Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da dominga vigésima-segunda Post Pentecosten, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. VIII Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DA DOMINGA VIGÉSIMA-SEGUNDA POST PENTECOSTEN

NA SÉ DE LISBOA. ANO 1649 Licet censum dare Caesari, an non[1]?

§I

O sermão dos escrúpulos. As circunstâncias edificantes do escrúpulo e caso de consciência dos escribas e fariseus: Quão venturosa e vitoriosa se mostrou a palavra escrúpulo a única vez que se nomeou na Escritura. O escrúpulo e o respeito ao nome dos reis.

Toda a matéria do Evangelho que acabamos de ouvir é um escrúpulo dos escribas e fariseus, e um caso de consciência, que vieram perguntar a Cristo. Bendita seja a graça divina, que já os escribas e fariseus são escrupulosos, e já tratam de sua consciência com tanto cuidado aqueles mesmos dos quais se publicava por estes púlpitos que eram homens sem consciência! Vamos ao caso. Como naquele tempo todo o mundo obedecia aos romanos, tinha mandado o César, ou imperador Tibério, que o mesmo mundo, isto é, todos os súditos do seu império, sem exceção de nação ou pessoa, em reconhecimento de sujeição e vassalagem, pagassem certo tributo. E como o povo de Israel, que era uma das nações sujeitas aos romanos, ou cresse ou presumisse que, a título de ser povo de Deus, devia ser isento desta regra geral, e que abaixo do mesmo Deus, a quem pagava os dízimos, a nenhum poder era obrigado a pagar tributo, sobre esta presunção se fundava o escrúpulo dos escribas e fariseus, e sobre este escrúpulo o caso de consciência, em que vieram consultar a Cristo. Assim que toda a questão ou proposta se resumia nas palavras que propus: Licet censum dare Caesari, an non? Se era lícito ou não aos hebreus pagar tributo ao César.

Torno, a dar graças a Deus, porque não posso deixar de reconhecer neste caso e neste escrúpulo muitas circunstâncias que me edificam não pouco. Primeiramente os fariseus - nome hoje tão mal soante entre nós - eram os religiosos daquela nação, e os escribas, os doutores da mesma lei, e é resolução verdadeiramente admirável que em ponto de religião e letras se não fiem só de si, e se queiram sujeitar ao juízo e parecer de outrem. Também noto muito que o tributo do César era uma moeda de pouco preço, chamada dracma e, sendo a matéria venial, argumento é de consciências muito delicadas e timoratas fazerem tanto escrúpulo dela. Aperta e adianta mais este bom conceito, que a questão não era sobre impor o tributo, em que podia haver injustiça, senão em o haver de pagar, que sendo, como sempre é, por força, e não por, vontade própria, esta os livrava de todo o pecado. Finalmente, o mesmo tributo era imposto não menos que pelo supremo poder dos Césares, imperadores romanos, e, no caso em que Cristo resolvesse que não era lícito ao povo de Israel pagá-lo, os mesmos escribas e fariseus se expunham a resistir a Tibério, homem não só tenacíssimo do que mandava, mas de condição cruel, com que parece estavam deliberados a dar a vida em defesa da religião e da pátria.

Por todas estas razões - as quais, posto que eu as tenha proposto, também para mim são escrupulosas - determino tratar hoje uma matéria tão importante, como não usada, e assim será todo este sermão o sermão dos escrúpulos. É doutrina que toca a todos, e mais aos grandes que aos pequenos, mas nem por isso receio que lhes seja pouco agradável. Em toda a Sagrada Escritura uma só vez se acha esta palavra escrúpulo. Quem propôs o escrúpulo foi uma mulher, que o era de um lavrador, e se chamava Abigail; a quem se propôs, era um homem tão grande, que pouco depois foi rei, e já sabia que o havia de ser, Davi. Andando, pois, Davi homiziado pela morte do gigante - na qual granjeou as invejas e ódios de Saul - por certas descortesias que lhe tinha feito aquele lavrador, chamado Nabal Carmelo, não só tinha resoluto mas jurado que ele e toda a sua família, que era grossa, e até os cães da mesma casa morressem (I Rs. 25, 22). Já marchava com um troço dos seus soldados a executar estecastigo, quando lhe saiu ao encontro Abigail para o aplacar, e a principal razão que  lhe deu foi que, se não desistisse daquela vingança, em todos os dias de sua vida havia de trazer atravessado na garganta este escrúpulo: Erit tibi in singultum, et scrupulum cordis (ibid. 31). - E que faria então Davi, posto que tão ofendido, irado e resoluto? O que fez foi desistir no mesmo ponto da execução, e ficou tão agradecido a quem lhe propôs aquele escrúpulo, que lho não agradeceu com menos que com a sua própria coroa, casando-se com Abigail, depois que morreu Nabal, e ele foi rei.

