Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Primeira Oitava da Páscoa, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA PRIMEIRA OITAVA DA PÁSCOA,

 NA CAPELA REAL, ANO DE 1647

Duo ex discipulis Jesu ibant ipsa die in castellum nomine Emaus[1].

§I

A história dos discípulos de Emaús nos nossos tempos.

(*)É tão particular história a que hoje nos refere S. Lucas no capítulo vinte e quatro da sua, que, contra o estilo que ordinariamente costumo seguir, quero por Páscoa que seja o sermão a mesma história. Historiador e pregador hei de ser hoje, dobrada obrigação de dizer verdades. Deus me ajude a que não sejam mais das que vós quiséreis. O que me parece posso prometer seguramente é que a história vos não enfastie por antiga e mui sabida, porque, ainda que segundo a boa cronologia é de mais de mil e seiscentos anos, eu farei que pareça a história de nossos tempos. Nenhuma coisa ouvireis que não seja o que vedes.

§II

Os discípulos de Cristo no caminho de Emaús. As maravilhas da Providência divina ao levar-nos a seus intentos pelos nossos caminhos. Se Deus queria que Jonas fosse a Nínive, por que consente que se embarque para Jope? Porque, em dia tão alegre como o da Ressurreição, e em uma ocasião de tão grande contentamento, como o da Redenção do mundo, aqueles a quem mais de perto tocava estivessem todos tristes? É muito mais dificultoso o contentar que o remir. Os descontentamentos e queixas do povo de Israel livre do cativeiro do Egito.

Na tarde de tal dia como o de ontem – que o que Cristo obrou em um dia não o pode representar a Igreja senão em muitos – tristes, com causa, pela morte de seu Mestre, e desesperados, sem causa, pela tardança de sua Ressurreição, caminhavam dois discípulos de Cristo para o castelo ou aldeia de Emaús. Que erradas são as imaginações dos homens! Mas que muito que não acertem as imaginações no que cuidam, se até os mesmos olhos erram no que vêem! Imaginavam os dois discípulos a Cristo morto e ausente, e no mesmo tempo, e pela mesma estrada ia o Senhor caminhando com eles sem o conhecerem, ainda que o viam: Et ipse Jesus ibat cum illis[2].

Ia o Senhor com eles. Aqui reparo, ou aqui paro, que também imos caminhando. O intento de Cristo era mandar a estes discípulos reduzidos e consolados para Jerusalém, aonde estavam os apóstolos também tristes. Pois, se o seu intento era encaminhar os discípulos para Jerusalém, como se vai o Senhor andando com eles para Emaús: Et ipse ibat cum illis? –O caminho de Emaús e o caminho de Jerusalém eram encontrados, e Cristo deixa-se ir com os discípulos para Emaús, quando os quer levar para Jerusalém? Sim, porque essas são as maravilhas da Providência divina: levar-nos a seus intentos pelos nossos caminhos. Conseguir os intentos de Deus pelos caminhos acertados de Deus, isso é providência vulgar; mas conseguir os intentos de Deus pelos caminhos errados dos homens, essas são as maravilhas da sua Providência. Ira Jerusalém pelo caminho de Jerusalém, é estrada ordinária; mas ir a Jerusalém caminhando para Emaús; só Deus o faz.

Mandou Deus ao profeta Jonas que fosse pregar à corte de Nínive. Não se acomodou o profeta com a missão. Estava no mesmo porto um navio de vergas de alto para Jope, pagou o frete, diz o texto, e embarcou-se nele. Que Jonas não quisesse pregar na corte de Nínive não me admira, que isto de pregar nas cortes é navegar entre Cila e Caribdes: ou não haveis de cortar direito, ou haveis de dar a través com o navio. Mas que Deus, mandando a Jonas pregar a Nínive, o deixe embarcar para Jope! Isto não entendo. – Senhor, vossa divina Providência não tem destinado a voz deste homem para o remédio de Nínive? Dos desenganos e das verdades que há de dizer este pregador não depende a conversão e a conservação daquele rei, daquela cidade, daquele reino? Pois, se quereis que vã a Nínive, por que consentiu que se embarque para Jope? – Deixai-o ir, que essas são as maravilhas da minha Previdência – diz Deus: – há-se de embarcar para Jope, e no cabo há-se de achar em Nínive. E assim foi. Levar um homem a Nínive pela carreira de Nínive, isso faz um piloto que não sabe ler nem escrever; mas levá-lo a Nínive pela derrota de Jope é arte só daquela sabedoria suprema que tem o leme do mundo na mão. É verdade que navegar para Jope quem tem obrigação de ir para Nínive é um modo de caminhar custoso e muito arriscado: é custoso, porque Jonas gastou debalde o seu dinheiro, pagou o frete, e não fez a viagem; é muito arriscado, porque ele embarcou-se em um navio, e desembarcou na boca de uma baleia. Mas que seguro tem o porto quem navega nos braços da Providência divina, ainda quando a resiste e se opõe a ela! Haverá mais ou menos tempestade, haverá maior ou menor baleia, mas nem a fúria da tempestade, nem as gargantas e ventre da baleia poderão estorvar os intentos de Deus. Ameaçar-vos-á a tempestade, mas não vos há de afogar; tragar-vos-á a baleia, mas não vos há de digerir. Assim levou Deus a Jonas a Nínive pelos caminhos de Jope; assim levou: Cristo aos discípulos a Jerusalém pelos caminhos de Emaús: Et ipse ibat cum illis.

Caminhando juntos o Senhor com os discípulos, perguntou-lhes que é o que tratavam entre si, e de que iam tristes: Qui sunt hi sermones, quos confertis ad invicem ambulantes, et estis tristes[3]? – Coisa é muito digna de notar que em um dia tão alegre, como o da Ressurreição, e em uma ocasião de tanto contentamento, como o da Redenção do mundo, aqueles a quem mais de perto tocava estivessem todos tristes. Os apóstolos tristes, e encerrados em casa; os dois discípulos tristes, e caminhando para Emaús; a Madalena triste, e chorando às portas da sepultura: enfim, tudo e todos tristes. A tristeza era a mesma, mas as causas deviam de ser diversas, porque o eram também os efeitos. Os apóstolos escondiam-se, porque temiam aos judeus: propter metum Judaeorum[4]; os discípulos iam-se para Emaús, porque desesperavam da Redenção: nos autem sperabamus[5]; a Madalena chorava, porque amava muito a seu Mestre: quoniam dilexit multum[6]. – Se quereis conhecer as causas do descontentamento de cada um, vede-o nos efeitos. Quem teme, esconde-se; quem desespera, vai-se; quem ama, chora. Com estes me tenho eu. Mas que estando o mundo remido, como estava, houvesse tantos descontentes, uns retirados em sua casa, outros deixando a corte de Jerusalém, outros chorando sem consolação! O mundo remido, e descontentes tantos? Não vos espanteis, que nem eu me espanto. Sabeis por quê? Porque é muito mais dificultoso o contentar que o remir.

