Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de Nossa Senhora da Conceição, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO

Na igreja da Senhora do Desterro. Bahia, ano de 1639.

De qua natus est Jesus[1].

§I

Concordâncias entre lugar; pessoa e tempo entre o Evangelho do dia, a solenidade da Conceição e a igreja do Desterro. Argumento: razões de correspondência entre a Conceição da Virgem e o seu desterro.

Lugar pessoa e tempo são aquelas três circunstâncias gerais com que todo o orador se deve medir, se não quer faltar nem exceder as leis desta nobilíssima arte, que na natureza racional é a primogênita. Assim o desejei fazer hoje. E posto que a pessoa, ou pessoas, se concordam facilmente com o lugar e com o tempo, nem o tempo com o lugar, nem o lugar cem o tempo entre si parece que têm possível acomodação. As pessoas são as que se nomeiam nas palavras que propus, Jesus e Maria; o lugar é esta nossa igreja da Senhora do Desterro; e o tempo é o dia de sua puríssima Conceição. As pessoas se concordam facilmente com o lugar do desterro, porque a Mãe e o Filho ambos foram desterrados; e com a mesma propriedade se concordam com o dia da Conceição, porque a Mãe foi a concebida sem pecado original, e o Filho o que a remiu e preservou dele; mas o desterro e a Conceição são, dois extremos tão remotos e tão distantes, que muito menor distância é a de Nazaré, onde a Senhora foi concebida, ao Egito, para onde foi desterrada. Na consideração desta grande dificuldade quase estive deliberado a me deixar vencer dela, não me faltando exemplos muito autorizados dos que, não só com perdão, mas com aplausos o deixam, reputando esta circunstância, ou por supérflua e alheia do mistério, ou por menos necessária aos ouvintes. Mas porque os que vêm de tão longe a este deserto, trazidos só da nova devoção da Senhora do Desterro, se não ouvem falar do mesmo desterro, em qualquer dia que seja, tornam desconsolados, para satisfazer a piedade do seu afeto, e lhes compensar gostosamente o trabalho das passadas, não pude deixar de insistir outra vez no intento começado. Invocando, pois, o favor da Santíssima Virgem, debaixo de ambos os nomes, e tornando a considerar com maiores impulsos, se entre o mistério da sua Conceição e do seu desterro podia descobrir alguma razão de correspondência, a que se me ofereceu foi tão alta, tão própria e tão cabal, que ela será a matéria do sermão e o emprego de todo o meu discurso. Para que eu possa dizer qual é, e provar o que disser de tal modo que fique persuadido, peçamos à mesma Esposa do Espírito Santo, que, como Senhora do Desterro e Senhora da Conceição, nos assista com sua graça. Ave Maria.

§II

Como se podem corresponder, e com grande propriedade, dois mistérios tão opostos como a conceição e o desterro da Virgem? O privilégio singular da Conceição sem pecado, ainda comparado com a inefável dignidade de Mãe de Deus, o maior e mais excelente benefício de que a Virgem Maria é devedora a seu Filho.

Depois que propus a matéria deste sermão, e sem a declarar encareci tanto a alteza e propriedade dela, razão tenho para me parecer que estou vendo a todos os que me ouvem tão suspensos como alvoroçados, no desejo e curiosidade de saber qual seja. E bem creio que a nenhum tenha vindo ao pensamento qual possa ser a correspondência entre dois mistérios tão diversos, e em todas suas circunstâncias tão encontrados. A Conceição se obrou no primeiro instante da vida da Senhora, o desterro na idade em que já era mãe; a Conceição em Galiléia, terra de fiéis, o desterro no Egito, região de gentios; a Conceição a livrou do pecado original, e o desterro a sujeitou a todos os trabalhos de que foi causa o mesmo pecado. Como se podem logo corresponder, e com grande propriedade, dois mistérios tão opostos? Já o digo em duas palavras, para depois o demonstrar em muitas. Digo que os mistérios do desterro e Conceição da Mãe de Deus se correspondem não só altíssima mas também propriissimamente, porque o desterro da Senhora foi o desempenho da sua Conceição, porque tudo o que deveu a seu Filho na Conceição lhe pagou no seu desterro. Dai-me agora atenção.

O maior e mais excelente benefício de que a Mãe de Deus é devedora a seu Filho, não é a dignidade de a fazer sua Mãe, senão o privilégio de ser concebida sem pecado. Ambos foram benefícios singulares, que nem se concederam nem se hão de conceder a outrem: Nec similem visa est, nec habere sequentem; - mas a singularidade de ser concebida sem pecado, maior e muito mais excelente que a de ser Mãe de Deus. Não tenho menos legítima prova, nem menos qualificado autor desta que pode parecer duvidosa suposição, que a mesma Mãe que concebeu ao Filho de Deus, e foi concebida em sua graça. Concluído o mistério da Encarnação do Verbo, e despedido o anjo embaixador, partiu logo a Virgem, já Mãe de Deus, a visitar Santa Isabel, a qual a recebeu, não nos braços, como faz crer ao vulgo a fantasia dos pintores, mas prostrada a seus sacratíssimos pés como se deve ter por certo, e as palavras que disse foram estas: Unde hoc mihi, t veniat mater Domini mei ad me (Lc. 1, 43)? De onde a mim tanto bem, que veja eu em minha casa a Mãe de meu Senhor? - Assim falou a Mãe, que havia seis meses o era do Batista, informada já por espírito profético da fé do mistério, e confirmando o que dizia com os saltos e alvoroços do maior dos profetas, que tinha em suas entranhas. Mas que responderia a tudo isto a Virgem Maria? Magnificat anima mea Dominum. Et exultavit spiritus meus in Deo saltari meo (Lc. 1, 46 s): A minha alma louva e glorifica ao Senhor, e o meu espírito - que é a parte superior da mesma alma - se alegrou em Deus meu Redentor. - Notai e reparai muito nestas últimas palavras. Em Deus meu Redentor, diz, e não em Deus meu Filho. Pois, se o parabém que dá Isabel à Senhora é de ser Mãe de Deus: Ut veniat Mater Domini mei ad me - por que não diz que se alegrou seu espírito em Deus seu Filho, senão em Deus seu Redentor? Porque muito mais estimou a Virgem imaculada, e muito mais alto lugar teve em seu espírito a imunidade com que o Filho a preservou enquanto Redentor que a dignidades que a sublimou enquanto Filho. Enquanto Redentor remiu-a do pecado original na Conceição, enquanto Filho fê-la Mãe de Deus no parto; e no Juízo da mesma Senhora, em que não podia haver erro, mais digno de estimação foi o privilégio de ser concebida sem pecado que a dignidade de ser Mãe de Deus. A razão para os teólogos é por que a dignidade de Mãe de Deus pertence às graças gratis datas e a de ser concebida sem pecado à santificante. E como o privilégio singular da Conceição sem pecado, ainda comparado com a inefável dignidade de Mãe de Deus, é maior e mais excelente benefício, muito mais obrigada e devedora ficou Mãe de Deus a seu Filho pela isentar e remir do pecado original que pela fazer Mãe sua.

