavras da consagração com as da sentença do dia do Juízo, umas e outras pro­nunciadas pelo mesmo Cristo: Qui dixit: hoc est corpus meum, hic dixit: escurien­tem me cibastis: Aquele Senhor, que disse: Este é o meu corpo – esse mesmo disse: Tive fome e me destes de comer. – E assim como pela virtude daquelas palavras nos ensina a fé que está Cristo realmente debaixo das espécies de pão, assim nos certifica diz o mesmo Crisóstomo – que está também realmente debaixo das espécies do pobre: Si speciem apparentem spectes, nudum induis, re autem vera Christum operis. – Ponderai muito o re autem vera. – E se alguém me perguntar, ou ao mesmo santo, como formou Cristo de uma tão diferente matéria, qual é o pobre, outro segundo Sacramento tão semelhante ao primeiro, responde por Crisóstomo, Crisólogo, ambos com palavras de ouro: Sed quomodo aut in se transfuderit pauperem, aut se in pauperem fuderit, dicat ipse jam nobis. Esurivi – inquit – et dedistis mihi manducare. Non dixit, esurivit pauper, et dedistis illi, sed esurivi ego, et dedistis mihi. – Não disse Cristo: o pobre teve fome, e vós lhe destes de comer a ele – senão: eu tive fome, e me destes de comer a mim – e este foi o modo de uma transefusão – diz Crisólogo – com que o mesmo Senhor se infundiu no pobre, ou refundiu o pobre em si: Quomodo in se transfuderit paupe­rem, aut se in pauperem fuderit. – Até os gentios reconheceram nos pobres e miseráveis algum gênero de consagração, por onde disse altamente Sêneca: Res est sacra miser[3]. – Na consagração propriíssima da Eucaristia a substância de pão converte-se em substância de Cristo, e a esta conversão de substância cha­mam os teólogos transubstanciação; na consagração, a seu modo, da pobreza, infunde-se a pessoa de Cristo no pobre, ou a do pobre em Cristo, e a esta conver­são de pessoas chamou Crisólogo transefusão: Se in pauperem transfuderit. –Tão parecido é Cristo a si mesmo em um e outro sacramento, e tanto merece a seme­lhança do segundo o nome do primeiro.

§ IV

A essência do Sacramento, que consiste em ocultar-se à vista o que crê a fé, confirmada nos pobres pela réplica dos justos quando Cristo os chamou à bem-aventurança: – Senhor; quando vos vimos? – A pobreza, segundo mistério da fé. A razão de ser mistério da fé o estar Cristo no Sacramento, e a razão de ser mistério da fé o estar Cristo no pobre.

(*)A réplica dos justos, quando Cristo os chamou para a bem-aventurança, tão fora esteve de fazer duvidoso este nome de Sacramento, que antes foi maior confirmação dele. Que disseram todos aqueles que pelas obras de misericórdia, exer­citadas com os pobres, mereceram ouvir tão venturosa sentença? O que disseram ou replicaram foi: Domine, quando te vidimus esurientem, et sitientem: Senhor, quando vos vimos com fome, ou com sede? – Domine, quando te vidimus hospitem, ut nu-dum: Senhor, quando vos vimos peregrino, ou despido? – Domine, quando te vidi­mus infirmum, aut in carcere: Senhor, quando vos vimos enfermo, ou encarcerado. – E por que fizeram tão repetidamente esta pergunta? Porque ainda não tinham ouvi­do da boca do mesmo Cristo: Quod uni ex his minimis fecistis, mihi fecistis. – Se aqueles santos souberam que Cristo estava encoberto debaixo das espécies dos po­bres, e sacramentado neles, entenderiam claramente que essa era a razão manifesta de o não terem visto nem poderem ver. Por que não vemos nós a Cristo naquela hóstia, sabendo de certo que está nela? Porque também sabemos que está nela por modo sacramental, e que é próprio e essencial do Sacramento aquilo mesmo que crê a fé ocultar-se à vista. De sorte que, quando Cristo disse que o que se fazia ao pobre se fazia a ele: Quod uni ex his fecistis, mihi fecistis – então revelou e declarou o Senhor que estava no pobre; e quando os que isto ouviram responderam que nunca tinham visto a Cristo: Domine, quando te vidimus – então confirmaram que estava Cristo no mesmo pobre por modo de sacramentado, pois estava invisível debaixo de espécies visíveis, que é a essência do Sacramento.

Daqui se infere, em seguimento da mesma paridade, que assim como o Sacramento da Eucaristia é o primeiro mistério da fé, assim o da pobreza é o segundo. Por que é, e se chama por antonomásia mistério da fé o Sacramento do altar? Porque nele vemos uma coisa e cremos outra. Vemos pão, e cremos que ali está Cristo. Pois, do mesmo – ou ao mesmo modo – quando olhamos para o pobre, vemos o pobre, e não vemos Cristo; mas no mesmo pobre, que vemos, cremos que está Cristo, que não vemos, e não por outro motivo, senão pelo próprio e essencial da fé. O motivo ou razão formal, como falam os teólogos, por que cremos o que ensina a fé, é a autoridade divina: creio o que Deus die, porque ele o disse. Esta foi a altíssima e divina teologia com que Cristo respon­deu aos judeus, quando duvidaram de ele haver de dar a comer aos homens a sua carne: Quomodo potest hic nobis carnem suam dare ad manducandum[4]? —

Bem pudera o Senhor responder ao quomodo da sua dúvida declarando-lhes o modo do mesmo mistério; mas o que respondeu foi tornar a dizer o mesmo que tinha dito: Nisi manducaveritis carnem Filii hominis, non habebitis vitam in vobis[5]. – Por quê? Porque toda a razão de se crer o que ele dizia era dizê-lo ele. Esta é toda a razão de ser mistério da fé o estar Cristo no Sacramento, e esta é também toda a razão de ser mistério da fé o estar Cristo no pobre. Por isso, querendo S. Basílio Magno persuadir esta mesma verdade, o que disse, como refere S. João Damasceno, foi: Crede Deo, qui beneficia ea quae in oppressum conferuntur, tanquam in se ipsum collata accipiet[6]. -

§V

A propriedade maravilhosa por que Isaías diz que el-rei Ciro é Deus enco­berto e escondido. Os três disfarces de Cristo: o pobre, o hortelão e o peregrino. O sentido literal e místico das palavras de Isaías. No pobre, não basta o ser homem para Cristo estar nele, mas é necessário ser homem debaixo dos aciden­tes da fome, da sede, da desnudez, e de outras misérias e necessidades.