Estava o povo de Israel no cativeiro de Egito, qui-lo Deus remir da tirania de Faraó, e que fez? Mandou lá Moisés com uma vara, e reuniu-se o povo. Começaram a marchar para a Terra de Promissão em número de seiscentos mil homens, e os favores e maravilhas com que Deus os tratou em quarenta anos de deserto quase excedem a fé. Se haviam de passar o Mar Vermelho, partiam-se as ondas; se haviam de atravessar o Rio Jordão, suspendiam-se as correntes; se os molestava o sol, corria um anjo uma nuvem que lhes fazia sombra; se sobrevinha a noite, acendia-se um cometa que os alumiava, para que comessem com abundância e regalo, chovia o céu maná; para que não sentissem sede, acompanhava-os uma penha que se desfazia em fontes; finalmente, para que a jornada não tives¬se impedimento, nem do tempo, nem do cuidado, as roupas não envelheciam e os corpos não enfermavam. Desta maneira tratava Deus aqueles homens, e eles como lhe correspondiam? Tudo eram mumurações, tudo queixas, tudo descontentamentos. Quiseram apedrejar a Moisés, trocaram a Deus por um bezerro, suspiravam pelo Egito, enfastiavam-se do maná, diziam que melhor ia no cativeiro, lançavam maldições a quem os libertara, todos tristes, todos descontentes, todos desconsolados, quase todos arrependidos. Pois, valha-me Deus! Remiu Deus este povo fazendo tão pouco, e não o pode contentar fazendo tanto? Não, porque é muito mais dificultoso o contentar que o remir. Para remir, bastou Moisés com uma vara para contentar, não bastou Moisés com vara, nem anjo com nuvem, nem Deus com toda sua onipotência fazendo milagres. Os descontentamentos e queixas dos povos ordinariamente caem sobre os ministros, e talvez se levantam até o sagrado dos príncipes. O príncipe aqui era Deus: Vede que justiça, que piedade, que magnificência? Os ministros, um era um anjo descido do céu, tão amante e cuidadoso do povo, que nem consentia que lhe tocasse um raio de sol; o outro era Moisés, o melhor homem da terra, tal que entrou em ciúmes Deus que o adorasse o povo e por esta causa lhe encobriu a sepultura. Pois, se onde o príncipe é Deus, e os ministros, ou são anjos, ou homens merecedores de que os idolatrem, há contudo descontentamentos e dissabores, que muito que os houvesse ou que os haja onde os ministros não podem ser Moisés nem anjos, e onde os príncipes, ainda que sejam dados por Deus, é força que sejam homens? Por isso digo que é muito mais dificultoso o contentar que o remir. Para remir, valeu-se Deus de mosquitos, e remiu; para contentar serviu-se Deus de anjos, e não contentou.

§ III

A importância e dificuldade do contentamento. A primeira coisa que fez Cristo depois que ressuscitou foi tratar de enxugar lágrimas e de consolar tristezas. Por que diz São João que no Reino dos Céus não há tristezas nem descontentamentos? Como se hão de enxugar as lágrimas? De como hão de proceder os príncipes na cura de uma enfermidade tão dificultosa, como a de sarar descontentamentos? As lágrimas da razão e as lágrimas da sem-razão.

Mas, suposto que o contentar é tão dificultoso, e por outra parte tão importante, quisera de caminho arcar com esta dificuldade, e ver se é possível vencer-se. Primeiramente digo que o estarem contentes todos não pode depender de um só, como muitos se enganam. O contentamento de todos depende de todos: depende do príncipe, depende dos ministros e depende dos vassalos. Para todos estarem contentes, hão de concorrer todos para o contentamento, uns tratando de contentar, outros querendo contentar-se. Parecia-me que se conseguiria isto, conforme o nosso Evangelho, se o príncipe imitasse a Cristo, e se os vassalos imitas sem aos discípulos. Os ministros, não os acho no texto, mas quando chegarmos a eles lhes buscaremos imitação.

Começando, pois, pelo príncipe, a primeira coisa que fez Cristo tanto que ressuscitou foi tratar de enxugar lágrimas e de consolar tristezas. Estava a Madalena chorando às portas do sepulcro, aparece-lhe o Senhor, enxuga-lhe as lágrimas; iam os discípulos tristes e desesperados para Emaús, foi-se encontrar com eles o Senhor, e consolou-os de sua tristeza. E que se seguiu daqui? Que amanhecendo no dia da Ressurreição todo o reino de Cristo descontente, anoiteceram no mesmo dia todos contentes e consolados. Seja o primeiro cuidado do príncipe enxugar lágrimas, e logo haverá menos descontentes. Se lançarmos os olhos por todos es reinos do mundo, presentes e passados, um só reino acharemos em que todos estão contentes. E que reino é este? França? Inglaterra? Alemanha? Não: o Reino do Céu. No Reino do Céu todos estão contentes. E por que não há descontentes no Reino do Céu? S. João no Apocalipse: Tunc absterget Deus omnem lacrymam ab oculis sanctorum, et jam non erit, amplius nequeluctus, negue clamor, sed nec ullus dolor[7]. – Sabeis – diz S. João – por que no Reino do Céu não há tristezas nem descontentamentos? Porque a primeira coisa que faz Deus a todos os que vão deste mundo é enxugar-lhes as lágrimas. E onde o primeiro cuidado do Príncipe é enxugar as lágrimas dos seus, como há de haver descontentes? Não há nem haverá eternamente descontentamento em tal reino: Non erit luctus negue dolor – E por que não cuidássemos que era isto privilégio só do céu, o mesmo fez Cristo hoje na terra, O seu reino não constava de muitos vassalos, mas todos ficaram hoje contentes, porque pôs todo o seu cuidado em enxugar as lágrimas de todos.

Mas, vindo à prática desta doutrina, vejo que me dizem que é muito fácil dizer que se enxuguem as lágrimas de todos; mas como se hão de enxugar? Enxugar as lágrimas bom remédio é para não haver descontentamentos mas que remédio há de haver, para se enxugarem as lágrimas? Fácil remédio: o que Cristo fez. Inquirir a causa das lágrimas, e tirá-la. Quando Cristo apareceu à Madalena, a primeira coisa que fez foi inquirir a causa por que chorava: Mulier; quid pioras (Jo. 20, 13)? Mulher, por que choras? Quando apareceu aos dois discípulos, a primeira coisa que fez também foi perguntar a causa de sua tristeza: Qui sunt hi sermones, quos confertis inter vos, et estis tristes (Lc. 24, 17)? Que é o que falais, por que estais tristes? – Eis aqui a razão por que se trabalha muitas vezes debalde em enxugar as lágrimas: porque se não tomam na fonte, porque se lhes não busca a causa. Busque-se a causa das lágrimas, e logo o remédio será fácil. Bem pudera Cristo enxugar as lágrimas da Madalena e consolar as tristezas dos discípulos sem lhes perguntar pela causa, pois a sabia, mas quis dar nesta ação um grande documento aos príncipes de como haviam de proceder na cura de uma enfermidade tão dificultosa, como a de sarar descontentamentos.

