Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Exortação II em véspera da visitação na capela, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

EXORTAÇÃO II EM VÉSPERA DA VISITAÇÃO NA CAPELA


INTERIOR DO NOVICIADO

Discessit ab illa angelus. Exsurgens autem Maria abiit in montana cum festionatione, in civitatem Juda[1]

§I

O que ensina a solenidade da Visitação aos noviços da Província do Brasil.

Em todas as suas idades, e em todas as suas ações, ensinou sempre o Filho de Deus aos homens o que cada um deve obrar conforme seu estado. E na presente solenidade, o que ensina aos irmãos noviços desta Província é que comecem a ser missionários desde o ventre da Mãe. Este será, caríssimos, só para eles, o argumento desta breve exortação, e este é o mais próprio e natural das palavras que propus.

§ II

Concluído o mistério da Encarnação, qual dos dois fez melhor caminho: o anjo indo para o céu, ou o Menino recém-concebido, indo a pôr em graça a alma do Batista? A eleição entre o céu e a salvação das almas em Santo Inácio e S. Paulo.

Concluído o sublime mistério da Encarnação, diz o evangelista S. Lucas que o anjo se apartou da Virgem Maria: Discessit ab illa angelus – e que a Virgem se pôs logo a caminho, com toda a pressa, para as montanhas de Judéia: Exsurgens Maria abiit in montana cum festinatione, in civitatem Juda (Lc. 1, 39). – O anjo, apartando-se da Senhora, tornou para o céu a levar a resposta da sua embaixada; e a Senhora, caminhando para as montanhas, levou na custódia virginal de seu puríssimo ventre ao Filho de Deus e seu, para que ele santificasse o Batista. Agora pergunto: e qual dos dois fez melhor caminho: o anjo indo para o céu, ou o Menino recém-concebido indo a pôr em graça aquela alma? Esta questão já foi proposta e disputada entre os dois primeiros gerais da Companhia, nosso santo patriarca, e seu sucessor Padre Mestre Laines. Laines, com todas as suas letras, disse que em semelhante caso, se a eleição fosse sua, escolheria ir logo para o céu. Porém Santo Inácio, com o heróico e sublime de seu espírito, respondeu que antes elegeria ficar no mundo ser­vindo a Deus na salvação dos próximos, ainda com incerteza do mesmo céu. Esta admirável sentença aprovou e canonizou a Igreja, e a mandou estampar na vida do nosso santo, para glória sua, para imitação de seus filhos, e para confusão de todos aqueles que do emprego e empenho da salvação das almas não fazem a estimação que devem: Auditus aliquando dicere: Si optio daretur, malle se beatitudini incer­tum vivere, et interim Deo inservire, et proximorum saluti, quam certum ejusdem gloriae statim mori. – Quase me pesa de que S. Paulo tivesse semelhante resolução. Mas, com tal companheiro, bem se pode renunciar a singularidade.

Em certa ocasião não duvidou S. Paulo dizer: Optabam ego ipse anathema esse a Christo pro fratribus meis[2]e, escrevendo aos filipenses, diz assim: Mihi vivere Christus est, et mori lucrum. Permanere autem in carne, necessarium propter vos (Flp. 1, 21, 24): Como a minha vida é Cristo, que já está no céu, para mim o mais conveniente é morrer logo; mas para vós o mais necessário é viver eu, e estar convosco. Dividido, pois, e suspenso, entre esta minha conveniência e esta vossa necessidade, me vejo como em talas, e não sei a qual das duas partes me hei de inclinar, e qual devo eleger: Coarctor autem a duobus, et qui eligam ignoro (ibid. 23). Mas quanto se deteve o grande após­tolo nesta dúvida ou nesta suspensão? Imediatamente sem interpor palavra retratou aquele ignoro com um seio – et hoc confidens scio – e confiada e absolu­tamente resolveu que havia de continuar e perseverar com os próximos para proveito seu, e para aumento, ou, como ele diz, para alegria da fé: Et hoc con­fidens seio quia manebo, et permanebo vobis ad profectum vestrum, et gau­dium fidei (ibid. 25). Note-se muito estas últimas palavras et gaudium fidei. De sorte que quando há quem trate do proveito e bem das almas alegra-se a fé e não cabe em si de prazer: gaudiumfidei; pelo contrário, quando não há quem se aplique a esta grande obra, entristece-se a fé, chora a fé, lamenta-se a fé: Et non est qui consoletur eam[3]. Oh! que alegre estará a fé nesta ocasião, e que agra­decida à nossa Província, pois, sem embargo de estar tão necessitada de sujei­tos, pelo grande zelo que tem e sempre teve da salvação das almas, não duvidou de socorrer a mesma fé, para as gentilidades do Maranhão, com tantos e fervo­rosos missionários, não menos que quinze, maior número que o que Cristo es­colheu para a conversão de todo o mundo.