E se vos parece que é igualmente dificultoso – ou ainda mais – estar Cristo tão verdadeiramente encoberto em um homem, como naquelas espécies sacramentais, ouçamos a Isaías: Tantum in te est Deus, et non est absque te Deus. Vere tu es Deus absconditus (Is. 45,14 s): Só em vós está Deus, e fora de vós não está Deus, e vós verdadeiramente sois Deus escondido. – Palavras sobre todo encarecimento grandes, admiráveis, estupendas, tremendas, e que, se não foram do mesmo Deus, não se puderam crer! Mas de quem, e com quem falava Isaías? Não há dúvida que falava de el-rei Ciro, e com o mesmo rei Ciro. Pois, em Ciro, que era um homem como os outros – porque a coroa não os faz de outra espécie – em Ciro está Deus, e fora de Ciro não está Deus, e o mesmo Ciro é Deus escondi­do? Sim. Para que nos não admiremos de que Deus possa estar em algum homem e não estar nos outros, e que esse mesmo homem verdadeiramente seja Deus en­coberto e escondido: Vere tu es Deus absconditus. –Este é o sentido literal daque­le texto, o qual maravilhosamente se corresponde com o nosso. Lá está Deus em Ciro – in te est Deus – cá está Cristo no pobre; lá está Deus em Ciro, e não está nos outros homens: Non est absque te Deus –cá está Cristo nos pobres, e não está nos que não são pobres; lá verdadeiramente Ciro é Deus encoberto e escondido: Vere tu es Deus absconditus – cá verdadeiramente o pobre é Cristo escondido e enco­berto; finalmente, lá por que Deus em Ciro obrava nele e com ele a liberdade do cativeiro de Israel: Deus Israel Salvator e cá, porque Cristo no pobre padece nele e com ele a sua pobreza: esurivi – e recebe nele e com ele o bem que lhe fazem: mihi fecistis. Os disfarces não mudam a pessoa: escondida e descoberta é a mesma. Quando Cristo apareceu à Madalena em trajos de hortelão, ali estava Cristo, mas a Madalena não via mais que o hortelão; quando o mesmo Cristo caminhava com os discípulos de Emaús em hábito de peregrino, ali estava Cristo, mas os discípulos não viam mais que o peregrino. Do mesmo modo, quando S. Martinho deu ametade da capa ao pobre, não via mais que o pobre, mas ali estava Cristo, como o mesmo Senhor se mostrou aos anjos coberto com a mesma capa: Martinus hac me veste contexit[7]. –Assim foi naquele caso, e assim é sempre, sem diferença alguma. Nos pobres que estão pedindo nos degraus desta igreja, e nos que andam por essas ruas está o mesmo Cristo, tanto assim que quando vos pedem a esmola, e lhes dizeis: perdoai, por amor de Deus – com a mesma verdade lhes podereis dizer: perdoai por amor de vós: Vere tu es Deus absconditus.

Mas o melhor e maior paralelo desta semelhança, não é Ciro no trono da Pérsia, senão Cristo no trono daquele altar, como sacramentado. S. Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo Atanásio, S. Cirilo, Santo Epifânio, Procó­pio, Teodoreto, e os outros padres comumente, em sentido também literal e profético, dizem que estas palavras se entendem do Verbo depois de encarnado, no qual esteve a divindade encoberta e escondida debaixo da humanidade. E passando ou subindo do sentido literal ao místico, as entendem os doutores, principalmente modernos, do mesmo Cristo no Sacramento, em que o estar es­condido se verifica ainda com maior propriedade e energia, porque, como nota Santo Tomás, em Cristo absolutamente estava só escondida a divindade, e no mesmo Cristo enquanto sacramentado está escondida a divindade e mais a hu­manidade: a divindade debaixo da substância humana, e a humanidade debaixo dos acidentes sacramentais. De maneira que ali está encoberto e escondido todo Cristo, isto é, toda a divindade e toda a humanidade de Deus: Vere tu es Deus absconditus. –E tal, ou semelhante, é o modo com que Cristo está escondido e encoberto no pobre, porque no pobre não basta o ser homem para Cristo estar nele – que por isso não está nos outros homens – mas é necessário ser homem debaixo dos acidentes da fome, da sede, da desnudez, e de outras misérias e necessidades de que se compõe ou descompõe a pobreza. Assim o exclama o grande Crisóstomo. tantas vezes benemérito em todos os pontos deste discurso: Proh quanta paupertatis est dignitas! Dei personam induit: in paupertate abs­conditur Deus. Oh! quão grande é a dignidade da pobreza! O pobre despido veste a pessoa de Deus, e o mesmo Deus está escondido no pobre.

§ VI

Em qual pobre está Deus escondido? Por que Abraão, recebendo os três peregrinos do Vale de Mambré, não lhes chama senhores senão senhor? A mara­vilhosa circunstância com que Abraão, tendo falado ao Senhor como a um, quan­do passou ao remédio e regalo dos peregrinos os tratou como muitos. Razões por que está Cristo neste segundo Sacramento, tão real e verdadeiramente em todos e cada um dos pobres, como no Sacramento do Altar está em todas as hóstias consagradas. O Hic est Jesus dos leitos dos hospitais.

E em qual pobre? Indiferentemente em todos e em cada um, que é a propriedade que só nos faltava para complemento da semelhança. Assim como Cristo no Sacramento do Altar, sendo um só, não está só em uma hóstia consagra­da, senão em todas e qualquer delas, assim neste segundo sacramento, não só está em um pobre, senão em todos e cada um, sendo eles muitos, e Cristo neles um só e o mesmo. A casa de Abraão no Vale de Mambré era um hospital comum de todos os peregrinos. Por isso, não sendo ele o mais antigo no limbo dos padres, se lhe deu a superintendência ou provedoria daquele diversório universal, e se chamou Seio de Abraão. Chegaram pois ali a horas de comer três peregrinos, e sem alforje, como pobres, agasalhou-os Abraão, e serviu-os por sua própria pessoa com o melhor da casa. Mas, sendo três, nota a Escritura, e é modo de urbanidade muito notado, que não lhe chamou senhores, senão senhor: Domine, si inveni gratiam in oculis tuis, ne transeas servum tuum (Gên. 18, 3): Senhor, se achei graça em vossos olhos, fazei-me mercê de não passar adiante sem vos servir desta choupana. – Pois, se os peregrinos eram três: tres viri – e Abraão os tratava com tanta reverência e cortesia, por que não lhes chamou senhores, senão senhor? Responde Santo Agostinho que, como eram peregrinos, entendeu e creu Abraão que neles estava Deus, e medindo as suas palavras mais com a fé do que cria que com o número dos que via, por isso lhes chamou senhor, e não senhores:Abraham in tribus viris Dominum agnoscebat, cui per singularem numerum loquebatur; etiam cum eos homines esse arbitrabatur.