Oh! que ação tão divina e tão real! O primeiro rei que Deus elegeu neste mundo foi Saul. E qual foi a primeira coisa que disse e a primeira coisa que fez este rei? Leia-se o texto sagrado, e achar-se-á que as primeiras palavras que disse Saul depois de ungido por rei foram estas: Quid habet populus, quod plorat (1 Rs. 11, 5)? Que causa tem o povo para chorar? – E sabendo que a causa por que chorava o povo eram os danos que recebia das invasões dos amonitas, a primeira ação que fez Saul depois de ungido foi remediar a causa dessas lágrimas, partindo no mesmo dia e com todo o poder a fazer guerra aos de Amon, com que os destruiu: Percussit Amon (1 Rs. 11, 11). – De maneira que o rei eleito por Deus a primeira palavra que se lhe há de ouvir é perguntar pela causa das lágrimas, e a primeira ação que se lhe há de ver é acudir ao remédio delas. Assim o fez Cristo hoje: a primeira palavra que se lhe ouviu foi: Mulier; quid pioras? Mulher, por que choras? – E a primeira ação que se lhe viu foi remediar-lhe a causa por que chorava.

(*) Sim, mas para as lágrimas que não têm causa, que são a maior parte das que se choram, que remédio lhes daremos nós? Para curar as lágrimas da razão já temos remédio; buscar-lhes a causa, e tirá-las; mas para curar as lágrimas da sem-razão, que remédio lhes havemos de dar, que elas não têm causa? As lágrimas dos que choram bem se podem remediar, mas as lágrimas dos que se choram, que remédio há de haver para elas? Eu dissera que as lágrimas que não têm causa não hão mister cura. Se as lágrimas têm causa, dê-se-lhe remédio, e enxuguem-se; se as lágrimas não têm causa, elas se enxugarão por si, não hão mister remédio. Examine o príncipe exatamente donde nascem as lágrimas dos vassalos: se têm causa, ponha-lhes remédio, se não têm causa, não lhes dêem cuidado.

IV

Não basta que o príncipe imite a Cristo: é necessário que os vassalos imitem aos discípulos. Os vassalos que são como Pedro, os vassalos que são como a Madalena, os vassalos que são como São Tomé e os vassalos que são como os discípulos de Emaús. Por que os discípulos de Emaús, que foram os menos finos, levaram vantagens aos portugueses? Na divisão das vestiduras de Cristo, que era o manto e a túnica, por que razão descontentou a túnica a três, se o manto contentou a quatro? Notáveis palavras de Deus quando Josué houve de entrar à conquista da Terra de Promissão. É melhor que os reis façam mercês, ou que as não façam?

E basta isto para não haver descontentamentos? Não basta que o príncipe imite a Cristo; é necessário que os vassalos imitem aos discípulos. Quatro aparições fez Cristo, depois de ressuscitado a seus discípulos, muito dignas de ponderação. Apareceu a S. Pedro; e sem mais diligências que aparecer-lhe, S. Pedro o conheceu, e se deu por contente: Surrexit Dominus vexe, et apparuit Simoni[8]. – Apareceu à Madalena, e ainda que lhe viu o rosto, não bastou isto para o conhecer; chamou-a por seu nome: Maria –e no mesmo ponto o conheceu, e se lhe lançou aos pés: Dixit ei Jesus: Maria. Conversa illa. dixit: Rabboni[9]. – Apareceu a S. Tomé, e ainda que os discípulos lhe tinham dito que ressuscitara, enquanto não meteu a mão no lado, não creu nem reconheceu a seu Deus e a seu Senhor: Nisi videro fixaram clavorum, et mittam manum meam in latos ejus, non credam[10]. – Apareceu a estes discípulos de Emaús, e por mais que caminhou com eles, e lhes declarou as Escrituras e as profecias, não o conheceram, senão quando lhes deu o pão: Cognoverunt eum in fractione panis (Lc. 24, 35). – Nestas quatro aparições estão representados quatro gêneros de vassalos, ou quatro gêneros de condições de vassalos. Há uns vassalos que são como S. Pedro: com verem a seu rei, com lhe aparecer o seu rei, se dão por contentes. Há outros vassalos que são como Madalena: não lhes basta o ver nem o aparecer; contudo, se o rei os chama pelo seu nome, como Cristo chamou à Madalena, se o rei lhes sabe o nome, não hão mister mais para viverem consolados e satisfeitos. Há outros que são como S. Tomé: se o rei lhes não entrega as mãos e o lado, se não manejam o coração do rei, se não se lhe s abrem os arcamos mais interiores do Estado – ainda que sejam daqueles que duvidaram, e dos que vieram ao cabo dos oito dias, como Tomé – não se dão por bem livrados. Há outros, finalmente, que são como os discípulos de Emaús, que por mais profecias que se lhes declarem, por mais razões que se lhes dêem, enquanto se lhes não dá o pão, estão com os olhos e com os corações fechados: nem conhecem. nem reconhecem. Ora, censuremos estes quatro esta¬dos de vassalos. Os que se contentam, como S. Pedro, só com ver, são finos. Os que se contentam, como a Madalena, só com que lhes saibam o nome, são honrados. Os que se não contentam, como S. Tomé, senão com o lado, são ambiciosos. Os que se não contentam, como os de Emaús, senão depois de lhes darem o pão, são interesseiros. E os que com todas estas coisas ainda se não contentam? São portugueses.

Verdadeiramente, que se os portugueses se contentaram, como os discípulos, não houvera reino de mais contentes que Portugal. Eu já me contentara que fôramos como os que nesta ocasião fiaram menos delgado, Os discípulos que nesta ocasião andaram menos finos foram os de Emaús, que não conheceram senão quando lhes deram: Porrigebat illis (Lc. 24, 30) – mas ainda estes nos levaram muita vantagem. Por quê? Porque se contentaram com o Senhor lhes partir o pão: In fractione panis. Os portugueses não se contentam com se lhes dar o pão partido; há-se-lhes de dar todo o pão, sob pena de não ficarem contentes. Daqui se segue que nunca é possível que o estejam.

