Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DA SEGUNDA-FEIRA DEPOIS DA SEGUNDA
DOMINGA DA QUARESMA

Em Torres Vedras, andando o autor em Missão, ano de 1652.

Ego vado, et quaeretis me, et in peccato vestro moriemini [1].

§I

Os repetidos ais da águia do Apocalipse. Que desgraça e miséria humana será aquela que obrigue aos bem-aventurados, na segurança do céu, a se condo­er tanto de nós, e lamentar com tão repetidos ais o perigo dos que vivemos na terra? Correspondências entre os três ais do capítulo oitavo do Apocalipse e as três partes da sentença de Cristo, referida por S. João no capítulo oitavo de seu Evangelho.

Entre as famosas e escuras visões do Apocalipse, é notável a de uma águia, a qual, diz o texto que, voando pelo meio do céu, repetiu três vezes a gran­des vozes esta, não sei se diga pequena, se grande palavra Vae: Et vidi, et audivi vocem unius aquilae volantis per medium caeli, dicentis voce magna: Vae, vae, vae [2] . — Vae quer dizer ai, e repetir a águia três vezes vae, vae, vae foi dizer outras tantas vezes ai, ai, ai. Mas se a águia voava pelo meio do céu: volantis per medium caeli — e no céu não pode haver dor nem tristeza, que ais são estes que se ouvem no céu? A mesma águia declarou que a causa dos ais não estava no céu, senão na terra: Vae, vae, vae habitantibus in terra: Ai, ai, ai sobre os habitadores da terra! - De sorte que os males que davam motivo aos ais, ou fossem males padecidos ou ameaçados, não pertenciam aos moradores do céu, senão aos da terra. Esta decla­ração, porém, não tira a dúvida, porque os ais são sinal de dor e tristeza, e no céu, como se diz no mesmo Apocalipse, não pode haver tristeza nem dor: Ne que luc­tus, neque clamor, neque dolor erit ultra, guia prima abierunt [3] . — Que ais eram logo estes, e tão repetidos no céu? Responde literalmente Aretas que os ais não eram de própria e verdadeira dor ou tristeza, de que não é capaz a glória, mas de compaixão e piedade condoendo-se os bem-aventurados, quanto lhes é possível, e lamentando as desgraças e misérias a que estamos sujeitos os homens enquanto vivemos neste mundo: Tripliciter vae propter caelestium erga nos condolentiam, propter quam etiam potissimum vae ipsis triplicatur, ad signandam lamentatio­nem maximam quam nostri gratia suscipiunt, tan quam ob suos conservos, adeo­que contigit, ut illi afluenti tristitia afficiantur: — Até aqui Aretas, que escreveu há novecentos anos um dos mais doutos e graves comentadores do Apocalipse, cujas palavras ainda são mais apertadas e encarecidas do que eu referi no sentido delas.

E porque o juízo que os bem-aventurados fazem das que nós chama­mos desgraças e misérias é muito diferente do nosso, com muita razão se me pode perguntar que desgraça e miséria humana será principalmente aquela que obrigue aos bem-aventurados, na segurança do céu, a se condoer tanto de nós, e lamentar com tão repetidos ais o perigo dos que vivemos na terra? Confiadamente respon­do que não é nem pode ser outra, senão o descuido contínuo da salvação com que vivem os pecadores, e a impenitência final com que acabam a vida e morrem em seu pecado. Provo. É verdade de fé, afirmada por boca do mesmo Cristo, que quando um pecador se converte com verdadeira penitência de seus pecados, se fazem maiores festas no céu do que lá se festeja e celebra a inocência de noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência: Gaudium erit in caelo super uno peccatore poenitentiam agente, quam super nonaginta novem justis, qui non indigent poenitentia (Lc. 15, 7). — Logo, se a penitência de um pecador verdadei­ramente arrependido se celebra no céu com tantas demonstrações de festa e ale­gria, que outro motivo igual pode haver que cause lamentações e tão repetidos ais no mesmo céu, senão a vida habitualmente depravada dos pecadores, e a impeni­tência última e final com que, morrendo como vivem, se perdem para sempre e se condenam? Assim se deve crer, e assim o torno a afirmar: nem quero outra maior ou melhor confirmação do que digo, que a autoridade do mesmo S. João, nem outras palavras suas, senão as que tomei por tema: Ego vado, et quaeretis me, et in peccato vestro moriemini [4].

Perguntam os expositores do Apocalipse quem era ou significava aquela águia que bradava a grandes vozes vae, vae, vae? E resolvem Lirano, Aurélio, e outros, que era o mesmo S. João, ao qual entre os quatro evangelistas, representados nos quatro animais do carro de Ezequiel, pertence a águia. De maneira que o mesmo S. João era a águia que viu e a águia que foi vista no Apocalipse. E se aquela águia disse vae, vae, vae, segue-se que o mesmo S. João, que a viu e ouviu, disse também o que ela disse. Mas quando? Verdadeiramente que não pode haver correspondência nem mais igual nem mais própria. S. João primeiro escreveu o Apocalipse, e depois o Evangelho. E assim como no capítulo oitavo do seu Apocalipse viu a águia e ouviu o que dizia, assim hoje, no capítulo também oitavo do seu Evangelho, disse o que ouviu, para que nós o ouçamos. Lá falou a águia com três ais: vae, vae, vae — e cá explica S. João aqueles três ais com outros três, que são as três cláusulas do nosso tema: Ego vado — o primeiro ai; et quaeretis me — o segundo; et in peccato vestro moriemini –o terceiro. As palavras que disse a águia do Apocalipse não foram suas, senão de Deus, o qual Ihas pôs na boca, para que com sobrenatural instinto as desar­ticulasse; e do mesmo modo estas palavras, que refere S. João no Evangelho, não são suas, senão de Cristo, o qual as tinha denunciado em Jerusalém antes que ele as escrevesse. Não queriam aqueles homens obstinados crer que era Filho de Deus, e o verdadeiro e esperado redentor de Israel; e como a todos os argumentos de sua divindade cerrassem ouvidos, e a todas as evidências de sua onipotência os olhos –Já que assim é - conclui o Senhor - eu me irei deste mundo, e vos deixarei; mas virá tempo em que me busqueis, e não me acheis, e todos morrereis em vosso pecado: Ego vado, et quaeretis me, et in peccato vestro moriemini.

Esta sentença profética se cumpriu pontualmente nos judeus, e se vai cumprindo ainda nos que, obstinados e impenitentes, vivem e morrem na mesma cegueira. Mas porque não basta só a fé a impedir a mesma desgraça, e que se não estenda a muitos cristãos, para que estes ouçam, conheçam e temam a tempo o seu perigo, ajuntaremos aos três ais de S. João as três partes da sentença de Cri sto, que ele refere, e verá cada um claramente se caem ou podem cair estes ais a sua vida e morte. Vae: ai de vós aqueles que fordes deixados de Deus: Ego vado! Vae: ai de vós aqueles que o haveis de buscar debalde: et quaeretis me! - Voe; ai de vós aqueles que morrerdes no vosso pecado: Et in peccato vestro moriemini! — Da temerosa consideração destes três ais se comporão os três pontos do nosso discurso, bastante cada um deles a fazer tremer o mundo, a quebrar as pedras e derreter os bronzes. Mas porque sem a graça de Deus ainda há corações mais duros, peçamo-la ao Espírito Santo, por intercessão da cheia de graça:Ave Maria.

§ II

Ao primeiro ai de S. João responde a primeira cláusula da sentença de Cristo: Eu me irei deste mundo. O fundamento do conselho dos inimigos de Davi, e o socorro que Davi pede a Deus no Salino setenta: Senhor, não vos aparteis de mim. –A causa principal e oculta da infâmia e miséria de Sansão.

Ao primeiro vae da águia e ao primeiro ai de S. João responde a pri­meira cláusula da sentença de Cristo, em que diz o mesmo Senhor que há de deixar aquele ingrato e obstinado povo, com quem falava, e se há de ir: Ego vado. — Oh! que terrível ameaça! Qh! que lastimosa despedida! Agora se cumpriu o que o mesmo Cristo, enquanto Deus, por boca de Oséias, tinha profetizado ao mesmo povo, e com o mesmo ai: Vae eis cum recessero ab eis (Os. 9, 12). Ai deles, quando eu me apartar deles! — Só quem pudesse compreender aquele ego enten­deria bastantemente o que encerra em si este vae. Ovae é o eu trocado, e assim como eu significa o sumo bem [5], assim o vae é uma suma abreviada de todos os males. Nem convosco há mal que para mim seja mal, nem sem vós pode haver bem, que para mim seja bem, dizia a Deus Santo Agostinho. Se Deus, que me deu o ser, e de quem depende quanto sou, quanto posso e quanto tenho, se apartar de mim, que há de ser de mim? Quem não penetra o fundo desta verdade nem tem fé nem entendimento. Vede que bem a entendeu Davi, e também seus inimigos.

Considerando-se Davi nos últimos anos da velhice, compôs o salmo setenta, em que fez esta oração a Deus: Ne projicias me in tempore senectutis; cum defecerit virtus urea, ne derelinquas me. Quia dixerunt inici mei mihi, et qui custodiebant animam meam consilium fecerunt in unum, dicentes: Deus dixcrunt inimici mei mihi, et qui custodiebant animam guia non est qui eripiat. Deus, ne elongeris a me (Sl 70, 9, 10 ss): Peço-vos, Senhor, que no tempo da velhice, quando me faltarem as forças, não me lanceis de vós, nem me deixeis. Porque meus amigos se uniram, e fizeram conselho contra mim, no qual disseram: Deus deixou a Davi, agora é tempo de o perseguirmos e lhe tirarmos a vida, porque não tem quem o livre, nem defenda. Pelo que vos peço, Senhor, que não vos aparteis de mim. — Duas grandes ponderações se encerram nestas palavras. A primeira, o fundamento que tomam os inimigos de Davi no seu conselho, para o destruírem a seu salvo; a segunda, o socorro que Davi pede a Deus, para se defender e prevale­cer contra eles. Ofundamento do conselho dos inimigos é que Deus deixou a Davi: Deus dereliquit eum - e o socorro que Davi pede a Deus é que o não deixe nem se aparte dele: Ne elongeris a me. — De sorte que em Deus se apartar ou não apartar de Davi, assim no seu juízo como node seus inimigos, consistia ou a sua vida ou a sua morte, ou a sua destruição ou a sua felicidade, ou todo seu bem ou todo seu mal. Bem pudera o conselho dos inimigos de Davi discorrer e dizer pru­dentemente: Agora é a ocasião de prevalecermos contra ele, porque aquele valor e brio, com que vencia e matava os gigantes, carregado com o peso dos anos, e cansado com os trabalhos da vida, já está enfraquecido e frio; agora é a ocasião, porque, pretendendo por uma parte Adonias, e por outra Salomão, suceder-lhe na coroa, não só está dividido o reino, mas vacilante a fé dos vassalos entre duas parcialidades; agora é a ocasião, porque, estando criminoso Joab pelas duas mor­tes de Abner e Amasa, e tendo o governo das armas, antes se quererá defender com elas que expor-se desarmado ao castigo. Mas nem destas nem de nenhuma outra consideração política fizeram caso, e toda a resolução do seu conselho se fundou em Deus ter deixado a Davi, como supunham: Deus dereliquit eum, et nor est qui eripiat –e do mesmo modo Davi nem pediu a Deus a fidelidade dos vasca los, nem a concórdia das parcialidades, nem o acerto da sucessão, nem a obediên cia do general e sujeição do exército, senão, uma e outra vez, que Deus o nãc deixasse nem se apartasse dele: Ne derelinquas me, ne elongeris a me– porque se Deus o não deixasse nem se apartasse dele, em qualquer estado e perigo das coisas humanas estava seguro; e, pelo contrário, deixado e apartado de Deus, nem todo o mundo, ainda que o tivesse por si, o poderia defender nem livrar: Non est qui eripiat.