§ III

Como se desempenhou a Senhora da dívida de sua Conceição. Adão, pior e mais cruel Herodes que o de Jerusalém. O nobilíssimo modo de Redenção com que a mesma Mãe remiu também a seu Filho livrando-o da espada de Herodes. A redenção antecipada de Maria e a redenção antecipada de Davi.

Assentada a verdade desta gloriosa suposição, segue-se agora ver como a Senhora podia satisfazer a esta grandíssima dívida, e como com efeito se desempenhou dela, e a pagou. Para inteligência deste ponto, que é o fundamento do nosso discurso, hão de saber os que ainda o não têm advertido que neste mundo não houve um só Herodes, senão dois, e o primeiro muito pior e mais cruel que o segundo. Este segundo foi o que reinava em Jerusalém quando Cristo nasceu; o primeiro foi o que deu ocasião a que o mesmo Cristo nascesse e Deus se fizesse homem, o qual se chamou Adão; e foi Adão pior e mais cruel Herodes que o de Jerusalém, porque Herodes matou os inocentes de dois anos para baixo, e Adão mata a todos seus descendentes no mesmo instante em que são concebidos. Os que matou Herodes, fê-los mártires, os que mata Adão fá-los pecadores. E como Cristo na Conceição de sua Mãe a livrou da morte em que, como filha de Adão, havia de ser concebida, e a mesma Mãe desterrando-se livrou ao mesmo Cristo da morte em que, como inocente de Belém, havia de padecer a mãos de Herodes, esta foi a igual correspondência, e o benefício e preço também igual com que a Senhora, por meio do seu desterro, pagou ao Filho tudo o que lhe devia na Conceição; e por este modo, assim como o Filho foi especial Redentor da Mãe, porque a livrou da morte a que estava sentenciada, por haver de nascer de Adão, assim a Mãe foi especial Redentora do Filho, porque o livrou da morte a que estava sentenciado, por ter nascido em Belém. Ninguém ignora que Cristo, Senhor nosso, é Redentor universal de todos os homens, porque a todos remiu do cativeiro e da morte, a que todos ficamos sujeitos por filhos de Adão; e se a Virgem Santíssima também é filha de Adão, em que consistiu a especialidade com que seu Filho a remiu a ela, e não aos demais? Consistiu em que aos demais remiu-os do cativeiro depois de cativos, e da morte depois de mortos; porém, a sua Mãe antes de morta, nem cativa, a remiu antecipadamente, para que o não fosse. E tal foi o nobilíssimo modo de redenção com que a mesma Mãe remiu também a seu Filho, porque o remiu das mãos de Herodes antes de cair nelas, e da morte que lhe queria dar antes que lha desse: Futurum est enim ut Herodes quaerat puerum ad perdendum eum[2].

E que este modo de livrar antecipadamente da morte seja verdadeiro remir, ouvi a prova que em matéria tão debatida porventura nunca ouvistes, nem se pode desejar mais adequada. Depois da famosa vitória contra o gigante, Davi, que não só era valente, mas poeta e músico, compôs e cantou a Deus em ação de graças um Salmo, no qual diz com termos esquisitos não que o Senhor o livrara, mas que o remira da espada maligna: Redemisti servum tuum de gladio maligno[3]. - Porventura o gigante matou, feriu ou tocou a Davi com a sua espada? Tão longe esteve disso que nem a tirou da bainha. Pois, se a espada de Golias não partiu a Davi desde a cabeça até os peitos, como costumam ser os golpes dos gigantes; se lhe não despedaçou membro por membro o corpo em tão miúdos retalhos que os desse a comer, como ele dizia, às aves; e, finalmente, se não chegou a executar em Davi nenhuma daquelas fúrias e crueldades, pelas quais lhe chamou espada maligna, por que diz que Deus o remiu dela: Redemisti servum tuum a gladio maligno? - Porque, para Deus remir a Davi das mãos e da espada do gigante, não era necessário que Davi caísse nas suas mãos, nem que ele o ferisse com a espada. Antes, por isso o remiu com redenção mais nobre e mais perfeita, porque antes de poder lançar mão à espada já estava livre da sua espada e das suas mãos, e vencedor do mesmo Gigante. Se Deus, depois de ferido Davi, o sarara, ou depois de morto o ressuscitara, seria um modo de o livrar muito milagroso, mas não seria o mais nobre nem o mais honrado, assim para Deus como para Davi; mas porque Deus o preservou da morte e das feridas, e do menor toque da espada do gigante, não lhe permitindo que a arrancasse contra ele, por isso diz não simplesmente que o livrou, senão própria e nomeadamente que o remiu: Redemisti servum tuum - porque este modo antecipado, não só é o mais nobre e mais perfeito, senão o nobilíssimo e perfeitíssimo de remir.

Este foi o sucesso da batalha de Davi. Mudemos agora a campanha. Temos nela, não um gigante, senão dois gigantes, nem um Davi, senão dois Filhos de Davi. Os dois gigantes são o pecado original e Herodes. Os dois filhos de Davi são Maria e Jesus. Ambos os gigantes estão poderosamente armados, e ambos com espadas, que por isso se chamam malignas, porque a ninguém perdoam, a todos matam. A espada do original mata a alma, a espada de Herodes mata o corpo, e entre o perigo quase inevitável destas duas mortes se empenharam reciprocamente a Mãe e o Filho: o Filho a remir antecipadamente a Mãe da espada do original, e a Mãe a remir também antecipadamente o Filho da espada de Herodes. Dificultoso empenho por certo, mas venturosamente executado, porque, matando e manchando a espada do original a todos os filhos de Adão, só Maria ficou isenta do golpe e da mancha, e matando a espada de Herodes a todos os inocentes de Belém, sem nenhum se lhe poder ocultar, só Jesus escapou dela livre e vivo! Vede agora se se correspondem bem o mistério da Conceição com o do desterro. O filho na Conceição Redentor da Mãe, porque a remiu da espada do original: a Mãe no desterro Redentora do Filho, porque o remiu da espada de Herodes; o Filho na Conceição empenhando a Mãe na maior dívida: a Mãe no desterro desempenhando-se dela e pagando-a, não só com igual, mas com maior preço.