§ III

Se S. Paulo não só diz que é muito melhor, senão que é muito mais me­lhor ir para o céu, como se resolveu a ficar com os homens? O magis melius da conversão das almas e o magis beatius da glória no céu. Por que diz o evange­lista que o Verbo de Deus veio cheio de graça e de verdade? Quanto vai da glória de converter almas à glória do céu?

Tornando, porém, a S. Paulo, não é justo que eu passe em silêncio umas notáveis palavras que ele ajuntou entre as referidas: Desiderium habens dissolvi, et esse cum Christo, multo magis melius (Flp. 1, 23): O meu desejo é desatar-me das prisões do corpo, e ir logo para o céu a estar com Cristo, que é muito melhor. Ainda o encarece mais o apóstolo. Não só diz que é muito melhor, senão muito mais me­lhor: Multo magis melius. Pois, se é muito melhor e muito mais melhor ir ao céu e estar com Cristo, como se resolve o mesmo apóstolo a ficar e perseverar com os homens, para os aproveitar: Manebo, et permanebo vobis ad profectum vestrum?

Logo, se S. Paulo, depois de dizer o que disse, escolheu antes ficar com os homens para os aproveitar, segue-se que este mais é muito mais que aquele mais, e este melhor é muito melhor que aquele melhor. Assim é, e não seria S. Paulo se assim o não entendera e assim o fizera. E qual é ou qual pode ser a razão deste mais em negócio tão grande, e deste melhor em matéria tão boa? O mesmo S. Paulo o disse com palavras de Cristo, falando nos mesmos termos, e acrescentando o mesmo mais sobre outro comparativo: Beatius est magis dare, quam accipere[4]. Combinemos agora o magis beatius com o magius melius. De modo que é magius melius o tratar da conversão das almas que o estar com Cristo no céu, porque é coagis beatius o dar que o receber. Que faz o que vai ao céu, e que faz o que vai converter almas? O que vai ao céu vai receber o céu para si, o que vai converter almas vai dar o céu aos que converte: logo, isto é o melhor, e mais melhor, e isto sobre o bem-aventurado o mais bem-aventurado: Beatius est magis dare, quam accipere.

E se insistirmos na palavra beatius, nela temos mais profundamente a razão desta mesma razão. E qual é? Porque eu, indo ao céu, vou participar a glória dos bem-aventurados, porém, tratando da salvação das almas na terra, faço-me participante da glória do mesmo Filho de Deus. Admiravelmente S. João: Verbum caro factum est, et habitavit in nobis: et vidimus gloriam ejus, gloriam quasi Unigeniti a Patre, plenum gratiae et veritatis (Jo. 1, 14): Fez-se o Verbo Eterno homem, habitou e morou conosco, e vimos a sua glória como glória verdadeiramente do Filho Unigênito do Padre, cheio de graça e de verda­de. Aquele plenum refere-se ao Verbum. E por que diz que veio o Verbo cheio de graça e de verdade? Porque veio cheio do que faltava no mundo, para encher o mesmo mundo. O mundo estava cheio de pecados, e por isso veio cheio de graça; o mundo estava cheio de erros e ignorâncias, e por isso veio cheio de verdade: cheio de graça, para comunicar a graça de Deus aos que estavam fora da graça; e cheio de verdade, para ensinar as verdades da fé aos que estavam ignorantes dela. Isto é o que fez o Verbo vindo ao mundo, e isto é o que fazem quando vão às gentilidades os missionários da Companhia: levam a graça aos que estão na miséria do pecado, e levam a verdade aos que estão nas trevas da ignorância. Por isso são bem-aventurados, não com a glória dos homens ou anjos, que estão no céu, senão bem-aventurados com a glória do mesmo Filho Unigênito de Deus quando foi visto na terra: Vidimus gloriam ejus quasi Uni­geniti a Patre.

