Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da terceira Dominga Post Epiphaniam, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA TERCEIRA DOMINGA POST EPIPHANIAM

Na Sé de Lisboa. Si vis, potes[1].

I

Como considerava o poder e querer de Cristo, certo do seu podei; e duvi­doso do seu querei; o pobre enfermo que lhe pediu que o remediasse, dizendo que, se quisesse, podia. A grande miséria dos que, confessando a Deus o poder; lhe duvidam a vontade. A grande ventura de requerer diante de um príncipe que quer e pode. Assunto do sermão: como se há de ajustar o querer com o poder e o poder com o querer:

O querer e o poder, se divididos são nada, juntos e unidos são tudo. O querer sem o poder é fraco, o poder sem o querer é ocioso, e deste modo, divididos, são nada. Pelo contrário, o querer com o poder é eficaz, o poder com o querer é ativo, e deste modo, juntos e unidos, são tudo. Assim considerava o querer e poder de Cristo, certo do seu poder, e duvidoso do seu querer, um homem pobre e enfermo. o qual na história do presente Evangelho, prostrado a seus divinos pés, lhe pediu que o remediasse, dizendo que, se quisesse, podia: Si vis, potes (Mt. 8, 2).

Grande miséria é, não digo já da incredulidade, mas da estreiteza do coração humano, que, confessando os homens a Deus o poder, lhe duvidem da vontade; mas ainda é maior miséria e cegueira que não falte quem até o poder lhe duvide. Outro necessitado, que também pediu a Cisto a saúde, não para si, mas para um filho, o que disse ao mesmo Senhor foi: Si quid potes, adjuva nos (Mc. 9, 21): Se podeis alguma coisa, ajudai-nos. Ambos estes homens procuraram o remédio, ambos o pedi­ram, ambos o duvidaram, e, se bem considerarmos o que disseram, ambos ofenderam a Cristo. O primeiro falou com pouca, o segundo com menos, e nenhum com inteira fé. E que faria o benigníssimo Senhor, assim rogado e ofendido? Um lhe duvidou o querer: Si vis outro lhe duvidou o poder: Si quid potes e a ambos mostrou que podia e queria. Ao que lhe duvidou da vontade disse: Quero e posso; ao que lhe duvidou do poder disse: posso e quero e a ambos despediu satisfeitos com o remédio que desejavam.

Oh! que grande ventura é requerer diante de um príncipe que quer e pode! Assim seria também a maior de todas as desgraças esperar o remédio de algum tão pouco poderoso que não possa, e de tão má vontade que não queira. A Augusto César disse Marco Túlio prudente e elegantemente que a natureza e a fortuna lhe tinham dado, uma a maior, e outra a melhor coisa que podiam para fazer bem a muitos: Nec fortuna tua majus quam ut possis, nec natura tua melius quam ut velis conservare quam plurimos. A maior coisa que pode dar a fortuna a um príncipe é o poder, e a melhor que lhe pode dar a natureza é o querer, para poder e querer fazer bem a todos. Ambas estas excelências de supremo Senhor concorreram em Cristo no grau mais heróico. E se nelas teve alguma parte a fortuna, não foi a sua, senão a nossa. O poder e o querer, tudo em Cristo é natureza, como composto inefavelmente de duas: como Deus, todo-poderoso, como homem, todo benévolo, e uma e outra coisa logrou hoje com inteira experiência aquele homem de meia fé, que disse: Si vis, potes. A estas duas palavras respondeu o Senhor com outras duas. Ao si vis disse volo, ao potes disse mundare, e em ambas lhe ensinou que não só podia, como a sua fé confessava: potes senão que também queria, como a sua esperança duvidava: si vis.

Desta maneira declarou em uma mesma ação Cristo, Senhor nosso, quão alta e prontamente estão unidos para nosso remédio na sua onipotência o poder, e na sua vontade o querer. E porque eu quisera que esta união tão maravi­lhosa, não só nos servira de documento para a fé, senão também de exemplo para a imitação, de todo o largo Evangelho escolhi só aquelas duas palavras: Si vis, potes: Se quereis, podeis. Mas como o poder e querer só naquele supremo Se­nhor, que pode quanto quer, são iguais, e, pelo contrário, no homem o poder é pouco e limitado, e o querer sempre insaciável e sem limite, como se poderá na contrariedade desta discórdia achar algum meio de união? Reconheço a dificul­dade, mas por isso será ela todo o emprego do meu discurso. Si vis, potes: sobre estas duas palavras, consideradas variamente por todos os modos com que se podem combinar, veremos como se há de ajustar o querer com o poder e o poder com o querer. É uma das mais importantes matérias que se deve ensinar ao mundo, e de que depende toda a felicidade humana. Deus me assista com sua graça. Ave Maria.

II

A verdadeira causa de todos os males do mundo: não concordarem os homens o seu querer com o seu poder. A ambição dos anjos e a ambição dos homens causas de sua queda. Qual é a causa de tantos reinos se terem perdido, e de outros se verem tão arruinados e enfraquecidos? Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Por que não castigou Deus a Simão Mago com lhe tirar a vida, senão com o privar somente do uso dos pés? Outros exemplos da Escritura Sagrada.

Se buscarmos com verdadeira consideração a causa de todas as ruínas e males do mundo, acharemos que não só a principal, senão a total e a única, é não acabarem os homens de concordar o seu querer com o seu poder: Si vis, potes. A raiz deste veneno mortal, nascida, não só na terra, senão também no céu, é a inclinação natural com que toda a criatura dotada de vontade livre, não só apetece sempre ser mais do que é, senão também querer mais do que pode. Que quis o anjo do céu, e que quis o homem no paraíso? Ambos quiseram ser como Deus. Menos me admiro das suas von­tades que dos seus entendimentos. Vem cá, Lúcifer, vem cá Adão: tu anjo, e o mais sábio de todos os anjos, tu homem, e o mais sábio de todos os homens, não entendeis e conheceis com evidência que não podeis ser como Deus? Pois, como apeteceis o que não podeis? Porque tal é a cegueira de um entendimento ambicioso, e a ambição de uma vontade livre. Há de querer mais do que pode, ainda que conheça que é impossível. O poder ou poderes do homem eram sobre todos os peixes do mar, sobre todas as aves do ar, e sobre todos os animais da tersa; o poder e poderes do anjo eram sobre a terra, sobre o mar, sobre o ar, sobre o fogo, e não só sobre todos os elementos, mas também sobre


todos os corpos celestes, e sobre todos os astros e seus movimentos. E porque ainda havia no mundo outro poder maior, posto que este fosse de Deus, nem o anjo nem o homem se contentaram com poder o que podiam. E que se seguiu daqui? A ruína universal do mundo, a ruína da terceira parte dos anjos, e a ruína de todos os homens.

Mas, deixados os anjos, que não são capazes de emenda, falemos com os homens, que se podem emendar, se quiserem. Começando pelos maiores cor­pos políticos, que são os reinos, qual é a causa de tantos se terem perdido, de que apenas se conserva a memória, e outros se verem tão arruinados e enfraquecidos, senão o apetite desordenado e cego de quererem os reis mais do que podem? Daqui se seguem as guerras, e a ambição de novas e temerárias empresas, como as de Membrot; daqui as fábricas de edifícios magníficos e insanos, como a Torre de Babel; daqui a prodigalidade de excessivas mercês amontoando em um o que se tira a todos, como as de Assuero em Amã; daqui as festas e jogos públicos, com aparatos mais monstruosos que extraordinários, sem outro fim que a falsa ostenta­ção e vaidade do que não há nem é. E quando as despesas de tudo isto deveram sair do que sobejasse nos erários e tesouros reais, que será onde se vêem tiradas e espremidas todas do sangue. do suor e das lágrimas dos vassalos, carregados e consumidos com tributos sobre tributos, chorando os naturais para que se alegrem os estranhos, e antecipando-se as exéquias à pátria por onde se lhe devera procu­rar a saúde? Salomão foi o rei que em todo o seu reinado gozou da mais alta e segura paz de quantos houve dentro e fora de Israel; mas foi tal a guerra que ele fez à sua mesma corte e reino com os prodigiosos espetáculos de grandeza e ma­jestade, cuja fama trazia a Jerusalém todas as nações do mundo, que o mesmo Salomão foi o que destruiu o que tanto enobreceu e exaltou, e não por outra razão ou defeito, senão porque, sendo mais poderoso que todos, se não contentou com o que podia. A prata no seu tempo, diz a Sagrada Escritura que era tanta em Jerusa­lém como as pedras da rua, e neste mesmo tempo eram tantos, tão multiplicados e tão excessivos os tributos com que o glorioso e miserável povo sustentava a fama de ser chamado seu um tal rei que, não podendo suportar um peso tão intolerável, com que em toda a vida os oprimiu, e nem na morte os aliviou, a primeira coisa que pediram a seu sucessor, Roboão, foi a suspensão e remédio destas opressões. Mas, como o filho, que se não contentava com menos que poder ainda mais que seu pai, não desse ouvidos a uma tão justificada queixa, rebelados os mesmos vassalos, lhe negaram a obediência, e de doze tribos, de que constava o reino, perdeu em um dia dez, as quais nem nos dias de Roboão, nem de todos seus descendentes, se uniram ou sujeitaram jamais à mesma coroa.