§ IV

Beira dificuldade que repugna ser a paga da Mãe no desterro igual à Filho na Conceição: a vida da Mãe, que o Filho preservou e remiu Conceição, foi a vida espiritual, e a vida do Filho, que a Mãe preservou e remiu no desterro, é a vida corporal. Que proporção tem a esmola que se dá ao e a vida do pobre, que se sustenta com a esmola, para Deus a pagar com a bem-aventurança? Por que a paga com que a Virgem satisfaz por meio de seu desterro à dívida que contraiu na Conceição, não só foi igual à mesma mas a excedeu milhares e milhares de vezes.

Bem estou vendo que também o meu discurso se tem empenhado e endividado com os doutos em algumas suposições que ele foi envolvendo na paridade que sigo entre um e outro mistério; mas, respondendo, como agora farei, à dificuldade de todas, delas ficará mais provado e manifesto quão adequadamente pagou a Mãe no seu desterro o que devia ao Filho na sua Conceição. Primeiramente a vida de que priva o pecado original, como dissemos, é da alma; e a vida de que Herodes privou aos inocentes, e quis também tirar a Cristo, era a vida do corpo: logo, se eu digo que a Senhora pagou com uma vida a dívida da outra, parece que a paga de nenhum modo pode ser igual à dívida, porque a vida da Mãe, que o Filho preservou e remiu na Conceição, foi a vida espiritual, e a vida do Filho, que a Mãe preservou e remiu no desterro, é a vida corporal; e a vida espiritual é tanto mais nobre e de tanto maior preço que a corporal quanto vai da alma ao corpo. Absolutamente, e falando de sujeitos iguais, assim é, que a vida espiritual é muito mais nobre e de muito mais excelente valor que a vida corporal; mas no nosso caso a vida corporal, que a Senhora remiu e salvou das mãos de Herodes, foi a vida corporal de Cristo, a qual vida. posto que corporal, por ser vida de Deus, excede infinitamente a vida espiritual, não só da mesma Virgem Maria, senão de todas as puras criaturas possíveis.

Notável coisa é que no dia do Juízo, havendo de dar Cristo, Senhor nosso, a bem-aventurança em prêmio das obras de misericórdia, só nomeie as corporais, e das espirituais nenhuma menção faça. Vinde, benditos de meu Pa dre, a gozar a glória do céu: Esurivi enim, et dedistis mihi manducare; sitivi, et dedistis mihi bibere (Mt. 25, 35): Porque tive fome, e me destes de comer, tive sede, e me destes de beber. - É certo que o prêmio deve ser proporcionado ao merecimento: o prêmio da bem-aventurança, que consiste na vista clara de Deus, é espiritual e eterno; o merecimento, que consiste na esmola com que se dá de comer e beber ao pobre, é corporal e temporal em si, e corporal e temporal no efeito, porque a vida do pobre, que com ela se sustenta, também é corporal e temporal. Que proporção tem logo, nem a esmola que se dá ao pobre nem a vida do pobre, que se sustenta com a esmola, para Deus a pagar com a bem-aventurança, pois vem a ser pagar a vida corporal e temporal com a vida espiritual e eterna? Não há dúvida que, absolutamente falando, nenhuma proporção tem a esmola com a bem-aventurança, nem a vida corporal e temporal do pobre, que dela se sustenta na terra. com a vida espiritual e eterna, que há de gozar no céu. Mas vede o que diz o Senhor. Não diz: porque destes de comer e beber ao pobre - senão: porque me destes de comer e beber a mim: Quia dedistis mihi manducare, et dedistis mihi bibere; e como a vida corporal e temporal, que se sustenta e conserva no pobre, por privilégio e excesso da divina misericórdia, passa a ser vida de Cristo, essa vida de Cristo sustentada pela esmola, posto que seja vida corporal e temporal, não só é igual no preço à vida espiritual e eterna da bem-aventurança, mas como vida de Deus a excede infinitamente. O mesmo digo, e muito mais e melhor no nosso caso, porque a vida corporal do pobre, que sustentou a esmola, era vida de Cristo só por aceitação e privilégio; porém, a vida corporal, que a Senhora conservou e salvou, era própria, natural e realmente vida do Filho de Deus e seu. E como a soberana Virgem, com a antecipada preservação desta vida corporal de seu Filho, pagou a preservação também antecipada da vida espiritual sua, daqui se segue que a paga com que satisfez por meio do seu desterro à dívida que contraiu na Conceição, não só foi igual à mesma dívida, mas a excedeu milhares e milhares de vezes, e com excesso de preço, que nem o mesmo Deus o pode reduzir a número, porque foi infinitamente maior.

Competiu a Senhora nesta satisfação com seu Filho, não só em lhe pagar antecipadamente a graça recebida na Conceição, que foi de preço, posto que singular, finito; mas pagando-lhe o preço da mesma graça, que verdadeiramente foi infinito, porque foi o sangue derramado na cruz, com que especialmente a remiu. Como se dissera a Senhora: Vós, meu Filho, para me remir do pecado original comprastes-me aquela graça com o preço infinito de vosso sangue e da vossa morte; pois eu hei-vos de pagar esta fineza com preço também infinito, que é o de vosso mesmo sangue, que quis derramar Herodes, e da vossa mesma vida, que eu vos livrei e salvei da tirania de suas mãos. Vós destes o preço, e eu guardei-o, que não foi menos que dar-vo-lo, porque, se eu o não guardara, não o pudéreis vós dar quando o destes. E tão infinito foi quando o destes por mim na minha Conceição, como quando eu vo-lo guardei com o meu desterro. Feche-nos todo este discurso Hugo Cardeal, em próprio e verdadeiro sentido, posto que com palavras menos elegantes. Fala do preço de nossa Redenção, à qual Davi chama copiosa: Copiosa apud eum redemptio[4]- e diz assim: Copiosa dicitur redemptio, quia pretium sufficiens fuit ad redeniptionem mille millium mundorum. Cum enim sit Christus pretium nostrum, qui est verus Deus et verus honro, in infinitum excedit rem redemptam: Chama Davi copiosa a Redenção, porque o preço dela foi suficiente a remir mil milhares de mundos. E a razão desta suficiência sem número nem medida é porque o preço da mesma Redenção foi a vida de Deus humanado, que excede infinitamente todas as coisas remidas, E como esta mesma vida de Deus foi a que a Senhora remiu e salvou das mãos de Herodes por meio do seu desterro, bem provado e demonstrado fica que a dívida contraída na Conceição, em que seu Filho a remiu do pecado, não só a pagou a Mãe super abundantemente quanto ao benefício da graça recebida, mas também infinitamente quanto ao preço dela, pois o preço foi a vida do mesmo Cristo, agora remida, para depois ser redentora.