Ainda não está dito. E quanto vai de uma glória a outra glória? Dire­mos que vai tanto de uma a outra quanto vai de ser glorificador a ser glorifica­do? Não digo tal, porque é pouco. Vai tanto de uma glória a outra glória, quanto vai de ser santificador a ser glorificador. Dentro da mesma grandeza e onipo­tência de Deus, é maior e mais excelente obra a de santificar que a de glorificar, porque glorificar é dar glória, e o santificar é dar a graça, que é melhor que a glória. Por isso o Verbo, sendo glorificador no céu, veio a ser santificador na terra, e tanto que pôs os pés na mesma terra, ou antes de os pôr, foi logo a toda a pressa a santificar o Batista. E tal é a glória de que o mesmo Verbo faz parti­cipantes aos que se ocupam em converter e santificar almas. Não glória como a dos bem-aventudos no céu, mas glória como a do mesmo Filho de-Deus, que faz bem-aventurados, e que para os fazer bem-aventurados os enche primeiro de gra­ça e de verdade: Gloriam quasi Unigeniti a Patre, plenum gratiae et veritatis.

§ IV

O espírito da Companhia de Jesus, e a primeira ação de Cristo, Senhor nosso. Cristo, missionário particular de Israel, mestre e exemplar de todos os missionários do mundo. Por que razões o perfeito e consumado missionário deve começar a sua missão desde o ventre de sua Mãe?

Esta é, irmãos caríssimos, a nossa e vossa vocação, a qual muitos não conhecem quando pedem ser admitidos a ela. Imos àquela portaria, vemo-nos cercados de muitos que andam pedindo, e se lhes perguntarmos por que pedem a Companhia, respondem: Padre, porque me quero salvar e ir ao céu. Se para isso só pedis: Nescitis quid petatis[5]. Se só quereis salvar a vossa alma e ir ao céu, ide a outras religiões muito santas, mas não à Companhia. O espírito da Companhia não é só salvar a alma própria, senão as alheias; não é só ser bem-aventurado, mas fazer bem-aventurados; não é só ir ao céu, mas levar e meter no céu todos os que por falta de fé ou de graça andam longe dele. Este é o altíssimo fim que há de pôr e trazer diante dos olhos todo o noviço da Companhia. Isto há de aprender e empreender, isto há de procurar e exercitar desde o mesmo noviciado, que, como disse, ou quis dizer ao princípio, é o ventre da Mãe.

Uma das mais notáveis ações de Cristo, Senhor nosso, foi esta pri­meira de sua vida, que imos ponderando: Abiit in montana cum festinatione, in civitatem Juda. Não reparo que a sua primeira jornada fosse a livrar do pecado uma alma, nem reparo que esta alma fosse de um homem natural de Judéia, porque o Senhor, como ele mesmo disse, foi missionário particularmente da­quela nação: Non sum missus nisi ad oves, quae perierunt domus Israel[6]. Mas o que muito admiro, e devem admirar todos, é que comece esta missão antes de nascer. Nasça primeiro, e então fará esta jornada, e muitas outras jor­nadas; nasça primeiro, e então vá livrar do pecado esta alma, e muitas outras almas. Porém, que não aguardando o nascer, e que estando ainda no ventre de sua Mãe deixe a pátria, no ventre de sua Mãe caminhe às montanhas, no ventre de sua Mãe vá dar princípio à sua missão, com tanta pressa? Sim. Porque Cris­to, Redentor nosso, não só havia de dar o exemplo, senão também ser o exem­plar de todos os missionários em sua maior perfeição, e o perfeito e consumado missionário há de começar a sua missão desde o ventre da Mãe.