Naquele altar e nestes temos um excelente exemplo do que fez Abraão e declarou Agostinho. Se nestes três altares se disserem ao mesmo tempo três missas, e neles estiverem três hóstias consagradas, diremos com toda a propriedade que no primeiro altar está o Senhor, e no segundo o Senhor, e no terceiro o Senhor. E dire­mos também que nos três altares e nas três hóstias estão os senhores? Não. Porque ainda que os altares e as hóstias sejam três, o Senhor que nelas está é um só. Pois este mesmo mistério do Sacramento é o que se representou nos peregrinos do hospício de Abraão, e o que temos presente nos pobres deste hospital. Eles muitos, porém o Senhor que está neles um só; e essa é outra nova e maravilhosa circunstância com que Abraão, tendo falado ao Senhor como a um, quando passou ao remédio e regalo dos peregrinos os tratou como muitos: Lavate pedes vestros, requiescite sub arbore, confortate cor vestrum, postea transibitis (Gên. 18, 4 s): Lavareis os pés descansa­reis, comereis, e depois continuareis vosso caminho. – De sorte que, para o remédio e regalo eram muitos, e para a veneração um só: Domine. – Entrai agora nessas enfermarias com a fé e com a vista. O que vereis com a vista são muitos enfermos jazendo cada um no seu leito, curados e assistidos com grande caridade; mas o que deveis crer com a fé é que em todos e cada um deles está Cristo. Este foi o engano daquela alma que nos Cânticos de Salomão buscava ao mesmo Cristo, e não o achou: In lectulo meo quaesivi quem diligit anima mea. Quaesivi illum, et non inveni (Cânt. 3, 1): Eu – dizia ela – busquei ao meu amado no meu leito, e não o achei. – E vós buscais a Cristo no vosso leito? Por isso o não achais: ide buscá-lo no leito desses pobres enfermos, e logo achareis. No leito da cruz estava Cristo cheio de chagas e de dores, e agonizando com a morte; e assim como à cabeceira daquele leito tinha um título que dizia: Hic est Jesus[8] – assim se puderam escrever as mesmas letras em cada um desses leitos. É verdade que entre eles vereis alguns tão estropiados e des­pedaçados da guerra, que mais parecem partes de homens que homens; mas, assim como na hóstia partida e feita pedaços está Cristo inteiro: Non confractus, non divi­sus, integer accipitur[9] – assim está o mesmo Senhor tão inteira e perfeitamente naqueles como nos demais. Em suma, parece que neste segundo Sacramento, tão real e verdadeiramente está Cristo em todos e cada um dos pobres, como no Sacra­mento do Altar está em todas e cada uma das hóstias consagradas, porque, assim como o mesmo Senhor se consagrou naquele soberano mistério da fé, por virtude das suas palavras, quando disse: Hoc est corpus meum[10] – assim por seu modo – se consagrou neste mistério da caridade, por virtude das palavras também suas, quando disse: Quod uni ex his minimis, fecistis, mihi fecistis[11].

§ VII

A que fim, tendo-se Cristo Sacramentado uma vez em pão, se quis sacra­mentar outra vez no pobre? O verdadeiro sentido do enigma de Salomão confir­mado pelo enigma de Sansão. Todo o que come a Cristo em um Sacramento tem obrigação de o sustentar e lhe dar de comer no outro. Que mistério teria o Senhor para introduzir na parábola do amigo importuno, não um pão dado, mas um pão emprestado? O modo com que pagamos a Cristo, enquanto sacramentado no pobre, um pão com outro pão. Quando come Cristo à nossa mesa, e conosco.

Temos visto a Cristo Deus e Senhor nosso – como supus no princípio – duas vezes e por dois modos sacramentado: uma vez em pão, e outra no pobre. Agora resta saber a que fim, que é o ponto principal, e o fecho de todo este discur­so. A que fim, tendo-se Cristo sacramentado uma vez em pão, se quis sacramentar outra vez no pobre? Digo que se sacramentou em pão para nos sustentar a nós, e que se sacramentou no pobre para que nós o sustentássemos a ele. No capítulo vinte e nove dos Provérbios escreveu Salomão um, no qual os intérpretes, dividi­dos em sete ou oito sentidos, lhe chamam com razão enigma, e diz assim: Pauper, et creditor obviaverunt sibi; utriusque illuminator est Dominus (Prov. 29, 13): O pobre e o acredor se encontraram, e Deus os alumiou a ambos. – Se os alumiou, parece que caminhavam às escuras, e por isso deviam de se encontrar, que os pobres sempre fogem dos acredores. Como o acredor tinha por devedor ao pobre, não tinha de quem cobrar a dívida; e como o pobre, sobre pobre, estava endividado, não tinha com que sustentar a vida. Estes eram os dois grandes apertos daquele encontro, dos quais, para que achassem boa saída, foi necessário que Deus os alumiasse, como alumiou, porque ao acredor deu modo com que cobrar, e ao pobre com que viver: Utriusque illuminator est Dominus. – Mas quem é este acredor, e quem este pobre? O acredor é Cristo no Sacramento do Altar, onde está debaixo de espécies de pão para nos sustentar a nós, e onde nós o comemos. Mas esta dívida, nem nós lha podemos pagar, nem ele a pode cobrar de nós no mesmo sacramento, porque, para lhe pagar com igualdade havíamos de sustentar ao mes­mo Senhor como eles nos sustenta, e Cristo naquele sacramento está em represen­tação de morto, e como morto pode ser comido, mas não pode comer. Que meio, logo, ou que remédio para o acredor ter com que se pagar, e o pobre com que viver? O meio foi tal que só a luz divina o podia descobrir e conciliar. Assim como o acredor se sacramentou em pão, sacramente-se também no pobre; e como esti­ver sacramentado no pobre, logo nós, que somos os devedores, lhe poderemos pagar, porque lhe daremos de comer e o sustentaremos a ele, assim como ele nos dá de comer e nos sustenta a nós: ele a nós como sacramentado em pão, e nós a ele como sacramentado no pobre.