E se queremos ver a verdade deste discurso de Davi e seus inimigos reduzida à prática e canonizada na experiência, ponhamos diante dos olhos a fa­mosíssima história de Sansão, na primeira e segunda parte de sua vida, ou enquan­to conservou inteiros os seus cabelos, ou depois que os teve cortados. É caso que parece fabuloso, se não fora da Escritura Sagrada. Enquanto conservou os cabe­los era tão valente Sansão que, com as mãos nuas metidas dentro das bocas dos leões, lhes partia os queixos e os lançava mortos aos pés; era tão valente que, cerrando as portas da cidade de Gaza, os filisteus para o prenderem dentro, ele também, sem outro instrumento que as mãos, quebrou os ferrolhos, e tomando as mesmas portas aos ombros, lhas foi por sobre um monte à vista; era tão valente que, cercado de um grande exército dos mesmos filisteus, com a queixada que ali achou de um jumento, matou não menos que mil deles; era tão valente que, dor­mindo e atado com sete cordas, uma vez de linho nunca usadas, outra vez de nervos crus, outra cravadas fortemente na terra, só com o movimento de espertar rompeu tão facilmente aquelas ataduras, que puderam ter mão em sete elefantes, como se foram teias de aranha. Pode haver maior maravilha, maior assombro, maior prodígio de forças? Nem se pode imaginar maior, nem jamais o houve se­melhante. Assim era aquele só homem o terror e o medo universal das cidades e dos exércitos, da mais forte e belicosa nação daquele tempo. Voltemos agora a folha à mesma história, e veremos outro assombro maior. Vedes levar preso e manietado um miserável homem, com o rosto derribado para a terra, e com a cabeça escalvada e sem cabelo? Pois aquele é o mesmo Sansão, porque uma mu­lher o entregou a seus inimigos, e ele o seu segredo a uma mulher. Lá o levam a um cárcere, cujas cadeias ele não pode quebrar, e cujas portas não pode abrir; lá lhearrancam ambos os olhos, com que de novo lhe atam as mãos, que já não temiam; de lá o tiram para moerem uma atafona como jumento, ou esquecidos ou lembra­dos da queixada do outro; e para maior escárnio e afronta do que tantas vezes os afrontou, nos dias de festa pública o mandavam bailar nos seus banquetes; e aquele mesmo Sansão, ao som de cujo nome emudeciam as trombetas dos exércitos dos filisteus, agora baila adiante deles ao som das suas guitarras!

Oh! mudança estupenda e inaudita! E mais estupenda ainda pela causa que pelo efeito! Em Sansão não houve outra mudança que conservar ou não con­servar os cabelos. E é possível que só porque perdeu os cabelos perdesse o valor, as forças e a virtude com que obrava tantas maravilhas? E que a fama e glória que com elas tinha ganhado se convertesse em tal extremo de miséria e infâmia? Sim e não, porque debaixo desta causa exterior, que se via, havia outra principal e oculta, que era haver-se Deus apartado e deixado a Sansão. Omesmo texto sagra­do o diz expressamente. Depois que Dalila lhe tinha cortado os cabelos, sem o mesmo Sansão o sentir, porque estava dormindo, ao brado de que os filisteus vinham ele, espertou sem nenhum temor, cuidando que se livraria das suas mãos tão facilmente como as outras vezes; mas não sabia, diz o texto, que Deus se tinha apartado dele: Nesciens quod recessisset ab co Dominus (Jz. 16, 20). — Estai ago­ra no caso e na verdadeira causa daquela tão notável mudança. Sansão era de religião e profissão nazareno, cujo instituto principalmente consistia em conser­var e nunca cortar os cabelos. Assim o declarou ele a Dalila, quando lhe descobriu o segredo: Ferrum nun quam ascend it super Caput ineum, guia nazaraeus, id est, consecratus Deo sum ab utero matris meae [6]. — E como naquela cerimônia e pro­testação exterior consistia a observância do seu instituto, enquanto conservou os cabelos assistiu-o Deus, tanto que se sujeitou a que lhos cortassem, apartou-se dele. De sorte que a fortaleza dos braços de Sansão, e as maravilhas que com ela obrava, não era virtude natural que os seus cabelos tivessem, mas concurso e influxo particular de Deus, com que, pela observância de sua profissão, sobrena­turalmente o assistia. Assistido Sansão de Deus, era o terror de seus inimigos, a fama, o assombro e o milagre da valentia; e, pelo contrário, deixado de Deus, era o ludíbrio e escárnio dos mesmos inimigos, e não só o exemplo mais raro da mudança, mas o despojo mais vil da fraqueza, do desprezo e da miséria. Assim levanta Deus a quem assiste, assim fica quem ele deixa, e assim ficou o ingrato e infeliz povo, a quem hoje disse que havia de deixar: Ego vado.

§ III

Quando se cumpriu a palavra ego vado, e quando teve seu efeito esta partida e despedida do Senhor? Razões por que Cristo se lamentou na cruz dizendo. Deus meu, Deus meu, por que me deixaste? — Quão admiravelmente concorda com esta lamentação de Cristo, enquanto homem, o ai do mesmo Cristo, enquan­to Deus, por boca do profeta Amós: Ai deles, quando eu tomar a carne deles! - como tresladam os Setenta.

Com muita razão — quando não houvera outra — deixou Cristo, aqueles que, sendo seus, como diz S. João, o não receberam: In propria venit, et sui eum non receperunt [7] . — E se perguntarmos quando se cumpriu a palavra ego vado, e quando teve seu efeito esta partida e despedida do Senhor, deixando, não as pe­dras de Jerusalém, senão os seus habitadores, mais duros que elas, segundo a história de Josefo se pode reduzir ao tempo do cerco e destruição da mesma cidade por Tito e Vespasiano, porque então se ouviu claramente sair do Templo uma voz que dizia: Migremus hinc: vamo-nos daqui - para que constasse aos de dentro e aos de fora que Deus deixava e desamparava aquela casa, que em todo o mundo era conhecida por sua. Assim disse fingida mas racionavelmente o poeta, que antes de se abrasar Tróia, a deixaram e se saíram dela os deuses tutelares da mes­ma cidade: Excessere adytis omnes, arisque relictis, dii, quibus imperium hoc steterat [8].

Mas o certo é que o tempo em que Deus deixou aquele ingratíssimo povo foi o mesmo em que eles o puseram em uma cruz, e o mesmo Senhor que da sua carne, e do seu sangue tinha tomado o corpo mortal, deu a vida também por eles. Ouvi e ouçam os mesmos a clareza com que tinha profetizado o seu profeta Jeremias: Reliqui domuni meam, dimisi haereditarem meam; dedi dilectam ani­mam meam in manu inimicorum ejus [9] . — Jerusalém e Judéia era a que antigamen­te se chamava a casa e a herdade de Deus, e diz agora o mesmo Deus que não só deixou a sua casa, e renunciou e abriu mão de sua herdade, senão que a sua própria vida entregou nas mãos de seus inimigos, porque tudo sucedeu juntamente e no mesmo dia. No dia em que Deus se entregou nas mãos de seus inimigos, e morreu pregado por eles em uma cruz, nesse mesmo dia deixaram de ser casa sua e herdade sua, porque nesse mesmo dia os deixou e os lançou de si. E para que se veja o extremo de dor com que Cristo na mesma cruz e no mesmo dia sentiu ver deixado por Deus, e lançado de sua proteção um povo a que tanto amava e pelo qual tanto tinha padecido, ponderemos umas palavras do mesmo Senhor ditas naquela ocasião, variamente interpretadas, e no sentido que quero dizer, própria e verdadeiramente entendidas.

A quarta palavra de Cristo na cruz foi: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me (Mt. 27, 46)? Deus meu, Deus meu, por que me deixastes? — E como deixou Deus, ou pôde deixar a Cristo? Quanto à divindade não, porque a união da pessoa divina com a natureza humana é indissolúvel e eterna; quanto à graça também não, porque a mesma graça e glória que recebeu na Encarnação, e tem hoje no céu, teve e conservou na cruz. Nem se diz coerentemente que foi Cristo deixado de Deus porque o não livrou das dores e afrontas daquele tormen­toso suplício, porque ele as aceitou, e se ofereceu ela voluntariamente: Oblatus est, quia ipsi voluit [10] . — E, se quisera que o Padre o livrara e defendera de todo o poder de seus inimigos, bastando para isso um anjo, lhe daria mais de doze legi­ões, como disse o mesmo Senhor a S. Pedro: An putas, quia non possum rogare Pat rem et exhibebit mihi plusquam duodecim legiones angelorum [11]Pois, se Cristo não foi deixado de Deus, nem pela desunião da divindade nem pela subtração da graça, nem pela negação do auxílio e socorro exterior, e muito menos pelo interior da virtude, da constância e da paciência, porque se lamenta o animosíssi­mo e fortíssimo Redentor de Deus o ter deixado: Ut quid dereliquisti me?– A razão foi porque estas palavras disse-as. Cristo quase à hora nona, em que expi­rou, como nota S. Mateus: Et circa horam nonam clamavit Jesus voce magna dicens: Deus meus, ut quid dereliquisti me [12]? — E naquela mesma hora deixou Deus, repudiou e lançou de si a nação hebréia, e passou a sua fé, o seu culto e a sua igreja do povo judaico para o gentílico. Assim o significou na mesma hora o véu do Templo, que cobria o Sancta Sanctorum, rasgando-se, e assim o ensinam S. Jerônimo, Santo Ambrósio, Orígenes, Teofilato, Eutímio, e o confirma, com autoridade pontifícia, S. Leão Papa: Per veli scissionem repudiator vos, ojudaei, debuistis agnoscere, et omne jus sacerdotii perdidisse. Adeo tunc a lege ad Evan­gelium, a Sinagoga ad Ecclesiam, a multis sacr(icüs ad unam hostiam, quae Deus est, ejusdem estfacta translatio [13] .

E porque Cristo era da nação hebréia, e Deus naquela hora deixava e lançava de si a mesma ação, por isso na mesma hora se lamentou que Deus o deixava a ele. Quando Saulo perseguia a Igreja, não lhe disse Cristo: Saule, Saule, quid me persequeris [14]? — Pois, assim como Saulo perseguia a Cristo, porque perseguia o seu corpo místico, que é a Igreja, assim Deus deixava a Cristo, porque deixava aquele corpo natural e político, de que ele tomara a carne e sangue, que era a nação hebréia. Ut quid dereliquisti me? Idest, meum genus, meum populum Judaeorum, qui secundum carnem mihi cognati sunt - disse com singular pensa­mento Teofilato. E porque esta razão, que eu tenho pela mais própria, natural e genuína do texto, não fique só no testemunho de um autor, posto que tão qualifi­cado, eu a confirmo com outros dois, e da maior autoridade de toda a Igreja. Os evangelistas que relataram este caso, foram S. Mateus e S. Marcos, e ambos, com outra singularidade maior, escreveram as palavras de Cristo na língua que naquele tempo era a vulgar dos hebreus, em que o Senhor as disse: Eli, Eli, lama, sabac­thani (Mt. 27, 46; Mc. 15, 34). — Leiam-se todos os evangelistas e todas as senten­ças que eles referem de Cristo, e nenhuma se achará escrita na língua hebraica, senão esta, em que o Senhor se lamentava de Deus o ter deixado. Qual é logo o mistério por que só esta se escreveu naquela língua, e não só por um dos evange­listas, senão por ambos os que referem o caso? Sem dúvida para que entendêsse­mos que Cristo se queixou ou manifestou aquele seu sentimento, não enquanto representava na cruz a todo o gênero humano, senão enquanto fazia as partes do povo judaico. Cristo na cruz, como segundo Adão, e pagador das suas dívidas, representava a todo o gênero humano, o qual então se dividia em dois povos, o gentílico e o judaico. E como Deus então lançava de si o povo judaico, e passava a sua Igreja ao gentílico, por isso com tão singular novidade quiseram declarar os evangelistas que quando assim se queixou o Senhor não falava em nome de todo o gênero humano, senão do povo judaico somente, como quem atualmente estava vertendo o sangue que dele tinha tomado.

Oh! que admiravelmente concorda com esta lamentação de Cristo, enquanto homem, aquele vae do mesmo Cristo, enquanto Deus, por boca do pro­feta Amós, que no princípio referimos: Vae eis, cum recessero ab eis! — Onde a nossa Vulgata diz: Ai deles, quando eu me apartar deles — a versão hebraica tem: Ai deles, quando eu tomar a carne deles: Vae eis, cum caro mea ex eis. — Assim tresladam os Setenta, aos quais seguem todos os padres, principalmente gregos. Pois, por que Deus se havia de unir tanto com os hebreus, que havia de tomar carne deles, por isso diz ai deles, e que se há de apartar deles: Vae, eis, cum reces­sero ah eis?–Sim. Assim como foi a maior felicidade do gênero humano fazer-se Deus homem, assim foi a maior desgraça dos hebreus fazer-se Deus homem da sua nação. Porque, antes de Deus se fazer homem, muitas vezes quis deixar e lançar de si aos hebreus, pelas grandes ocasiões que para isso lhe deram com as suas ingratidões, mas sempre lhes perdoou. Porém, depois que se fez homem da sua nação, e eles foram tão proterva e obstinadamente ímpios que, tomando deles o corpo e sangue, o corpo o pregaram em uma cruz, e o sangue o derramaram, então se fizeram indignos de todo o perdão. Ouvi quão descoberta e sentidamente lho declarou o mesmo Senhor: Jerusalem, Jerusalem, quae occidis prophetas, et lapidas eos, qui ad te missi sunt (Mt. 23, 37). Ah! Jerusalém, Jerusalém, que matas e apedrejas os profetas, por meio dos quais te, chamou Deus, e te quis unir a si! Quoties volui congregare filio, tuos, quemachnodum gallina congregat pullos suos sub alas, et noluisti? E quantas vezes quis eu fazer o mesmo, chamando os teus filhos, como a ave mais amorosa chama os seus para os abraçar consigo e os meter debaixo das asas, e tu não quiseste? — Mas pois tu me não quiseste a mim, também eu te deixarei a ti: Ecce relinquetur vohis domus vestra deserta [15]. — Por­que depois deste dia me não verá mais Jerusalém, senão quando eu fizer nela a última entrada, que será também a última despedida: Dico enim vobis, non me videbitis amolo, donee dicatis: Benedictus, qui venit in nomine Domini [16] . - En­tão o viram para nunca mais o verem, porque entrou em Jerusalém para morrer, e morreu para a deixar e se ir: Ego vado.