As vestiduras de Cristo, que era o manto e a túnica, dividiram-nas entre si os soldados que o crucificaram, mas com esta diferença: os quatro soldados, a quem coube o manto, partiram-no em quatro partes, e ficaram contentes todos quatro. Os quatro, ou fossem os mesmos ou diferentes, a quem coube a túnica, não a quiseram partir, jogaram-na; levou-a um, e ficaram descontentes três. Pois, por que razão descontentou a túnica a três, se o manto contentou a quatro? É bem fácil a razão. Os quatro, a quem coube o manto, acomodaram-se com que o manto se partisse. E quando os homens se acomodam a que as coisas se partam e se repartam, com o que se cobre um se podem contentar quatro. Os soldados a quem coube a túnica, não trataram deste acomodamento: cada um quis toda a túnica para si: Non scindamus eam, sed sortiamur de illa[11]. –E quando os homens são de tal condição que cada um quer tudo para si, com aquilo que se pudera contentar a quatro, é força que fiquem descontentes todos. O mesmo nos sucede. Nunca tantas mercês se fizeram em Portugal, como neste tempo; e são mais os queixosos que os contentes. Por quê? Porque cada um quer tudo. Nos outros reinos com uma mercê ganha-se um homem; em Portugal com uma mercê perdem-se muitos. Se Cléofas fora português, mais se havia de ofender da ametade do pão que Cristo deu ao companheiro, do que se havia de obrigar da outra ametade, que lhe deu a ele. Porque, como cada um presume que se lhe deve tudo, qualquer coisa que se dá aos outros cuida que se lhe rouba. Verdadeiramente que não há mais dificultosa coroa que a dos reis de Portugal, por isto mais do que por nenhum outro empenho.

Quando Josué houve de entrar à conquista da Terra de Promissão, disse-lhe Deus desta maneira: Confortare, et esto robustus: tu enim divides populo huic terram: Josué, esforçai-vos, e tende grande valor, porque vós haveis de repartir a terra a esse povo. – Notáveis palavras na ocasião em que se disseram! Quando Deus disse estas palavras a Josué, foi quando ele estava com as armas vestidas para passar da banda além do Jordão, a conquistar a Terra de Promissão. Pois, por que não lhe diz Deus: esforçai-vos, e tende valor, porque haveis de conquistar esta terra aos inimigos – senão: Esforçai-vos, e tende valor, porque haveis de repartir esta terra ao povo de Israel? Ambas as coisas havia de fazer Josué; havia de conquistar a terra aos amorreus e havia de repartir a terra aos israelitas; mas Deus esforça-o, e diz-lhe que tenha valor porque havia de repartir, e não porque havia de conquistar a terra, porque muito maior empresa e muito mais arriscada batalha era haver de repartir a terra aos vassalos que haver de conquistar a terra aos inimigos.

Em nenhuns reis do mundo se vê isto mais claramente que nos de Portugal. Conquistar a terra das três partes do mundo a nações estranhas foi empresa que os reis de Portugal conseguiram muito fácil e muito felizmente; mas repartir três palmos de terra em Portugal aos vassalos, com satisfação deles, foi impossível, que nenhum rei pôde acomodar nem com facilidade nem com felicidade jamais. Mais fácil era antigamente conquistar dez reinos na índia que repartir duas comendas em Portugal. Isto foi, e isto há de ser sempre, e esta, na minha opinião, é a maior dificuldade que tem o governo do nosso reino. Tanto assim que, se pode por em problema na política de Portugal se é melhor que os reis façam mercês, ou que as não façam. Não se fazerem mercês é faltar com o prêmio à virtude; fazerem-se é semear benefícios para colher queixas. Pois, que hão de fazer os reis? A questão era para maior vagar. Mas por que não fique indecisa, digo entretanto que um só meio acho aos reis para salvarem ambos estes inconvenientes. E qual é? Não dar nada a ninguém, e premiar a todos. Pois, como? Premiar a todos sem dar nada a ninguém? Sim: o dar e o premiar são coisas mui diferentes. Dar aos que merecem ou não merecem é dar; dar só aos que merecem é premiar. Não fazerem mercês os reis seria não serem reis; mas hão de fazê-las de maneira que as mercês não sejam dádivas, sejam prêmios. Dêem os reis só aos beneméritos, e fecharão as bocas a todos. Quando os prêmios se dão aos que merecem, os mesmos que os murmuram com a boca os aprovam com o coração. Murmurais do que está bem dado? Apelo da vossa língua para vossa consciência. Este é o único remédio que têm os reis para salvarem a opinião naquele tribunal, onde só neste mundo podem ser julgados, que é o coração dos vassalos. Enfim, sejam os príncipes como Cristo no repartir, e sejam os vassalos como os discípulos no contentar-se, e cessarão as queixas.

§V

Como hão de ser os ministros? Hão de ser como Moisés para com os hebreus, e não hão de ser como Moisés para com os egípcios. Os ministros dados por Deus para a destruição dos reinos. Os sinais da destruição do mundo no sol, ministro do dia, e na lua, ministro da noite. Os efeitos dos milagres de Moisés, ministro de Deus irado, no coração de Faraó.

Mas os ministros, de quem ainda não dissemos, como hão de ser? Direi como hão de ser e como não hão de ser, que uma e outra coisa é necessária. Já disse que não achava os ministros no texto; mas se eles se afastam do Evangelho, que muito me tire eu também dele, quando os busco? Muito antes de haver Evangelho foi muito grande e muito notável ministro Moisés. Digo pois, que os ministros hão de ser como Moisés e não hão de ser como Moisés. Hão de ser como Moisés para com os hebreus, e não hão de ser como Moisés para com os egípcios. Quis Deus destruir o povo de Israel pelo pecado do bezerro, e disse assim a Moisés: Dimitte me, ut irascatur furor meus, et faciam te in gentem magnam (Êx. 32. 10): Moisés, deixa-me acabar com este povo e destruí-lo, e eu te farei governador de outro povo muito maior. – Oh! que grande tentação para um ministro! Se o povo se destruir, terei eu grandes aumentos; se isto se acabar, crescerei eu. Grande tentação! E que respondeu Moisés? Aut dimitte eis hanc noxam, aut dele me de libro tuo (ibid. 31): Ou haveis de perdoar ao povo, Senhor, ou me haveis de riscar de vossa graça. – Os homens duas coisas estimam mais que tudo: a primeira, a graça de seu senhor, e a segunda, seus próprios aumentos. E Moisés foi tão grande ministro que, oferecendo-lhe Deus grandes aumentos para que deixasse destruir o povo, ele respondeu que, se o povo se havia de destruir, não queria a graça de seu Senhor. Os outros assolam o povo para crescer na graça e nos aumentos; Moisés, por defender o povo, nem quis os aumentos nem a graça. Ministro que não faz caso de seus aumentos, pela conservação do povo, e que chega a arriscar a graça do príncipe para que o povo não padeça, este ministro sim é ministro de Deus propício, como o foi Moisés com os hebreus. Mas ministro que assola os povos para ele crescer, e que da destruição dos vassalos quer fazer degrau para subir à graça do príncipe, livre-nos Deus de tal ministro: é açoite de Deus irado, como o foi Moisés com os egípcios.