Tão venturosa e tão vitoriosa como isto se mostrou a palavra escrúpulo a única vez que se nomeou na Escritura; e, posto que os escribas e fariseus não declarassem o seu escrúpulo com o mesmo nome, nas palavras da sua proposta o significaram ainda mais expressamente, porque nelas o definiram: Licet censuro dare Caesari, an non? - Todo o escrúpulo por uma e outra parte consiste em licet ou non licet: em ser lícito ou não ser lícito. E como na mesma proposta entrava o nome de César: censum dare Caesari - este nome, o respeito dele, e suas dependências, são as que tapam as bocas aos pregadores, e queira Deus que não seja também aos confessores, para não declararem livremente aos Césares o que lhes é lícito ou não. Herodes era o César do seu reino, assim como também o foi Davi; mas vede a diferença com que um e outro ouviram um non licet: ao Batista porque disse a Herodes non licet, custou-lhe a cabeça; a Abigail, porque disse a Davi non licet, granjeoulhe a coroa Mas notem os que têm obrigação de declarar os escrúpulos que melhor coroa foi a da cabeça do Batista cortada que a de Abigail coroada. Eu também prego diante de coroas, e coroas que não só tem obrigação de viver sem escrúpulo, mas de os intimar e tirar aos que não têm medo de viver com eles. Para que todos nesta tão importante matéria façamos nossa obrigação, peçamos a graça. Ave Maria.

§II

O primeiro gênero de escrúpulos: os homens de boa consciência, que de tudo têm escrúpulo: O que diz de Jó a Sagrada Escritura, e o que diz Jó de si. O que padece a alma escrupulosa na consideração e exame das suas ações. A pusilanimidade de espírito, de que fala Davi.

Licet censum dare Caesari, an non?

Por onde começará o sermão dos escrúpulos? Já dissemos a sua definição, vamos agora à divisão, que é o melhor método, e o mais claro. Deixando os homens que de nada têm escrúpulo, como os demônios, e já estão com eles no inferno, os outros, ou tem escrúpulo de tudo, ou têm escrúpulo das coisas grandes, e não das pequenas, ou têm escrúpulo das pequenas, e não das grandes. A consciência dos primeiros é boa, a dos segundos arriscada, a dos terceiros é péssima. Isto mesmo, que está proposto em poucas palavras, declaremos agora em muitas.

Os homens de boa consciência, que de tudo têm escrúpulo, são aqueles de quem diz o profeta, que têm medo onde não há que temer: Illic trepidaverunt, ubi non erat timor[2]. - O virtuoso, confiado na sua virtude, tem medo dos vícios; o escrupuloso, desconfiado de si, tem medo até das suas virtudes. De Jó dá testemunho a Sagrada Escritura no princípio da sua história, que era homem simples, reto, temente a Deus, e que fugia de todo o mal, que é o pecado: Et erat vir ille simplex, et rectus, ac timens Deum, et recedens a maio (Jó 1, 1). Isto diz dele a Sagrada Escritura. E ele, que dizia de si? Verebar omnia opera mea, sciens quia non parceres delinquente (Jó 9, 28): dizia que sempre andava tendo medo a todas suas obras, porque sabia que Deus nenhum pecado deixa sem castigo, conforme aquela sentença depois declarada pela Igreja: Nil inultum remanebit[3]. - Mas, assim como Jó diz que sabia que Deus nenhum pecado deixa sem castigo: Sciens quia non parceres delinquenti - assim sabia também, e ele o afirma, que nunca com advertência tinha ofendido a Deus: Scias quia nihil impium fecerim[4]. - Dizia mais que desde a sua infância e desde o ventre de sua mãe nascera e crescera juntamente com ele a misericórdia e a piedade: Ab infantia crevit mecum miseratio, et de utero matris meae egressa est mecum (Jó 31, 18). - Que nunca comeu a sua fatia de pão sem que a partisse com o pobre, nem que o fizesse esperar, quando lhe pedia esmola; que ele era os pés do manco, os olhos do cego, o pai do órfão, o amparo da viúva, o vestido do nu, a cura do enfermo, a defensa do perseguido, e tudo o mais que se lê no seu livro, e seria infinito relatá-lo. Pois, se estas eram as obras de Jó, tão pias, tão santas, tão louváveis, e com uma caridade tão comum a todos, como diz, que se receava e temia de todas elas: Verber omnia opera mea? Porque tal como isto é a consciência dos timoratos e escrupulosos.