§IV

O que acontece ao homem de quem se aparta Deus? As três estradas gerais por onde são deixados de Deus os que ele deixa, e os modos por que em cada uma delas são deixados. A grande freqüência com que pede Davi a Deus que o não deixe. A deixação final ou total de Deus. O castigo de Carne a cidade de Henóquia.

Miserável foi Jerusalém, e, sobre toda a miséria, miserável quando Deus a lançou de si e a deixou. E acabou-se então aquela miséria? Não. Porque na mesma Jerusalém, que acabou, era significada a alma, que não acaba — à qual tantas vezes na Sagrada Escritura se dá o mesmo nome de Jerusalém — e não é menor nem menos lastimosa, mas digna de ser lamentada com maiores ais a misé­ria de qualquer alma, quando Deus se aparta dela, e quando verdadeiramente se pode chamar alma deixada de Deus. Que sucede ao corpo quando dele se aparta a alma? Tem olhos e não vê, tem ouvidos e não ouve, tem língua e não fala, tem pés e não anda, tem mãos e não obra, tem coração e não vive; e isto mesmo é o que acontece ao homem de quem se aparta Deus, que é a alma da nossa alma. Cego para não ver o que lhe convém; surdo para não ouvir os ditames da verdade; mudo para não confessar seus pecados, ou só por cerimônia e sem emenda; paralítico e tolhido de mãos e pés para não fazer ação nem dar passo que não seja para sua perdição. Perdido nos pensamentos, perdido nas palavras, perdido nas obras, e dentro e fora de si, todo e em tudo perdido. Considerai-me um homem sem uso de razão e um cristão sem lume de fé, e tal é o que Deus deixou e lançou de si. Cavalo no precipício sem freio, navio na tempestade sem leme, enfermo na doença mortal sem médico. Enquanto a mão de Deus o deteve, não caiu; enquanto as suas inspi­rações o guiaram, não se afogou; enquanto os seus auxílios o socorreram, não morreu; mas, logo o vereis precipitado, afogado e morto sem remédio, porque Deus abriu mão dele, e o deixou.

Oh! quantos deixados de Deus enchem hoje o mundo, e quão cegos são eles, se não se vêem, e nós também, se os não conhecemos! Quem é aquele poderoso, que de dia e de noite não cuida nem imagina senão como há de fartar a cobiça, inventando novas traças de adquirir e roubar o alheio, sem escrúpulo nem pensamento de o restituir? E quem é aquele pródigo no pedir, insensível no dever e insaciável no gastar, sem conta, sem peso, sem medida, como se a culpa de não pagar, devendo, não fora estar sempre roubando, e assim vive, por que assim há de morrer? É um deixado de Deus. Quem é aquele soberbo, que, por fartar sua ambição, reconhecendo em si a falta que tem de merecimento, não repara em derribar por meios caluniosos e traidores os que quer fazer degraus para ele subir? E quem é aquele que, com subornos, com adulações, com hipocrisias e enganos, apesar da natureza, da fortuna, da justiça e da opinião, chega a conseguir e ser o que elas lhe negaram, e não teme que há de pagar na outra vida o que nesta não hão de lograr seus descendentes? É um deixado de Deus. Quem é aquele sensual, que, por fartar seu apetite, com tanta publicidade nos vícios como se foram virtu­des, sem reverência de Deus, nem respeito do mundo, nem pejo de si mesmo, nos anos mais que da mocidade desbaratou a fazenda, a saúde, a honra e a vida? E quem é aquele que, não tendo já mais que os ossos, que mandar à sepultura, pelos não descamar de todo, ainda à vista da morte os leva a queimar no mesmo cemité­rio, e por dar aquela lenha seca ao fogo, que se acende e apaga em um momento, não faz caso — como senão tivera fé de ir arder para sempre no do inferno? É um deixado de Deus.

Estas são as três estradas gerais por onde são deixados de Deus os que ele deixa; mas os modos porque em cada uma delas são deixados não tem conto. Uma das coisas que muito tenho notado em Davi é a grande freqüência com que pede a Deus que o não deixe, e os muitos e vários modos com que repete e insta nesta mesma petição. No salmo vinte e um, e trinta e sete: Deus meus, ne discesse­ris a me [17] ;no salmo vinte e seis: Ne avertasfacien tuam a me, neque despicias me, ne declines a servo tuo [18] ; — no salmo trinta e quatro: Ne discedas a me [19]; no salmo cinqüenta: Ne projicias me [20]: — no salmo setenta: Ne elongeris a me [21] - no salmo cento e dezoito: Ne repelias me [22]:no salmo vinte e seis, trinta e sete, setenta, cento e dezoito, e cento e trinta e nove, cinco vezes pelas mesmas pala­vras: Ne derelinquas me, ne derelinquas me, ne derelinquas me, non me derelin­quas, ne derelinquas me [23]. — Pois, se Deus por um pecado de Davi uma só vez o deixou, e depois o restituiu à sua graça com tanta certeza e firmeza, como pede tantas vezes e por tantos modos a Deus que o não deixe? É certo que o profeta não multiplicaria tantos modos de pedir, se Deus não tivesse muitos modos de deixar. Mas, por que razão? Tão própria da sua misericórdia, como da nossa miséria. A razão é porque Deus não deixa ao homem, senão depois de o homem o deixar a ele; e porque nós temos tantos modos de deixar a Deus também Deus tem muitos modos de nos deixar a nós. Assim o escreveu o mesmo Deus por lei expressa no capítulo trinta e um do Deuteronômio: Ibi derelinquet me, et derelinquam eum [24]e assim o tirou por conseqüência no segundo dos Paralipômenos: Quare dereliquistis Dominum, ut derelinqueret vos [25]? Por que deixastes a Deus, para que ele vos deixasse? — De sorte que o deixar e o ser deixado entre Deus e homem é condição recíproca. Se Deus deixa o homem, o deixado é o homem; se o homem deixa a Deus, o deixado é Deus; mas sempre Deus o primeiro deixado. Se Deus, pelo contrário, houvera de ser o primeiro que nos deixasse, nunca nos deixaria; mas, porque nós somos os primeiros em deixar, por isso tantas vezes e por tantos modos somos os deixados de Deus.

E se me perguntardes entre estes modos de ser deixado, qual é o mais temeroso e lamentável, e sobre o qual cai mais em cheio aquele ai: vae eis — digo que é quando Deus deixa a alma, e se aparta dela para sempre, assim como hoje deixou e se apartou de Jerusalém, quando disse: Ego vado. –Chama-se este modo de deixar, em frase do mesmo texto de Davi, deixação final, ou deixação total: deixação final: Ne repelias in finem [26] — e deixação total: Non me derelinquas usquequaque [27] . — Depois que o médico receitou e aplicou todos os remédios da arte, sem nenhum efeito ou proveito, antes vê que a enfermidade vai sempre de mal em pior, posto que deixa o enfermo muito contra sua vontade, deixa-o enfim, porque é incapaz de cura. E isto mesmo é o que faz Deus: Curavimus Babylonem, et non est sanata; derelinquamus eam (Jer. 51, 9): Curamos a Babilônia, não sa­rou, porque não quis sarar: deixemo-la. — Oh! que terrível palavra: derelinquamus eam: deixemo-la, e para sempre! — Em quantas ocasiões, ó alma, deixando-me tu tantas vezes, mereceste que eu te deixasse por uma vez? Quantas vezes te quis trazer a mim, quantas vezes te quis curar, e tu não quiseste: Quoties volui, et no­luisti (Mt. 23, 37)? — Apliquei-te primeiro os remédios brandos e lenitivos, vim por amor de ti à terra, prometi-te o céu, ensinei-te o caminho da vida e da verdade, e fiz-me eu o mesmo caminho: Ego sum via, ventas et vita [28]; — temporalmente dei-te os que tu chamas bens da fortuna, e são meus; espiritualmente enchi-te dos verdadeiros bens, que são os da minha graça, a qual tu perdeste, e eu te tornei a restituir muitas vezes; cheguei a te dar minha própria carne e sangue por alimento e medicamento; e tu, surda aos meus conselhos, rebelde às minhas inspirações, dura e ingrata a tanto amor. A tudo resististe, e me voltaste sempre as costas, fugindo como de inimigo, de quem tanto te amava, e tão deveras procurava teu bem. Não aproveitando os meios e remédios brandos passei aos ásperos e sensitivos. Dei-te doenças com que te mortifiquei a saúde, dei-te perdas com que t diminuí a fazenda, dei-te descréditos e lesares com que te magoei a honra; pus-t à vista ainda maiores trabalhos e desgostos que outros padeceram, e as causa deles, para que com o exemplo das suas chagas curasses e emendasses as tuas cheguei-te uma e outra vez às portas da morte com as do inferno abertas, que tantas vezes me tinhas merecido; cuidei que com uma eternidade de fogo aqueces se a tua frieza, e a tua dureza se abrandasse, mas, porque nada disto bastou a tt reduzir, e nem no céu, nem no inferno, nem em mim, nem fora de mim tenho j~ que te aplicar posto que o meu amor e a minha misericórdia te não quisera deixar é força — pois assim o quer o teu depravado e obstinado alvedrio — é força que et te deixe. Fica-te, e fica-te para sempre, que eu me vou: Ego vado.

Parece-vos, cristãos, que ouvindo esta despedida uma alma, ainda que fosse de pedra, não se derreteria em lágrimas de dor e arrependimento? Pois, sabei que quando Deus assim deixa estas miseráveis almas, então ficam elas mais contentes e satisfeitas, porque, como não tratam mais que do presente, sem memória do passado nem temor do futuro, e como Deus, que as pretendia sarar, já nenhum remédio lhes aplica, e nenhum apetite lhes veda, deixadas à natureza, vivem à sua vontade. Assim o diz o mesmo Deus: Dimisi eos secundum desideria cordis eoium; ibunt in dinventionibus suis[29]. — Quan­do me apartei totalmente, e deixei para sempre os que me deixaram, dei-lhes liberdade e largueza para que vivessem ao sabor dos seus desejos, com que esse pouco caminho que lhes resta, o andam todos e cada um segundo as invenções de sua própria fantasia. Não se pode passarem silêncio o conceito de Hugo Cardeal neste passo: Ibunt: ire enim notam dicit, et terminum qua­erit, finis autem motus et viae peccatorum est infernus. Propter hoc bene dicit: Ibunt in infernum, et hoc in adinventionibus suis, quasi in quibusdam vehiculis, quibus portabuntur ad inferos. Diz o texto que irão — ibunt — e, se vão, para onde vão? Para o inferno. Diz mais que irão nas suas invenções - in adinventionibus suis — e que invenções são estas? São como as que os homens inventaram para andar mais descansados: Quasi in quibusdam vehiculis. — Os da Europa andam em liteiras e carroças, os da Ásia em palanques, os da América em serpentinas; e estas duas invenções são para ir mais fácil e mais descansadamente ao inferno. Os da Europa vão assentados, os da Ásia e da América, deitados jazendo; os da Europa tirados por animais, os da Ásia e da América levados em ombros de homens; e estes são os que, carregados dos seus cativeiros, violências e opressões, os levam mais fácil e merecida­mente ao inferno, para onde caminham.

Quando tornam para a pátria– sempre mais ricos do que foram — todos invejam a sua boa fortuna, e eles recebem os parabéns como favorecidos de Deus, mas não é por favorecidos, é por deixados. E se não, vede o que fazem. Caim, depois do sucesso de seu irmão, conheceu muito bem que era deixado de Deus, e assim o confessou: Ecce ejicis me a facie terrae, et afacie tua abscondar [30]. — E que fez Caim depois que ouviu que a terra e o sangue que tinha derramado pediam ao céu justiça contra ele? É caso verdadeiramente digno de pasmo! Diz o texto sagrado que se pôs a edificar uma cidade — que foi a primeira do mundo — e lhe deu o nome de seu primogênito Henoc, e se chamou Henóquia: Et aedificavit civitatem, vocavitque nomen ejus ex nomine filii sui, Henoch (Gên. 4, 17). Quem esperara de tal homem, e em tal estado, tais pensamentos e tais cuidados! De maneira que, condenado por Deus, e vivo por particular indulgência de sua mise­ricórdia em vez de te meteres em uma cova a fazer penitência do teu pecado, e ver se podes aplacar a justiça divina, te pões a fundar jurisdições, e edificar palácios ao teu morgado? Mas isto é o que fazem os deixados de Deus, como Caim e seus imitadores. Estão as terras bradando ao céu, está o sangue, ou derramado, ou chupado violentamente, pedindo justiça a Deus, e eles, em vez de arrependidos, tornarem a repor os cabedais que adquiriram por força ou por más artes, e os despenderem nas devidas restituições, o que fazem, e o que sempre desejaram e pretenderam por meio de tantos perigos da vida e alma, é empregar o assim adqui­rido em morgados para os filhos, e em edifícios vãos, que, levantados, hão de ser a ruína das mesmas casas. Ó ambição! Ó cegueira! Ó falta de fé e de juízo! Mas estas são as consciências e as conseqüências dos deixados de Deus: Dimisi eos secundum desideria cordis eorum: ihunt in adinventionibus suis. Ai deles!