Moisés no Egito foi o mais milagroso ministro que se viu no mundo: tudo em Moisés eram milagres. Mas que milagres eram os seus? Rãs, mosquitos, gafanhotos, sangue, trevas, mortes dos primogênitos, enfim, as dez pragas do Egito. E ministro cujos milagres são pragas, ministro cujo talento são opressões, nãoo dá Deus para remédio, senão para destruição dos reinos. Assim deu Deus a Moisés para destruição do reino de Faraó. Não há mais evidente sinal de Deus querer destruir e acabar uni reino que dar-lhe semelhantes ministros. Cada ministro destes é um sinal, é um portento, é um cometa fatal, que está ameaçando a ruína de uma monarquia. Levantemos os olhos da terra ao céu, e vê-lo-emos claramente. Como o céu é a corte de Deus, pôs o mesmo Deus no céu dois ministros, por meio dos quais governasse este mundo inferior, ambos grandes, ambos ilustres, mas um maior, outro menor. Com toda esta distinção fala o texto sagrado: Fecit Deus duo luminaria magna: luminare majus, ut praesset diei, luminare mi-nus, ut praesset nocti[12]. – O ministro maior é o sol, a quem deu a presidência do dia, o ministro menor é a lua, a quem deu a da noite. Não deixemos de advertir de caminho – o que também faz muito ao nosso caso – que o ministro maior nunca se mete na jurisdição do menor. O sol governa em um e outro hemisfério a sua presidência, que é a do dia, sem jamais se meter na da noite. Porém, o ministro menor, que é a lua, é tão intrometido, que não só de noite, mas de dia, não só na sua presidência, senão também na que não é sua, se mete – ou mexe – e quanto toma do dia tanto falta à noite, tanto não assiste à obrigação do seu ofício quanto se intromete no alheio. Assim se governa, contudo, e se conserva o mundo. Mas, quando Deus o quiser acabar e destruir para sempre, que fará? Nestes mesmos ministros há de pôr os sinais da destruição, e deles hão de sair os efeitos. Os sinais no sol e na lua: Erunt signa in sole et luna[13]; os efeitos na terra e no mar:In terris pressura gentium prae confusione sonitus maris[14]. – Na terra opressões, no mar confusões. O sol domina no mar, e principalmente na terra; a lua domina na terra, e principalmente no mar: e estes são os dois elementos em que vivem e negaceiam a vida os homens. Mas quando neles tudo são opressões e confusões, efeitos dos ministros que os governam, sinal é que se quer acabar o mundo, ou alguma parte dele. Quando assim forem todo o mundo, sinal será que se acaba o mundo; quando assim se vir e experimentar em qualquer reino, sinal é também que o reino se acaba. O sol e a lua são os primeiros planetas, senão os mais benéficos de todo o universo; porém, quando trocado o fim para que Deus os pôs em tão alto lugar, eles se revestirem – como farão naquele tempo – de horrores e sangue: Sol convertetur in tenebras, et lima in sanguinem[15] – os planetas são cometas, a luz são trevas, as influências são raios, e os prognósticos de tudo isto a assolação e ruína de tudo.

Tais costumam ser os ministros que justiça divina permite, quando quer dar o último castigo aos pecados, e destruir monarquias. E tal ministro foi Moisés, quando Deus o escolheu para a destruição total de Faraó. Como se Moisés fora sol de dia e lua de noite, uns prodígios obrava de noite, outros de dia; como se tivera o predomínio da terra e do mar, umas execuções fazia no mar, outras na terra: todas, porém, de opressão, de confusão, de horror, e nenhuma para bem, senão para mal e assolação dos egípcios; nas casas, nas ruas, nos campos; nas lavouras, nos gados, nos pastores: nas fontes, nos rios, nos mares: tudo eram novidades, mas todas em dano; cada dia se mudavam mas sempre de um mal grande para outro maior. Ó miserável povo, ó miserável reino, ó miserável rei! Ó violento e terrível ministro, que também te chamara cruel, se a tua vara não fora açoite de Deus, e tu verdugo de sua justiça. E a maior fatalidade de todas era que nada disto abrandava os ânimos, antes os endurecia mais. Cada milagre dos que fazia Moisés no Egito era um mármore que se punha no coração de Faraó contra Deus, de quem Moisés era ministro. Caso digno, não só de admiração, mas de assombro! Fazia Moisés um milagre: lançava a vara da mão que se convertia em serpente, e que se seguia deste portento? Obduratum est cor Pharaonis (Êx. 7, 13): Endureceu-se o coração de Faraó. – Fazia Moisés outro milagre: tocava com a vara no rio, que se convertia em sangue, e que se seguia destes horrores? Obduratum est cor Pharaonis. – Fazia Moisés outro milagre: tocava com a vara na terra, levantavam-se exércitos de gafanhotos que talavam os campos, e que se seguia desta destruição? Obduratum est cor Pharaonis. – Fazia Moisés outro milagre: tocava com a vara no ar, começavam a chover raios e coriscos, que matavam os gados e os pastores. e que se seguia desta tempestade? Obduratum est cor Pharaonis. –De maneira que os milagres de Moisés, ministro de Deus irado, não serviam mais que de endurecer o coração de Faraó. Sendo que o primeiro cuidado dos ministros há de ser abrandar e afeiçoar, e reduzir os corações ao serviço, à obediência e ao amor de seu senhor. Vede se tenho razão para dizer que os ministros não devem de ser como Moisés para com os egípcios, mas hão de ser como Moisés para com os hebreus. Imitem nesta forma os ministros a Moisés, os vassalos aos discípulos, os príncipes a Cristo, e, concorrendo todos desta maneira, uns a contentar e outros a contentar-se, não há dúvida que, ao menos em grande parte, cessarão os descontentamentos e as tristezas: Et estis tristes.

§ VI

Qual é o pior estado neste mundo: o de esperar ou o de ser esperado? O tormento de esperar e o empenho de ser esperado. Que castigo deu a divina severidade aos judeus, culpados do maior de todos os delitos? Qual é a razão por que nem Deus pode satisfazer às esperanças dos homens? Razões e solução da contenda dos apóstolos sobre qual deles fosse ou havia de ser o maior. O vilíssimo e irracional afeto da esperança.