E se este natural apetite de quererem os homens sempre mais do que pedem, nem na soberania dos que podem tudo se farta, que será daí a baixo, desde os maiores entre os grandes até os mínimos entre os pequenos? O oficial pode viver como oficial, e quer viver como escudeiro; o escudeiro pode viver como escudeiro, e quer viver como fidalgo; o fidalgo pode viver como fidalgo, e quer viver como título; o título pode viver como título, e quer viver como príncipe. E que se segue deste tão desordenado querer? O menos é que, por quererem o que não podem, venham a não poder o que podiam. Quanto sobe violentamente o querer para cima, tanto desce sem querer o poder para baixo. Ouvi o que agora direi como provérbio. Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Simão Mago apelidou um dia todo o povo romano para o verem subir ao céu; e, verdadeiramente, à vista de todos começou a voar. Orou porém S. Pedro, sem se levantar da terra, e a sua oração derrubou das nuvens ao mago, com tal queda que, desconjuntados e quebrados todos os ossos, desde os joelhos até os pés, totalmente ficou inábil para poder dar um passo. Justo castigo, mas parece que desigual a tamanha maldade. Este mago, para que o seguissem, os judeus, fingia-se Messias, e para que o adorassem os gentios, fingia-se Júpiter; e um delito composto tantos delitos tão enormes, tão ímpios, tão sacrílegos e blasfemos, por­que o não castigou Deus com lhe tirar logo a vida, senão com o privar somente do uso dos pés? Excelentemente S. Máximo: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset, et qui pennas assumpserat, plantas amitteret: Não se contentou Simão com os pés que Deus e a natureza lhe tinham dado para andar, e quis asas para voar; pois, fique privado não só das asas, para que não voe, senão também dos pés, para que não ande. E para que mais? Para que este exemplo e desengano seja um público pregão a Roma e a todo o mundo, que quem quer poder mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.

No Testamento Velho, el-rei Baltasar, porque quis mais do que podia inventus est minus habens[2]. E donde veio este menos, senão daquele mais? Respexistis ad amplius, et ecce factum est minus[3] diz o profeta Ageu. No Tes­tamento Novo, o Filho Pródigo, porque no gastar e alardear quis o que não podia nem pedia o estado de filho, veio a pedir por misericórdia a fortuna de criado: Fac me sicut unum de mercenariis tuis[4]. Quantos vieram a servir porque quiseram ser mais servidos, ou servidos de mais do que podiam manter? Se apenas podeis sustentar um cavalo com uma mochila, por que haveis de ter uma carroça com oito lacaios? Um é afeiçoado à caça, e quando os cães andam luzidios e anafados, ver-lhe-eis os criados pálidos e mortos à fome. O outro é prezado ou picado de pintu­ras, e quando ele, com falso testemunho ridículo, chama aos seus quadros origi­nais de Ticiano, os pajens e os lacaios são verdadeiramente cópias de Lázaro. Que direi do que, para sair um dia aos touros, e ostentar cinqüenta lacaios vestidos de tela, empenhou o morgado e as comendas por muitos anos? As sortes seriam quais quis a ventura; mas a pior e mais certa foi a da pobre casa. Ele poderia ter um dia de Páscoa, mas ela há de jejuar dez anos de quaresma. Eis aqui o que vêm a não poder os que querem mais do que podem. Com essa mal considerada vaidade, que é o que adquiristes, ou o que perdestes? Perdestes a felicidade de não pedir, per­destes a liberdade de não dever, perdestes o descanso de não pagar, e o que adqui­ristes com o que tínheis, e com o que não tínheis, foram as invejas dos amigos, as murmurações dos sisudos, as perseguições dos acredores, e a desgraça e mau con­ceito dos mesmos príncipes, a quem quisestes lisonjear e servir, porque, como vos há de fiar a sua fazenda quem assim vê que esperdiçais a vossa?


 III

Quem há de pagar por esses desmanchos que sempre se devem e nunca se pagam? O apotegma de Sólon, legislador dos gregos.

Mas isto passe embora, porque é dano particular. O mau é que para restaurar estes desmanchos, que sempre se devem e nunca se pagam, quem os está continuamente pagando por vários modos é o comum. O oficial de pena, a cujos rasgos mede o regimento as regras e conta as letras, se ele quer gastar sem conta e sem medida, que há de fazer? Troca as suas penas com as dos gaviões e minhotos, e não há ave de rapina que tanto leve nas unhas. O letrado ou julgador, cuja auto­ridade constava antigamente de uma mula mal pensada com sua gualdrapa preta, se hoje fora de casa há de sustentar a liteira, e dentro as alfaias que lhe respondem, não bastando os ordenados para a terceira parte do ano, quem há de suprir a des­pesa das outras duas partes, senão as partes e a justiça? O que entre fumos de nobreza e fidalguia vive à mercê da sua herdade, a qual, quando as novidades não mentiam, só dava para sarja no verão e baeta no inverno, agora que já às lãs se não sabe o nome, de que se há de vestir, sendo o galo da sua aldeia, senão das penas dos que podem menos? O mercante, que tomou os assentos ou contratos reais de público, e se contratou de secreto com os zeladores da fazenda do mesmo rei, de, que modo se há de soldar quando se vê quebrado, senão com o soldo e fardas dos miseráveis soldados, tornando a comprar os já comprados ministros, para que the subam os preços, e ajuste as quebras? Infinita coisa seria se houvéssemos de dis­correr por todos os estados, assim da paz como da guerra, com que a fazem cruel à república os mesmos que tinham obrigação de a defender. Com razão disse Sê­neca que a riqueza se faz de muitas pobrezas: Divitiae ex paupertatibus fiunt porque, para enriquecer um homem, se empobrecem outros, e, para se levantar ou ressuscitar uma casa, se arruinam e sepultam muitas. Os empenhos do morgado tirá-los-á o governo, o cativeiro das comendas remi-lo-ão as pensões; e se a limi­tação dos ordenados não abrange a tanto, estendê-la-ão sem limite os desordena­dos. O que não pode pagar a gineta, pagá-lo-á a companhia; o que não pode pagar o bastão, pagá-lo-á o exército; o que não pode pagar Portugal, pagá-lo-á o Brasil, pagá-lo-á a África, pagá-lo-á a Índia. E para que poucos que querem mais do que podem sejam flagelos, assolação e raios das quatro partes do mundo, se lhes dará licença por escrito para que possam quanto quiserem.