§V

O segundo aide S. João e a segunda cláusula da sentença de Cristo: Mas vire tempo em que me busqueis. — Se Deus não deixa aos que o buscam, como diz que o hão de buscar aqueles mesmos que ele deixou? Se é certo que todos que buscam a Cristo o acham, como diz o mesmo Cristo que aqueles de que ele se apartou o hãc de buscar, porém que nem na vida nem na morte o hão de achar? É possível que busca Cristo e acha aos que o buscam, e busca e acha aos que o não buscam, e busca e acha até aos que o não podem buscar, e que ameace e profetize ao povo hebreu que o hão de buscar e que o não hão de achar nem ser achados dele?

Ouvido o primeiro voe da águia, e o primeiro ai da sentença de Cristo: Ego vado — passemos a ouvir o segundo: Et quaeretis me. Diz Cristo, Senhor nosso, que depois de deixar aquele ingrato e obstinado povo, eles o hão de buscar; e esta segunda cláusula da sua sentença parece que se encontra com a primeira e com a terceira. Com a primeira, porque é promessa da palavra divina que Deus não deixa a quem o busca: Non dereliquisti quaerentes te, Domine [31]Pois, se Deus não deixa aos que o buscam, como diz que o hão de buscar aqueles mesmos que ele deixou: Ego vado, et quaeretis me?– Não implica, porque mui diferente coisa é não deixar Deus aos que o buscaram primeiro, ou buscarem-no depois aqueles a quem ele primeiro deixou. Os que o buscaram primeiro não os deixa, porque o acham; porém, os que o buscaram depois, ainda que o busquem, não o hão de achar; e isto é o que declara a terceira e última parte da mesma sentença: Et quaeretis me, et in peccato vest co moriemini: Buscar-me-eis, e morrereis em vos­so pecado. — De maneira que haverem de buscar a Deus os deixados de Deus, e não o haverem de achar, este é o segundo vae e o segundo ai de S. João, ainda mais terrível e mais admirável que o primeiro. Mais terrível, porque confirma a deixação total e final, sem nenhum remédio; e mais admirável, porque estreita e reduz a um ponto toda a imensidade da misericórdia divina, reclamando contra esta estreiteza e contra este ponto, em próprios termos, todas as vozes e exemplos da Escritura Sagrada. Ora vede.

Primeiramente, já no Testamento Velho tinha Deus prometido que to­dos os que o buscassem o achariam; assim o diz pelo profeta Jeremias: Quaeretis me, et invenietis [32] . — E para maior confirmação, o mesmo que acabava de dizer pela ativa, o torna a repetir pela passiva: Et inveniar a vobis (Jer. 29, 14): - Achar-me-eis, e eu serei achado de vós. — No Evangelho, não só nos aconselha e exorta Cristo a que o busquemos–que de si e de Deus fala principalmente — mas também nos promete e dá sua palavra, em que não pode haver dúvida, que o acharemos: Quaerite, et invenietis [33]. — E por que não cuidasse alguém que a esta diligência de buscar poderia faltar a ventura de achar pela dignidade ou indignidade da pessoa, confirma o Senhor a mesma promessa com uma proposição universal, que a nin­guém exclui: Omnis enfim qui quaerit, invenit: Porque todo aquele que me busca, me acha, seja quem for. — Pois, se é certo que todos os que buscam a Cristo o acham, como diz o mesmo Cristo que aqueles de quem ele se apartou o hão de buscar: quaeretis me – porém, que nem na vida nem na morte o hão de achar. Et in peccato vest co morierini?

Mais. Ainda que o Senhor não afirmara que o haviam de buscar, e ainda que totalmente o não buscassem, nem daí se seguia ou podia inferir que o não acha­riam. Porque não só é próprio da misericórdia e bondade de Deus acharem-no os que o buscam, senão também os que o não buscam. Assim se gloria o mesmo Deus, e com muita razão, por Isaías: Invenerunt qui non quaesierunt me (Is. 65, 1): Acha­ram-me os que me não buscaram. — A Madalena buscou a Cristo, e achou-o; porém a Samaritana achou-o sem o buscar: ia buscar água, e achou a Cristo. Uma e outra coisa nos ensinou o mesmo Senhor em duas parábolas. — Um homem — diz — indo seu caminho, achou um tesouro no campo, e foi logo vender quanto tinha, e com­prou o campo para lograr o tesouro. E um mercador, que andava buscando pérolas, achou uma muito preciosa, e para a comprar, deu por ela todo o cabedal que tinha. De sorte que o caminhante achou o tesouro sem o buscar, e o mercante achou a pérola buscando-a, e ambos deram tudo pelo tesouro e pela pérola, porque na pérola e no tesouro era significado o que só vale mais que tudo, que é Cristo. No mercante foi cuidado e diligência achar a pérola, porque buscava pérolas; no caminhante foi caso e ventura achar o tesouro, porque não buscava tesouros; e em um e outro nog ensinou o, mesmo Senhor que não só o acham os que o buscam, senão também os que o não buscam. Pois, se também os que não buscam a Cristo o acham, como diz o mesmo Cristo, e anuncia aos de Jerusalém que o não hão de achar, ainda que c busquem, supondo e afirmando que o hão de buscar: quaeretis me?

Mais ainda. Não só acham a Cristo os que o buscam e os que o não buscam, senão também aqueles que nem o buscam nem o podem buscar. Havia um pastor– diz o divino Mestre — o qual tinha cem ovelhas, e como se lhe perdesse uma, deixou as noventa e nove no deserto, e foi buscar a perdida. Achou-a, e tomando-a aos ombros, a trouxe muito contente para o rebanho. Havia assim mesmo uma mulher, a qual tinha dez dracmas, que eram certa moeda daquele tempo, e como perdesse uma, acendeu a candeia e varreu a casa para a achar. Achou-a também, e convocou as vizinhas para que lhe dessem o parabém de ter achado a sua dracma perdida. Aquele pastor e esta mulher significam em um e outro sexo o amor e a diligência com que Cristo busca aos homens, por mais perdidos que sejam. A ovelha e a moeda são as almas, marcadas ambas, a moeda com a sua cruz, e a ovelha com o seu sangue. Agora pergunto: a ovelha ou a moeda podiam buscar a Cisto? A ovelha não, porque não tinha entendimento, e a moeda muito menos, porque nem voz tinha para balar. E, contudo, assim a ovelha como a moeda foram buscadas e achadas, para nos ensinar o mesmo Cristo que é tão diligente o seu amor e tão amorosa a sua diligência em buscar as almas, por mais perdidas que sejam, que não só busca e acha as que o não buscam, senão também as olhe o não podem buscar. Ajuntemos agora todas estas demonstrações, e tiremos e apartemos a conseqüência, que não pode ser nem mais admirável nem mais temerosa. É possível que busca Cósto e acha aos que o buscam, e busca e acha aos que o não buscam, e busca e acha até os que o não podem buscar, e que ameace e profetize ao povo hebreu duas coisas tão encontradas com estas Escrituras e estes exemplos: a pimeira, que o hão de buscar, quaeretis me –e a segunda, que o não hão de achar, nem ser achados dele, mas perecer em sua própria perdição: Et in peccato vestro moriemini?

§ VI

Qual é a razão por que os dias profetizados pelo profeta Oséias aos judeus, sendo passados mais de mil e seiscentos anos ainda continuam, sem os judeusacharem nem descobrirem o Messias, que desde então buscam e esperam? A ocasião que teve Oséias para profetizar sobre a conversão final dos judeus.

A resposta desta tão fundada e apertada dúvida, quanto ao povo he­breu é tão expressa na Escritura como manifesta na experiência. Sabes, povo in­grato e cego, porque há tantos anos que buscas e esperas com tantas ânsias o teu verdadeiro Messias, e não o achas, nem ele a ti? É porque o buscas indo para diante, sendo que o havias de buscar tornando atrás. Se um piloto, para achar a terra que lhe demora ao norte, a buscasse pelo rumo do sul, e para o mesmo sul navegasse sempre, claro está que não só não havia de achar o porto que buscava, mas que quanto mais navegasse tanto mais se havia de apartar e estar mais longe dele. Isto mesmo é o que sucede aos judeus com o seu Messias. Como o Messias há mil e seiscentos anos que veio e lhe fica ao tempo passado, e eles há outros tantos que o esperam e buscam sempre no futuro, dizendo que não veio, senão que há de vir, esta é a razão porque não só o não acham, por mais que o buscam, antes quanto mais o buscam indo para diante, tanto mais se apartam dele e se impossibilitam de o achar. Donde se segue que para os judeus acharem o Mes­sias, é necessário que o busquem tornando atrás, e que quando assim o fizerem, como farão quando se converterem no fim do mundo, então o acharão. Tudo quanto digo é por boca do profeta Oséias, no mais claro e expressivo texto que se pode desejar nem fingir.

Diz assim este, que foi o primeiro entre todos os profetas, no capítulo terceiro: Dies midtos sedehunt f ilii Israel sine rege, et sine príncipe, et sine sacri­f icio, et sine altari, et sine ephod, et sine theraphim (Os. 3, 4): Muitos dias estarão os filhos de Israel sem rei, sem príncipe, sem sacrifício, sem altar, sem sacerdócio, e o mais que a ele pertence. — Oséias profetizou oitocentos e cinqüenta anos antes da vinda de Cristo; e depois que os judeus o sacrificaram, e lhe tiraram a vida, há mil e seiscentos anos que tudo se está cumprindo pontualmente, como vêem os olhos de todo o mundo e os mesmos, judeus não podem negar. Diz que muitos tempos estarão sem rei, como tiveram em Saul e seus sucessores — sine rege; e onde está este rei dos judeus? Diz que do mesmo modo estarão sem príncipe, como tiveram no tempo dos macabeus; e também estão sem príncipe — sine prín­cipe. — Diz que estarão sem altar, sem ornamentos sacerdotais, o principal dos quais era o chamado ephod, e totalmente sem sacerdócio — sine sacrificio, sine altari, sine ephod; e tudo isto se perdeu e acabou com a perda e assolação de Jerusalém, como o mesmo Cristo lhes tinha profetizado, e se vê experimentalmen­te por todo o mundo em todas as sinagogas dos judeus, onde não há mais que um arquivo, ou encerramento de madeira, onde está fechada a lei escrita em pergami­nhos, e donde a tiram e mostram a seus tempos, sem sacerdote nem vestes sacer­dotais, nem memória ou figura de altar ou sacrifício.

E qual é a razão por que estes que o profeta chama dies muitos, sendo já passados mais de mil e seiscentos anos, ainda continuam, sem os judeus acha­rem nem descobrirem o Messias, que desde então buscam e esperam? A razão é, como dizia, porque o buscam indo para diante, sendo que o haviam de buscar voltando atrás. Admiravelmente o mesmo profeta Oséias, continuando a sua pro­fecia imediatamente: Et post haec revertentur filii Israel, et quaerent Dominum Deum suum, et David regem stiu ni, et pavebunt ad Dominum, et ad bonum ejus, in novissimo dierum (Os. 3, 5). — A luz do sol não é tão clara como a deste texto: Et post haec: e depois de tudo o que tenho dito, isto é, depois de os filhos de Israel estarem tantos tempos sem rei nem príncipe, sem sacerdócio nem sacrifício, torna­rão atrás buscando o seu Deus, e o seu rei Messias, descendente de Davi: Rever­tentur filü Israel, et quaerent Dominum Deum suum, et David regem suum — e, quando o acharem, ficarão atônitos e pasmados do bem que tinham perdido: Et pavebunt ad Dominum, et ad bonum ejus — mas isto não será senão no fim dos dias: In novissimo dierum. — Diz que isto será no fim dos dias, quando os judeus se hão de converter universalmente, como consta de todas as Escrituras — posto que em particular antes desse tempo se possam converter e convertam muitos. - Mas notai que não diz o profeta convertentui; senão revertentur: não diz que se converterão, senão que tornarão atrás, porque todo o seu erro e engano de não acharem o Messias é porque o buscam no futuro, havendo-o de buscar no passa­do, é porque o buscam indo para diante, havendo-o de buscar tornando atrás: et revertentur A Igreja Católica, naqueles dias em que a misericórdia divina, banha­da no sangue que da sua humanidade lhe derramaram os judeus, em vez de estar mais irada está mais propícia, exorta a Jerusalém, chamando-a repetidamente a que se converta: Jerusalem, Jerusalem, convertere ad Dominum Deum tuum. — E para que vejamos a harmonia com que falam desta mesma conversão as Escriturasno capítulo sexto dos Cânticos, em que Salomão descreve os sucessos também últimos da Igreja, o que diz a mesma Jerusalém, com dobrada repetição, são estas palavras: Revertere, revertere Sulamitis! Revertere, revertere Ut intueamur te (Cânt. 6, 12): Torna atrás Jerusalém, torna atrás: torna atrás, torna atrás para que te veja­mos. — Mas se esta exortação tão repetida é para que Jerusalém se converta, por que não lhe diz Salomão convertere, senão revertere: por que não lhe diz que se converta, senão que torne atrás? Porque não só lhe persuade a conversão, mas juntamente lhe ensina o modo dela, que é o que mais ignora, e uma e outra coisa profetiza, como se dissera: Revertere: torna atrás, sinagoga cega. Revertere: torna atrás, que vais errada. Revertere: porque não hás de achar o Messias que buscas, enquanto caminhas para diante. Revertere: porque só quando tornares atrás o hás de achar: Et revertentur ad Dominum Deum suum.