Este é o verdadeiro sentido do enigma de Salomão, o qual se pode confirmar com outro enigma mais celebre, que é ode Sansão. Depois que Sansão matou o leão que lhe saiu ao caminho, e depois achou que na boca lhe tinham fabricado as abelhas um favo de mel, desta história, que era oculta, formou um enigma, cuja letra dizia: De comedente exivit cibus (Jz. 14,14): Do que come saiu o comer. – Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Paulino, e outros santos, enten­dem por este leão, não só a Cristo. Leão de Judá, mas nomeadamente a Cristo sacramentado, do qual quando comeu saiu o comer, porque na ceia instituiu o Santíssimo Sacramento. Eu, porém, reparo que ainda que a letra diz muito bem com o sentido do enigma, não diz bem com a figura. O leão não comeu nem foi comedente: faminto sim, porque saiu ao caminho buscando de comer. E ainda que na boca se lhe achou o favo, nem o comeu nem o devia comer, porque estava morto. Pois se o leão não foi comedente, senão faminto, parece que devia de dizer a letra que do faminto saiu o comer, e não do comedente. Como se há de entender, logo do Sacramento, assim a figura como a letra? Eu o direi. Cristo sacramentado, não uma, senão duas vezes em uma e outra é propriamente como o leão de Sansão: sacramentado no pobre e como o leão faminto sacramentado no pão – a que a Igreja chama pane suavissimo de caelo praestito[12]. – é como leão que não co­meu, mas deu a comer o favo. Deste comer, pois, que se acha em um sacramento, e desta fome que se acha no outro, se verifica propriissimamente a figura e mais a letra do enigma. Por quê? Porque todo aquele que come a Cristo sacramentado no pão é obrigado a sustentar e matar a fome ao mesmo Cristo sacramentado no pobre: logo, esta foi a significação da figura do leão em ambos os estados, e este é o sentido da letra de Sansão em ambos os sacramentos; e aqui só se verifica que do que come sai o comer: De comedente exivit cibus.

Disse que todo o que come a Cristo em um sacramento, tem obrigação de o sustentar e lhe dar de comer no outro, e não é menos que verdade evangélica da mesma boca divina, de que saíram as formas de ambos estes sacramentos. Sendo já noite, bateu à porta de um amigo outro amigo – diz Cristo – pedindo que lhe empres­tasse três pães, porque àquela hora chegara a sua casa um hóspede, e não tinha com que o agasalhar: Amice, commoda mihi tres panes, quoniam amicus meus venit de via ad me, et non habeo quod ponam ante illum[13]. – O que pondera e nos manda aqui ponderar S. Bernardo, é pedir este homem ao amigo aqueles pães, não dados, senão emprestados: Notandum quod non ait da mihi, sed commoda mihi –e o maior reparo ou peso desta ponderação é ser Cristo autor da parábola. Se fora história acontecida, e não parábola, disséramos que aquele homem, ou era muito desconfia­do, ou pouco cortês, pois, sendo o que pedia coisa de tão pouco valor, agravava e afrontava o amigo em lha pedir por empréstimo. Mas como o autor da parábola, e desta petição e modo de pedir foi Cristo, que mistério e que razão teria o Senhor para introduzir aquele pão como emprestado, e não como dado? A razão e mistério foi porque no mesmo pão, posto que usual e da terra, representava a parábola o pão que desceu do céu, o Santíssimo Sacramento. Assim o entendem graves autores, e todas as circunstâncias do caso o provam. A hora da noite em que se negociou aquele pão, é a própria em que a primeira vez foi convertido o pão em corpo de Cristo: In qua nocte tradebatur[14]; – o pedi-lo um amigo a outro amigo, e para outro amigo, tudo está significando o mesmo sacramento, que além de ser sacramento de amor, sempre supõe graça e amizade entre Cristo que o dá, e o homem ou homens que o recebem; nem o número de três é alheio do mistério, porque as partes de que se compõe são o corpo, sangue e alma do mesmo Cristo, assistido também das três pessoas divinas, que pela união inseparável, se o não compõem, o acompanham. E como naquele pão se representava o Sacramento do Altar, por isso o introduziu Cristo, não como dado, senão como emprestado: commoda mihi –porque o que se dá é sem outra obrigação, porém o que se empresta é com obrigação de se pagar; e quando Cristo no Sacramen­to do Altar se nos dá e nos sustenta enquanto sacramento em pão, é com condição e obrigação de que lhe havemos de pagar esse mesmo pão, sustentando-o também a ele enquanto sacramentado no pobre. Ainda tem este empréstimo maior propriedade e energia. Onde a nossa Vulgata lê: commoda mihi –o original grego, em que escre­veu o evangelista, tem da mihi mutuo. E que diferença há entre o empréstimo que se chama comodato e o empréstimo que se chama mútuo? A diferença é que no como­dato hei de pagar restituindo aquilo mesmo que me emprestaram: pedi-vos empres­tada a vossa espada, hei-vos de restituir a mesma espada; porém, no mútuo não sou obrigado a pagar com o mesmo, senão com outro tanto: pedi-vos emprestado um ­moio de trigo, não vos hei de pagar com o mesmo trigo, senão com outro. E este é o modo com que pagamos a Cristo, enquanto sacramentado no pobre, um pão com outro pão. Não o mesmo pão, senão outro, porque o pão que nos dá Cristo é o pão do céu e da vida eterna, e o que nós pagamos ao pobre é o pão da terra e da vida temporal, mas em um e outro, tanto por tanto, porque tão necessário é este para esta vida como aquele para a outra.

Enfim, fechemos este discurso, já não em parábola ou semelhança, senão realmente, e em sua própria pessoa o mesmo Cristo. Revestida a pessoa de Cristo em trajo de pobre, ou transformado nele, diz assim no capítulo terceiro do Apocalipse: Ecce ego sto ad ostium, et pulso: si quis audierit vocem meam, et apeuerit mihi januam, intrabo ad illum, et coenabo cum illo, et ipse mecum (Apc. 3, 20): Eu, como pobre – diz Cristo – estou batendo e chamando à porta: se o dono da casa me abrir, entrarei e comerei com ele, e ele comigo. – Estas últimas palavras e ele comigo parece que encontram o que dizem as primeiras. Que o pobre que bate à porta, que pede esmola, diga que, se o dono lhe abrir, e o receber, e puser a sua mesa, comerá com ele: et coenabo cum illo – isso é o que o pobre deseja e pretende, e o que fará, porque comer com o dono da casa é comer da sua mesa, e o que ele lhe der. Porém, que acrescente o pobre e prometa que também o dono da casa comerá com ele, isto é, com o mesmo pobre: et ipse mecum – parece que não é falar coerente, porque, se comer o pobre com o dono da casa é comer o que lhe der o dono da casa, também comer o dono da casa com o pobre é comer o que lhe der o pobre; e isto não diz com quem pede uma esmola pelas portas: Ego sto ad ostium, et pulso. – A solução e a coerência desta, que o não parece, toda está naquele ego. Aquele ego de Cristo, sem disfarce senhor, e com disfarce pobre, como pobre come à mesa alheia, como Senhor dá de comer à sua; e porque dá de comer à sua, como Senhor, por isso se não despre­za de comer à alheia, como pobre. E para que ninguém duvide destas duas mesas e deste recíproco comer, sendo o que o pede e o que o dá o mesmo Cristo, ele, naquela brevíssima conclusão, declarou por sua palavra e debaixo da sua firma tudo quanto dissemos até agora, porque, enquanto sacramentado em pão, nós comemos à sua mesa e com ele, e, enquanto sacramentado no pobre, ele come à nossa mesa, e conos­co: Coenabo cum illo, et ipse mecum.