Ouçamos agora não em outro, senão no mesmo sujeito, o maior exemplo ou o maior encontro e batalha dos escrúpulos dentro na estreita campanha de uma consciência timorata, já afirmando o que nega, já negando o que afirma, contradizendo, não a outrem, senão a si, e implicando-se consigo mesma. No capítulo sétimo diz Jó: Peccavi, quid faciam tibi, o custos hominum (Jó 7,2O): Pequei, que vos hei de fazer, Senhor? No capítulo dezessete diz: Non peccavi, et in amaritudinibus moratur oculus meus (Jó 17, 2): Não pequei, e não cessam meus olhos de chorar amargamente. - Pois, se Jó primeiro confessa que pecou -peccavi - como depois diz, que não pecou: non peccavi? Pode haver maior implicância que pequei e não pequei? Não, e isto que não pode ser e não ser, cuida e crê de si o escrupuloso. Umas vezes, olhando para a mesma ação sua, cuida e crê que é pecado; e outra vez, como se não fora a mesma, nem os mesmos olhos com que a via, cuida e crê que não é pecado. Mais. Quando diz que não pecou, chora: Non peccavi, et in amaritudinibus moratur oculus meus - e quando confessa que pecou não chora, antes diz que não sabe o que há de fazer a Deus: Peccavi, quid faciam tibi? - Tanta é a confusão que causa em uma alma o escrúpulo! De sorte que o que havia de fazer, quando confessa que pecou, era chorar, e então não chora; e o que não havia de fazer, quando diz que não pecou, era não chorar, e então se desfazem os seus olhos em lágrimas, e lágrimas amargosas, devendo ser alegres: Et in amaritudinibus moratur oculus meus. - Mais ainda. No primeiro peccavi confessa que pecou, e no segundo non peccavi torna a negar o mesmo pecado que tinha confessado: e tudo isto é o que faz e desfaz um escrupuloso, não se confessando só uma, senão muitas vezes, e não só tornando a confessar o mesmo pecado, como se o não tivera confessado, mas tornando a desdizê-lo, como se tivera mentido na confissão. Pode haver maior labirinto que este, duvidosa sempre a alma, e posta a consciência em balança, não menos que entre pecado e não pecado, como se estivera suspensa entre o céu e o inferno?

Ninguém melhor declarou os dois pólos nesta suspensão que Davi, quando disse que Deus o livrara da pusilanimidade do espírito e da tempestade: Qui salvum me fecit a pusillanimitate spiritus, et tempestate[5]. - Que pusilanimidade é esta de um homem tão valente, como Davi, e que tempestade da qual Deus o livrou, pois não lemos dele que navegasse? Responde Santo Antonino, comentando o mesmo texto: Quia scrupulus dicitur pusillanimitas, et conscientia scrupulosa inducit tempestatem: O que Davi chama pusilanimidade do espírito é o escrúpulo - diz o santo - e dá-lhe o profeta com grande propriedade este nome, porque os escrúpulos só se acham em almas e consciências muito timoratas, que temem e tremem de ofender a Deus. E a mesma consciência escrupulosa causa e levanta dentro em si uma tempestade tão terrível e horrenda, qual os poetas a costumam descrever, e a descreve o mesmo Davi, porque se vê a alma suspensa, como dizíamos, entre o céu e o inferno, já subindo às estrelas e já descendo aos abismos: Ascendunt usque ad caelos, et descendunt usque ad abyssos - diz o profeta[6]. E tudo isto é o que padece a alma escrupulosa na consideração e exame das suas mesmas ações, umas vezes persuadindo-se como Jó a dizer peccavi, e outra vez animando-se com ele a dizernon peccavi. O peccavi é uma onda que a abisma e mete entre os condenados no inferno; o non peccavi é outra onda que a levanta e põe entre os bem-aventurados no céu, sendo, porém, certo, posto que ela o não entenda, que este mesmo temor de ofender a Deus, ou pavor de o ter ofendido, a faz já nesta vida bem-aventurada: Beatus homo qui semper est pavidus[7].

§ III

O segundo gênero de escrupulosos: aqueles que só fazem escrúpulos das coisa grandes, e nenhum das pequenas. O pecado venial quanto ao peso. Os efeitos dos pecados menores, que, desprezados por leves, sem escrúpulo nem temor se deixam crescer e multiplicar Os castigos de Deus às faltas veniais de Davi, Moisés e Nabucodonosor Por que o único pecado possível no Paraíso Terreal havia de ser o mortal. Por que mais pesa um só pecado venial que todo o inferno?