Assim o fez o Menino-Deus recém-concebido, e assim o havia de fazer, porque assim estava profetizado dele por Isaías, quanto à vocação, quan­to ao nome e quanto ao ofício, tudo desde o ventre da Mãe. Desde o ventre da Mãe quanto à vocação: Dominus ab utero vocavit me[7]; desde o ventre dá Mãe quanto ao nome: De ventre Matris meae recordatus est nominis mei[8]; desde o ventre da Mãe quanto ao ofício: Formans me ex utero servum sibi[9]. E por que, e para quê? Por quê? Porque era missionário do povo de Israel. E para quê? Para que convertesse e reduzisse o mesmo povo a Deus. Assim o declara expressamente o profeta: Formans me ex utero servem sibi, ut reducam Jacob ad eum[10]. A maior missão que nunca houve no mundo foi a do povo de Israel. Maior, por ser a gente que Deus tinha escolhido e separado para si, entre todas as nações; maior, por ser a gente mais inclinada e dada às idolatrias da gentilidade; maior, por ser a gente mais rebelde, mais obstinada e de mais dura cerviz. E como a empresa era tão árdua e dificultosa, em que todos os patriarcas e profetas tinham trabalhado e padecido tanto, sempre debalde, para que o últi­mo e principal missionário de tal gente, na diligência, na aplicação e na eficá­cia, respondesse às obrigações de tamanho empenho, por isso foi não só conveniente, mas necessário – ainda naturalmente – que desse princípio à sua missão logo, desde o ventre da Mãe. Esta é a razão por que Deus lho mandou inculcar assim, uma, duas e três vezes, não só como a missionário de Israel, mas como mestre e exemplar de todos os missionários do mundo. Uma vez, para que se lembrem de sua vocação: Vocabit me nomine meo; outra vez, para que respondam à significação de tão grande nome: De ventre matris meae recorda­tus est nominis mei; e a terceira, para que se não contentem com menos, que fazer do próprio ofício natureza: Formans me ex utero servum sibi. Esta é a energia daqueleformans: formando-se desde o ventre da Mãe, onde tudo o que vive e sente recebe a forma segundo a sua espécie.

§V

O noviciado, ventre da religião. A gestação dos elefantes. Razões da for­taleza de Jacó na luta que travou com Deus. Quando alumiou Cristo ao Batis­ta? A Virgem e Santa Isabel, intérpretes dos filhos.

O ventre da Religião, meus caríssimos, é o noviciado. Porque, assim como no ventre da mãe o que há de ser homem se concebe em um embrião imperfei­to e informe, e pouco a pouco se vai dispondo e organizando, até que em todos os membros e oficinas das potências e sentidos seja capaz de receber e se lhe infundir a alma, e com ela a vida racional, assim no noviciado, com o conhecimento e exercício das virtudes, se purgam e purificam as imperfeições que trouxemos do mundo, e nos imos dispondo e habilitando para receber o espírito da Religião, e viver a vida religiosa em cada uma segundo seu instituto. Nas outras Religiões sinala-se para isso um ano de noviciado, na Companhia dois anos. E por quê? Porque as nossas obrigações são maiores, e pedem sujeitos que se não geram senão mais devagar. Os elefantes, como dizem os naturais, andam dois anos no ventre da mãe, e não por outra razão, ou providência da natureza, senão porque hão de ser elefantes. Hão de ser uns corpos tão grandes, tão fortes e tão robustos, que cada um deles leve sobre si um castelo; e não basta para sustentar tão grande peso que só cresçam depois de nascidos, mas que comecem a se lhes criar as forças, endurecer os ossos e furnir os membros dentro do ventre da mãe. Admirável coisa é que lutasse Jacó com Deus, e lhe resistisse tão fortemente que, confessando-se o mesmo Deus por vencido, lhe dissesse: Si contra Deum fortis fuisti, quanto magis contra homines praevalebis (Gên. 32, 28)? Se con­tra Deus fostes tão forte, quanto mais prevalecerás contra os homens? E donde lhe veio a Jacó tanta fortaleza, e como chegou a ser tão valente lutador, e tão invencível? Porque começou a exercitar esta arte e estas forças desde o ventre da mãe, lutando com Esaú: Collidebantur in utero (Gên. 25, 22). O verdadeiro e valente missionário há de lutar com Deus e lutar com os homens: com Deus, obrigando-o por meio da oração, e com os homens, convencendo-os por meio da pregação; e tudo isto se há de começar a exercitar do ventre da mãe, e não esperar, como Cristo hoje não esperou, para depois de nascer.