§ VIII

Em qual destes dois sacramentos se dará o Senhor por mais bem servido. Excelências da misericórdia sobre o sacrifício. Se as obras de misericórdia são sete, e a sétima é sepultar os mortos, por que Cristo, no relatório do dia do Juízo, alega as outras seis, e esta não? Por que Davi em seu testamento de nenhum outro serviço ou benefício fez memória, senão do sustento que recebeu de Berce­lai? A riqueza e aparato do culto divino e a sentença do dia do Juízo.

Este é o fim, como dizia, por que Cristo, Senhor nosso, depois do diviníssimo Sacramento do Altar, se sacramentou também no humaníssimo dos pobres. E se os que têm por devoção ou ofício exercitar com eles as obras de misericórdia quiserem saber em qual destes dois sacramentos se dará o mesmo Senhor por mais bem servido, confiadamente digo que onde o servimos como pobre.

Primeiramente, é sentença universal do mesmo Cristo: Beatius est magis dare, quam accipere (Act. 20, 35) que melhor é dar que receber. – Logo, a obra de misericórdia, com que socorremos e sustentamos o pobre, muito mais agradável deve ser ao mesmo Senhor, porque no Sacramento recebemos o seu pão, ao pobre damos o nosso. E se alguém replicar que neste dar o nosso e receber o seu, não só há grande senão infinita diferença, porque o que recebemos é Deus e o que damos é a esmola, respondo que, ainda na consideração desta diferença, fica muito mais melhorado, o que dá do que o que recebe, porque o que recebe no Sacramento a Deus. contudo fica homem, e, o que dá a esmola ao pobre. fazendo-lhe esse bene­fício faz-se Deus. Não é atrevimento ou temeridade minha, mas conclusão expres­sa do grande teólogo entre os doutores da Igreja, S. Gregário Nazianzeno: Esto calamitoso Deus. –Se virdes o pobre em necessidade, sede para ele Deus, socor­rendo-o: Nihil adeo divinum habet homo, quam benefacere – porque nenhuma coisa tem o homem tão divina e tão própria de Deus como o bem fazer. – E se esse bem o fizermos ao pobre com reflexão de que nele está Deus, ainda parece que disse mais Nazianzeno. Notai. Antes de Deus se consagrar no pobre, recebendo em si a esmola que se lhe faz a ele, dizia Davi a Deus: Deus meus es tu, quoniam bonorum meorum non eges (SI. 15, 2): Vós, Senhor, sois meu Deus, porque não tendes necessidade dos meus bens. – Porém, depois que Deus se fez pobre no pobre, recebendo em si a esmola que se lhe faz que remediemos com eles a sua pobreza. E que diria Davi neste caso, que é o nosso? Diria porventura: Por que tendes necessidade dos meus bens. não sois meu Deus? – Isso não. Pois. mie diria? Assim como disse antigamente: Porque não tendes necessidade de meus bens: Deus Meus es tu: vós sois Deus meu – assim diria agora: Porque vós tendes necessidade dos meus bens, e eu vos socorro com eles, eu sou Deus vosso: Esto calamitoso Deus. – Santo Agostinho, igual na Igreja Latina a Nazianzeno na Gre­ga, não disse menos quando disse que só a misericórdia humilha a Deus e sublima ao homem: Sola misericordia Deum humilians nos sublimat. – Humilha a Deus, porque no pobre o sujeita a receber do homem, e sublima ao homem, porque na esmola o levanta a dar a Deus. Logo, também nesta consideração é melhor o dar, como damos na esmola, do que o receber, como recebemos no Sacramento: Me­lius est mugis dare quam accipere.

Em próprios termos temos texto expresso do mesmo Cristo: Miseri­cordiam voto, et non sacrificium (Os. 6, 6). Antes quero a misericórdia que o sacrifício. – Foi o caso que, caminhando os discípulos de Cristo por entre umas searas, era tanta a sua pobreza e a sua fome, que debulhavam algumas espigas de trigo para se manterem daquele pão antes de chegar a o ser. Sucedeu isto em sábado, pelo que os escribas e fariseus caluniaram aos discípulos como violadores do dia santo. Saiu o divino Mestre à defensa da sua escola, e argumentou assim contra os caluniadores: Quid est misericordiam voto, et non sacrificium? – Se a observância do dia santo se quebra, quando o homem falta àquela obra do culto divino por fazer outra de misericórdia, acudindo à necessidade própria ou alheia, como diz Deus pelo profeta Oséias, antes quero a misericórdia que o sacrifício? –A este texto ajuntou o Senhor o exemplo do sumo sacerdote Abiatar, quando deu a Davi os pães da proposição, que eram consagrados a Deus, com que aqueles doutores, melhores intérpretes dos seus interesses que da lei divina, taparam a boca, e não tiveram que replicar Contudo, entre os nossos não faltará a agudeza de algum teólogo que replique e argila desta maneira: O sacrifício é ato de reli­gião; a virtude da religião, como ensina Santo Tomás, é mais nobre que a miseri­córdia, porque a religião respeita ao culto de Deus, e a misericórdia ao remédio do homem; logo, na aceitação de Deus, em cuja mente se estimam todas as coisas pelo que verdadeiramente são, não pode ter melhor lugar a misericórdia que o sacrifício. Forte argumento por certo, mas toda a sua força consiste em se não reparar, como não repara, naquele voto: Misericordiam voto, et non sacrificium. – Não diz Cristo que a misericórdia é melhor que o sacrifício, mas diz que antepõe a misericórdia ao sacrifício porque ele assim o quer: voto. – De sorte que ama Deus tento a misericórdia, e ama tanto aos pobres que com as obras de misericór­dia se remedeiam, que, sendo mais nobre e de maior dignidade o sacrifício que a misericórdia, quer ele – e só porque quer: volo – que a misericórdia prefira e se anteponha ao sacrifício. Isto é o que diz o texto, e esta a praxe da Igreja, que os escribas e fariseus traziam tão errada.– Se o que assiste ao enfermo o houver de deixar para ir dizer ou ouvir missa no dia santo, ensina a teologia católica que antes se há de deixar a missa, que é o sacrifício, do que a assistência do enfermo, que é a misericórdia: Misericordiam volo, et non sacrificium.