Agora tornemos nós também atrás, e ouçamos a ocasião que teve Oséi­as para profetizar o que dissemos. É caso singular em toda a História Sagrada. Mandou Deus a este profeta que se cagasse com uma mulher adúltera, como en­tendem muitos e graves intérpretes, e, quando menos, que a levasse para sua casa, e a sustentasse nela, e a guardasse, com tal condição que nem havia de ter comu­nicação com o adúltero nem com o marido e que, deste modo, assim apartados, haviam de continuar muito tempo, esperando sempre o marido reconciliar-se com ela, e ela esperando também reconciliar-se com o marido. Assim o assentou o profeta com a adúltera, ou como marido, ou como quem o representava, e como tal lhe disse: Dies muitos expectabis me; non fornicaberis, et non errs viro; sed et ego expectabo te (Os. 3, 3): Muitos dias esperarás por mim, sem marido nem adúltero, e eu também esperarei por ti. — Esta foi a história e o caso sobre que se fundou a profecia que temos declarado, da qual a mesma história foi admirável parábola e figura. A mulher casada e adúltera representava a sinagoga e nação hebréia, com a qual se desposou Deus, e sempre lhe chamou esposa, e ela sempre lhe foi infiel, e adúltera, deixando continuamente a Deus pelos ídolos, couro consta de todo o Testamento Velho, desde o livro do Êxodo até o dos Macabeus. Porém, depois da vinda de Cristo é muito diferente o estilo que observa a mesma nação, porque vive apartada do adúltero e apartada também do Esposo: do adúltero, por­que já não tem ídolos, e do Esposo, porque não guarda fé a Deus, negando-lhe a divindade depois que se fez homem. Isso quer dizer e diz admiravelmente o profeta, naquelas duas palavras: Non fornicaberis, et lion eris viro: Non fornicaberis — porque está apartada dos ídolos, em que consistia o adultério; et non eris viro - porque está apartada de Deus, que era verdadeiro Esposo. E que se segue ou seguiu daqui? Um efeito sobre toda a admiração estupendo, mas visto com os olhos. Omesmo Esposo o declarou à que já não tinha uso de adúltera nem de esposa, e assim o diz o mesmo Deus à nação hebréia, que hoje nem é idólatra nem fiel: Dies muitos expectabis me: muitos tempos esperarás por mim — sed et ego expectabo te: mas eu no mesmo tempo também esperarei por ti. Não é isto o que todo o mundo está vendo, e só o Judaísmo cego não vê? De maneira que não são só os judeus os que esperam, senão, também o Messias: os judeus esperam pelo Mestre: expectabis me– e o Messias também espera por eles: sed et ego expectabo te. — E tão longa é uma esperança como a outra, porque aqueledies muitos perten­ce igualmente a ambas: Dies multos expectahis me — há mil e seiscentos anos que os judeus estão esperando pelo Messias: Sed et ego expectaho te –e em todo este tempo está também o Messias esperando por eles. Eles esperando pelo Messias, porque cuidam que ainda há de vir, e o Messias esperando por eles, porque há outros tantos anos, ou outros tantos séculos, que já veio. Mas o seu erro e engano está em que o buscam caminhando para diante, sendo que só o hão de achar vol­tando atrás: Revertentur; et quaerent Dominam Deum suum.

§ VII

Se há e pode haver tempo em que não possamos achar a Deus, ainda que o busquemos, quando e que tempo é este? A razão por que disse Isaías que buscás­semos a Deus enquanto o podíamos achar. Para achar a Deus e a salvação não basta buscá-la, ou havê-la de buscar, é necessário tê-la buscado. Omodo de achar a Deus em qualquer tempo e lugar.

Não há dúvida que bem digna é a miserável Jerusalém daquele segun­do vae ou segundo ai, pela cegueira culpável e obstinada com que há tantos centos de anos que busca e espera, alongando-se cada dia mais do que busca e não há de achar, e do que espera e não há de vir. Mas, como na mesma Jerusalém é significa­do a alma de qualquer cristão, tão maravilhosa como tremenda coisa é, que tam­bém em nós se possa verificar que busquemos a Cristo, em que cremos com ver­dadeira e firme fé, e contudo o não achemos, Cristã era e fiel aquela alma, a qual confessa de si que buscou ao mesmo Cristo, e o não achou: Quaesivi quem diligit anima meu; quaesivi ilium, et non inveni [34]. — E o profeta Isaías, que mais que todos foi profeta da lei da graça, diz que busquemos a Cristo enquanto o podemos achar: Quaerite Dom mum dum inveniri potest [35]: logo, supõe que há tempo em que o não poderemos achar, ainda que o busquemos: Quaeretis me?

Somos entrados no ponto mais apertado e terrível da matéria presente. Se há e pode haver tempo em que não possamos achar a Deus, ainda que o bus­quemos, quando e que tempo é este? Oapóstolo S. Paulo, falando deste quando e deste tempo, diz: Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis (2 Cor. 6, 2): Agora é o tempo de achar a Deus, e este é odiada salvação. — Se é agora –ecce nunc — não será depois; e se é no dia de hoje — ecce nunc dies — não será no de amanhã. Até um gentio, e da má vida, como era Marcial, o entendeu e aconselhou assim: Sera nimis vita est crastina, vive hodie: Se queres viver bem, começa e vive hoje, que amanhã já é tarde. — Todos os homens prometem a Deus o dia de amanhã, e quase todos dão ao demônio o dia de hoje. Este é o contrato tácito ou expresso que têm feito com o inferno: Cum inferno fecimus pactum [36]. — E que faz o demônio? Quando chega o dia de amanhã, se o homem diz: este dia é para Deus — replica o demônio: não é senão para mim, porque este dia de ontem era dia de amanhã; porém hoje, depois que amanheceu, já não é dia de amanhã, senão de hoje: e assim é meu, e não de Deus. Por este modo, de manhã em manhã, e de dia em dia, leva o demônio todos os dias, e também leva os que Ihos dão. Eles mesmos confessam que o dia de amanhã há de ser como ode hoje, e ainda pior: Et erit sicut hodie, sic et eras, et multo amplius[37]. — Isto diziam os que tendo obrigação de governar espiritual e temporalmente o povo de Deus e lhe dar bom exemplo, só tratavam, não de fazer, senão de levar boa vida. Hoje, diziam, fartaremos nossos apetites, e amanhã muito mais: et eras amplias. Por isso, como notou, e muitas vezes repete Santo Agostinho, a palavra eras é voz do corvo, e o corvo uma vez que saiu da arca não tornou mais a ela.

Esta é, em suma, a razão por que disse Isaías que buscássemos a Deus enquanto o podíamos achar. Mas ouçamo-la de sua própria boca: Quaerite Domi­num dum inveniri potest; invocate eum dum prope est (Is. 55, 6): Buscai a Deus enquanto se pode achar, e chamai por ele enquanto está perto. — Deus, estando em toda a parte, está perto de uns e longe de outros. Vedes dois homens juntos, diz Santo Agostinho, e se perguntardes se são amigos, responderá quem os conhece que estão muito longe disso: pela presença ambos juntos, pela amizade muito longe um do outro. Tal é a semelhança de que usa o profeta. Cada pecado grave aparta a Deus de nós, e se os pecados são muitos, e continuados por muitos dias, a cada dia e a cada pecado se vai Deus sempre apartando mais e mais. Faça agora cômputo o pecador, que não há dias nem meses, senão anos e muitos anos que continua a estar fora da graça de Deus, e conte quantos são os dias e quantos os pecados — que ao menos de pensamentos sempre são muitos mais que os dias — e dali conjecturará de algum modo quanto longe estará de Deus, e Deus dele. E quando conhecer quão longe está de Deus, então entenderá também se poderá ser ouvido quando o invocar de tão longe. Deus longe, e a salvação longe, e não pelo não buscarmos, pois ele diz que o havemos de buscar: quaeretis me — mas pelo não buscarmos no tempo em que se pode achar. — Longe a peccatoribus salus - diz Davi: A salvação está muito longe dos pecadores. — E por quê? Quia justifica­tiones tuas non exquisierunt (Sl. 118, 155): Porque não buscáramos meios de a conseguir. — Notai que não diz porque não buscam, ou porque não hão de buscar, senão porque não buscaram: quia non exquisierunt. –Para achar a Deus e a salva­ção não basta buscá-la ou havê-la de buscar, é necessário tê-la buscado, porque o tempo que já passou, esse era o tempo de a achar: Dum inveniri potest.

E se esta desgraça sucede aos que buscam a Deus na vida e na saúde, que sucederá aos que reservam esta diligência para a enfermidade e para a morte, que é o nosso caso: Et in peccato vestro moriemini? Eu não quero desconfiar nem meter em desesperação a nenhum pecador, por grande que seja e por mais que se ache cercado de todos os pecados de sua vida, ainda na última desconfiança e perigo dela, ejá a braços com a mesma morte. O profeta diz que busque o pecador a Deus enquanto o pode achar: dum inveniri potest - e eu lhe darei o meio comque o possa achar a qualquer tempo. Diz mais que chame por Deus enquanto está perto: dum prope est — e eu lhe darei o meio com que Deus o ouça, ainda que esteja muito longe. E que meio ou meios são estes, maiores que toda a esperança e que toda a desesperação? É um só, mas muito certo e infalível. E qual é? Que busque a Deus, e o chame com todo o coração. Se buscar a Deus com todo o coração, ainda que seja com a candeia na mão, achá-lo-á, e não o lançará de si: In toto corde meo exquisivi te, ne repellas me [38]. — Se chamar por Deus com todo o coração, ainda que seja com a última baqueada, por muito longe que esteja, Deus o ouvirá: Clamavi in toto corde meo: exaudi me, Domine [39]. — Uma e outra coisa supõe o Real Profeta nas palavras que citei; e posto que bastava ser sua a suposi­ção, acrescentou, para maior firmeza, que é promessa infalível do mesmo Deus, e condição expressa, em que nos promete que sem dúvida nos ouvirá e o acharemos se o chamarmos e buscarmos, contanto que seja com todo o coração. No capítulo quarto do Deuteronômio: Cum quaesieris Dominum Deum tuum, invenies eum: si tamen toto corde quaesieris (Dent. 4, 29): Quando buscardes a Deus, achá-lo-eis, com condição, porém, que o busqueis com todo o coração. — E no capítulo vinte e nove de Jeremias, compreendendo ambos os termos de chamar e buscar: Invoca-bids me, et ego exaudiam vos; quaeretis me, et invenietis, cum quaesieritis me in toto corde vestro (Jer. 29, 12 s): Chamar-me-eis, e eu vos ouvirei; buscar-me-eis, e vós me achareis, contento que me chameis e me busqueis com todo o vosso coração. — Assim que todo aquele que de todo seu coração chamar e buscar a Deus em qualquer dia, em qualquer hora e em qualquer instante, ainda que seja o último e mais apertado da vida, sem dúvida será ouvido dele, e o achará. Mas que se segue daqui? Este é o ponto de que depende tudo.

§ VIII

A conversão na hora da morte. Como poderá dar todo o coração a Deus, nem oferecer-lho como seu, quem, por dividido e alienado totalmente, não é senhor de si, nem possui dele a mínima parte? Advertências de Deus aos pecadores no Livro dos Provérbios, S. Agostinho e a conversão na hora da morte. Por que não foi verdadeira a contricão de Antíoco Epifanes na hora da morte?