Respondendo os discípulos à pergunta de Cristo, disseram que a causa de sua tristeza era verem mal logradas as esperanças que tinham na ressurreição de seu Mestre, e com ela da redenção do reino de Israel: Nos autem sperabamus guia ipse esset redempturus Israel (Lc. 24, 21): Nós esperávamos que ele havia de remir o reino de Israel. – Ora, eu me pus a considerar algumas vezes qual era o pior estado neste mundo, se ode esperar, se ode ser esperado, e parece que temos a solução da dúvida neste caso. Os discípulos eram os que esperavam a redenção, Cristo era o esperado por redentor, e, ainda que a tormenta que os discípulos padeciam por esperarem era grande, a que Cristo padecia por ser esperado era maior. A dos discípulos chegava-lhes ao coração tristezas, desconfianças, desesperações; a de Cristo passava ainda além do coração, porque chegava a tocar no crédito. Ouvia dizer de si, nas estradas públicas, que não respondera na redenção ao que dele se esperava! Nos autem sperabamus. – Logo, parece que ainda é maior mal o ser esperado que o esperar. Respondo com distinção: digo que o esperar é o maior tormento, o ser esperado é o maior empenho. Não há maior tormento no mundo que o esperar, nem pode haver maior empenho no mundo que o ser esperado. Quem se sujeitou a esperar, sacrificou-se à maior pena; quem se sujeitou a ser esperado, arriscou-se à maior empresa. Sem sairmos do mistério, acharemos a prova de ambas as coisas.

Primeiramente, o esperar é o maior tormento. Provo. O maior pecado que se cometeu no mundo foi a morte do Filho de Deus; e que castigo deu a divina justiça, que castigo deu a divina severidade aos judeus por este maior de todos os delitos, de não crerem, e de matarem ao Messias? O castigo foi que esperassem por ele: castigou-lhes a falta da fé com a continuação da esperança. Vós não crestes? Pois esperareis. Notai. Na justiça de Deus não pode haver desigualdade em proporcionar o castigo e o delito. O maior delito que podia haver no mundo era a morte do filho de Deus; pois, por isso deu a divina justiça por castigo aos judeus que esperassem, porque ao maior delito era devido o maior castigo, e não podia haver maior castigo que o esperar. Castigar a morte do Messias com esperarem por ele, foi dar à maior culpa a maior pena: Nos autem sperabamus. –Eis aqui como o esperar é o maior tormento.

E o ser esperado? É o maior empenho. Provo no mesmo caso. E para maior inteligência do que quero dizer, havemos de supor que o Messias, por quem esperavam os judeus, na opinião vulgar do povo, não era Messias Deus, senão Messias homem: esperavam um homem grande, sim, maravilhoso, sim, e que havia de dominar o mundo, sim; mas puro homem, e filho de Davi somente. Os patriarcas e os profetas, e alguns mais sábios – ainda que poucos – esses conheciam que o Messias havia de ser Filho de Deus, os outros não. E a razão desta permitida ignorância foi porque, como aquele povo era tão grosseiro e inclinado à idolatria, não fiou Deus do comum dele o mistério altíssimo da Trindade, sendo certo que, se lhes mandasse propor que havia em Deus três pessoas, haviam de crer em três deuses, que é a conseqüência que ainda hoje embaraça sua cegueira. A Moisés, a Davi, e outras grandes almas daquele tempo, revelou-lhes Deus o segredo da divindade do Messias: Incerta et occulta sapientiae tuae manifestaste mihi[16] –mas o comum do povo tinha-o só por puro homem, e como talo esperava. Veio enfim o esperado Messias, e veio, não só homem, senão verdadeiro Deus. E que lhe aconteceu? In propria venit, et sui eum non receperunt[17]: Não o receberam os seus, nem o aceitaram, nem se satisfizeram dele. Pois, se as esperanças dos judeus ficaram tão melhoradas na posse, se o que esperavam era homem, e o que veio era Deus, por que se não satisfizeram suas esperanças? Aí vereis quão dificultoso e arriscado empenho é ser o esperado de um reino: que a expectação de um homem esperado não a satisfaz um Deus vindo. O Messias que esperava o reino de Israel era um homem; o Messias que veio ao reino de Israel era Deus; e são tão más de contentar as esperanças dos homens que, vindo o mesmo Deus em pessoa, não desempenhou a expectação de um homem que se esperava.

E qual é a razão disto? Qual é a razão porque nem Deus pode satisfazer as esperanças dos homens? A razão é porque o que promete a esperança não o pode cumprir a onipotência. Parece dificultoso, mas um bom exemplo o fará fácil. Tiveram os apóstolos uma competência entre si, mais própria da corte que do colégio: Facta est contentio inter eos, quis eorum videretur esse major[18]: Era a contenda qual deles fosse ou havia de ser maior no reino de Cristo. É certo que maior não o pode ser mais que um. A igualdade pode-se achar em muitos, a maioria não a pode haver mais que em um só. E, contudo, todos os apóstolos tinham no seu pensamento a maioria, e cada um cuidava que ele era ou havia de ser o maior do reino de Cristo. Vede agora se é mais o que promete a esperança do que pode cumprir a onipotência. A esperança prometia a doze, e a onipotência não podia dar a maioria mais que a um, e assim a deu só a Pedro. Donde se segue que aquilo com que a esperança contenta a doze, com isso mesmo a onipotência há de descontentar a onze. Não foi assim? Assim foi. Na esperança estavam contentes todos os doze apóstolos, e na execução ficou contente só Pedro, e os demais descontentes. E como esta seja a natureza da esperança, por isso a onipotência do Messias-Deus não pôde desempenhar as esperanças que os homens tinham concebido do Messias homem, porque o que cada um esperava daquele homem nem o mesmo Deus o podia dar a cada um. Cada um, porventura – como agora – esperava que no tempo daquele Messias havia ele de ser o maior, e isso nem Deus o podia fazer.

Boa está esta razão, mas ainda não esgotou a dificuldade. A esperança satisfaz-se com a medida do que se espera: o povo de Israel esperava que o viesse remir um homem, e veio remi-lo um homem e Deus, que era mais. Pois, se as suas esperanças alcançaram mais do que esperavam, por que não se contentam? Que a esperança se não contente com o menos, bem está; mas que a mesma esperança se não contente com o mais? Contradição é esta que não posso alcançar com o entendimento, e vejo-a com os olhos. Quantos há hoje em Portugal que têm mais do que nunca esperaram, e no cabo estão ainda descontentes? Vinde cá: quando a vossa imaginação esteve mais desvanecida, chegou nunca a sonhar nem a esperar o que hoje tendes? Nem vós mesmo o negareis. Pois, se tendes mais do que nunca esperastes, por que está ainda descontente vossa esperança? Esta pergunta não tem resposta, porque esta sem-razão não tem razão. Irracional afeto é a esperança descontente, vilíssimo afeto é. E se não, vede em quem se achou hoje: em Cléofas, e no seu companheiro, que eram da aldeia de Emaús: afeto de homens de aldeia, Deus nos guarde a nossa corte dele.