Bem creio que vos não descontentou a resposta do argumento nem a explicação do texto. Mas, como o dia é da misericórdia, não quero eu que, ainda quanto à nobreza e dignidade, seja ela inferior ao sacrifício. A perfeita misericór­dia sempre vai acompanhada ou imperada da caridade do próximo, que se não distingue da de Deus; e como a caridade é mais nobre que a religião, e que todas as outras virtudes: Major autem horum est charitas[15] – informada assim a miseri­córdia, também é mais nobre e de maior dignidade que a religião. Isto respeitando ao pobre só como pobre. Porém, se a misericórdia na pessoa do pobre reconhecer, como deve reconhecer, a de Cristo – que é o ponto do nosso discurso – então o ato da mesma misericórdia é também ato de religião, porque respeita diretamente a Deus, e a esmola feita ao pobre é também, não só sacrifício, mas sacrifício prefe­rido aos sacrifícios. Assim o entendeu altamente e manda entender Santo Agosti­nho, declarando o mesmo texto: Cum scriptum est misericordiam volo magis quam sacrificium, nihil aliud quam sacrificium sacrifício praelatum oportet intelligi.

Enfim, para que demos fim a esta preferência, digo que agradam mais a Cristo os obséquios que se lhe fazem no pobre que no mesmo Sacramento do Altar, porque no sacramento está impassível, no pobre não só está passível, mas padece. Que quer dizer esurivi, sitivi, nudus eram, senão padecer Cristo tudo o que padece o pobre? E deste padecer se tirará a verdadeira inteligência de uma questão que aqui excitam todos os intérpretes. Naquele relatório do dia do Juízo fez Cristo menção da comida e bebida dos que têm fome e sede, do vestido dos nus, da pousada dos peregrinos, da visita dos enfermos e encarcerados, mas não falou nem uma só palavra na sepultura dos mortos. Pois, se as obras de misericór­dia são sete, e a sétima é sepultar os mortos, por que alega Cristo as outras seis, e esta não? Muitas soluções se têm dado até agora a esta dúvida, mas nenhuma que satisfaça inteiramente. A verdadeira e cabal é porque, depois que Cristo se sacra­mentou no pobre, quis contrapor o sacramento em que padece ao sacramento em que está impassível, e como nas sete obras de misericórdia só os mortos não pade­cem, excluiu os mortos. Julgai agora se serão mais agradáveis e aceitos ao mesmo Cristo os obséquios que se lhe fazem onde tem necessidade e padece, ou onde está impassível. Por isso os santos despiam os altares para vestir os pobres, e fundiam os cálices em moeda para remir os cativos. Lede particularmente a Santo Ambró­sio; mas vamos à Escritura.

Uma das mandas do testamento de Davi e el-rei Salomão, seu sucessor, é que os filhos de Bercelai comessem sempre à sua mesa, pelo bem que eles e seu pai o tinham servido quando fugiu de Absalão: Sed et filiis Berzellai reddes gratiam, eruntque comedentes in mensa tua: occurrerunt enim mihi quando fugiebam a facie Absalon[16]. – Foi o caso que, depois de Davi ser rei, experimentou que também as coroas estão sujeitas aos vaivéns da fortuna, caindo das asas da próspera nas misérias da adversa, e tanto com maior abatimento quanto de mais alto. Tal se viu Davi quan­do fugiu de seu filho Absalão, reduzido a tal aperto e necessidade, que ele e os poucos que o seguiam pereceriam a fome se este Bercelai, que era um vassalo rico, os não sustentasse a todos, como refere a História Sagrada: Et ipse praebuit alimenta regi, cum moraretur in castris: fuit quippe vir dives nimis[17]. – Este serviço, pois, foi o que Davi mandou a Salomão que agradecesse, pondo à sua mesa os filhos de Bercelai. E sendo certo que de nenhum outro serviço ou benefício fez memória no seu testamento, também é certo que antes daquela rebelião, e depois dela, assim na paz como na guerra, tinham outros vassalos feito a Davi muitos grandiosos serviços. Pois, por que se não lembra deles o mesmo rei, nem os manda agradecer e pagar, senão estes de Bercelai unicamente? Porque aqueles foram feitos a Davi quando estava entronizado e adorado no reino, e não padecia necessidade alguma; porém, o serviço e sustento que recebeu de Bercelai, foi quando estava desamparado dos seus, pobre e necessitado. Aqueles foram obséquios a Davi rei, estes foram alimentos a Davi pobre. E esta é a razão e a diferença por que são mais aceitos e agradáveis a Cristo os obséquios que se lhe fazem no pobre, onde está necessitado e padece, do que todos os outros, com que é servido no trono e majestade do Sacramento do Altar, onde está impassível e adorado.