Parece que se segue daqui que não haverá cristão algum tão perdido, se também não tem perdido a fé e o juízo, que se não salve. Porque, como pode haver nem imaginar-se criatura racional tão inimiga de si mesma, que, vendo-se às portas da morte e do inferno, e conhecendo que só em Deus pode ter o remédio, não deseje tornar-se a ele, e invocar sua misericórdia de todo coração? Tudo isto assim é — porque não quero falar dos casos em que o súbito da morte, ou dos acidentes mortais, se antecipam a estes mesmos desejos, e as miseráveis almas, que se guardaram para aquela hora, se condenam sem remédio. — Mas, conceden­do outra vez que todo aquele que na mesma hora invocar a Deus de todo o coração se salvará, e concedendo também que nenhum haverá que na mesma hora não deseje invocar a Deus e converter-se a ele de todo o coração, digo, contudo, e concluo resolutamente que raro ou nenhum destes se salva. Por quê? Porque, como fica dito por tão repetida condicional e exceção do mesmo Deus, nenhum se pode salvar, senão convertendo-se a ele de todo o coração, e é certo que naquela hora caríssimos são os que se convertem ou podem converter a Deus de todo coração.

Toda a verdade desta última e temerosa conclusão se funda na proba­bilidade ou certeza com que digo que raro ou nenhum naquela hora se converte a Deus de todo o seu coração. E esta sentença que é comum na doutrina dos santos padres, se prova por dois princípios, um da parte de Deus, outro da parte do mes­mo homem. Começando pelo homem, a razão manifesta é porque, para o homem buscar a Deus com todo o seu coração, é necessário que o coração do homem seja todo seu, e naquela hora nem é seu, nem é todo. Quando é o coração todo, e quando é nosso? É nosso quando o não domina outro afeto, e é todo quando o não diverte outro cuidado: Tunc gorro in toto corde clamatur, quando aliunde non cogitatur [40]diz Santo Agostinho. Considerai-me agora um homem nas últimas angústias da enfermidade, e quase lutando já com a morte, e vereis, não só com o discurso, mas com os olhos, quão dividido tem o coração, para que não possa sertodos e quão divertido e senhoreado de diferentes cuidados, para que não possa ser seu.

Os que se guardam para aquela hora, no princípio da enfermidade, ou lisonjeados dos médicos, e dos que os assistem, ou enganados do amor da vida, só tratam da saúde do corpo, e quando esta se desconfia totalmente, e se começa a dizer entre dentes que morre o enfermo, então lembra e se acode à alma e aos remédios da salvação. — Multiplicatae sunt infirmitates eorum, postea acceleraverunt [41] . — Então se chama o confessor à pressa, então vem o notário para o testamento, então cresce a febre e as dores, então se aplicam os medicamen­tos extremos e os martírios mais fortes: e qual estará o coração do miserável enfermo nesta angústia? Vede qual será a confissão dos pecados de toda a vida? Vede quais serão as cláusulas e declarações do testamento, em quem sempre viveu com pouca conta, e com pouco ou nenhum escrúpulo? A memória perdida, o entendi­mento sem juízo, a vontade atônita e pasmada, os sentidos todos só vivos para a dor, e para o mais já quase mortos; a alma na garganta, e a respiração agonizante. Oh! que transe tão apertado! Ajuntai ao interior destas aflições as lágrimas da mulher, o amparo ou desamparo dos filhos a satisfação dos criados, a paga das dívidas, a instância dos acredores, as restituições do mal adquirido, as negocia­ções dos interessados na herança do que se deixa por força, e, sobretudo, o temor da conta, também forçado, e não por verdadeiro arrependimento, ouvindo-se a invocação do nome de Jesus na boca do Religioso que assiste à cabeceira, e não saindo do coração de quem nunca o amou, e só agora o teme, porque mais não pode. Oh! valha-me Deus, quão longe estará de ouvir estas vozes sem alma o mesmo Deus, que está tão longe! E nesta perturbação, nesta confusão, neste labi­rinto de cuidados e afetos — tão implicados os deste mundo com os do outro - como poderá dar todo o coração a Deus, nem oferecer-lho como seu, quem, por dividido e alienado totalmente, já não é senhor de si, nem possui dele a mínima parte? Aqui se cumpre o que disse o profeta Oséias: Divisum est cor eorum, nunc interibunt [42]: Ai dos que assim têm dividido o coração, que neste estado, e neste instante, lhes chegou a hora de perecerem.

Eu não nego que por algum impulso interior, ou pelas exortações d fora, chamarão com a voz por Deus, e quererão chegar-se a ele; mas naquel multidão e confusão de cuidados, e naquela bataria de perturbações e temores, igualmente certo que o não poderão conseguir. Texto e decreto de Deus express no salmo trinta e um: Pro hac ora bit ad te omnis sanctus in tempore opportune Verumtamen in diluvio aquarum multarum, ad eum non approximabunt (Sl. 31, 6) Pela remissão dos pecados rogarão a Deus no tempo oportuno todos os que se hão de salvar; mas no dilúvio das muitas águas, ainda que se queiram chegar a Deus não o alcançarão. — E que dilúvio de muitas águas é este? É a multidão de aflições e angústias, que naquela hora, como um dilúvio, afogam o coração dos que sf guardaram para ela. De sorte que, assim como na tempestade do dilúvio muitos sf quiseram valer da arca, e soçobrados da imensidade das águas, e do concurso e contrariedade das ondas umas sobre outras, se afogaram e pereceram nelas, assirr diz Davi que naquele tropel e tumulto de cuidados, de afetos, de dores, de penas. de temores, de irresoluções, de assombros, e naquele verdadeiramente dilúvio de ânsias e angústias mortais, oprimido e afogado o homem dentro e fora de si mes­mo, nenhum haverá que tenha forças ou tino para nadar à arca da salvação, e nenhum que se possa chegar a Deus, ainda que quisesse: In diluvio aquarurr multarum, ad eum non approximabunt.

Esta é a razão natural e evidente pela qual o homem, reduzido àquele último conflito, não pode invocar a Deus de todo seu coração, porque já nem é todo nem seu. E sobre esta, que tanto devemos temer, se acrescenta da parte de Deus outra muito mais temerosa, porque não é fundada na nossa fraqueza, senão na sua justiça. Naquele estado tão estreito, e em qualquer extremo da última de­sesperação, poderosa é a misericórdia e graça divina para livrar e porem salvo ao maior pecador, mas justissimamente não quer Deus usar com ele da eficácia des­tes seus poderes na morte porque também ele se não quis converter a Deus en­quanto pôde na vida. Ou o pecador naquele apertadíssimo transe se quis converter a Deus, ou não chegou a querer: e de qualquer modo o castiga com exatíssima igualdade a divina justiça. Porque, se quis, justamente é condenado a que não possa quando quer, por que não quis quando podia: Impius cum vult, non potest, guia cum potuit, noluit — diz Santo Isidoro Pelusiota. E se não chegou a querer, também foi justamente condenado a lhe faltar a sua própria vontade, porque bemmerecedor é de que se esqueça de si na morte quem se não lembrou de Deus na vida, diz Santo Agostinho: Hac enfim animadversione percutitur peccator, ut in morte obliviscatur sui qui in vita oblitus est Dei. — Isto mesmo dizem com os outros padres gregos S. Crisóstomo, e com os outros latinos Santo Ambrósia. Mas porque a matéria é tão oculta aos vivos, que só passa entre Deus e as almas dos que morrem, ouçamos da boca do mesmo Deus esta sentença e regra geral do seu tremendo e retíssimo juízo.

No primeiro capítulo dos Provérbios fala Deus, não com um, senão com muitos, porque aqueles a quem sucede esta desgraça não são poucos, e diz assim: Vocavi, et renuistis; extendi manum meam, et non fuit qui aspiceret (Prov. 1, 24): Chamei-vos com as vozes, e não me quisestes ouvir; chamei-vos com as mãos e com os braços abertos, e não quisestes vir a mim. — Despexistis omne consilium meum, et increpationes meas neglexistis (ibid. 25): Aconselhei-vos, e desprezas­tes todos os meus conselhos; repreendi-vos, e não fizestes caso de minhas repre­ensões. E eu, que farei?Ego quoque in interitu vesti-o ridebo, etsubsannabo cum vobis id quod timebatis advenerit (ibid. 26): E quando vier a morte, e com ela tudo o mais que vós temíeis ou devíeis temer, eu também zombarei e me rirei de vós. - Todos os santos e expositores declaram este temeroso riso de Deus com as maio­res expressões de castigo, de ira e de vingança naquela hora. Mas nós continue­mos a ouvi a sentença da mesma justiça divina, na qual se reduzem todas por seu próprio nome às duas do nosso discurso: Cum irruerit repentina calamitas, et interitus quasi tempestas ingruerit; quando venerit super vos tribulatio et angus­tia (ibid. 27): Quando a última calamidade da vida, que é a morte, vier sobre vós como uma tempestade súbita e repentina — porque a não esperáveis — e quando vos virdes afogados de aflições e angústias, então recorrereis a mim; mas assim como quando eu chamei por vós me não quisestes ouvir, assim eu vos não ouvirei quando me chamardes: Tune invocabunt me, et non exaudiam (ibid. 28) — e assim como quando vos eu busquei vos não achei, assim vós me buscareis, e não me achareis: Mane consurgent, et non invenient me. Deixados, pois, de mim na morte como eles me deixaram na vida — diz Deus — lá irão onde comam os frutos das suas obras, e se fartem dos seus conselhos: Comedent igiturfructus viae suae, suis que consiliis saturabuntur (ibid. 31). — Vede se cairá bem o segundo ai de S. João sobre esta fartura de penas, que será insaciável por toda a eternidade, acabando naquela hora os que se guardaram para ela, e não achando a Deus, posto que o busquem, nem sendo ouvidos dele, posto que o chamem. Ai de vós, infeli­zes almas, e para sempre infelizes!

Grande parte deste mundo, e não a menor dos grandes dele, acaba desta sorte. E deixam tão enganados os mortos aos vivos, que não só crêem estes e celebram que morreram pia e cristãmente, mas não faltam espíritos ilusos ou lisonjeiros que com fingidas ou sonhadas revelações afirmam que brevemente os viram sair do purgatório, onde foram ditosíssimos se tivessem entrado. A verda­deira revelação da boa morte é a boa vida. E para que acabem de se desenganar os que debaixo desta vã confiança assegura o demônio para que vivam e morram do mesmo modo, ouçam a Santo Agostinho: Si quis positus in ultima necessitate aegritudinis suae poenitentiam accipit, et hinc vadit, fateor vobis non illi nega-mus quod petit, sed non praesumimus quia berre hinc exit: Se algum, obrigado da última necessidade da doença, nos pede o Sacramento da Penitência, confesso-vos — diz pregando Santo Agostinho — que os bispos e sacerdotes lhes não nega­mos o que pede, mas nem por isso presumimos que sai bem desta vida. — E Santo Ambrósio, apertando o mesmo ponto: Se cuidais que os que deixam o arrependi­mento de seus pecados para a enfermidade da morte vão seguros de sua salvação, eu vos protesto que não afirmo, nem prometo, nem digo tal coisa, porque o não presumo assim, nem vos quero enganar. — Notai o peso das palavras com que diz e repete este desengano o eloqüentíssimo doutor: Non praesumo, non polliceor, non dito, non vos fallo, non vos decipio, non vobis promitto. — E o que Santo Agostinho e Santo Ambrósio não se atrevem a presumir, e protestam que vos não engane, isso credes vós e celebrais, porque também fazeis conta de vos salvar ou perder na mesma tábua.

A causa deste engano e falsa apreensão dos que cá ficam são aqueles atos exteriores, com que parece morrem contritos os que viveram impenitentes; mas vai muito do medo à contrição, e da penitência aparente à verdadeira. E para prova sólida e irrefragável no mesmo caso, ouvi outra revelação, não como as vossas, senão divina e de fé, escrita no livro dos Macabeus. Antíoco Epifanes, rei da Grécia, foi o mais capital inimigo da fé e lei de Deus e da gente hebréia, em a qual naquele tempo estava a verdadeira Igreja. Resoluto, pois, este tirano de des­truir totalmente, extinguir e tirar do mundo o nome e nação dos judeus, marchavacom formidável exército contra Jerusalém a grandes jornadas, quando subitamente se achou oprimido de uma gravíssima e mortal enfermidade, a qual obrou nele aqueles efeitos que costuma causar-nos mais obstinados ânimos a vizinhança da morte, quando se não esperava. Foi tal a mudança em tudo o que se via e ouvia em Antíoco, que não parecia o mesmo. Era soberbíssimo, e já não só conhecia; mas confessava publicamente a fraqueza e miséria de todo o poder humano; era gen­tio, e não só prometeu de receber a fé do verdadeiro Deus, mas de a estender e pregar por todo o mundo; ia determinado a destruir e extinguir os judeus, e não só lhes pediu perdão dos danos recebidos, mas lhes ofereceu satisfação, com vanta­gens iguais aos seus mais nobres e estimados vassalos; levava no pensamento a destruição de Jerusalém e do Templo, e sobre os votos de o enriquecer com novos tesouros e ornamentos, ele tomou por sua conta as despesas de todos os sacrifíci­os, sacerdotes e culto divino. De todas estas promessas fez Antíoco escrituras autênticas, firmadas de sua própria mão, e encarregada a execução delas depois de sua morte a seu filho e sucessor, com as maiores demonstrações de benignidade e encarecido afeto. Enfim, morreu daquela enfermidade e naquele estado Antíoco, e pergunto se se salvaria? Este homem, e senhor de tantos homens, com tantas e tão manifestas demonstrações de arrependimento, salvar-se-ia naquela hora? Bem creio que dirão que sim os que com menos milagres e muito diferentes exemplos beatificam e canonizam outras mortes. Mas que diz a revelação divina, expressa na Escritura Sagrada? Diz que pesando mais diante do tribunal divino os pecados da vida passada que as demonstrações da emenda presente, por mais que o mise­rável Antíoco orou a Deus, não foi ouvido dele: Orabat autem hic scelestus Do­minum, a quo non esset misericordiam consecuturus [43].