Lembra-me a estes propósito um apotegma daquele famoso legislador dos gregos, Sólon: Luxus erit in tyrannidem dum faenum migrat in comua. Quer dizer a primeira parte que do luxo nascerá a tirania, péssima filha de mau pai. E, segundo os gemidos dos tiranizados, cujas serão estas tiranias, senão dos que eu vou falando? Todos querem mais do que podem, nenhum se contenta com o necessário, todos aspiram ao supérfluo, e isto é o que se chama luxo. Luxo na pessoa, luxo no vestido, luxo na mesa, luxo na casa, luxo no estrado, luxo nos filhos, luxo nos cria­dos e criadas, e, onde não basta o próprio, claro está que, ou por arte ou por violên­cia, se há de roubar o alheio, que estas são mais ou menos descobertas as tiranias: Luxus erit in tyrannidem. E, por que não pareça dificultoso ou impróprio que de uma causa tão branda e tão deleitável, como o luxo, nasça um efeito tão duro e tão cruel, como a tirania, declara a primeira parte da sua sentença Sólon com a compara­ção da segunda, que verdadeiramente é sutilíssima: Dum faenum migrat in comua. O pasto com que se regala e se engrossa o touro, não é o feno brando, e para ele tão saboroso, que o come de dia e o torna a recomer de noite? Pois, esse feno na testa do mesmo bruto é o que se converte naquelas duas pontas duras, fortes e agudas, que são o instrumento é as armas de toda a sua fereza. Lançai-o no corro, e vereis como a todos remete, a todos atropela, a uns bota para o ar, a outros pisa, a outros fere ou mata, e o que melhor livrou da sua fúria foi deixando-lhe a capa nas mesmas pontas. Se o luxo é o feno, quanto mais se come dele, e se gosta, e se rumina, tanto maiores serão as tiranias, e mais feroz os estragos: Dum faenum migrat in comua. Boa matéria se me oferecia agora para falar das durezas tão cruéis, e das agudezas tão sutis, e das armações tão bem armadas destas armas da tirania. Mas o dito bastará para que se entenda a verdade do fundamente que pus, ou supus, como primeira pedra deste tão importante discurso, e que a causa e raiz de todos os danos particula­res e públicos que padecem as famílias, as comunidades e os reinos, e com que se está indo a pique o mundo, é não acabar o apetite, a ambição e a cegueira humana de tomar as medidas ao que pode, e ajustar o seu querer ao seu poder: Si vis, potes.


 IV

O exame do poder primeira diligência que há de fazer todo o homem pru­dente. A parábola da providência. O testamento de el-rei D. Sancho, o Primeiro. Quanto pode o príncipe que se mede com o que pode. A precipitada arrogância dos filhos de Zebedeu. O poder e o modo do poder nas respostas do menino Davi a el-rei Saul.

Para reduzirmos à prática estes tão necessário ajustamento, a primeira dili­gência que há de fazer todo o homem prudente de si para consigo, e sem paixão nem amor-próprio, é medir o seu poder. Quis ex vobis, volens turrim aedficare, non prius sedens computat sumptus, qui necessarii sunt, si habeat ad perficiendum (Lc. 14, 28)? Que homem há de vós diz Cristo o qual, se quer edificar uma torre, não lance suas contas primeiro, e considere muito devagar se tem cabedal bastante para levar a obra ao cabo? Porque do contrário se seguiria acrescenta o Senhor que, depois de ter lançado os alicerces, se não pudesse continuar a fábrica, e pô-la em perfeição, se ririam todos dele, dizendo: Estes homem pode começar, mas não pode acabar: Ne, postea­quam posuerit fundamentum, et non potuerit perficere, omnes qui vident, incipiant illudere ei, dicentes: Quia hic homo coepit aedificare, et non potuit consummare (ibid. 29 s). Se Cristo nestas palavras profetizara da nossa corte, não a pudera descrever melhor. Raro é o edifício grande em Lisboa que esteja acabado, nem pelos filhos e netos de seus primeiros fundadores. Assim o notam os estrangeiros, aos quais eu ouvi inferir, não sei se em louvor, se em descrédito da nossa nação, que sempre são maiores os nossos pensamentos que o nosso poder. O certo é que de lhe não tomar as medidas antes de começar, incorremos a desaprovação e riso de todo o bom juízo humano: Quia hic homo coepit aedificare, et non potuit consummare.


A palavra hic honro mostra bem que neste primeiro exemplo falou o Senhor dos particulares; e por que não cuidem os reis que pela estimação de todo-poderosos ficam isentos desta regra, ajuntou logo o mesmo Mestre divino: Aut quis rex iturus committere bellum adversus alium regem, non sedens prius cogi­tar si possit cum detem mill ibus occurrere ei, qui cum viginti millibus venit ad se (Lc. 14, 31)? Ou que rei há que, havendo de pelejar em campanha com outro rei, não meça primeiro as forças de ambos os exércitos, e considere se, sendo o seu meio por meio menor, se poderá defender com ele do inimigo? Mui alheia coisa é de toda a razão e prudência que estejam os reis tão mal inteirados do que podem e do que têm, que o mandem perguntar na ocasião aos tribunais da Fazenda. Mas nesta parte podem os antigos reis de Portugal ser exemplar a todos os do mundo. Tomara poder referir aqui todo o testamento de el-rei D. Sancho, o Primeiro, do qual se vê com admiração, não só o seu grande poder e riquezas naquele tempo, mas a notícia presencial e exatíssima de quanto possuía, e em que gêneros, e em que lugares, e em que mãos. Não deixarei contudo de apontar algumas verbas do mesmo testamento, pelo que toca à distribuição do dinheiro somente, não falando nas doações de vilas, lugares, e outras rendas.


Primeiramente diz mando que meu filho, Dom Afonso, suceda no meu Reino, e duzentos mil maravedis, que estão na torre de Coimbra, e seis na de Evora, etc. Ao Infante D. Pedro, meu filho, quarenta mil maravedis, dos quais o Mestre do Templo tem em Tomar vinte mil, e os outros vinte o Mestre do Hospital, em Beluer. Ao infante D. Fernando outros quarenta mil, dos que estão nas Torres de Coimbra; outros tantos a meu neto D. Fernando. À minha filha, a rainha D. Teresa, quarenta mil maravedis, e duzentos e cinqüenta marcos de prata, que estão em Leiria. E à infanta D. Dulce, minha neta, quarenta mil maravedis, e cento e cinqüenta mar­cos de prata, que estão em Alcobaça. Estes maravedis tinham tanto valor naquele tempo, que no mesmo testamento deixa o rei dez mil maravedis para se edificar um convento da Ordem de Cister, e outros dez mil para fundação de um hospital de leprosos. Vários vasos de ouro da casa e uso real manda que se desfaçam em cruzes e cálices, aplicados a diferentes igrejas. A todas as catedrais, e outras de sua devoção, e a todos os mosteiros de religiosos, e a todas as ordens militares deixa grossos legados, apontando na mesma forma donde se hão de tirar. E, finalmente, no do Sumo Pontífice diz assim: De cento e noventa e cinco onças e meia de ouro, que tenho nas torres de Coimbra, se dêem ao senhor Papa cem marcos. Tão exata e tão miúda notícia tinha aquele bom rei dos seus tesouros, que nem meia onça de ouro lhe escapava da conta, sendo que aquelas onças tinham muito maior peso das que hoje entre nós têm o mesmo nome, pois em menos de duzentas onças, como consta da mesma verba, cabiam cem marcos. De sorte que no mesmo tempo estava o erário real junto e dividido: dividido por ocasião das guerras interiores com os mouros, em diferentes torres do reino; e junto na memória e mente do rei, para saber por si mes­mo quanto tinha, e o que podia, e por isso não empreendeu guerra ou ação militar em que não fossem tantas as vitórias como as empresas. Oh! quanto pode, e sem opres­sões dos vassalos, o príncipe que se mede com o que pode! Não me posso abster, nem é justo neste passo, de referir a última cláusula do dito testamento, cujas pala­vras são estas: Dez mil e duzentos maravedis ficam nas minhas Torres de Coimbra e na minha arca, e estes são para restituições do que indevidamente houver tomado, e o que sobejar para cativos e pobres. De maneira que em um reino novamente levan­tado, e em tempo de tantas guerras, em que tanto se costuma tomar violentamente a todos, todas as restituições, a que a consciência destes rei duvidava escrupulosamen­te de poder estar obrigado, se podiam satisfazer com dez mil e duzentos maravedis, e sobejar ainda para cativos e pobres. Tanto pode outra vez, só com o seu, e sem o alheio, quem se sabe e quer medir com o que pode.