§V

Segunda repugnância que dificulta ser a paga da Mãe no desterro igual à dívida da Filho na Conceição: Cristo remiu a sua Mãe morrendo na Cruz por ela, e a Senhora remiu e salvou seu Filho da espada de Herodes, não morrendo, senão desterrando-se somente. Em quanto excede o desterro à morte. Se os filhos de Israel estavam todos vivos em Babilônia, como os representou Deus ao profeta Ezequiel em ossos descarnados e secos?

A segunda dificuldade que repugna, ou a segunda repugnância que dificulta ser a paga da Mãe no desterro igual à divida do Filho na Conceição parece tão manifesta e palpável que se vê com os olhos e se toca com as mãos, porque Cristo remiu a sua Mãe do pecado original morrendo na cruz por ela, e a Senhora remiu e salvou a seu Filho da espada de Herodes, não morrendo, senão desterrando-se somente. Logo, tanto faltou à paga para ser igual à dívida quanto falta ao desterro para ser morte. Concedo que assim é, mas digo que para o desterro ser morte nenhuma coisa lhe falta. O desterrar-se é enterrar-se; e se há alguma diferença entre a morte e o desterro, é que o desterro não só morte, senão morte e sepultura. A morte mata, mas não sepulta; e sendo assim, que para ser morto e sepultado não basta só a morte, para ser morto e sepultado basta só o desterro. Não pode negar esta igualdade ou este excesso da paga o mesmo acredor da dívida da Conceição, que é Cristo, porque tudo quanto tenho dito do desterro são palavras tiradas da sua própria boca enquanto Deus. Ouvi a maior e mais literal prova deste que parece e não é encarecimento.

Levou Deus ao profeta Ezequiel a um campo, coberto todo de ossos mirrados e secos, e era o campo tão grande que, não chegando a esfera dos olhos aonde sua largueza se estendia, foi necessário que o mesmo Deus lho fosse mostrando por partes: Et circumduxit me per ea in gyro: erant autem multa valde[5]. - Sabes, Ezequiel, diz o Senhor, para que te mostrei esta multidão de ossos? É para que lhes pregues como pregador, e lhes anuncies como profeta, dizendo ou bradando a todos desta maneira: Ossa arida, audite ver-bum Domini. Haec dicit Dominus Deus ossibus his: Ecce eego intromittam in vos spiritum, et vivetis (Ez. 37, 4 s): Ossos secos, ouvi a palavra de Deus. A todos estes ossos me manda dizer Deus que lhes há de introduzir outra vez o espírito, e que todos hão de viver. -Pregado isto em geral, não pouco admirado Ezequiel do que dizia, e não entendia, passou a referir em particular o que Deus, parte por parte, lhe tinha ordenado, e ao compasso das palavras se ia seguindo subitamente, com maior admiração, o efeito delas. A primeira coisa que se viu e ouviu naquele imenso auditório foi um grande rebuliço, movendo-se todos os ossos, e indo cada um buscar a juntura dos outros do mesmo corpo; depois de juntos, apareceram os nervos, que os ataram; depois de atados, seguiu-se a carne, que os encheu; e depois de cheios estendeu-se por cima a pele, que os vestiu. Mas, posto que as estátuas dos corpos por fora formadas em todos os membros, e por dentro organizadas com tudo o que pedia a harmonia de cada qual, estavam perfeitas, elas, contudo, corno verdadeiramente mortas e insensíveis, de nenhum modo se moviam. Então disse Deus ao profeta que de todas as quatro partes do mundo chamasse o espírito, para que se introduzisse e animasse aqueles cadáveres, e no mesmo tempo em que o espírito se introduziu neles, todos se ergueram vivos e se puseram em pé, fazendo um exército inumerável: Et ingressus est in ea spiritus, et vixerunt; steteruntque super pedes suos, exercitur grandis nimis valde (Ez. 37, 10). - Isto é o que viu Ezequiel, não sabendo se o que significava aquela tão extraordinária visão era coisa passada ou futura; e verdadeiramente ainda era mais, porque continha o passado, o futuro e também o presente.

Enfim, depois de todo aquele aparato de circunstâncias tão várias e portentosas, declarou Deus a Ezequiel o que significavam, e disse: Haec ossa universa domas Israel est (ibid. 11): Estes ossos são todos os filhos de Israel que hoje estão desterrados em Babilônia contigo. Admirável caso, e se o mesmo Deus o não dissera, incrível! Os filhos de Israel em Babilônia estavam vivos. Pois, se estavam vivos, como os representa Deus ao profeta em ossos descarnados e secos? Se estavam vivos, como ainda depois de vestidos de carne e pele lhes chama o mesmo Deus mortos: Insuffla super interfectos istos[6]? - Os mesmos homens mortos e vivos juntamente? Sim, porque naquele tempo e naquele lugar os filhos de Israel estavam desterrados, e o desterro e a morte, posto que aos olhos humanos pareçam coisas diversas, no juízo e estimação de Deus são a mesma coisa. O desterro é como a morte, e a morte é como o desterro; e se algum excede ao outro na miséria, não é a morte ao desterro, senão o desterro, à morte, porque, se o desterrar-se da pátria é morrer, o viver no deserto é enterrar-se. Por isso o oráculo divino uma vez lhes chamou cadáveres, e outra vez ossos secos: cadáveres como mortos, e ossos secos como sepultados. Não é comento meu, ou de algum expositor humano, senão declaração do mesmo Deus, falando com os mesmos desterrados: Ecce ego aperiam tumulos vestros, et educam vos de sepulchris vestris, populus meus, et inducam vos in terram Israel (Ez. 37, 12): Consolai-vos, povo meu, filhos de Israel diz Deus porque ainda que neste desterro de Babilônia estais mortos e sepultados, eu abrirei os vossos túmulos, e vos desenterrarei das vossas sepulturas, e vos restituirei à vossa pátria ressuscitados e vivos: Cum dedero spiritum meum in vobis, et vixeritis[7].

De maneira que, por testemunho irrefragável e oráculo infalível da Suprema Verdade, o perder a pátria é morrer, o morrer no desterro é sepultura, e o tornar para a pátria ressurreição. Ninguém argúa logo, nem se atreva a afirmar que na circunstância de morrer não foi a paga da Senhora igual à dívida; antes, segundo o rigor da palavra divina, devemos todos confessar que foi muito avantajada na duração, porque a sepultura do Filho morto escassamente chegou a três dias, e a sepultura da Mãe, também morta, porque desterrada, durou sete anos inteiros, verificando-se no seu desterro do Egito o que Deus disse aos desterrados de Babilônia: Aperiam tumulos vestros, et educam vos de sepulchris vestris.