Os escrupulosos do segundo gênero são aqueles que só fazem escrúpulo das coisas grandes, e nenhum das pequenas. A consciência destes digo que é muito perigosa e arriscada, porque não pode faltar a verdade daquela sentença ou provérbio do Espírito Santo: Qui spernit modica paulatim decidet (Eclo.19,1): O homem que despreza, e não faz caso nem escrúpulo das coisas pequenas, pouco a pouco descairá de maneira que venha a cair e cometer as grandes. - As pequenas são os pecados veniais, que se chamam leves; as grandes são os graves e mortais. E para que vejamos quão grande é o risco e perigo que está encoberto nesses mesmos a que damos o nome de leves, diz S. Gregório Papa elegantemente que, se os desprezamos pelo peso, que os temamos muito pelo número: Facta sua si des piciunt temere cum pensant, debent formidare cum numerent. - As gotas de água, cada uma por si é gota; juntas, elas são as que enchem os rios e fazem os mares. Aquela que, pela costura de um dedo mal calafetada, entra no navio, se não tomar ao mar pela bomba, bastará continuada para o meter a pique. Que coisa menor que a unidade, a qual por si não é número? E das unidades multiplicadas se fazem os milhares e os milhões. Um homem só pouco temor pode causar, mas de muitos homens juntos se formam os exércitos formidáveis que fazem tremer os muros e rendem as cidades. Com enxames de mosquitos e gafanhotos assolou Deus o Egito armado de toda a sua cavalaria, e maiores danos têm feito sempre no mundo as pragas destes bichinhos, por muitos, que as baleias no mar, ou na terra os elefantes, por grandes. Tais são os efeitos dos pecados menores, que desprezados por leves, sem escrúpulo nem temor se deixam crescer e multiplicar, dos que somente os pesam e não contam: Facta sua despiciunt temere cum pensant.

Mas, suposto que estes escrupulosos mal-entendidos não fazem caso nem escrúpulo dos pecados menores, porque somente os pesam, eu me contento, deixado por agora o número, com os tomar também pelo peso. E porque as balanças dos homens são muitas vezes falsas e enganosas: Mendaces filii hominum in stateris[8] - façamos este peso pelas balanças de Deus, que não podem ser senão justíssimas, e vejamos nelas quanto pesa um pecado venial. Começando pelos exemplos mais sensíveis e palpáveis, pecado venial foi em Davi mandar fazer resenha por todo o seu reino de quantos soldados tinha para a guerra; e esta venialidade castigou Deus com sentença de três dias de peste, a qual em uma só manhã lhe matou setenta mil vassalos. Pecado venial foi o de Moisés em dar dois golpes na pedra, para que dela brotasse uma fonte, tendolhe dito Deus que lhe falasse somente; e por esta venialidade, depois dos trabalhos e peregrinações de quarenta anos do deserto, o condenou, sendo tão valido, a que não entrasse na Terra de Promissão. Pecado venial foi em Nabucodonosor gloriar-se, olhando para Babilônia, de ter edificado uma cidade tão grande e tão magnífica; e por esta venialidade o converteu Deus em bruto, e que entre os brutos pastasse, e se sustentasse das ervas sete anos inteiros. Tanto pesam nas balanças da justiça divina aquelas coisas, de que, por pequenas e leves, se não faz caso nem escrúpulo!

Pecado foi, não venial mas mortal, aquele por que Deus lançou do paraíso a Adão; mas se não fora mortal, senão venial, que havia de suceder ao mesmo paraíso? Os teólogos, com Santo Tomás, respondem que esta suposição é falsa, e resolvem que no paraíso podia haver pecado mortal, mas pecado venial por nenhum modo. E por quê? Se o paraíso era capaz de nele se cometer, como cometeu, um pecado mortal e grave, um venial e leve, por que não? A razão é muito sutil, mas igualmente bem fundada. Cometendo-se no paraíso um pecado mortal, perderia o homem o paraíso, como o perdeu Adão; mas se o pecado que cometesse fosse somente venial, não perderia o homem o paraíso, porque a culpa não era bastante, mas perder-se-ia o mesmo paraíso. E por que, outra vez? Porque o paraíso era um estado felicíssimo, incapaz de toda a infelicidade e miséria, e como repugna e implica que um estado incapaz de toda a infelicidade e miséria se conservasse, admitindo em si uma tal miséria e infelicidade, qual é a do pecado venial, daqui se segue, como se seguiu, que o pecado possível naquele estado só havia de ser mortal, pelo qual o homem perdesse o paraíso, e que não fosse possível no mesmo paraíso pecado venial, para que o mesmo paraíso se não perdesse. A conseqüência é manifesta. O homem podia perder a felicidade do paraíso, e por isso podia cometer pecado mortal; mas o paraíso não podia perder a felicidade do seu estado, sem que o mesmo paraíso se perdesse, e por isso não admitia pecado venial.