Mas que dirão, à vista deste exemplo, os que por não tomar as medidas ao que podem ou não podem, cuidam que podem, tudo? Parece-me que os estou vendo retratados na precipitada arrogância dos filhos do Zebedeu. Perguntou-lhes Cristo se podiam beber o cálix que ele havia de beber: Potestis bibere calicem, quem ego bibiturus sum[5]? E sem mais consideração ou exame do que eram perguntados, responderam: Possumus: pode­mos. Ora, já dizeis que podeis beber o cálix, não me direis também qual é esse cálix, e qual essa bebida? É tal que o mesmo Cristo, receoso de o poder beber; e tendo por mais possível o contrário, apelou para os possíveis da onipotência: Pater, si possibile est[6]. Pois, se isto mesmo é o que vos perguntam se podeis, e nem sabeis o que podeis, nem sabeis o que é, por que dizeis possumus?Porque assim cuidam que podem tudo os que não consideram nem conhecem primeiro o que podem ou não podem.

Ainda depois de conhecidas as próprias forças pode um homem não poder o que pode, porque o poder e o modo do poder são duas coisas muito diversas. Quando Davi se ofereceu a sair ao desafio com o filisteu, disse-lhe el-rei Saul que não podia, porque o filisteu era gigante, e ele menino, o filisteu soldado exercitado nas armas, e ele não: Non vales resistere Philisthaeo isti, nec pugnare adversus eum: quia puer es, hic autem vir bellator est ab adolescentia sua[7]. Contudo respondeu Davi que sim, podia, porque ele tinha experimentado as suas forças com os ursos e os leões, aos quais despedaçava e matava, e o mesmo fada ao gigante: Nam et leo­nem et ursum inter Teci ego servos tuus[8]. Ouvida a resposta, e provado o poder de Davi com tão abonadas experiências, o mesmo Saul, o qual lhe dissera que não podia sair ao gigante, o vestiu de suas próprias armas para quesaísse. Armado porém ele, e fazendo experiência das mesmas armas, disse que não podia assim andar: Non possum sic incedere[9]. Pois Davi, se tão pouco há dissestes que podíeis, como agora dizeis que não podeis? Não diz Davi que não pode, mas diz que não pode modo: Non possum sic. Medindo as forças do gigante com as dos ursos e dos leões diz posso; mas medindo o exercício das mesmas forças consigo carregado daquele de armas diz não posso, porque não basta o poder para poder, se o impede o modo. O poder e mais o modo do poder é o que há de examinar e reconhecer primeiro quem quer saber se pode ou não pode.


V

O exame do querer Os três modos de ajustar o querer com o poder: querer somente o que posso, querer mais do que posso, ou querer menos do que posso. Querer somente o que se pode, excelente e adequada proporção com que quase se iguala o querer e poder humano com a vontade e onipotência divina. Em que consiste o poder tudo? Razões e medidas da onipotência de Deus.

Feito assim o exame do poder, e feito, como dizia, sem paixão nem amor-próprio, piara ser bem feito, segue-se a eleição do querer, em que consiste todo o acerto, e pode haver muitos erros. Ou eu posso querer somente o que pos­so, ou querer mais do que posso, ou querer menos do que posso. E como nestes três modos de ajustar o querer, ou igualando, ou excedendo, ou diminuindo, se pode alterar muito a devida proporção, vejamos pela mesma ordem qual será a mais acertada, e por isso mesmo a mais conveniente.

Quanto à primeira, de querer somente o que posso, é tão excelente e adequada esta proporção, que por um modo admirável parece se iguala o querer e poder humano com a vontade e onipotência divina. Qual é a excelência e sobera­nia da vontade e onipotência divina? É que Deus pode quanto quer. Pois, se Deus pode quanto quer, e eu quero só quanto posso, este é o caso, como diz Sêneca em outro, no qual pode o homem competir na felicidade com Deus. Porque se Deus pode quanto quer, eu também posso quanto quero, porque só quero quanto posso. Assim o notou com sutil e bem fundada advertência o douto e engenhoso autor da Arte da Vontade. É verdade que Deus pode fazer mais do que quer, mas também o homem pode querer mais do que pode, e a proporção do querer com o poder tanto consiste em Deus em se medir o poder divino com a vontade divina, como no homem em se medir a vontade humana com o poder humano. Daqui se segue que os muito poderosos e os que pouco podem, todos são iguais nesta felicidade, em que se fazem tão semelhantes a Deus, porque se uns e outros se conformam e contentam com o que podem, nem o muito de uns é mais, nem o pouco de outros é menos, porque todos, dentro da medida do seu poder, têm tudo quanto querem. Oh! que ditoso e bem ordenado viveria universalmente o mundo, se todos pene­trassem o interior destes segredo, e não trespassassem o seu querer além das raias do seu poder!

Advirtam porém aqui principalmente os poderosos, que o que dizemos do poder só se entende do que lícita e justamente se pode. O ilícito e injusto nunca se pode fazer, ainda que se faça. Mas é tal a jactância dos poderosos, e mais da­queles que cuidam que podem tudo, que têm por afronta do seu poder cuidar-se que tem limite o que podem. Assim como o juiz ião pode exceder as leis do rei, assim o rei não pode exceder as da razão e justiça.' el-rei Creonte disse Medéia; Si judicas, cognosce; si regnas, jube: Se obras como juiz, toma conhecimento da causa; mas se obras como rei, manda o que quiseres. A segunda parte destes aforismo é tirada dos arquivos, não só da tirania, mas do ateísmo. E não só a seguem os reis, senão também os juízes. Pilatos e a juiz com vezes de rei, porque era em Judéia locotenente do César; e vede o sobebíssimo conceito que tinha dos seus poderes. Como Cristo, Senhor nosso, acusado pelos judeus, não respondesse a uma pergunta que lhe fazia Pilatos, disse-lhe assim Mihi non loqueris (Jo. 19, 10)? A mim me não respondes? Nescis quia potestatem habeo cruficigere te, et po­testatem habeo dimittere te? Não sabes que tenho poder para te crucificar, e que tenho poder para te livrar? Não, Pilatos, nãc sabe isso Cristo. Esse homem, que tens em pé diante de ti, é o mais sábio de todos os homens, e juntamente Deus, e nem como homem nem como Deus sabe o que dizes, porque dizes o que não é nem pode ser. Se esse homem é réu, não tens poder para o livrar, e se é inocente, não tens poder para o crucificar. E por quê? Porque, se é réu, não o podes absolver da culpa, e se não tem culpa, não lhe podes condenar a inocência. Mas quantos inocentes vemos condenados, e quantos culpados absoltos, tudo pela falsa e arro­gante ostentação dos que cuidam que podem tudo!

Ora, eu vos quero conceder o que não tendes, e, supondo convosco que verdadeiramente podeis tudo, ouvi agora o que ignorais, e porventura nunca ouvistes. Cuidais que o poder tudo consiste em não haver coisa alguma a que se não estenda o vosso poder, e é engano manifesto. O poder tudo consiste em poder algumas coisas, e não poder outras: consiste em poder o lícito e justo, e em não poder o ilícito e injusto; e só quem pode e não pode desta maneira é todo-podero­so. Não é paradoxo meu, senão verdade de fé divinamente explicada por Santo Agostinho. Quam multa non potest Deus, et omnipotens est? Quantas coisas não pode Deus, e contudo é onipotente? E se não, dizei-me: Deus pode deixar de ser? Não. Deus pode mentir? Não. Deus pode enganar ou ser enganado? Não. Deus pode fazer alguma coisa malfeita? Não. Pois, se Deus não pode tantas coisas como é todo-poderoso? Por isso mesmo, diz Santo Agostinho: Imo omnipotens, est, quia ista non potest. E a razão é porque o ser todo-poderoso consiste em poder umas coisas, e não poder outras: em poder todas as que são lícitas e justas, e não poder nem uma só das que são ilícitas e injustas. Tanto assim, diz animosa­mente a Aguia dos Doutores, que sé Deus pudesse estas coisas que temos dito que não pode, seria indigno de ser onipotente: Nam si mori posset, si mentiri, si falle­re, si falli, si inique agere, non fuisset dignus qui esset omnipotens.