A fé e a caridade são afetos muito fidalgos e muito bons de contentar. A fé, para crer, basta-lhe uma profecia, e fica satisfeita; a caridade, para amar, quando não tenha benefícios bastam-lhe agravos, que o amor até de ofensas se sustenta. Não assim o vil afeto da esperança: nenhuma coisa lhe basta para o contentar: Nos notem sperabamus. —Todas estas distinções temos na história destes dias. Quinta-feira, na Ceia, ficou tão satisfeita a caridade, que disse por boca de S. João: Cum dilexisset, dilexit (Jo. 13, 1 ): Como amasse, amou. – Sexta-feira, na cruz, ficou tão satisfeita a fé, que disse por boca do centurião: fere Filias Dei erat iste (Mt. 27, 54): – Verdadeiramente este era Filho de Deus. – E domingo, depois da Ressurreição, ainda está a esperança tão mal satisfeita, que disse por boca dos discípulos de Emaús: Nos, autem sperabamus: Nós esperávamos, mas não se cumpriram nossas esperanças. – A caridade satisfez-se no mais amante; a fé satisfez-se no mais incrédulo; a esperança não se satisfez nos mais obrigados. Para contentara caridade bastou Cristo vivo; para contentar a fé bastou Cristo morto; para contentar a esperança não bastou Cristo ressuscitado. Nem as obras da vida, nem as maravilhas da morte, nem as glórias da ressurreição bastaram para satisfazer e contentar uma esperança: Nos autem sperabamus.

§ VII

Diferenças entre a esperança do tempo do cativeiro e a esperança do tem¬po da redenção. A esperança dos patriarcas no seio de Abraão, e a esperançados apóstolos no seio de Cristo. A brevidade do despacho de Dimas e a brevidade do despacho dos patriarcas.

Nos autem sperahamus, et tertia dies est hodie (Lc. 24, 21): Nós esperávamos, e são já hoje três dias. – Disto me escandalizo mais que de tudo. Vinde cá, mal entendidos esperadores da redenção: quando Moisés subiu ao monte Sinai, não esperastes por ele quarenta dias? Pois, quando Cristo subiu ao monte Calvário, por que vos cansais de esperar três? Esperastes quarenta dias por Moisés, e não esperareis três dias por Cristo? Eu escandalizava-me, mas eles parece que não deixam de ter razão. Essa é a diferença que há de haver do tempo de Cristo ao tempo de Moisés. Se no tempo de Cristo se houvesse de esperar como se esperava no tempo de Moisés, se no tempo da redenção se houvesse de esperar como se esperava no tempo do cativeiro, que felicidade era a dos nossos tempos maior que a dos passados? Assim o presumiam os discípulos, e assim era, ainda que eles o ignoravam. No tempo de Moisés esperavam os homens quarenta dias com paciência, porque não era ainda vindo o esperado; mas no tempo de Cristo cansam-se de esperar três dias, porqte é já outro tempo: é tempo da redenção. Esperar antes de vir o esperado é pensão do tempo; mas, depois de vir o esperado, esperar ainda, é tormento de desesperação. Vede como acudiu a esta razão, e como se conformou com ela o mesmo Cristo.

Pela morte de Cristo abriram-se as portas do céu, e os santos padres do limbo viram logo a Deus. Mas, perguntam os teólogos se a vista de Deus a começaram logo a gozar os padres tanto que Cristo expirou, ou quando sua alma santíssima entrou no limbo. A resolução mais verdadeira é que, tanto que Cristo expirou na cruz, logo os santos padres começaram a gozar a visão beatífica, porque não era justo que o prêmio de seus merecimentos se lhes dilatasse. Se lhes dilatasse? Notável razão aos teólogos! A alma de Cristo desceu ao limbo em dois instantes, e quase todos os que estavam no limbo, havia dois mil, três mil e quatro mil anos, que esperavam. E se esperavam havia quatro mil anos, que importava que esperassem mais dois instantes? Importava muito, porque o tempo era já outro. O tempo passado era de cativeiro, o presente era de redenção; e no tempo do cativeiro esperar pelo prêmio quatro mil anos era conforme a miséria do tempo passado; mas no tempo da redenção esperar só dois instantes era contra a felicidade do tempo presente. Essa diferença há de ter o tempo da redenção do tempo do cativeiro: que no tempo do cativeiro esperavam-se quatro mil anos, no tempo da redenção nem dois instantes se há de esperar.

Mas, se para os do limbo era muito esperar dois instantes, por que não seria também muito para os do mundo esperar três dias: Nos autem sperabamus, et tertia dies est hodie? – Bem tirada e apertada estava a réplica, se dentro dos mesmos termos de uma razão não pudera caber outra maior. Assim como entre o passado e o presente é necessário que haja grande diferença de tempo a tempo, assim no mesmo tempo presente, entre os mais e menos beneméritos, é igualmente necessário que haja muita diferença de pessoas a pessoas: Nos autem sperabamus. – Aquele nos autem: porém nós, parece que justifica ou pode justificar a queixa dos discípulos na dilação dos três dias que Cristo tardava em se lhes manifestar, tendo-o feito aos do limbo no mesmo instante de sua morte. Se para os patriarcas não houve dilação, para nós os apóstolos e discípulos, porque a há de haver: nos autem? – E tem a dúvida uma circunstância, que não só parece alheia da razão, senão ainda de deformidade. Os patriarcas eram do seio de Abraão, os apóstolos eram do seio de Cristo: Abraão era servo de Cristo, Cristo era senhor de Abraão. Pois, é bem que se premeiem logo os do seio do criado, e que estejam esperando os do seio do Senhor: Nos autem sperabamus? – Vejamos quem eram uns e outros, e no mesmo nos autem não só acharemos razão, senão muitas razões para esta diferença de favor que com eles usou Cristo. Quem eram os patriarcas e quem eram os apóstolos? Os patriarcas eram um Adão, a quem todo o gênero humano reconhecia por pai; era um Noé, que salvou ele só o mundo em um navio; era um Moisés, que libertou o povo de Deus do cativeiro, e o levou a Terra de Promissão; era um Jó, exemplo da paciência e da constância; era um Davi, que acudindo pela honra de Deus, vencia gigantes; era um Esdras, restaurador do templo e da religião; era um Jeremias, que ardia e se desfazia em zelo de seu Senhor; era um Isaías, que se deixava serrar pelo meio, por lhe não faltar à fé. E os apóstolos? Tenha paciência onos autem. Eram um Pedro, que negou; um Tomé, que não creu; os demais, que fugiram e deixaram todos a seu Senhor nas mãos de seus inimigos. Pois, seria bem que fossem premiados igualmente os que assim fugiram com os que assim serviram? Os que temeram a morte com os que assim perderam a vida constantemente? Os que à vista de seu reino desampararam, com os que pelejaram por ele sem nunca o verem? Finalmente, os que havia três anos que serviam, com os que tinham trezentos, quinhentos e mil anos de merecimento? Bem clara está a razão, e esta é a primeira.