§ VI

Terceira repugnância: o preço da cruz todo foi à custa do Filho, e não da Mãe, e o preço do desterro, não só foi à custa da Mãe, senão da Mãe e juntamente do Filho. A manifesta e suma diferença da Mãe no sentimento das penas do Calvário, e do Filho no sentimento das penas do desterro. O mistério com que a Senhora junto à cruz se chama Mãe e mulher; e Jesus no desterro só se chama Menino, e não filho.

A Virgem Maria, verdadeira terra e pátria do Filho de Deus. Por que nos chama a Igreja os desterrados filhos de Eva, e não os desterrados filhos de Adão?

Parece-me que ninguém haverá tão incrédulo que, depois de ouvir o que até os ossos secos ouviram, duvide a igualdade da correspondência com que a Mãe, livrando ao Filho da morte por meio do seu desterro, pagou o que devia ao mesmo Filho em a preservar e livrar, por meio também da morte. na sua Conceição. Mas desta mesma igualdade, assim provada e concedida. resulta outra nova objeção, a que podemos chamar a terceira dificuldade, e parece que tem muito dificultosa resposta. Quando o Filho morreu na cruz para salvar e livrar a Mãe do pecado original, morreu ele só, e a Mãe não; quando a mesma Mãe se desterrou ao Egito, para salvar e livrar o Filho da tirania de Herodes, não só se desterrou a Mãe, senão também o Filho; logo, em um e outro modo de salvar houve grande diferença, porque o preço da cruz todo foi à custa do Filho, e não da Mãe, e o preço do desterro, não só foi à custa da Mãe, senão da Mãe e juntamente do Filho. Assim parece, mas não foi assim. A vantagem do custo, se a houve, toda foi da parte da Mãe e do desterro, e não da parte do Filho e da cruz.

A primeira razão desta resposta é por que muito mais acompanhou a Mãe ao Filho nas dores da cruz do que o Filho à Mãe nos sentimentos do desterro. Quem poderá negar que muito mais padeceu a Senhora ao pé da cruz a morte do Filho, do que podia padecer o Filho nos braços da Mãe o desterro de ambos? Estando em pé junto à cruz, tudo o que padecia o Filho no corpo, padecia a Mãe na alma. E, deixados os encarecimentos, não só da conformidade recíproca, mas da identidade deste padecer, que consideram e celebram os santos, o que não admite dúvida é a fé do que profetizou Simeão Et tuam ipsius animam pertransibit gladius[8]; - e se os fios da mesma espada trespassavam o coração de ambos, vede se o preço da Redenção se pagou só à custa do Filho! Por isso a Teologia à boca cheia não duvida conceder à Mãe o título de Co-Redentora. Mas passemos do Calvário ao desterro. Cristo, Redentor nosso, como por amor de nós, não só se quis fazer homem, senão também menino. na idade da infância, em que sucedeu o desterro, só tinha o conhecimento e sentimento das coisas que costumam ter os meninos naquela idade[9]. Isto se entende, não das ciências sobrenaturais, com que conhecia tudo, mas da ciência natural aqüista, que é a que naturalmente influi nos atos do sentimento. E daqui se segue que o soberano Menino não sentiu o seu desterro, nem o da Mãe, porque o não conhecia. Ambos saíam de Nazaré e perdiam a pátria, mas o Menino nem conhecia a pátria nem a perda. E porque o conhecimento dos males é a medida do sentimento deles, esta foi a manifesta e suma diferença da Mãe no sentimento das penas do Calvário. E já pode ser que este fosse o mistério com que a Senhora junto à cruz se chama Mãe e mulher, e o Menino no desterro só se chama Menino, e não filho. A senhora, junto à cruz, Mãe e mulher: Stabat juxta cru-cem Jesu Mater ejus, Mulier ecce filius tuus[10] - e o Menino no desterro, só Menino, e não filho: Tolle puerum, et Matrem ejus[11]. - E por quê? Porque a Senhora na cruz sentiu as penas do Filho, como Mãe, pelo afeto do sangue, e como mulher, pelo conhecimento e reflexões da idade; porém o Menino no desterro, nem como Filho sentia a peregrinação da Mãe, nem como Menino a sua, porque nem uma nem outra conhecia. Esta é a primeira razão ou resposta da nossa dúvida, não menos qualificada que com a autoridade do sapientíssimo Abulense.

Agora direi eu a minha. Digo que o preço da Redenção com que a Senhora, por meio do seu desterro, remiu e salvou o Filho das mãos de Herodes, todo foi à custa da mesma Mãe, e nada do Filho, porque só a Mãe foi a desterrada, e o Filho não. Mas como pode isto ser, se a mesma Mãe, partindo e caminhando para o desterro. levou o Filho em seus braços? Por isso mesmo. A Senhora, saindo de Nazaré, desterrou-se, porque Nazaré era a sua terra e a sua pátria; porém, o Filho, sendo levado nos braços da Senhora, não se desterrou, porque a terra e pátria do Filho de Deus e da Virgem é a mesma Virgem de quem nasceu. Haverá quem nos diga e prove isto? Sim, e não menos que o pai ou avó de ambos, Davi: Benedixisti, Domine, terram tuam (SI. 84, 1): Vós, Senhor -diz Davi falando com Deus fizestes bendita a vossa terra. Toda esta terra em que vivemos é de Deus, mas depois do pecado de Adão não é terra bendita, senão maldita: Maledicta terra in opere tuo[12]. - Que terra logo é esta bendita, a quem Davi chama terra de Deus? É aquela a quem disse o anjo: Benedicta tuin mulieribus[13] - e a quem disse Isabel: Benedicta tu inter mulheres, et benedictus fructus ventris tui[14]. - E por que razão a bendita entre todas as mulheres, que é a Virgem Maria, se chama terra de Deus: terram tuam? Porque depois que Deus nasceu nela e dela, ela é a sua terra e a sua pátria: Terram tuam, id est beatam Virginem - diz Hugo de Santo Caro. E como a bendita e benditíssima Virgem era a terra e pátria de seu filho, nesta jornada ao Egito a Mãe foi a desterrada, e o Filho não. A Mãe a desterrada, porque deixou a sua terra, que era Nazaré; mas o Filho de nenhum modo desterrado, porque levava a sua terra consigo, ou a sua terra o levava a ele: Terram tuam.