Mas porque esta palavra dignus parece que refere ou atribui à onipo­tência o merecimento, sendo assim que Deus goza a soberania de todos, seus atributos, não por merecimento, senão por natureza, o que Santo Agostinho disse por estes termos, porque escrevia para os doutos, declararei eu mais, porque falo para todos. A harmonia dos atributos divinos é tão concorde, sem poder encontrar um ao outro, que esta recíproca conformidade não só passa a ser união, senão identidade entre si e com o mesmo Deus. E daqui vem que o atributo da onipotên­cia não pode todas aquelas coisas que seriam contrárias aos outros atributos, Deus é sumamente bom, e, se pudesse o mau, não, seria suma bondade; Deus é suma­mente justo, e, se pudesse o injusto, não seria suma justiça; Deus é sumamente sábio, e, se pudesse o errado, não seria suma sabedoria; Deus é sumamente verda­deiro; e, se pudesse o falso, não seria suma verdade. Logo, para Deus ser digno de ser onipotente, e a mesma onipotência digna de ser sua, não só era decente, mas necessário que, podendo tudo o mais, não pudesse coisa alguma que fosse indigna de Deus. E daqui se convence, como argumenta em outro lugar Santo Agostinho, que, se Deus pudesse tais coisas, seria menos poderoso, e que por isso as não pode fazer, porque é onipotente: Sic hoc non potest Deus, ut potius si posset minoris esset potestatis: et propterea quaedam non potest, quia omnipotens est.

Que dirão agora a isto os todo-poderosos do mundo? Se quereis ser onipotentes, podei somente o justo e lícito, e não queirais poder o ilícito e injusto. Se assim o fizerdes, sereis onipotentes como Deus, e se não, serão os vossos pode­res como os do diabo, que pode e faz muitas coisas que Deus não pode. Suposto. pois, que só se pode o que lícita e justamente se pode, quem nesta forma ajustar o seu querer poder, poderá quanto quiser, porque só quererá quanto pode. E para que acabeis de ver quanto tem de divina esta proporção do querer ajustado com o poder, notai por fim que Deus só pode fazer o que pode querer, de sorte que só pode obrar a sua onipotência o que pode querer a sua vontade. E se estas são as medidas do poder e querer imenso, poder só o que quer, por que se não contentará a limitação humana com querer só o que pode? Querei só o que podeis, e sereis onipotentes. Prorsus omnipotens est qui facit quidquid vult: Verdadeiramente é onipotente conclui Agostinho quem pode quanto quer, com tal condição, po­rém, que só queira o bem feito, e não queira o mal feito, porque neste querer e não querer consiste a verdadeira onipotência. Ipsa est omnipotentia, facere quidquid bene vult, quidquid autem male sit non vult.

VI

Segunda proporção do querer com o poder: querer cada um mais do que pode. Alguns exemplos que lemos nas Escrituras Sagradas do muito que Deus se ofende e do rigor com que oastiga a insolência de quererem os homens poder mais do que ele quis que pudessem: a Torre de Babel, a mulher de Lot, Saul, Absalão e Moab. O exemplo das criaturas sem uso de razão. Advertência aos que dizem que estes discurso quebra os espíritos e acovarda os ânimos, para que não empreendam nem façam coisas grandes.

Até aqui temos visto a grande conveniência e excelência mais que humana da primeira proporção do querer com o poder, que é querer cada um somente o que pode. A segunda é dos que excedem esta medida, e querem mais do que podem, com os quais agora falaremos. E que lhes direi eu? Digo geralmente, senhores porque os senhores são os que mais ordinariamente se não querem medir, ainda que seja consigo mesmos que para desengano destes desejo, e emenda desta vaidade bastava só a consideração do erro que lhe hão de achar no fim, e fora melhor atalhar no princípio. Considerai que, querendo mais do que podeis, não só destruís o vosso poder, senão também o vosso querer. Porque se eu quero mais do que posso, claro está que hei de perder o que posso, e não hei de conseguir o que quero. Pois, se no fim não haveis de poder conseguir o que quereis, para que é trabalhar e cansar debalde? Mas tal é a cegueira da ambição humana! Mais de duzentos anos depois do dilúvio, caminhando todos os homens que então havia, e ainda se conservavam juntos, diz a Escritura Sagra­da que vieram darem uma grande campina, a qual os convidou, para quê? Não para a dividirem entre si, e a lavrarem e cultivarem, mas para edificarem nela uma torre que chegasse até o céu. Filo Hebreu diz que o intento, desta fábrica foi para se livrarem nela de outro dilúvio, se acaso sucedesse; o certo, porém, é, como refere o mesmo texto, que quiseram levantar um tão soberbo e prodigioso edifício para celebrar e fazer famoso seu nome: Celebremus nomen nostrum antequam dividamur[10]. Todas as famílias de que se compunha este ajuntamento eram setenta e duas; mas as razões que dificultavam a obra não tinham número. Vivia ainda entre eles Noé, já experimentado em grandes fábricas, o qual, como velho sisudo e pai dê todos, não há dúvida que lhes proporia quantos impossíveis se envolviam na temeridade daquele pensamento. Se dizeis que os materiais desta torre hão de ser tijolos cozidos, não vedes que nem toda a terra vos pode dar bano para os amassar, nem lenha para os cozer? Depois de crescer a obra, como pode haver máquinas tão fortes e tão altas com que guindar os mesmos materiais até ás nuvens? E dado que houvesse indústria e braços para tudo isto, não sabeis, que, em chegando à terceira região do ar, frigidíssima, haveis de morrer todos? Pois, se para vós levantais a vossa sepultura, e para a mesma torre fabricais as suas ruínas, por que que­reis o que não podeis, e por que trabalhais inutilmente no que não haveis de levar ao cabo? A mesma Escritura Sagrada nos diz altissimamente em uma palavra o porquê. Porque eram filhos de Adão: Descendit Dominus ut videret turrim, quam aedificabant filii Adam[11].

Ora, eu noto que mais certo parece estava chamarem-lhes filhos de Noé, que foi o segundo pai do gênero humano, e o era mais propriamente de todos os que ali se achavam. Pois, por que lhes chama o oráculo divino filhos de Adão, e não de Noé? Porque o nome de Adão tinha muito maior peso e energia no caso presente. Como filhos de Noé não se seguia bem o intento de edificar a torre, porque, se nosso pai fabricou de madeira um edifício que se levantou sobre as águas, não era boa conseqüência: também nós poderemos de barro fabricar outro, que se levante sobre as nuvens. Porém, como filhos de Adão, sim, porque, se Adão foi um homem que cuidou que podia ser como Deus, não é muito que seus filhos cuidem que podem edificar uma torre que chegue até o céu. Enfim, Deus em pessoa desceu a ver a torre, e logo confundiu as línguas de todos, para que se não entendessem a si mesmos os que tinham sido autores de uma fábrica tão mal entendida, e assim cessou a obra: Pendent opera interrupta, minaeque murorum ingentes. E que bem se leria naquelas vastíssimas ruínas, relevada em letras de bronze, a sentença de Davi: Cogitaverunt consilia quae non potuerunt stabilire[12]. Onde intentaram celebrar seu nome fizeram célebre a sua loucura, e na mesma torre, com que quiseram adquirir fama, fabricaram sua própria confusão: isto quer dizer Babel.