Neste mesmo dia cantou Zacarias a Cristo: Illuminare his qui in te­nebris et in timbra moais sedent (Lc. 1, 79): Alumiai, Senhor, aos que estão em trevas e na sombra da morte. Assim alumiou Cristo ao Batista, que estava nas trevas do pecado original, que verdadeiramente é sombra da morte. Mas, quan­do o alumiou? Malaquias diz que Cristo nasceria como sol: Orietur vobis sol justitiae (Mal. 4, 2) – e este Sol, quando alumiou aquelas trevas? Porventura depois de nascido? Não. É propriedade do sol alumiar antes de nascer. Quando o sol nasce, já estão dissipadas as trevas, e alumiado o mundo por meio da aurora. Assim alumiou Cristo ao Batista antes de nascer, por meio da sua auro­ra, que é a Virgem Maria: Exsurgens Maria quasi aurora consurgens[11]. Ainda estava escondido no ventre da Mãe; mas assim escondido, e antes de nascer, alumiou também antes de nascer ao maior dos nascidos: o alumiador e o alumiado ambos por meio das mães: Ut facta est vox salutationis tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans in utero meo[12].

474.                 Não posso deixar de reconhecer aqui o que nos acontece no sertão, quando o missionário não sabe a língua do que há de converter. Neste caso toma-se um, e não poucas vezes dois intérpretes: um intérprete, por quem fala o missionário, e outro intérprete, por quem ouve o gentio. Assim foram intérpre­tes nesta ocasião a Virgem e Santa Isabel. Cristo, que ainda não tinha o uso da língua, falou pela voz da Virgem: Vox salutationis tuae; o Batista, que ainda não tinha o uso de ouvir, ouviu pelos ouvidos de Isabel: In auribus meis – e desta maneira pôde o mudo falar ao surdo, e o missionário converter e o pagão ser convertido, não por si mesmos, senão por meio das mães, estando cada um no ventre da sua.

§ VI

Santo Inácio e as obrigações dos noviços. Eficácia da pregação dos no­viços da Companhia em Albano.

Isto é o que fez e ensinou Cristo, isto o que imitou o Batista, e isto o que ordenou Santo Inácio, para que, exercitando-se os noviços da Companhia desde o ventre da mãe no que hão de obrar quando maiores, o façam com a perfeição que é bem. Ordenou Santo Inácio que os noviços fizessem doutrinas nesta capela, e as fossem fazer àquela portaria, e que assistissem todos à repeti­ção dos tons, e que decorassem um quarto de hora cada dia: para quê? Para que assim se ensaiassem e facilitassem a doutrinar e pregar. Ordenou que no primei­ro ano do noviciado tivessem quatro semanas de exercícios espirituais: na pri­meira, meditando os motivos da via purgativa; na segunda e na terceira os da iluminativa; na quarta os da unitiva: para quê? Para que ali ajuntassem cabedal de razões fortes, sólidas e eficazes, com as quais, assim como se tinham persuadi­do e convencido a si mesmo, depois persuadissem e convencessem os do mun­do. Ordenou que um mês servissem nos hospitais, e outro mês andassem em peregrinação, e mais tempo, quando convier: para quê? Para que abraçassem juntamente os dois pólos em que se revolve e resolve todo o ministério de salvar almas, que são ensinar e padecer. Assim o ensinou o divino Mestre a S. Paulo: Vas electionis est inibi iste, ut portet comem meum coram gentibus[13]eis aí o ensinar. – Ego enim ostendam illi quanta oporteat eum pro nomine meo pati[14]eis aí o padecer.

Saem três noviços do noviciado em Portugal, sem mais que o seu bordãozinho na mão e o seu alforje ao tiracolo, debaixo das capas remendadas, e que fazem? Caminhando pelas estradas, vão sempre a pé e com olhos baixos, pedindo esmola e sustentando-se pobremente da que lhes dão, e mais pobre­mente da que lhes negam, recolhendo-se de noite aos hospitais, e, onde os não há, dormindo nos palheiros: para quê? Para que aprendam, se endureçam e se costumem a padecer. E que mais fazem? Entrando pelas vilas e lugares convo­cam os meninos, a gente rude, vão às igrejas ou ermidas, sobem ao púlpito, primeiro que tudo ensinam a doutrina cristã, logo falam temerosamente da mor­te, do juízo, e do inferno, bradando com as vozes ainda delgadas contra os pecados, e para quê? Para o que se experimenta comumente nos ouvintes, por­que ouvindo-os daquela idade se enternecem, e eles os persuadem tanto com as suas palavras como com a sua modéstia e exemplo.