Não sei se reparastes bem em uma coisa, que cada dia repetimos, e é chamar-nos a Igreja exules filii Evae: os desterrados filhos de Eva. - Nós não só somos filhos de Eva, senão de Eva e de Adão, e não só Eva foi desterrada do paraíso, senão também Adão, e juntamente com ela. Pois, se o pai e a mãe ambos foram desterrados, nós, que somos filhos de ambos, por que havemos de ser os desterrados filhos de Eva, e não os desterrados filhos de Adão? Porque falaria muito errada e muito impropriamente quem de outro modo nos chamasse. É verdade que Adão e Eva ambos foram lançados do Paraíso, mas a desterrada só foi Eva, Adão não, E por quê? Porque Eva foi criada no paraíso, Adão não, senão fora dele. E como Eva foi criada no paraíso, quando Deus a lançou do paraíso, então verdadeiramente foi desterrada; e por isso nós propriamente somos os desterrados filhos de Eva. Pelo contrário, Adão, quando foi lançado do paraíso, tão fora esteve de ser desterrado que então é que tornou para a sua terra, como o mesmo Deus lhe disse: Revertatur in terram de qua sumptus est (Gên. 3, 19): Torne para a terra de que foi formado. - Não pode haver história nem profecia mais própria do nosso caso. A terra de que foi formada a humanidade do segundo Adão, Cristo, foi a terra bendita e virginal da sempre Virgem Maria; Terra de qua sumptus est. -Pois, assim como sendo lançados do paraíso Adão e Eva, Eva só foi a desterrada, porque saiu da sua pátria, e Adão não foi desterrado, porque, indo para a terra de que fora formado, foi para à sua terra, assim na jornada do Egito, a Mãe e o Filho ambos saíram de Nazaré, mas só a Mãe, corno segunda Eva, foi desterrada, e o Filho, como segundo Adão, não. porque a Mãe deixou a terra em que tinha nascido, e o Filho levava consigo, ou era levado, da terra donde nascera: Terra de qua sumptus est.

§ VII

Pelo benefício e efeito do desterro sobre o da Encarnação ficou o Filho de Deus e da Virgem duas vezes obrigado a sua Mãe, e dobradamente devedor seu. A santificação da palavra hoje no Salmo Segundo de Davi.

Respondidas por esse modo as dificuldades, e não só satisfeitas e desfeitas as objeções, mas convertidas todas em vantagens, bem provada parece que fica a verdade do nosso assunto, e quão comprida e super abundantemente pagou a Virgem, Senhora nossa, por meio do seu desterro, as finezas que devia ao Filho no singular privilégio da sua puríssima Conceição. E se dermos um passo adiante sobre este mesmo fundamento, com verdade não menos evidente podemos inferir que não só ficou a dívida, de que era acredor o Filho, paga e satisfeita, mas o mesmo Filho novamente endividado, e dobradamente devedor à Mãe. Com elegante apóstrofe, disse S. Metódio à Virgem Maria que, devendo todos a Deus tudo quanto têm, só ela tem sempre por devedor ao mesmo Deus: Euge quae Deum debiterem semper habes. - A razão natural deste dito é fundada naquela certa filosofia, com que disse Aristóteles que aos pais ninguém pode pagar o que deve, porque lhes devemos o ser e a vida. E daqui se segue que, pelo benefício e efeito do desterro sobre o da Encarnação, ficou o Filho de Deus e da Virgem duas vezes obrigado a sua Mãe, e dobradamente devedor seu, como dizia, porque o ser e a vida que uma vez lhe tinha dado pela Encarnação, livrando-o por meio do seu desterro das mãos de Herodes, lha tornou a dar outra vez, como se outra vez o gerara.Prove o Pai o que dizemos da Mãe. Falando o Eterno Padre cem o mesmo Filho seu e da Virgem no Salmo segundo diz, que é seu Filho, e que o gerou hoje: Filius meus es tu; ego hodie genui te[15]. - A palavra hoje significa dia determinado, e não há dúvida que fala do dia da Encarnação, porque o mesmo Verbo que o Padre tinha gerado ah aeterno enquanto Deus, naquele dia o gerou temporalmente enquanto homem. E isto se confirma claramente de tudo o que o mesmo Padre continua a dizer no mesmo salmo. Mas não pára aqui a significação da mesma palavra hoje, porque Santo Ambrósio, Santo Hilário, S. João Crisóstomo, e outros graves expositores, dizem que não só significa determinadamente o dia da Encarnação, senão também o da Ressurreição. Têm por si o texto do apóstolo S. Paulo, o qual, depois de referir as mesmas palavras ego hodie genui te, acrescenta que, quando Deus tornou a introduzir a seu Filho no mundo, mandou a todos os anjos que o adorassem: Cum iterum introducit primogenitum in orbem terrae, dicit: Et adorent eum omnes angeli ejus (Hebr. 1, 6). - De sorte que duas vezes introduziu o Eterno Padre, a seu Filho neste mundo: a primeira vez, no dia da Encarnação, em que lhe deu o ser e vida de homem, e outra vez no dia da Ressurreição, em que depois de morto lhe tornou a dar o mesmo ser e a mesma vida. E em ambos e cada um destes dois dias diz o mesmo Padre que gerou a seu filho: Ego hodie genui te -porque o livrá-lo da morte no dia da Ressurreição foi como se outra vez o gerara. Isto é o que o Padre diz de si, e isto mesmo o que eu digo da Mãe. O Pai, quando livrou a seu Filho da morte por meio da Ressurreição, diz que o gerou outra vez; e se o Padre gerou outra vez a seu Filho, quando o livrou da morte por meio da Ressurreição, quem negará que também a Mãe gerou outra vez ao mesmo Filho. quando o livrou da morte por meio do seu desterro? Não há dúvida que, assim o Pai como a Mãe geraram segunda vez ao mesmo Filho, porém a Mãe com maior propriedade, e maior vantagem, porque não só o livrou como Mãe, mas como Mãe antecipadamente preservada do original pelo mesmo Filho. O Pai livrou-o da morte depois de morto; a Mãe livrou-o antecipadamente para que não morresse. Assim havia de ser para que a paga do desterro se ajustasse em tudo à divida da Conceição.

Logo, não só Cristo ficou pago, senão devedor, como eu inferia, e dobradamente devedor. Uma vez devedor do ser e da vida, que lhe deu a Mãe pela Encarnação, e outra vez devedor da mesma vida, que lhe salvou e remiu pelo desterro. S. Bernardo, considerando que Deus o criou e que Deus o remiu, confessa que duas vezes se deve a si mesmo, e duas vezes todo a Deus: Si totum me debeo pro me facto, quid adilam jam pro me refecto[16]? - Já o tinha dito antes Santo Ambrósio, convencido da mesma consideração com que também nos convence: Ergo redemptus a Domino, servus es qui creatus es, servus es qui redempus es; et quasi Domino servitutem debes, et quasi Redemptori[17]: Criado e remido por Deus, sois de Deus porque vos criou, e sois de Deus porque vos remiu, e por estes dois títulos vos deveis duas vezes a Deus, uma vez como Criador, e outra como Redentor. - Ó Virgem gloriosíssima do Desterro, sempre gloriosa acredora de vosso Filho, mas dobradamente quando desterrada. Tudo o que os homens somos obrigados a confessar que devemos a Deus, é obrigado o mesmo Deus a confessar que vos deve a vós: na Encarnação devedor vosso, porque o criastes; no desterro outra vez devedor vosso, por que o remistes; na Encarnação, Mãe do Criador; no desterro, Redentora do Redentor.