Por última conclusão, deixadas as razões, vamos ao fato. Assim como Cristo no dia do Juízo há de alegar e publicar as obras de misericórdia, e o que é servido, sustentado e socorrido no pobre, assim e muito mais ostentosa e magnifi­camente poderá sair naquele teatro universal de todo o gênero humano com as obras da fé, piedade, liberalidade e emulação cristã, com que é servido, assistido e venerado no Santíssimo Sacramento. Que comparação tem o que se gasta no sus­tento, cura e remédio dos pobres, com o que se despende e emprega no culto divino e diviníssimo do por antonomásia Santíssimo? Considerai a magnificência dos templos de todo o mundo, a riqueza dos altares, dos sacrários, dos cálices, das custódias, dos ornamentos. Quase todo o ouro, prata e pedraria do mar e da terra ali vai, não levar o seu valor, mas buscar a sua estimação e preço. As rendas imensas de todos os ministros eclesiásticos supremos, grandes, menores, todas se ordenam a servir, assistir e louvar a todas as horas a Majestade encoberta daquele Senhor. Mais é o que arde e se queima de dia e de noite diante dos seus altares do que quanto se emprega e logra no sustento e remédio dos pobres. E, contudo, isto é o que Cristo há de alegar e publicar no dia do Juízo, e tudo aquilo o que há de calar e passar em silêncio. Mais ainda. Parece que, para desempenho de sua pala­vra, nenhuma coisa mais convinha à autoridade e majestade de Cristo que a de­monstração e pública evidência do que tinha prometido e tanto se lhe tinha duvi­dado nos maravilhosos efeitos do mesmo Sacramento. Os dois maiores efeitos que Cristo tinha prometido daquele sagrado pão é que quem o comesse viveria eternamente, e que em virtude do mesmo pão ressuscitaria no último dia: Qui manduca! hunc panem vivet in aeternum, et ego resuscitabo eum in novissimo die[18]. – Que ação, pois, mais própria daquele dia, de maior glória para Cristo, de maior triunfo para os católicos, e de maior confusão para os hereges, que dizer à vista de todo o mundo: Prometi-vos que, em virtude do pão que vos dei, vos havia de ressuscitar neste dia: aí estais ressuscitados todos, prometi-vos que todos os que comêsseis o mesmo pão viveríeis eternamente: ali estão as portas do céu aber­tas, vinde a gozar comigo a vida eterna: Venite benedicti. – Contudo, a pública e mais agradecida estimação que Cristo fará no dia do Juízo dos obséquios que recebeu dos homens, não há de ser a das grandes riquezas com que o servem no Sacramento, se não das esmolas, posto que muito pequenas, com que o socorrem no pobre, porque no pobre padece, e no Sacramento está isento de padecer: no sacramento são tributos que sobejam a sua majestade, no pobre são alimentos que há mister a sua necessidade. E se aos que o comem e aos que lhe dão de comer promete igualmente Cristo a vida eterna, dando-se essa mesma vida eterna na sentença do dia do Juízo por paga, mais devida é a paga à despesa dos que lhe puseram a mesa do que à honra dos que ele pôs à sua; mais devida ao gasto dos que lhe deram de comer que ao gosto dos que o comeram: Quia dedistis mihi manducare.

§ IX

Deixando os louvores da caridade à lista e notícia geral das obras realiza­das pela Irmandade da Misericórdia, passa o autor a falar da fé e da esperança dos que socorrem aos pobres e necessitados: Sendo de fé todas as palavras de Cristo, e tendo dito o mesmo Cristo, com termos que não admitem dúvida, que ele está no pobre, e o que se faz ao pobre se faz a ele, que cristão haverá que a seu Redentor; vendo-o necessitado, o não socorra? O que diriam os cristãos no dia do Juízo, quando, por parte de seus pecados, se embargasse a sentença do reino dos céus aos favorecedores dos pobres. Conclusão.

Provado assim o mistério escondido do nosso assunto, e revelado aos olhos do mundo o que a maior parte dele não via, restava agora coroar com a última cláusula de todo o discurso aquela bem-aventurada congregação que Deus particularmente fez digna de tão gloriosa felicidade: Beati misericordes. – Mas que lhe posso eu dizer? Louvarei a caridade, confirmarei a fé, assegurarei a esperança dos que neste real empório das obras de misericórdia, com todo o gênero de necessitados, públicos e ocultos, tão santa e universalmente as exercitam? Seria empreender de novo outra matéria não menor que a passada. Deixando, pois, os louvores da caridade à lista e notícia geral das mesmas obras, que logo se há de ler deste lugar – pois, como diz S. Gregário Papa, não a retórica de palavras, senão a eloqüência de obras é a verdadeira prova da caridade – só da fé, e da esperança direi o que se segue e convence do que fica dito.

Quanto à fé, sendo de fé todas as palavras de Cristo, e tendo dito o mesmo Cristo, com termos que não admitem dúvida nem interpretação contrária, que ele está no pobre, e o que se faz ao pobre se faz a ele: Quod uni ex his minimis fecistis, mihi fecistis – que cristão haverá que a seu Criador e a seu Redentor, vendo-o necessitado, e pedindo-lhe uma esmola, que é mais, o não socorra? Caso foi sobre toda a admiração estupendo, que no dia em que Cristo entrou em Jerusa­lém, aclamado com palmas e vivas de todo o povo por verdadeiro Messias: Hosa­na filio David: benedictus, qui venit in nomine Domini, Rex Israel[19] – no mesmo dia não houvesse em toda aquela grande metrópole quem o recolhesse e agasa­lhasse em sua casa, e lhe fosse necessário ao que sustenta até os bichinhos da terra ir buscar o sustento a Betânia. Pois, cidade cega, ímpia, ingrata e infame, assim cerras as portas a quem assim recebes? Assim tratas a quem assim reconheces? Assim serves a quem assim adoras? Mas não é muito que toda esta dureza de corações experimentasse Cristo naquele mesmo povo, que daí a cinco dias teve vozes para bradar: Crucifige eum[20] – e mãos para o pregar em uma cruz. Vede se terá razão o mesmo Cristo para lhes dizer a todos no dia do Juízo: Esurivi, et non dedistis mihi manducare[21]. –E haverá cristão em Lisboa, que, vendo e reconhe­cendo a Cristo no pobre faminto, não tire o bocado da boca para o sustentar? Que, vendo-o despido, se não dispa para o vestir? Que, vendo-o encarcerado ou cativo, se não venda para o resgatar? Que, vendo-o peregrino, o não receba, não só em sua casa mas o não meta dentro no coração, e o sirva de joelhos? O que assim o faz, é cristão, o que assim o não fizer nem tem cristandade nem fé.

Mas, passando à esperança, assegurem-se os que fizerem obras de mi­sericórdia e socorrerem aos pobres, segundo a sua possibilidade, que todos na­quele último dia estarão à mão direita de Cristo, e que para eles estão guardadas aquelas ditosíssimas palavras: Venite, benedicti, et possidete regnum: esurivi enim, et dedistis mihi manducare[22]. – E em que se funda a certeza desta esperança? Tanto nestas mesmas palavras como nas contrárias, e nas contrárias ainda com maior evidência. Notai muito a prova, Aos da mão esquerda dirá o mesmo Cristo: Ite maledicti in ignem aeternum: esurivi enim, et non dedistis mihi manducare, etc.: Ide, malditos, ao fogo eterno, porque me não destes de comer no pobre, por­que me não vestistes no pobre, porque me não remediastes em todas as outras necessidades no pobre. Logo, se vós acudistes e remediastes nas mesmas necessi­dades ao pobre, e nele a Cristo, evidente e infalivelmente se segue que não pode cair sobre vós tal sentença porque faltaria Cristo à sua verdade, e não seriam ver­dadeiras as culpas pelas quais vos condenasse. Tanto assim que, se por impossível e supremo juiz vos quisesse compreender na mesma sentença, teríeis legítimos embargos com que agravar dela. Vão os embargos. Provará que em tal dia deu de comer a tais pobres; provará que em tal dia, estando despidos, os vestiu; provará que em tal dia, estando enfermos. os visitou; provará que em tal dia, estando en­carcerados ou cativos, os pôs em liberdade, e os mesmos pobres, que também estarão presentes, o não poderão negar: logo, impossível é, não digo que a miseri­córdia de Cristo, senão que sua mesma justiça lhes não receba os embargos.