A segunda, e não menor, é porque os apóstolos eram vivos, os patriarcas eram mortos, e os mortos que acabaram a vida no serviço de seu Senhor devem preferir e preceder aos vivos. Por que razão? Pela do merecimento e pela do impedimento. Pelo merecimento, porque não pode um vassalo chegar a mais que a dar a vida; pelo impedimento, porque o morto não pode requerer nem falar por si, e o príncipe há de ser o requerente dos mortos. Os vivos hão de buscar o príncipe para que os premeie; o príncipe há de ir buscar os mortos para ele os premiar; e assim o fez Cristo, que os foi buscar ao limbo. O despacho mais pronto e mais breve que Cristo deu para o seu reino foi o de Dimas: Hodie mecum eris in paradiso[19]. – Mas ainda ao mesmo Dimas quis Cristo que precedessem os patriarcas, porque, quando os soldados acabaram de matar aos ladrões, já havia tempo que Cristo estava no limbo: Ad Jesum autem cum venissent, viderunt eum jam mortuum[20]. – A brevidade do despacho de Dimas foi do mesmo dia: hodie – a do despacho dos patriarcas foi do mesmo instante. Para Dimas fazer efetivo o seu despacho, foi ele a Cristo; para os patriarcas terem efetivo o seu, foi Cristo a eles. Dimas, como vivo, esperou Cristo que requeresse por si: Domine, memento mei. Os patriarcas, como mortos, não esperou que requeressem eles, mas ele foi o seu requerente, e os foi buscar debaixo da terra para os premiar.

§ VIII

Razões por que nenhuma razão tiveram os peregrinos de Emaús no que cuidavam. Conclusão: o sinal mais certo de termos conhecido a Cristo é desandar o caminho andado, desfazer o feito, desviver o vivido, como os discípulos de Emaús voltando para Jerusalém.

Estas são as razões por que nenhuma tiveram os peregrinos de Emaús no que cuidavam, nem ainda a podiam ter no que não cuidaram, persuadindo-se que o cumprimento da sua esperança lhes tardava, sendo eles os tardos, como Cristo lhes chamou: O stulti, et tardi corde[21]. Tardos no crer, ignorantes no inferir, e impacientes no esperar. Tinham ouvido que o Senhor havia de estar debaixo da terra três dias e três noites, assim como Jonas no ventre da baleia; e, lançadas bem as contas, ainda lhes faltavam para três dias quando menos vinte e duas horas. Eles o confessaram assim quando o disseram: Mane nobiscum, Domine, quoniam advesperascit[22] – Era a hora de se por o sol, e quando se pôs à sua mesa o sol, que na sua imaginação ainda não tinha amanhecido, então o viram e se lhes escondeu juntamente: Cognoverunt eum, et ipse evanuit ab oculis eorum[23]. – Com esta brevíssima vista tudo ficou trocado em um momento: a tristeza trocada em alegria, a desconfiança trocada em credulidade, a esperança trocada em fé, e eles tão trocados dentro e fora de si mesmos, que logo voltaram animosos de Emaús para Jerusalém assim como tinham saído tímidos de Jerusalém para Emaús.

Se fora sermão este discurso, aqui tínhamos um bom ponto com que acabar. Não há sinal mais certo e mais seguro, senhores, de termos conhecido a Cristo, e Cristo nos ter convertido a si que desfazer os caminhos errados de nossa vida pelos mesmos passos por onde os fizemos. Se desencaminhados fomos de Jerusalém para Emaús, postos no verdadeiro caminho, tornemos de Emaús para Jerusalém. Cogitavi vias meas, et converti pedes meos in testimonia tua[24] – dizia um rei tão fraco como Davi, enquanto homem, e tão resoluto e animoso enquanto arrependido e penitente: Considerei os caminhos de minha vida, e logo os desfiz pelos mesmos passos. – É necessário desandar o andado, desfazer o feito e desviver o vivido. Assim o fizeram na mesma hora, não o guardando para o outro dia, os nossos venturosos peregrinos. Na mesma tarde desfizeram o que tinham andado pelos mesmos passos, e assim como tinham deixado Jerusalém, e caminhado para Emaús, assim deixaram Emaús, e voltaram a toda a pressa para Jerusalém. Chegados a Jerusalém, entraram com o alvoroço, que se deixa ver, no cenáculo, onde acharam outros discípulos cheios de excessivo prazer, porque S. Pedro os tinha certificado de que vira ressuscitado o divino Mestre. Contaram o que lhes tinha sucedido, e acrescentaram a alegria de todos com a narração tão notável da sua história, a qual, e a de nossos tempos, acaba aqui.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

[1] No mesmo dia caminhavam dois dos discípulos de Jesus para uma aldeia chamada Emaús (Lc. 13, 24).

(*) Seguindo a numeração da edição original, da alínea de número 166 passamos para a de número 127.

[2] 0 mesmo Jesus ia com ele (Lc. 24, 15).

[3] Que é isso que vós ides praticando e conferindo um com o outro, e por que estais tristes (Lc. 24, I7)?

[4] Por medo dos judeus (Jo. 7. 13).

[5] Ora, nós esperávamos (Lc. 24, 21).

[6] Porque amou muito (Lc. 7.47).

[7] Então Deus lhes enxugará todas as lágrimas de seus olhos, e não haverá mais choro, nem mais gritos, nem mais dor (Apc. 21, 4).

( * ) Ver (*) da página 273.

[8] Na verdade que o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão (Lc. 24, 34).

[9] Disse-lhe Jesus: Maria. Ela, voltando-se, lhe disse: Raboni (Jo. 20, 16).

[10] Eu, se não vir nas suas mãos a abertura dos cravos, e se não meter a minha mão no seu lado, não hei de crer (Jo. 20. 25).

[11] Não a rasguemos, mas lancemos sortes sobre ela (Jo. 19, 24).

[12] Fez Deus dois grandes luzeiros, um maior, que presidisse ao dia, e outro mais pequeno, que presidisse à noite (Gên. 1, 16).

[13] Haverá sinais no sol e na lua (Lc. 21, 25).

[14] Na terra consternação das gentes. pela confusão em que as porá o bramido do mar (ibidem).

[15] O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue (At. 2, 20).

[16] E me revelaste o segredo e o escondido do teu saber (SI. 50, 8).

[17] Veio para o que era seu, e os seus não o receberam (Jo. 1, 1 I ).

[18] E excitou-se entre eles a questão sobre qual deles se devia reputar o maior (Lc. 22, 24).

[19] Hoje serás comigo no paraíso (Lc. 23, 43).

[20] Tendo vindo depois a Jesus, viram que já estava morto (Jo. 19, 33).

[21] Ó estultos e tardos de coração (Lc. 24, 25).

[22] Fica em nossa companhia, Senhor, porque é já tarde (ibid. 29).

[23] E o conheceram, mas ele desapareceu-lhes de diante dos olhos (ibid. 31).

[24] Considerei os meus caminhos, e voltei os meus pés para os teus testemunhos (SI. 118, 59).