Oh! quanto vai dos juízos dos homens, que não passam do exterior, ao juízo e conhecimento de Deus, que vê e penetra os corações! Poenitentia ista non fuit vera, quia non fuit propter of fensam Dei, sed propter evasionem temporalis fiagelli, et sic non fuit misericord iam consecutus quantum ad remissionem culpae et poenae –diz com a voz comum dos intérpretes, Lirano. Todo aquele aparato de promessas e arrependimento não foi bastante para livrar a Antíoco da culpa, nem da pena eterna, porque era nascido de medo e desejo de escapar do perigo em que se via, e não de pesar de haver ofendido a Deus, nem de verdadeira contrição. Pois, se a doença era verdadeira, e as dores que padecia verdadeiras, e o perigo com a morte diante dos olhos verdadeiro, e sobretudo verdadeiro o conhecimento de que Deus o castigava por seus pecados, e a confissão deles verdadeira, por que não foi também verdadeira a contrição? Ou porque não quis, ou porque não pode; e como o querer e o poder, uma e outra coisa dependia do auxílio eficaz da graça de Deus — qui dai velle, et per ficere [44]no descuido e obstinação com que Antíoco se não quis emendar, como pudera, na vida, já se tinha condenado a não querer nem poder arrepender-se na morte. Notai as palavras do texto: Orabat Dominum, a quo non esset misericordirun consecuturus. — Não diz que não alcançou a mise­ricórdia que pediu a Deus, senão que pediu a Deus a misericórdia que não havia de alcançar. Nos outros casos e desengano de não alcançar é depois de pedir; mas nesse caso, antes de pedir já estava fulminado o decreto de não alcançar: porque então decretou Deus que não pudesse alcançar o arrependimento na morte, ainda que quisesse, quando se não quis arrepender nem emendar na vida, como podia.

Por certo tenho que, se Antíoco escapasse na doença com vida, e se visse outra vez inteiramente convalescido, com as mesmas trombetas que lhe fes­tejassem a saúde havia de mandar marchar o exército contra Jerusalém, e por em execução quanto dantes pretendia. E se não ponhamos os olhos na experiência, em homens de menos má vida e de mais antiga fé que a de Antíoco. Quantos vimos que chegados àquele extremo perigo, abraçados com um Cristo, se empe­nharam com suas chagas de nunca mais o ofender prometendo e multiplicando votos de emendar a vida e ser santos, se escapassem? Escaparam por mercê do mesmo Senhor, e que fizeram? Depois que se puseram em pé, a primeira jornada foi ir dar graças a Deus à Penha de França, e a segunda romaria a reconciliar-se com o ídolo a quem dantes adoravam. Pois estes eram os votos? Estes os arrepen­dimentos? Estas as contrições? Ou estas as traições? Sim. E vi eu algum que de­pois de assim escapar com a saúde do corpo, e recair com a da alma, lhe sobreveio subitamente um tal acidente que logo lhe tirou a fala, e pouco depois a vida, para que no mesmo que não tinha cumprido as suas promessas se cumprisse a de Cris­to: Et in peccato vestro moriemini.

§ IX

Oterceiro ai de S. João e a terceira cláusula do Evangelho: — E todos morrereis em vosso pecado. — Que pecado é este em que diz Cristo que hão de morrer os ameaçados, e propriamente se chama pecado seu? A idolatria, vício nacional e imortal do povo hebreu. Quão própria e natural inclinação, e quão próprio e natural vício é da gente hebréia o errar sempre na fé. Tanto se enganam os judeus e erram agora nafé como dantes erraram, e tão idólatras são no tempo presente como foram no passado.

Somos chegados ao terceiro e último ai, que será eterno no inferno, e a mim me falta o tempo para o ponderar dignamente. Abreviando, pois, esta grande matéria, saibamos que pecado é este, em que diz Cristo que hão de morrer os ameaçados, e propriamente se chama pecado seu: In peccato vestro? Aqueles com quem o Senhor imediatamente falava quando pronunciou esta sentença, era o povo de Jerusalém; e assim como todas as nações têm os seus vícios particulares, a que naturalmente são inclinadas e sujeitas, assim o vício e pecado da nação hebréia e que propriissimamente merece o nome de seu, é o errar na fé. Não são nossos os livros nem nossos os autores que testemunham a uma voz esta verdade serão os mesmos livros e Escrituras Sagradas de todo o Testamento Velho, em que eles e nós cremos. E de nenhum modo podem negar os hebreus haver sido sempre este o seu vício e o seu pecado.

As doze tribos de Israel, como filhos nasceram na Mesopotâmia, e como povo no Egito. Na Mesopotâmia como filhos, na casa e família de Jacó; e no Egito como povo, porque ali engrossaram, cresceram e se multiplicaram em gran­de número. Mas, passando depois de livres a cativos, devendo, como filhos, con­servar a fé de seus pais, seguiram como escravos a idolatria de seus senhores. Os egípcios adoravam a Osiris em figura de touro, e esta foi a origem do bezerro, que os hebreus depois de libertados adoraram no deserto, atribuindo-lhe sobre tantos milagres, não só ímpia, mas descaradamente a mesma liberdade. Moisés lhes deu a beber o bezerro desfeito em cinzas, mas eles de tal modo beberam nelas o errar na fé, que, pelos erros que cometeram nos quarenta anos do mesmo deserto, mere­ceram da boca de Deus ser chamados os que erram sempre: Quadraginta annis proximus fui generationi huic, et dixi: Semper hi errant corde [45] . — Sempre, disse a censura divina, e foi profecia do que sempre haviam de ser, como verdadeira­mente têm sido. Entrados na Terra de Promissão, logo deixando a Deus, que os metera de posse dela, adoraram os ídolos dos cananeus, Baal e Astarot. No tempo em que foram governados pelos juízes, nove vezes os castigou Deus com muitos anos de cativeiro, debaixo do jugo de diferentes nações bárbaras, pelo pecado da idolatria, e sempre sem nenhuma emenda tornaram a idolatrar, cada vez mais obs­tinados na cegueira deste seu vício hereditário, como nota a Escritura: Reverte­bantur, et multo faciebant pejora quam facerant patres eorum, sequentes Deos alienos, et adorantes illos [46] . — Depois que o governo se passou aos reis, quão raros foram os que não fossem idólatras, sendo o primeiro de todos o mais sábio de todos, Salomão? Porque, dividida a monarquia por este pecado em duas partes, uma que se chamou reino de Israel, outra reino de Judá, em ambas, ou se profes­sava publicamente a idolatria, ou se por algum breve tempo cessava o público culto dos ídolos, nem por isso deixavam de ser adorados secretamente. Estes eram os brados, estes os clamores, estas as invectivas, estas as abominações que, com o nome de adultério contra Deus, se lêem em todos os profetas, seguindo-se ao pecado as ameaças e às ameaças os castigos.

No reino de Israel, que constava de dez tribos, levantou el-rei Jero­boão um templo ou fano, em que colocou dois bezerros de ouro, que ele e todos os reis seus sucessores, sem exceção, adoravam, e em pena desta devassidãò sua, e de todas as dez tribos, todos foram levados cativos aos assírios, donde há mais de dois mil anos desapareceram, e não se sabe deles. No reino de Judá, cuja corte era Jerusalém, estava o templo da verdadeira divindade; mas nem em sua própria casa se defendeu Deus de que dela o não viesse a lançar, com destruição do mesmo Templo, o culto dos falsos deuses; excetos neste reino alguns poucos reis, todos os outros foram idólatras e idólatras com eles o mesmo reino e povo; pelo que, conquistados, presos e transmigrados a Babilônia, lá pagaram com o cativeiro de setenta anos, e com a vida, a obstinação do seu pecado. Com as relíquias que escaparam daquele desterro ressuscitou Esdras o Templo e a verdadeira fé, mas também ressuscitou com ela a idolatrias como vício imortal desta nação. E por mais que o zelo e valor dos Macabeus trabalhava em restaurar as ruínas da verda­deira religião, no mesmo tempo chegaram os judeus a mandar embaixadores aos reis gentios, para que lhes fosse lícito adorar os seus deuses, abrindo em Jerusa­lém escolas públicas dos ritos com que eram venerados colocada e adorada no mesmo lugar do Templo, onde se adorava o verdadeiro Deus, a estátua de Júpiter. Tudo isto, que em suma tenho referido, é o que se lêem todos os livros do Testa­mento Velho, desde o Êxodo até o segundo dos Macabeus, que é o último. E porque este vício e pertinácia de errar sempre na fé é o pecado seu e próprio da nação hebréia, assim viviam e assim morriam, e assim morrem e hão de morrer no seu pecado: Et in peccato vestro moriemini.

Sobre esta demonstração — que só pode negar o judeu que negar as suas mesmas Escrituras — podem, contudo, dizer que Cristo, quando lhes disse que morreriam em seu pecado, não falou do tempo passado, senão do futuro; e é certo que os judeus, desde o tempo de Cristo a esta parte, já não adoravam ídolos, e só reconhecem e confessam o Deus verdadeiro que criou o céu e a terra, e nós a também confessamos. Logo ou não morrem hoje em pecado, ou o pecado em que morrem não é o da idolatria. Respondo que tanto se enganam e erram agora na fé, como dantes erraram; e tão idólatras são no tempo presente, como foram no passa­do. E se não, digam-me eles, e diga-me todo o mundo, que coisa é ídolo? Ídolo não é outra coisa senão um deus falso, ou uma coisa fingida e vã, que, não sendo Deus, se chama Deus e se adora como Deus. Logo, a fé que hoje professam os judeus é verdadeira e própria idolatria, porque o Deus que crêem e adoram, verda­deira e propriamente é Deus falso. Provo com a sua mesma fé, e por dois princípios evidentes. Os judeus confessam a unidade de Deus e negam a Trindade: logo, o Deus em que crêem e adoram é Deus falso, porque Deus que não seja um é junta­mente trino é falso, e não há tal Deus. Mais. Os judeus confessam em Deus a divin­dade, e negam-lhe a humanidade, porque negam que Deus se fizesse homem: logo, esse Deus que crêem e adoram é outra vez Deus falso, porque, tendo-se o verdadeiro Deus feito homem, qualquer chamado Deus, que juntamente não seja homem, não é Deus. Daqui se segue, com segunda e admirável demonstração, por uma parte de inconstância, e por outra de pertinácia, quão própria e natural inclinação, e quão próprio e natural vício é da gente hebréia o errar sempre na fé. Notai muito. Quan­do Deus era totalmente invisível, queriam Deus que pudessem ver com os olhos, e por isso freqüentavam e adoravam os ídolos; e depois que Deus, vestindo-se da humanidade, se fez visível, e foi visto, como diz Baruc: Post haec in terris visus est, et cum hominibus conversatus est [47]logo então mudaram de vontade e de fé, e não quiseram senão Deus invisível. Do mesmo modo, enquanto Deus somente era espírito, queriam Deus que tivesse corpo, olhos, orelhas, boca, pés e mãos, como diz Davi, e por isso fabricavam e adoravam as estátuas; porém, depois que Deus feito homem teve corpo com essa mesma figura e esses mesmos sentidos, logo não quiseram Deus senão que fosse todo espírito. Maior energia, e ainda galanteria tem esta mudança sobre a queixa que Deus fazia deles: Novi recentes-que venerunt, Deum qui te genuit dereliquisti (Dt. 32, 17 s): — Vieram os deuses novos, que são os ídolos, e o meu povp, a quem eu criei, deixou-me, porque era Deus velho; — mas por mais que Deus quis remediar a antigüidade da sua velhice, não lhe aproveitou, porque depois que o mesmo Deus, pela novidade do mistério da Encarnação, se fez Deus novo: Novum creavit Dominus super terram: Femina circumdabit virum [48]logo se tornaram outra vez ao Deus velho, e não quiseram o novo. De sorte que é tão própria condição ou natureza da nação hebréia o errar sempre na fé, que basta que ela o seja para logo a trocarem, e, ainda quando quiseram deixar a idolatria, se fizeram dobradamente idólatras.