E porque sem embargo deles se não possa por outra via confirmar a senten­ça, fundando-se nos pecados que cometeu cada um – dos quais, porém, se não faz menção no relatório dela – provarão também ex-superabundanti que os pecados co­metidos não têm direito nem lugar na causa dos que remediaram os pobres, e alegarão, não outros textos, senão os da mesma lei de Deus. Em Tobias alegarão o texto: Quoni­am eleemosyna ab omni peccato, et a morte liberat, et non patietur animam ire in tenebras (Tob. 4, I I ): Que a esmola livra d todo o pecado, ainda que fosse mortal, e não consente que a alma vá ao inferno. – Em Jesus Sirac alegarão o texto: Ignem arden­tem extinguit agua et eleemosyna resistit peccatis (Eclo. 3, 33): – Que assim como a água apaga o fogo, assim a esmola extingue os pecados. –Em Daniel alegarão o texto: Peccata tua eleemosynis redime, et iniquitates tuas misericordiis pauperum (Dan. 4, 24): Que a esmola resgata dos pecados, e a misericórdia com os pobres das maldades cometidas. – Em Davi alegarão o texto: Beatas qui intelligit super egenum et pauperem, in die mala liberabit eum Dominus (SI. 40, 12): Que o que tem cuidado de acudire remediar ao pobre e necessitado, no dia do Juízo o livrará Deus. –E, finalmen­te, sobre todos, pedirão ao mesmo supremo Juiz, Cristo, que juntamente é juiz e advo­gado nosso, se alegue a si mesmo o seu texto universalíssimo, em que não pôs limitação alguma: Quod superest, date eleemosynam, et omnia mundo sunt vobis (Lc. 11, 41): – Por remate de contas, dai esmola, e ficareis purificados de todas vossas culpas. – E que poderá ou que poderia responder Cristo no caso negado que a sua sentença de condenação se houvesse de estender aos que remediaram aos pobres, pelos pecados que cometeram? Não há dúvida que no tal caso, aceitando os embargos, responderia o que, em nome e pessoa do mesmo soberano Juiz, escreve Santo Agostinho: Difficile est, ut si examinem vos. et appendam vos, et scruterdiligentissimefacta vestia, non inveni­am unde vos damnem[23]: Dificultosa coisa é que, se eu diligentemente examinasse vossas consciências e vossas obras, não achasse bastantes causas para vos condenar: Sed ite in regnum, esurivi enim, et dedistis mihi manducares non ergo itis in regnum, non guia non peccatis, sed guia peccata vestra eleemosynis redemistis: Mas ide ao reino do céu, porque tive fome e me destes de comer, e entendei que se vos salvastes, não foi porque não pecastes, senão porque com as vossas esmolas remistes os vossos pecados. Isto é não o que dirá, se não o que diria no dia do Juízo, quando por parte de nossos pecados se embargasse a sentença do reino do céu aos favorecedores dos pobres.

Acabemos, pois, por onde começamos. Beati pauperes: Bem-aventu­rados os pobres; beati misericordes: bem-aventurados os misericordiosos – e ben­dita e para sempre louvada a providência e bondade divina e humana daquele soberano Senhor, que, sacramentando-se em pão para nos sustentar a nós, se quis também sacramentar nos pobres, para que nós o sustentássemos a ele, e por meio da pobreza de uns, e misericórdia de outros, sem embargo de sermos pecadores, nos franqueasse nesta vida as portas de sua graça, para que achemos abertas na vida eterna as da glória: Quam mihi et vobis praestare dignetur Dominas Deus Omnipotens, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

[1] Bem-aventurados os pobres, bem-aventurados os misericordiosos (Mt. 5, 3, 7).

[2] Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é reino dos céus (Mt. 5, 3).

[3] O pobre é sagrado (Sen.).

(*) Conservando a numeração original dos parágrafos, passamos da alínea 141 do último capítulo para a alínea 145.

[4] Como pode este dar-nos a comer a sua carne (Jô. 6, 53)?

[5] Se não comerdes a carne do Filho do homem não tereis a vida em vós (ibid. 54).

[6] Crede no Deus que recebe como se foram feitos a si mesmo os benefícios que se fazem aos necessitados (S. Bus. Mag.).

[7] Martinho teceu para mim esta capa.

[8] Este é Jesus (Mt. 27, 37).

[9]  Cristo é recebido na hóstia, não partido ou dividido, mas inteiro.

[10] Este é o meu corpo (Mt. 26, 26).

[11] O que fizestes a um destes mais pequeninos, a mim é que o fizestes (Mt. 25, 40).

[12] Pão suavíssimo descido do céu.

[13] Amigo, empresta-me três pães, porque um meu amigo acaba de chegar à minha casa de uma jornada, e não tenho que pôr diante (Lc. 11.5 s).

[14] Na noite em que foi entregue (I Cor. 11, 23).

[15] Porém, a maior delas é a caridade (1 Cor. 13, 13).

[16] Mostrarás também o teu agrado aos filhos de Bercelai, e eles comerão à tua mesa, porque me saíram ao encontro quando eu fugia de Absalão (3 Rs. 2, 7).

[17] E ele mesmo tinha provido o rei de víveres, quando estava nos arraiais, porque era um homem muito rico (2 Rs. 19, 32).

[18] O que come deste pão viverá eternamente, e eu o ressuscitarei no último dia (Jo. 6, 59. 55).

[19] Hosana ao filho de Davi; bendito o que vem em nome do Senhor – o Rei de Israel (Mt. 21, 9).

[20] Crucifica-o (Mc. 15, 14).

[21] Tive fome, e não me destes de comer (Mt. 25, 42).

[22] Vinde, benditos, e possuí o reino: porque tive fome, e destes-me de comer (Mt. 25, 34 s).

[23] Aug. Ser. 33, de Divers.