§ VIII

Que aconteceria se Cristo morrera na idade em que Herodes o queria matar? Assim como pelo seu desterro foi a Senhora Redentora do Redentor, assim pelo mesmo ato foi Redentora de todo o gênero humano. José, Salvador do mundo e a Virgem, Salvadora do gênero humano.

Assim endividou a Mãe de Deus a seu Filho, quando lhe pagou com o desterro o que lhe devia na Conceição. Mas não só o endividou a ele, senão também a todos nós. E por quê? Porque, quando por meio do seu desterro foi Redentora do Redentor, foi também Redentora de todo o gênero humano. Funda-se esta proposição em uma teologia certa, que melhor que todos declarou S. Pedro Crisólogo: Christus totam causam nostrae salutis occiderat, si se pa vulum permisisset occidi: que se Cristo morrera nesta idade em que Herodes o queria matar, juntamente pereceria a redenção do mundo e a salvação do gênero humano. - Assim é, ou assim seria, porque ainda que a morte do Filho de Deus em qualquer tempo e em qualquer idade era preço mais que abundantíssimo para a redenção do gênero humano, contudo, como a Santíssima Trindade tinha decretado de não aceitar em seu resgate senão a morte de cruz, e tudo o mais que o Senhor padeceu, sendo os decretos de Deus imudáveis, qualquer destas condições que faltasse ficava a Redenção do mundo frustrada. E que fez a Virgem Maria por meio do seu desterro? No efeito salvou a vida do Filho, e na causa salvou a de todos: no efeito salvou o Redentor, e na causa salvou a Redenção, a qual pereceria se ele então morresse: Totam causam nostrae salutis occiderat. - Donde se segue que, assim como o Filho lhe deveu a sua redenção, assim nós lhe devemos a nossa; e assim como pelo seu desterro foi a Senhora Redentora do Redentor, assim pelo mesmo ato foi Redentora também de todo o gênero humano.

No mesmo Egito, para onde a Senhora foi desterrada, temos a prova. Quando José declarou a el-rei Faraó o mistério dos sonhos, e não só ensinou, mas executou o remédio com que nos sete anos da fartura se havia de fazer a prevenção para os outros sete da fome, mudou-lhe o mesmo Faraó o nome, e mandou que dali por diante fosse chamado na língua, egipcíaca, Salvador do mundo: Vertit nomen ejus, et vocavit eum, lingua aegyptiaca, Salvatorem mundi (Gên. 41, 45). - Não reparo na mudança do nome, mas na grandeza dele sim, porque, ainda que a ação e indústria o merecia grande, parece que não se estendia a tanto. Se livrou da fome ao Egito, chame-se salvador do Egito; mas salvador do mundo todo, por quê? A Escritura o declara logo, e é a razão tão cabal como admirável ao nosso propósito: Omnes provinciae veniebant ad Aegyptum, ut emerent escas et malum inopiae temperarem: Foi a fome tão universal em todo o mundo, que todas as províncias vinham ao Egito buscar o remédio da vida; e como a prevenção de José, não só proveu do mantimento ao Egito, senão a todas as províncias do mundo, por isso com muita razão se chama, não só salvador do Egito, senão do mundo todo. Enquanto livrou da fome ao Egito, salvador do Egito; e enquanto o Egito livrou da fome ao mundo, salvador do mundo. É tão semelhante a conseqüência de caso a caso, que quase não tem necessidade de aplicação. Enquanto a Virgem Maria, por meio do seu desterro, salvou a vida do Salvador, foi Salvadora do Salvador. Mas enquanto da vida do mesmo Salvador naquela idade dependia, como de causa, o salvar-se ou não o gênero humano: Totam causam nostrae salutis occiderat, si se parvulum permisisset occidi - não só foi Salvadora do Salvador, senão Salvadora também de todo o gênero humano. E assim como o filho deveu ao seu desterro a vida, assim o gênero humano, que somos nós, lhe devemos também a salvação.

§ IX

O modo com que poderemos pagai; ou quando menos agradecer o beneficio e mercê tão grande que a Virgem nos fez com o seu desterro. O modo perfeito e heróico de viver o homem neste mundo, sempre e em qualquer parte dele como desterrado. Por que chama-se o céu pátria, e não mátria. Conclusão: para sermos dignos servos da Mãe de Deus é necessário que tenhamos toda a terra por Egito e por desterro.

Suposto, pois, o conhecimento - que para muitos será novo - desta grande e universal mercê de que somos devedores à Senhora do Desterro ou ao desterro da Senhora, resta por fim - para darmos bom e proveitoso fim ao sermão - saber o modo com que poderemos pagar, ou quando menos agradecer uma dívida que tão particularmente toca a cada um como a todos. E porque o melhor e mais agradável obséquio que podemos fazer à Mãe de Deus, e a melhor e mais verdadeira devoção com que podemos venerar seus sagrados mistérios é a imitação do que obrou neles, digo que o que devemos oferecer à Senhora desterrada, em memória do seu desterro, é fazermos também deste mundo o nosso Egito e o nosso desterro, e vivermos nele como desterrados.

Até os gentios souberam dizer que para o homem de valor todo o mundo é pátria: Orne solum forti patria est[18] - e se há nação no mundo, para a qual o mesmo mundo seja pátria, somos nós. O primeiro fundador de Portugal e pai de todos os portugueses foi Tubal, que quer dizer mundanus, homem de todo o mundo, e tal foi a bênção ou herança que deixou a todos seus filhos: uns na Europa, outros na África, outros na Ásia, outros nesta América, enfim, todos divididos nas quatro partes do mundo, como cidadãos do universo, para que nenhum português cuide que basta para satisfazer à obrigação e devoção que digo só com estar fora e longe de Portugal, pois, em qualquer parte do mundo está na sua pátria. Que remédio logo para pagarmos à Senhora do Desterro o que devemos ao seu com o nosso? Disse discretíssimamente Sêneca que quem tem todo o mundo por pátria não pode ser desterrado, porque para qualquer parte do mundo que o levem, sempre vai para a sua pátria: Patriam meam transire non possum. Una omnium est, extra hanc nemo projici potest. In quamcumque terram venio, in meam venio. Nulla exilium est, sed altera patria est[19]. -E como todo o mundo para nós é pátria, como poderemos pagar à Senhora do Desterro, também com o nosso desterro. o benefício e mercê tão grande que nos fez com o seu?