E por que não cuidem que esta censura é minha, leiam e entendam as Escrituras, e verão que é divina, e definida pelo mesmo Deus. Não há coisa mais repetida e decantada nos profetas que a conversão e restituição do povo hebreu lá para o fim do mundo. Oque mais largamente a descreve é o profeta Ezequiel em muitos capítulos, e no trinta e seis da sua profecia, que é desta matéria o primeiro, depois de protestar Deus que lhe há de fazer aquela mercê não por merecimento deles, senão por sua mera bondade, diz assim: Tollam quippe vos de gentibus, et congregabo vos de universis terris, et adducam vos in terram vest ram. Et effun­dam super vos aquain inundam, et mundabimini ab omnibus inquinamentis vestris, et ab universis idolis vestris mundabo vos (Ez. 36, 24 s): Porque eu vos ajuntarei de todas as terras por onde andais desterrados, e vos trarei à vossa; e derramarei sobre vós uma água limpa e pura, com que ficareis purificados de todos vossos pecados e com que eu vos purificarei de todas vossas idolatrias. - Aqui está o ponto: Et ab universis idolis vestris mundabo vos. — Pois, se há mil e seiscentos anos que os judeus andam desterrados, depois da destruição de Jerusa­lém pelos romanos, e em todo este tempo é certo que não adoram ídolos de ouro ou prata nem de pau ou de pedra, como dantes adoravam, porque não só diz Deus que por meio daquela água pura que derramara sobre eles — que é a do Batismo - os há de purificar de todos os seus pecados e maldades senão também nomeada­mente de todos seus ídolos: Et ab universis idolis vestris? Dêem eles a solução ou dê-a a alguém, se a sabe. Sinal é logo evidente que ainda agora supõe Deus.que os judeus são idólatras e tem ídolos, e estes ídolos não são nem podem ser outros, senão os que eles fabricam, não de pedra, ou de metal senão da mesma divindade do verdadeiro Deus, negando à sua unidade a trindade das Pessoas, e à sua natu­reza divina a união que tem com a humana. E como este é o vício nacional, e o pecado: em que antes de Cristo e depois de Cristo sempre caíram e obstinadamen­te perseveram os judeus, que o não receberam nem conheceram, este é o pecado em que vivem, e este o pecado em que morrem, e este o pecado seu, em que Cristo lhes profetizou que haviam de morrer: Et in peccato vestro moriemini.

§X

Qual é o pecado em que o cristão morre ou há de morrer, e se chama com a mesma propriedade pecado seu? Opecado de Davi. Se Davi se arre­pendeu e chorou tanto o seu adultério, por que se casou com a mesma ocasião e causa dele, Bersabé? Ocasamento e o inseparável perigo de morrer em pecado. Conclusão.

Oque acabo de dizer é o pecado e a morte sobre que cai na obstinação final do judeu o vae ou ai de S. João, tão justa como lastimosamente. E porque também tem lugar, com maior lástima ainda, na fé morta e impenitência do cristão, saibamos finalmente qual é o pecado em que ele morre ou há de morrer, e se

chama com a mesma propriedade pecado seu: Et in peccato vestro. Não tem espé­cie particular este pecado, mas pode ser de qualquer espécie. É pois aquele vício a que a inclinação de cada um mais o arrasta e sujeita, o qual, começando em ato, passa a ser hábito, e continuando em hábito, chega a ser natureza como diz Santo Agostinho; e como a natureza não se muda até a morte, também ele não tem emen­da na morte, se a não teve na vida.

No salmo Miserere, em que Davi pede perdão a Deus e chora o adulté­rio cometido com Bersabé, cinco vezes chama seu aquele pecado: Dele iniquita tem meam. Ampl ius lava me ah iniquitate mea, eta peccato meo munda me. Quo-fiam iniquitatem meam ego cognosco, et peccatum meum contra me est sem­per [49]. — E quanto durou Davi naquele pecado? Muito, mas não chegou a um ano. E se a um pecado emendado e chorado, e que não chegou a um ano, lhe chama Davi tantas vezes seu, o pecado de tantos anos, e de toda a vida o pecado que nasceu, cresceu, envelheceu e viveu sempre convosco, por que não será vosso: Et in peccato vesti-o? — Vosso, porque o comprastes com a fazenda, com a honra, com a saúde, e com tantos perigos da vida; vosso, porque destes por ele a consciên­cia, a alma, a graça de Deus e o mesmo Deus; vosso, porque vos vendestes ao demônio para o adquirir e possuir, sem vos poder arrancar desta continuada e escandalosa posse nem o respeito da justiça eclesiástica, nem as ameaças da divi­na, nem o amor do céu, nem o temor do inferno; vosso, enfim, porque nem na morte o deixastes, nem a morte, que tudo acaba, pode acabar que o não levásseis convosco: Et in peccato vestro moriemini.

Ora eu, suposto que falei em Davi, não do seu pecado, mas da sua penitência, quero argüir e convencer que haveis de morrer no vosso. Foi coisa mui notável em Davi, e não pouco estranhada por Deus, que depois da morte de Urias — não executada com essa tenção — trocando o adultério em matrimônio, se casou com a mesma Bersabé: Intmduxit eam in domum suam, et facta est ei uxor; et displicuit verbuin hoc, quod facerat David, coram Domino [50]Pois se Davi se arrependeu, e chorou tanto aquele adultério, por que se casou com a mesma oca­sião e causa dele, e não apartou de si a Barsabé até à morte, antes, por seu filho Salomão, fez herdeiro do reino? Porque tal é a força e veemência do afeto huma­no, quando é grande. Pode deixar o pecado, mas não pode deixar o amor. O peca­do durou menos de um ano, o amor perseverou até a moi-te. Toda a prudência e ventura de Davi esteve em saber e poder apartar o pecado do amor por meio do matrimônio, porque, se ele não apartara o pecado do amor, assim como morreu com o amor, assim havia de morrer com o pecado. Isto é o que acontece a todos os homens que não fazem o mesmo, e em todos os pecados, nos quais se não pode fazer. Não há melhor exemplo nem mais própria semelhança, para explicar o inse­parável perigo de morrer em pecado, que o casamento. Ocasamento é um contra­to que de sua natureza dura até à moi-te, nem antes dela pode haver separação dos que o contraem. Tal é o jugo inseparável a que estão sujeitos os que vivem casa­dos com o seu pecado. Ainda que se queiram apartar, tanto pelo costume invetera­do, que se tem convertido em necessidade, quanto pelo justo juízo e castigo de Deus, que assim o permite, nem o pecado habitual se aparta do pecador, nem o pecador do pecado, senão mediante a morte, e por isso todos morrem geralmente no seu pecado: Et in peccato vestro moriemini. Vae: ai de ti, miserável homem, que se apartou Deus de ti: Ego vado! Vae. ai de ti, infeliz homem, que não achaste a Deus, ainda que o buscaste: Et quaeretis me! Voe. ai de ti mofino e maldito homem, que porque não trataste da salvação na vida, a perderás para todas as eternidades na morte: Et in peccato vesti-o moriemini! Homens, se temos uso de razão; cristãos, se ainda não está apagado de todo em nós o lume da fé, reparemos bem, e consideremos nestas três cláusulas tremendas da sentença de Cristo. E se queremos segurar a vida e saúde eterna, não guardemos o arrependimento para a morte, nem a emenda para a en­fermidade. Mas se uma e outra coisa fizermos de todo coração na vida e na saúde, a enfermidade e a morte, como conclui Santo Ambrósio, nos acharão seguros: Age poenitentiam dum sanus es: si enim agis poenitentiam dum sanus es, et inve­nerit te novissimus dies, securus es.

[1] Eu retiro-me, e vós me buscareis, e morrereis no vosso pecado (Jo. 8, 21).

[2] E olhei, e ouvi a voz de uma águia, que voava pelo meio do céu, a qual dizia em alta voz: Ai, ai, ai (Apc. 8, 13)!

[3] Nem haverá mais choros, nem mais gritos, nem mais dor, porque as primeiras coisas são passadas.

[4] Eu retiro-me, e vós me buscareis, e morrereis no vosso pecado (Jo. 8.21).

[5] Refere-se o autor ao significado grego da palavra, que quer dizer o bem.

[6] Sobre a minha cabeça nunca se pôs ferro, porque sou nazareno, isto é, consagrado a Deus desde o ventre de minha mãe (Jz. 16, 17).

[7] Veio para o que era seu, e os seus não o receberam (Jo. I, 11).

[8] Os deuses, nos quais se firmava este império, abandonaram seus altares e templos (Virg. En. lib. 11, 351).

[9] Deixei a minha casa, abandonei a minha herança; dei a minha alma em mãos de meus inimigos (Jer. 12, 7).

[10] Foi oferecido porque ele mesmo quis (Is. 53, 7).

[11] Acaso cuidas tu que eu não posso rogar a meu Pai, e que ele me não porá aqui logo prontas mais de doze legiões de anjos (Mt. 26, 53)?

[12] E perto da hora nona deu Jesus um grande brado, dizendo: Deus meu, por que me desamparaste (Mt. 27, 46)?

[13] Pela cisão do véu do Templo devíeis, ó judeus, reconhecer o vosso repúdio e a perda de todo o direito do sacerdócio, assim como a translação da lei para o Evangelho, da Sinagoga para a Igreja, dos vários sacrifícios para a única hóstia, que é Deus.

[14] Saulo, Saulo, por que me persegues (At. 9,4)?

[15] Eis aí vos ficará deserta a vossa casa (Mt. 23, 38).

[16] Porque eu vos declaro que desde agora não me tornaras a ver, até que digais: Bendito seja o que vem em nome do Senhor (ML 23, 39).

[17] Meu Deus, não te retires de mim (Sl. 21, 12; 37, 22).

[18] Não apartes de mim a tua face, nem me desprezes, e não te retires do teu servo (Sl. 26, 9).

[19] Não te apartes de mim (Sl. 37, 22).

[20] Não me arremesses (Sl. 50, 13).

[21] Não te apartes de mim (SI 70, 12).

[22] Não me deixes sair — dos teus mandamentos — (Sl. 118, 10).

[23] Sl. 26, 9; Sl. 37, 22; Sl. 70, 9; Sl. 118, 8; Sl. 139, 9.

[24] Ali me abandonará, e eu o deixarei (Dt. 31, 16 s).

[25] Por que abandonastes vós o Senhor para ele vos abandonar (2 Par. 24, 20)?

[26] Não nos desampares para sempre (Sl. 43, 23).

[27] Não me desampares jamais (Sl. 118, 8).

[28] Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo. 14, 6).

[29] Abandonei-os segundo os desejos do seu coração; eles irão caminhando atrás das invenções da sua fantasia.

[30] Eis aí me lanças tu da face da terra, e eu me irei esconder da tua face (Gên. 4. 14).

[31] Senhor, não desamparaste aos que te buscam (Sl. 9, 11).

[32] Vós me buscareis, e vós me achareis (Jer. 29, 13).

[33] Buscai, e achareis (Lc. 11. 9).

[34] Busquei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o, e não o achei (Cânt. 3, 1).

[35] Buscai o Senhor enquanto se pode achar (Is. 55. 6).

[36] Nós fizemos um pacto com o inferno (Is. 28, 15).

[37] E será como hoje assim também amanhã, e ainda muito mais (Is. 56, 12).

[38]De todo o meu coração te busquei; não me deixes sair dos teus mandamentos (Sl. 118, 10).

[39] Clamei de todo o meu coração: ouve-me, Senhor (ibid. 145).

[40] Só então se pede de todo o coração, quando o não diverte outro cuidado (S. Agost.).

[41] Multiplicaram-se as enfermidades deles, depois correram aceleradamente (Sl. 15, 4).

[42] Dividiu-se o seu coração: agora perecerão (Os. 10, 2).

[43] Ora este malvado orava ao Senhor, do qual não havia de alcançar misericórdia (2 Mac. 9, 13).

[44] Que dá tanto o querer como o perfazer (Fip. 2, 13).

[45] A Vulgata traz offenses fui emvez de proximus fui. Quarenta anos estive desgostado com esta geração, e disse: Estes sempre erram de coração (Sl. 94. 10).

[46] Reincidiam, e cometiam muito piores coisas do que tinham feito seus pais, seguindo os deuses estranhos, e adorando-os (Jz. 2, 19).

[47] Depois de tais coisas, foi visto sobre a terra e conversou com os homens (Bar. 3, 38)

[48] O Senhor criou uma coisa nova sobre a terra: Uma mulher cercará a um varão (Jer. 31, 22).

[49] Apaga a minha maldade. Lava-me mais e mais da minha iniqüidade, e purifica-me de meu pecado. Porque a minha maldade eu a conheço, e o meu pecado diante de mim está sempre (Sl. 50, 3 ss).

[50] E a fez trazer para o palácio, e tomou-a por sua mulher; mas o que Davi fizera foi desagradável aos olhos do Senhor (2 Rs. II, 27).