Com este exemplo desenganou Deus, e ensinou a todos os homens juntos que pusessem freio à vaidade de seus pensamentos, e não quisessem mais do que podiam. Eles, porém, entenderam tão mal aquela linguagem, e se esquece­ram tão brevemente daquela lição que, divididos pelo mundo, assim como deixa­vam nos campos de Senaar aquele fatal monumento da sua loucura, assim não houve monte ou vale na terra em que não levantassem outros. Ponde-vos entre Sodoma e Segor, e se perguntardes que estátua é aquela que ali se vê em pé, e dura ainda hoje, ninguém vos dirá o nome próprio, porque se não sabe; mas a Escritura Sagrada nos diz que é a mulher de Lot, a qual, porque quis ver o que não podia, conforme o preceito do anjo, no mesmo passo em que voltou os olhos para ver o incêndio das cidades infames, ali ficou convertida em estátua de sal. Ponde-vos na cidade de Galgala, e vereis como um profeta está despojando do cetro e da coroa, e despindo a púrpura a um rei de agigantada estatura, e o mesmo profeta o qual era Samuel vos dirá que aquele rei é Saul, privado para sempre do reino, por se querer aproveitar dos despojos de Amalec, o que não podia, porque Deus lhe tinha mandado que os queimasse todos. Ponde-vos junto ao bosque chamado de Efraim, ali vereis pendurado de um carvalho pelos cabelos, e trespassado pelo peito com três lanças, o mais galhardo mancebo que para inveja da formosura criou a natureza. Tal foi o trágico fim de Absalão, o qual, traidor a Deus, ao pai, à pátria e à si mesmo, sendo terceiro filho de Davi, lhe quis tirar a coroa da cabeça, e pô-la na sua, como não devera nem podia. Ponde-vos nos campos de Babilônia, e vereis com horror andar sobre quatro pés, pascendo feno e bebendo do rio com os brutos, um homem convertido na mesma figura, o qual, pouco antes adorado no trono real, se chamava Nabucodonosor. Era o mais poderoso monarca do mun­do; mas porque quis ser e poder mais do que podia, o fez Deus cursar naquela escola sete anos, para ele aprender e nos ensinar o que podem vir a ser os que querem mais do que podem.

Infinita matéria seria se houvéssemos de discorrer por todos os exem­plos que lemos nas Escrituras Sagradas, do muito que Deus se ofende, e do rigor com que castiga a insolência de quererem os homens poder mais do que ele quis que pudessem. Mas, para último desengano nosso, e testemunho estupendo desta mal entendida verdade, não me é lícito passar em silêncio o que agora referirei, sentenciado e declarado por boca do mesmo Deus. Todo o capítulo quarenta e oito gasta o profeta Jeremias em pregar e anunciar a destruição de Moab, entendendo debaixo deste nome toda a nação dos moabitas. E não há gênero de trabalho, de miséria, de afronta, até a última e total aniquilação, que repetidamente, e por vários modos lhe não ameace. Finalmente, chega a dar as causas de tamanho cas­tigo, e quais vos parece que serão? Uma só, mas admirável, e pronunciada não menos que pelo mesmo Deus: Ego scio, ait Dominus, jactantiam ejus, et quod non sit juxta eam virtus ejus, nec juxta quod poterat conata sit facere[13]. Será destruído e assolado Moab, sem ficar pedra sobre pedra em todas suas cidades diz Deus porque sei que a sua arrogância e presunção é maior que as suas forças, e quis fazer mais do que podia. Pois, por que a presunção de Moab é maior que as suas forças, e porque intentou fazer o que não podia, tamanho delito é estes, e tão abominável diante de Deus, que em castigo dele há de destruir, assolar e aniquilar uma nação inteira? Se o mesmo Deus o não dissera, quem pudera crer tal excesso da divina justiça? Mas assim é sem dúvida, pois Deus dá esta só causa por sua própria boca. E por isso quero tornar a repetir as mesmas palavras: Scio jactanti­am ejus, et quod non sit juxta eam virtus ejus: Porque conheço sua arrogância. e porque sei que as suas forças e o seu poder não é igual a ela. Nec juxta quod poterat conata sit facere: E porque sei que o que intentou fazer era mais do que podia. Tão atrozmente sente Deus, tanto aborrece, detesta e abomina o excesso dos que se atrevem a querer mais do que ele quis que pudessem.

E se me perguntardes em que consiste a atrocidade de um delito que não parecia tão grande, respondo que a razão é porque quererem os homens poder mais do que Deus quis que pudessem toca no vivo de sua própria divindade, destruindo e desacreditando a reta disposição dos seus divinos atributos. Profun­damente Davi: Decidant a cogitationibus suis; secundum multitudinem impietatum eorum expelle eos, quoniam irritaverunt te, Domine[14]. Aos que se atrevem a poder mais do que vós quisestes, vós Senhor, os derrubareis de seus pensamentos, em pena das muitas impiedades com que provocaram a vossa ira. O que neste texto é digno de grande reparo são aquelas palavras secundum multitudinem impi­etatum eorum. O pecado da impiedade consiste em negar a Deus a sua divindade: Dixit insipiens in conte suo: Non est Deus[15]. O pecado de quererem os homens mais do que podem parece que não passa de presunção, soberba e arrogância, como chamou o mesmo Deus ao dos moabitas: Scio jactantiam ejus. Pois, por que chama Davi a estes tais, não só soberbos e arrogantes, senão ímpios e muitas vezes ímpios: Secundum multitudinem impietatum eorum? Porque Deus reparte e mede a cada um dos homens a maior ou menor porção do poder que é servido dar-lhe, segundo o conselho secreto e reta disposição da sua sabedoria, da sua justiça, da sua providência, da sua liberalidade; e contra todos estes atributos divi­nos são ímpios os que querem poder mais do que Deus quis que pudessem. Dei-te pouco, contenta-te com o pouco, que é o que eu sei que te convém, e não queiras muito; dei-te muito, contenta-te com esse muito, e não queiras mais, porque nesse mais que desejas está escondida a tua perdição. Não queiras ensinar a minha sabedoria, não queiras condenar a minha justiça, não queiras emendar a minha provi­dência, não queiras acanhar a minha liberalidade, e porque tudo isto fazes quando queres poder mais do que eu quis, não só uma vez és ímpio, senão muitas vezes: Secundum multitudinem impietatum eorum.

Olhem os homens para as outras criaturas sem uso da razão, e não queiram ser ingratos e soberbos contra Deus, quando todas elas, grandes e peque­nas, o louvam e lhe dão graças pelo que dele receberam. Se o rato não quer ser leão, nem o pardal quer ser águia, nem a formiga quer ser elefante, nem a rã quer ser baleia, porque se não contentará o homem com a medida do que Deus lhe quis dar? E que seria se nem os leões, nem as águias, nem os elefantes, nem as baleias se contentassem com a sua grandeza, e uns se quisessem comer aos outros, para poder mais, e ser maiores? Isto é o que querem e fazem continuamente os homens, e por isso os altos caem, os grandes rebentam, e todos se perdem. Os instrumentos que criou a natureza, ou fabricou a arte para serviço do homem, todos têm certos termos de proporção, dentro dos quais se podem conservar, e fora dos quais não podem. Com a carga demasiada cai o jumento, rebenta o canhão, e vai-se o navio a pique. Por isso se vêem tantas quedas, tantos desastres e tantos naufrágios no mundo. Se a carga for proporcionada ao calibre da peça, ao bojo do navio e à força ou fraqueza do animal, no mar far-se-á viagem, na terra far-se-á caminho, e na terra e no mar tudo andará concertado. Mas tudo se desconcerta e se perde, porque em tudo quer a ambição humana exceder a esfera e proporção do poder.