Respondo que sim, podemos, não já tendo o mundo todo por pátria, senão por desterro. Quem mais sábia e elegantemente que todos definiu e dividiu este ponto, foi o maior juízo do seu século, Hugo Victorino, o qual diz assim: Delicatus ille est adhuc, cui patria dulcis est: fortis jam, cui omne solum patria est: per fectus, cui mundus totus exilium est lhe mundo amorem infixit, iste sparsit, hic extinxit. Quer dizer: O homem mimoso e fraco só ama e tem por pátria a terra em que nasceu; o forte e valoroso todo o mundo tem por pátria; o perfeito e cristão todo o mundo tem por desterro. Cada um destes três aplicaram variamente ao mundo o seu amor: o primeiro fixou-o, o segundo espalhou-o, o terceiro extinguiu-o. - O primeiro fixou-o porque o pôs em um só lugar, que é a terra onde nasceu; o segundo espalhou-o, porque o estendeu a qualquer parte do mundo; o terceiro extinguiu-o, porque nem alguma parte nem todo o mundo teve por pátria, mas todo e qualquer parte dele reputou por desterro. Este é o perfeito, e não estóico, mas heróico modo de viver o homem neste mundo sempre e em qualquer parte dele como desterrado. E este é também o obséquio e correspondência com que, imitando a Senhora do Desterro desterrada no Egito, podemos, senão pagar, ao menos agradecer com o nosso desterro o inestimável benefício da salvação do gênero humano, que nos assegurou com o seu.

Oh! que venturosa romaria seria esta do Desterro hoje, e que bem remunerados tornaríamos deste ermo, se todos levássemos uma firme resolução de viver daqui por diante como desterrados, conhecendo com viva fé que tudo o que é terra é desterro, e só o céu nossa verdadeira pátria! Ouçamos a S. Paulo, o qual, arrebatado ao céu, foi o único homem que viu a pátria antes de ser morador dela: Non habemus hic civitatem permanentem, sed futuram inquirimus (Hebr. 13, 14): Nenhum de nós tem ou pode ter na terra cidade ou pátria certa e permanente, porque todos imos caminhando para a futura, que é a pátria do céu. E S. Basílio, ameaçando-o com o desterro um governador do imperador Valente:- Enganas-te - respondeu - se cuidas que me podes desterrar. porque eu não reconheço outra pátria, senão a do céu; - e este lugar, onde agora estou. e qualquer outro deste mundo, todos para mim são desterro. -Assim o refere S. Gregório Nazianzeno por estas palavras:Ab omni exilii metu liber sum unam oimnium. agnoscens esse patriam paradisum, terra enim quasi omnium commune aspicimus naturae exilium: pro patria vero carens, terra nullo loco circumscribor: - O mesmo nome de pátria nos está ensinando que só o céu o pode ser. E por quê? Porque o nome de pátria é derivado do pai, e não da mãe: a terra em que nascemos é a mãe que nos cria; o céu para que somos criados é o lugar do Pai que nos dá o ser; e se a pátria se derivara da terra, que é a mãe que nos cria, havia-se de chamar mátria, mas chama-se pátria, porque se deriva do Pai que nos deu o ser, e está no céu. E se para sermos filhos de tal Pai é necessário que só o céu tenhamos por pátria, assim, para sermos dignos servos da Mãe deste mesmo Pai, é necessário que tenhamos toda a terra por Egito e por desterro.

Oh! que mal entendida é a nossa vida, que mal entendidos os nossos cuidados, e que mal entendida a nossa pouca fé e o nosso pouco entendimento! A terra, que é um desterro cheio de tantos trabalhos, de tantas misérias, de tantas desgraças, de tantos desgostos, onde não há um dia, nem uma hora isenta de aflições e moléstias, essa nos leva todo o amor e todos os pensamentos, como se fora a verdadeira pátria. E o céu, que é a pátria de todos os bens, de todas as felicidades, de todas as delícias, de toda a bem-aventurança, onde não há nem pode haver sombra de mal ou de pena, em vez de ser a nossa perpétua saudade e o nosso contínuo cuidado, não só vivemos tão esquecidos dela, e tão pouco desejosos, antes temerosos do dia em que havemos de ser chamados, como se fora para o mais triste desterro. A Virgem desterrada, a cuja presença, quando entrou no Egito, caíram todos os ídolos, se sirva de desterrar de nossos corações esta falsa e cega idolatria, com que o mundo nos traz enganados, para que o adoremos, e com um raio de viva fé alumie a cegueira e ignorância de nossos entendimentos, para que conheçamos que tudo o que é terra é desterro, e só o céu, para que fomos criados, a nossa verdadeira e bem-aventurada pátria: Ad quam nos perducat Dominas Jesus[20]. - Amém.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

[1] Da qual nasceu Jesus (Mt. 1, 16).

[2] Porque Herodes tem de buscar o menino para o matar (Mt. 2, 13).

[3] Redimiste a teu servo da espada maligna (SI. 143, 10).

[4] Nele há copiosa redenção (SI. 129, 7).

[5] E ela me levou por toda a roda deles; eram porém muitos em grande número (Ez. 37, 2).

[6] Assopra sobre estes mortos (Ez. 37, 9).

[7] Quando eu tiver infundido o meu espírito em vós, e vós tiverdes recobrado a vida (Ez. 37, 14).

[8] E será esta uma espada que traspassará a tua mesma alma (Lc. 2, 35.).

[9] D. Th. 3 p. q. 9, art. 4. Vasq. in 3 partem tom.I, disp. 55.

[10] Estava em pé junto à cruz de Jesus sua Mãe; mulher, eis aí teu filho (Jo. 19, 25 s).

[11] Toma o menino, e sua Mãe (Mt. 2, 13).

[12] A terra será maldita na tua obra (Gên. 3, 17).

[13] Benta és tu entre as mulheres (Lc. I, 28).

[14] Benta és tu entre as mulheres, e bento é o fruto do teu ventre (ibid. 42).

[15] Tu és meu filho, eu te gerei hoje (SI. 2, 7).

[16] S. Bernard. tract. de diligendo Deo.

[17] Ambr: lib. de Isaac cap. 3.

[18] Ovid. lib. l de Ponto.

[19] Seneca, de Remedio Fortuanae.

[20] A qual nos conduza o Senhor Jesus.