Lembra-me que, estando em Albano, quatorze milhas de Roma, em uma quinta nossa, vieram ali fazer noite três noviços da Companhia. E que tinham feito naquele dia? Pela manhã tinham pregado na paróquia, que é do Cardeal Ursino, onde então residia, ficando igualmente edificado de os ouvir aquele príncipe, tão grande no secular como no eclesiástico. À tarde foram em romaria a Nossa Senhora da Richa, onde viram debaixo de uma árvore uns homens jogando. Chegaram-se a eles, referiram-lhes o exemplo e documento de S. Francisco de Borja, o qual dizia que no jogo se perdiam quatro coisas: o tempo, o dinheiro, a paciência, e muitas vezes a alma – e foi tal a eficácia com que lhes detestaram aquele custoso gênero de divertimento, que os jogadores, mais picados do que ouviam, se levantaram do jogo e lhes entregaram as cartas, que eles rasgaram. Lá fingiram os poetas que o seu Hércules no berço despedaçara serpentes. Tardaram em dizer no berço, porque os nossos Alcides dentro no ventre da mãe as despedaçaram. E não é isto ser já verda­deiros e valentes missionários? Pois todos eram noviços.

§ VII

Os novos Hércules da Companhia e as serpentes dos vícios. Os votos religiosos e os três maiores ídolos do inundo.

E que direi dos nossos? É certo que não foram menos no mesmo ventre da mãe, senão muito mais, e não daqui a muito tempo, senão dentro de poucas horas. Amanhã renovam os seus votos, votos oferecidos a Deus, e feitos propria­mente antes de nascerem, porque quando embora fizerem os do Colégio, então saem do ventre da mãe, e então é que nascem. E disse que não farão menos ama­nhã senão muito mais, porque por meio dos mesmos votos, não só despedaçarão serpentes, mas degolarão os três monstros capitais a que se reduzem todos os vícios do mundo. Quidquid est in mundo – diz S. João – concupiscentia carnis est, concupiscentia oculorum, et superbia vitae[15]. Concupiscentia oculorum, é o amor das riquezas; e estes degolam, e metem debaixo dos pés dizendo: Voveo paupertatem. Concupiscentia carnis é o apetite da intemperança; e este degolam e pisam, dizendo: Voveo castitatem. Superbia vitae é a ambição de mandar; e esta degolam, não pisando, mas deixando-se pisar, e dizendo: Voveo obedientiam. Degolados, pois, em si mesmos desde o ventre da mãe estes três monstros, que se segue de uma tão grande e primeira vitória? Segue-se que já ficam daqui tão va­lentes e poderosos missionários que, saindo depois a conquistar as gentilidades, facilmente derrubarão todas suas idolatrias. Os maiores e mais adorados ídolos da gentilidade também eram três: Júpiter no céu, Netuno no mar, Plutão debaixo da terra. E à voz dos que votam pobreza, cairá Plutão, que é o ídolo das riquezas; à voz dos que votaram castidade, cairá Netuno, que é o ídolo da intemperança; à voz dos que votaram obediência cairá Júpiter, que é o ídolo do mando e do impé­rio. E deste modo triunfarão de toda a idolatria da gentilidade, quando saírem ao campo os que antes da guerra e da batalha a levam já vencida.

§ VIII


O Batista precursor e exemplo dos novos missionários. Conclusão.

Todos estes monstros e todos estes ídolos pisou o menino Batista com aqueles saltos que deu no ventre da mãe, que tão depressa arma e fortalece Cristo aos que faz seus missionários, qual o mesmo Batista foi: Fuit homo mis-sus a Deo[16]. Ainda não tinha voz o que havia de ser vox clamantis[17], e com os gestos, movimentos e saltos do corpozinho, que só tinha, já começava a pregar que era chegado o Messias; ainda não tinha voz o mais que profeta, e já profetizava quais haviam de ser os impulsos e empenhos da sua vida; ainda não tinha voz o precursor missionário, e já ia diante dos nossos mostrando-lhes como o haviam de imitar e seguir. Ele havia de morar no deserto, os nossos pelos matos e pelos bosques; ele havia de vestir peles de camelos, os nossos o burel de algodão grosseiro tinto nos tujucos; ele havia de se sustentar de gafa­nhotos, os nossos até de lagartos; ele havia de matar a sede com mel silvestre, os nossos com o lodo dos charcos e com as cacimbas das praias; ele havia de batizar no pequeno rio Jordão, os nossos no imenso das Almazonas; ele havia de converter homens, a que chamou víboras, mas da sua nação e da sua língua: os nossos a homens que se podem chamar feras, em línguas tão estranhas e bárbaras como as vozes dos brutos. Para isto hão de sair e partir daqui, deixan­do as capelas douradas, e os corredores azulejados, e os eirados de flores e vistas alegres, sem saudades, sem repugnâncias, sem temores, antes com júbi­los de alegria e saltos de prazer: Exultavit in gaudio infans in utero meo[18].