Vejo que me estão dizendo os prezados de grande coração que estes discurso quebra os espíritos e acovarda os ânimos, para que não empreendam nem façam coisas grandes. Antes, às avessas. Empreendei e fazei coisas grandes, e as maiores e mais admiráveis, mas dentro da esfera e proporção do vosso poder, porque fora dela não fareis nada. Quem empreendeu e obrou maiores coisas na lei velha que Davi, e na nova que S. Paulo? Mas vede como ambos confessam que em todas se mediram com o seu poder, e nunca o excederam. Davi diz: Neque ambulavi in mag­nis, neque in mirabilibus super me[16]. Todos sabemos quão grandes e admiráveis foram as obras e vitórias de Davi: como diz, logo, que não se exercitou em coisas grandes nem admiráveis? Na última palavra: super me, o declara.Foram grandes e admiráveis as minhas obras, mas não superiores a mim, porque, nunca excederam a medida do meu poder e das minhas forças: Neque ambulavi in magnis, neque in mirabilibus super me diz Cartusiano faciendo operam meam mensuram trans­cendentia. Do mesmo modo S. Paulo. As suas tentações, as suas perseguições e as suas vitórias; as suas peregrinações, as suas conversões e os seus trabalhos, padeci­dos pela dilatação da fé, ele mesmo não pode negar que foram maiores que os de todos os apóstolos: Plus omnibus laboravi[17] e, contudo, afirma que nunca exce­deu a regra e poder das forças que Deus lhe tinha dado, medindo-se sempre e em tudo consigo mesmo. Metientes et comparantes nosmetipsos nobis. Secundum men­suram regulae qua menus est nobis[18]. Meça-se, pois, cada um consigo, e ajuste as suas ações com as suas forças e com o seu poder, porque, se para fazer maiores obras quiser poder mais, nem serão maiores, nem obras.

VII

O terceiro modo de querer: querer menos do que pode. Só quem quer me­nos do que pode é sempre poderoso. Qual é a razão por que, sendo o poder de Deus dentro em si e fora de si infinito, dentro em si não pode obrar mais do que obrou, e fora de si pode sempre mais e mais, sem limite nem fim? Por que dispôs a natureza que a mão fosse maior que o coração, e  coração um, e as mãos duas? Os que tomam asas como de águia, e não voam, segundo Isaias. Os sábios que acharam a árvore da vida, e logram na sua o que nenhum homem alcançou. Se Deus, corn todos os cabedais da onipotência, tudo faz com a vara, com a balança e com a pena na mão, onde o poder- é tão limitado, como o das pobrezas humanas, que cabedal pode haver que baste à prodigalidade dos que querem mais do que podem querer? Conclusão.

Depois de considerado nestes dois modos de concordar o querer com o poder, no primeiro, quão conveniente é querer cada um só o que pode, e no segundo, quão errado e arriscado querer mais do que pode, segue-se o terceiro, que consiste em querer menos do que pode, e este modo digo por fim que não só está livre dos perigos e danos do segundo, mas excede com grandes vantagens e maior segurança as mesmas conveniências do primeiro.

Só quem quer menos do que pode é sempre poderoso, porque quem quis quanto podia encheu a medida do seu poder, e não pode passar daí; porém, quem quer menos do que pode, sempre pode mais do que quer. E se esta razão é altamente bem entendida, ainda é mais alta a prova. A onipotência divina obra ad intra e ad extra, como falam os teólogos, isto é, dentro em si e fora de si: dentro em si no ser incriado, e fora de si no ser que dá a todas as criaturas. E que sucede ao poder de Deus nestes dois modos de obrar dentro e fora de si? Dentro de si o padre pelo entendimento produz o Filho, e o Padre e o Filho pela vontade produzem o Espírito Santo. E fora de si o Padre, o Filho e o Espírito Santo criaram estes mundo, e todas as criaturas espirituais e corpo­rais que enchem o céu e a terra. Agora pergunto: E pode Deus com sua onipotência obrar mais do que tem obrado? Ad intra não, ad extra sim. Ad intra não, porque nem o Padre só, nem o Filho só, nem o Espírito Santo só, nem todas as três pessoas divinas juntas podem produzir outra que seja Deus. Porém ad extra sim, porque, assim como criaram estes mundo, assim podem criar infinitos outros, com outras criaturas tão per­feitas, e ainda mais do que todas as que tem criado. Qual é logo a razão por que, sendo o poder de Deus dentro em si e fora de si infinito, dentro em si não pode obrar mais do que obrou, e fora de si pode sempre mais e mais, sem limite nem fim? A razão é clara e manifesta, porque dentro em si obrou Deus quanto podia, fora de si nem obrou nem obrará jamais quanto pode. E se isto é em Deus, quanto mais daí abaixo? Quem quer quanto pode, não pode mais; quem quer menos do que pode sempre lhe sobeja poder.

Daqui se segue que o rico que quer mais do que pode é pobre, e o pobre que quer menos do que pode é rico. O rico que quer mais do que pode é pobre, porque lhe falta o mais que quer; e o pobre que quer menos do que pode é rico, porque lhe sobeja o mais que pode. Assim no-lo ensinou a mesma natureza, mestra de nossas ações, quando nos proveu dos instrumentos, medindo-os com elas. Por que dispôs a natureza que a mão fosse maior que o coração, e o coração um, e as mãos duas? Porque o coração é o instrumento do querer, e as mãos do poder: no, coração está a deliberação da vontade, e nas mãos a execução das obras; e ordenou que a mão fosse maior que o coração, e o coração um, e as mãos duas, para que sempre pudéssemos mais do que quiséssemos, e nunca queiramos tanto quanto podemos. Oh! se os homens entendêssemos esta política natural e doméstica, e nos persuadíssemos a ela, quão descansada seria esta vida, que nós, pelo desgoverno da nossa vontade, e pelos excessos das nossas vontades, faze­mos tão cansada e trabalhosa!

Faz grande diferença o profeta Isaías entre os fracos e de baixos espí­ritos, que rasteiramente seguem os passos da natureza, e os de alto e generoso coração, que, confiados em Deus, se levantam sobre ela. Aqueles diz por robustos que sejam na idade e nas forças, cansam, e enfim caem: Deficient pueri, et laborabunt, et juvenes in infirmitate cadent[19]. Os outros, porém, tomarão asas de águia, e andarão e correrão, sem jamais cansar nem desfalecer: Assument pennas sicut aquilae, current et non laborabunt, ambulabunt et non deficient[20]. Tais são, como estes segundos, os que querem menos do que podem, e tal é o descanso e fortuna da sua vida, se fortuna se pode chamar o que depende da própria vontade, e de seguir o ditame da boa razão. Ponderemos as palavras, que são admiráveis. Diz que tomarão asas como de águia:Assument pennas sicut aquilae mas não diz que voarão. O que só diz é que andarão e correrão, sem cansar nem desfalecer: Current et non laborabnnt, ambulabunt et non deficient. Pois, se têm asas, e asas de águia, por que não voam? E se podem voar, e voar tão alto, como a rainha das aves, por que se contentam só com andar e correr? Porque querem e sabem viver descansadamente. Quem tem asas para voar, e se contenta com andar, é quando muito com correr, pode mais do que quer, e quer menos do que pode; e só quem quer e se contenta com menos do que pode passa a carreira desta vida sem cansar nem desfalecer. O mesmo texto o diz expressamente: Current et non laborabunt, ambulabunt et non deficient. Se quisessem voar, como podiam, pois tinham asas, e tais asas, é força que voando cansassem, ainda que as asas lhes fossem naturais. Assim cansou a pomba de Noé, e por isso se tornou para a arca: Cum non invenisset ubi requiesceret pes ejus[21]; mas por que foram tão sisudos que, tendo asas, não quiseram voar, e se contentaram somente com andar, e quando muito com correr, por isso passaram a carreira desta vida, tão cansada e traba­lhosa, sem nenhum trabalho e com seguro descanso: sem nenhum trabalho: non laborabunt e com seguro descanso: et non deficient.

E ninguém me argumente em contrário com o exemplo dos serafins que ao lado do trono de Deus viu Isaías, os quais perpetuamente cantavam: Sanctus, Sanctus, Sanctus (Is. 6, 3) e perpetuamente voavam. Assim era, mas vede o que diz o profeta: Sex aloe uni, et sex aloe alteri, et duabus volabant (ibid. 2): diz que cada um tinha seis asas, e que voavam com duas e isto mesmo é o que eu digo. Quem tem seis asas, e voa só com duas, sempre voará e sempre cantará. Mas quem, tendo somente duas asas, quer voar com seis, eu vos prometo que brevemente canse de voar, e que sempre chore. Bem o vemos na miserável e triste vida de tantos loucos, que, despojados de quanto tinham e podiam ter, só lhes deixou a fortuna os olhos, para tarde e sem remédio chorarem a sua cegueira. Que cego há tão cego que não apalpe com as mãos que só despendendo um homem menos do que pode conservar o que pode? Ponhamos o exemplo no militar, no político, no econômico, e ainda no rústico, e em todos nos sairá certa a experiência desta verdade. Empenhar todo o exército sem deixar reserva, fá-lo-á o soldado arriscado, mas não o capitão prudente. O lavrador que comer toda a novidade do ano não terá que semear no seguinte. Se o oficial gastar quanto ganha na saúde, com que se há de curar na enfermidade? O mesmo rei que, pródigo. der tudo de quanto é senhor, não terá quem o sirva, porque não terá com que pague. Saber poupar o poder é certo gênero de onipotência, com que nunca pode faltar à necessidade humana o que houver mister, sendo igualmente certo que nenhuma esperança de recuperar o despendido poderá igualar a providên­cia de o poupar, e não despender.

Em nenhuma coisa se empregam os homens com maior diligência e cuidado que em conservar a vida, e, contudo, todos morrem. Qual é a razão? A razão natural é porque a vida consiste no úmido e cálido radical, os quais sempre a vão gastando e consumindo, gastando-se eles também, e consumindo-se a si mesmos. E por mais que a natureza com o alimento e com o medicamento procure recuperar e restaurar o perdido, como ela gasta mais do que pode recuperar, é força que aqueles dois fundamentos da vida, e a mesma vida se consuma, e nin­guém escape da morte. Se a natureza humana gastara menos do que pode recupe­rar, fôramos imortais; mas porque ela gasta mais, todos morremos. Passemos agora da vida natural à econômica e política. Não há república nem família tão desgo­vernada, nem há homem tão pródigo e tão perdido, que nos mesmos excessos com que se empenha e endivida a mais do que pode, não faça conta de recuperar o que gasta, e pagar o que deve. Mas este pensamento é tão enganoso e errada em todos que, assim como vivem empenhados, arrastados e perseguidos dos seus empe­nhos, assim acabam a triste, miserável e aborrecida vida, deixando as dívidas em testamento como em morgado, para que as satisfaçam os filhos e netos, que não pagam as suas, quanto mais as alheias. Para reparo da vida natural criou Deus no paraíso a árvore da vida, cuja virtude era recuperar no mesmo úmido e cálido radical tudo o que eles em si e na mesma vida tivessem gastado e consumido; mas o benefício desta restauração nenhum homem, chegou a conseguir. Contudo, eu leio no capítulo terceiro dos Provérbios que aqueles que aprenderam a verdadeira sabedoria, e a observam, logram os frutos da árvore da vida: Lignum vitae est his qui apprehenderint eam, et qui tenuerit eam beatus[22]. Que sábios são logo estes que acharam a árvore da vida, e logram na sua o que nenhum homem alcançou? São aqueles que, gastando sempre menos do que podem, conseguem sabiamente antes o que a árvore da vida havia de fazer depois. A árvore da vida havia-lhes de restaurar o gastado depois de o gastarem, e eles, por preservação antecipada, con­servam o que ela havia de restaurar, não o gastando. Se Adão comera antes o que havia de comer depois, fora imortal; por isso disse Deus: Ne comedat de ligno vitae, et vivat in aeternum[23]. E isto que Adão não fez na vida natural, fazem na vida econômica e política os que sabiamente conservam em si, não gastando o que a árvore da vida havia de recuperar, mas nunca recuperou, depois de gastado.

Grandes escrúpulos de consciência pudera eu apertar agora neste pon­to, pelo grande número de almas que por estes empenhos sem restituição se con­denam; mas há muito que estou desenganado que o que os homens não fizerem pelos escrúpulos da conveniência, muito menos o farão pelos da consciência. Os da conveniência pertencem a esta vida, os da consciência à outra, de que há tão poucos que tratem. Para conclusão, pois, de toda esta matéria, tão importante para o presente como para o futuro, acabo com uma sentença, que, sendo do Espírito Santo, até no mesmo Espírito Santo é admirável. No capítulo onze da Sabedoria divina, falando a mesma Sabedoria com Deus, diz assim: Omnia in mensura, et numero, et pondere disposuisti; multum enim valere, tibi soli superest semper (Sab. 11, 21 s): Vós, Senhor, tudo fazeis com conta, peso e medida, porque só a vós sobeja sempre o poder para quanto quiserdes. Notável porquê! Se dissera que Deus faz tudo com conta, peso e medida, porque lhe não falta o poder, boa conseqüência era; mas porque lhe sobeja o mesmo poder: Multum enim valere tibi soli superest? Sim, porque fazer tudo com conta, peso e medida é propriedade do poder que sempre há de sobejar; e, pelo contrário, fazer as coisas sem conta, peso nem medida é propriedade assim mesmo do poder que nem há de sobejar nem bastar. E se Deus, com todos os cabedais da onipotência, tudo faz com a vara, com a balança e com a pena na mão: com a vara para a medida, com a balança para o peso, e com a pena para o número onde o poder é tão limitado, como o das pobrezas humanas, que cabedal pode haver que se não consuma e acabe, e que baste à prodigalidade, ao desconcerto, à desatenção e ao apetite dos que, queren­do mais do que podem, tudo quanto têm e quanto não têm desbaratam sem conta, sem peso e sem medida? Oh! cegueira do lume da razão e da fé! Por que não medimos o tempo com a eternidade? Por que não pesamos o céu com o inferno? E por que não fazemos conta da que havemos de dar de nós a Deus, e também aos homens? Se com esta conta, com este peso e com esta medida ajustarmos, não só as nossas ações, senão também os nossos desejos, é certo que o nosso querer se concordará facilmente com o nosso poder, e, contentando-nos, não só com todo ele, mas com menos do que podemos, por meio do maior descanso que pode haver nesta vida, conseguiremos o verdadeiro e eterno da outra.



[1] Se tu queres, podes (Mt. 8, 2).

[2] Achou-se que tinha menos do peso (Dan. 5, 27).

[3] Vós esperastes o mais, e eis que vós veio o menos (Ag. I, 9).

[4] Fazer de mim como de um dos teus jornaleiros (Lc. 15, 19).

[5] Podeis vós beber o cálix que eu hei de beber (Mt. 20, 22)?

[6] Pai, se é possível (Mt. 26, 39).

[7] Tu não poderás resistir a este filisteu, nem combater com ele, porque tu és um menino, e este é um homem guerreiro desde a sua mocidade (1 Rs. 17, 33).

[8] Assim também eu, teu servo, matei um leão e dm urso (ibid. 36).

[9] Eu não posso andar assim (ibid. 39).

[10] Façamos célebre o nosso nome, antes que nos espalhemos (Gên. 11, 4).

[11] O Senhor desceu para ver a cidade que os filhos de Adão edificavam (ibid. 5).

[12] Maquinaram conselhos que não puderam estabelecer (SL 20, 12).

[13] Eu sei, diz o Senhor, a sua jactância. e que não é conforme a ela o seu valor, nem os seus esforços têm sido conforme ao que podia fazer (Jer. 48, 30).

[14] Caiam de seus pensamentos, lança-os segundo a multidão das suas impiedades, porque te irrita­ram, Senhor (SI. 5, 11).

[15] O insensato disse no seu coração: Não há Deus (SI. 13, 1).

[16] Não andei em grandezas, nem em magnificências sobre a minha sorte (SI. 130, 1).

[17] Tenho trabalhado mais que todos (1 Cor. 15, 10).

[18] Nós nos medimos conosco, e nos comparamos a nós mesmos, segundo a medida da regra com que Deus nos mediu (2 Cor. 10, 12 s).

[19] Desfalecerão os meninos, e fatigar-se-ão, e os mancebos cairão de fraqueza (Is. 40, 30).

[20] Tomarão asas como de águia, correrão e não se fatigarão, andarão e não desfalecerão (ibid. 31).

[21] Como não achasse onde pousar o seu pé (Gên. 8, 9).

[22] A árvore da vida para aqueles que lançaram mão dela, e bem-aventurado o que não a largar (Prov. 3, 18).

[23] A árvore da vida para aqueles que lançaram mão dela, e bem-aventurado o que não a largar (Prov. 3, 18).