Finalmente, sobre tudo: Ut facta est vox salutationis tuae[19]com a voz, com a luz, com a assistência e com a proteção da Virgem Maria, não só protetora e advogada, mas suavíssima Mãe de todos os noviços da Companhia, que a mesma Senhora instituiu. Em sua soberana presença hão de renovar ama­nhã os seus votos: Coram sacratissima Virgine Maria. E como todos aqui a servem com tão afetuosos e filiais obséquios, e a visitam e saúdam tão freqüen­temente todos os dias, não há dúvida que a mesma sacratíssima Virgem no dia de sua Visitação os visite e encha de todos os dons e graças do céu, de que encheu o menino precursor no ventre da mãe, e a mesma mãe, e a toda a casa de Zacarias. Zacarias quer dizer memória Domini. E que casa há mais digna deste nome, e na qual a memória de Deus seja o perpétuo exercício da vida, e a alma de todas as ações, mais propriamente que este sagrado retiro da Companhia de Jesus? Como pode logo o mesmo Jesus deixar de visitar esta casa, e trazer a ela sua santíssima Mãe, para ambos santificarem as novas e inocentes almas, que tão antecipadamente desde o ventre da mãe se oferecem e dedicam ao serviço de uma e outra Majestade no exercício que sobre todos mais lhes agrada, qual é o das missões para que se criam? Assim será igualmente sem duvida, por mer­cê, por privilégio e por graça própria deste dia, em que o mesmo Jesus, levado no puríssimo ventre de sua santíssimo Mãe, a levou a Santificar o seu primeiro missionário com tanta pressa: Exsurgens Maria abiit in montana cum festinatione[20].

FINIS

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística


 

[1] E o anjo se apartou dela. E levantando-se Maria, foi com pressa às montanhas, a uma cidade de Judá (Lc. 1, 38 s).

[2] Eu mesmo desejara ser anátema por Cristo, por amor de meus irmãos (Rom. 9, 3).

[3] E não há quem a console (Lam. I, 2. 17).

[4] Coisa mais bem-aventurada é dar que receber (At. 20, 35).

[5] Não sabeis o que pedis (Mc. 10, 38).

[6] Eu não fui enviado senão às ovelhas que pereceram da casa de Israel (Mt. 15, 24).

[7] O Senhor desde o ventre me chamou (Is. 49, 1).

[8] Desde o ventre de minha mãe se lembrou do meu nome (ibid.)

[9] Formando-me desde o ventre materno para seu servo (ibid. 5).

[10] Formando-me desde o ventre materno para seu servo, para trazer Jacó a ele (ibid.).

[11] Levantando-se Maria, como a aurora quando se levanta (Lc. 1, 39; Cânt. 6, 9).

[12] Assim que chegou a voz da tua saudação aos meus ouvidos, logo o menino deu saltos de prazer no meu ventre (Lc. 1, 44).

[13] Este é para mim um vaso escolhido para levar o meu nome diante das gentes (At. 9, 15).

[14] Porque eu lhe mostrarei quantas coisas lhe é necessário padecer pelo meu nome (ibid. 16).

[15] Tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos, e soberba da vida (1 Jo. 2, 16).

[16] Houve um homem enviado por Deus (Jo. 1, 6).

[17] A voz do que clama (Is. 40, 3).

[18] O menino deu saltos de prazer no meu ventre (Lc. 1, 44).

[19] Assim que chegou a voz da tua saudação (ibid.).

[20] Levantando-se Maria, foi com pressa às montanhas (Lc. 1, 39).