Só neste caso, se.os escrupulosos, de quem falamos, estivessem no paraíso, podiam temer os pecados graves, e não fazer escrúpulo dos que têm por leves. Mas, para que façam maior conceito do peso deles, posto que nunca o poderão fazer adequado, passemos do paraíso ao inferno. Tomando à nossa balança, se de uma parte pusermos o inferno com toda a sua eternidade de penas, e da outra um só pecado venial, qual pesa mais, o pecado venial ou o inferno? Parece paradoxa a pergunta, e não duvido que muitos dos que me ouvem escolheriam antes para a sua alma muitos pecados veniais que um momento de inferno, quanto mais toda a sua eternidade. Mas, se são cristãos, são obrigados a crer de fé que mais pesa um pecado venial que todo o inferno. E se são doutos, ainda que não fossem cristãos, assim o haviam de entender só com o lume da razão. O fundamento desta tão notável verdade é porque o pecado, ainda que venial, é mal de culpa, o inferno é mal de pena, e qualquer mal de culpa, por mínimo que seja, é maior mal e mais digno de se temer e aborrecer que todos os males, ainda que sejam eternos, e tão horrendos e intoleráveis como os do inferno. No inferno é castigado o pecador, no pecado venial, ainda mínimo, é ofendido Deus; e tanto maior mal é esta ofensa, pelo que toca à majestade ofendida, quando excede o infinito a todo o criado. E se eu agora perguntasse a estes escrupulosos qual é a razão por que só fazem escrúpulos das coisas grandes, e não das pequenas, dos pecados graves, e não dos veniais, é certo que, se falarem verdade, hão de dizer: porque os pecados mortais levam ao inferno, e os veniais não. Oh! ingratos e ignorantes no mesmo pecado venial! Enquanto venial, ingratos à misericórdia divina, que o perdoa, e enquanto pecado, ignorantes, porque, pesando mais que todo o inferno, o têm por leve: Despiciunt, cum pensant.

§ IV

O pecado venial quanto ao número. Os pecados veniais, disposições que naturalmente introduzem na alma a forma ou a deformidade do pecado mortal. A notável advertência da lavradora dos Cantares: Apanhai-nos as raposas pequeninas - e a alegoria de Davi. A pior coisa que tem o pecado venial: o nome. Os pecados veniais de Judas e de S. Pedro.

Confundidos assim, e convencidos estes maus escrupulosos quanto à primeira parte do peso, quanto à segunda, do número, cuidam que podem defender o seu erro, e argúem desta maneira. É teologia certa que mil e cem mil pecados veniais não podem fazer um mortal: logo, não se deve temer tanto o seu número, como diz S. Gregório: Debent formidare cum numerent - nem a consciência dos escrupulosos deste gênero está tão perigosa e arriscada, como eu digo. Primeiramente, esta sentença, que pronunciou S. Gregório com autoridade de Sumo Pontífice, repetem muitas vezes Santo Agostinho, S. Jerônimo, S. Basilio, S. João Crisóstomo, todos quatro doutores da Igreja. O mesmo dizem S. Cipriano, S. Isidoro, S. Pedro Damião. S. Bernardo, S. Nilo, S. Efrém, Cassiano, Ricardo Vitorino, e todos os grandes mestres do espírito de todas as idades. E em que se fundam? Na fé, na razão e na experiência. Porque, ainda que todos os pecados veniais não podem fazer um mortal, todos e cada um deles são as disposições naturais de que o pecado mortal se segue. Há alguma enfermidade que seja morte? Nenhuma, e todos os que temem a morte temem igualmente as enfermidades, porque são as disposições para a morte; logo, não menos se devem temer os muitos pecados veniais que o mortal, pois são as disposições que naturalmente introduzem a forma ou a deformidade dele na alma. O pecado venial não mata a graça, mas esfria a caridade, em que a mesma graça consiste; e assim como o calor é disposição para acender o fogo, assim é disposição o frio para o apagar. Os pecados veniais com os seus atos enfraquecem os hábitos das virtudes, e as virtudes enfraquecidas, como hão de resistir aos vícios? Isto ensina com evidência a Filosofia. E daqui se segue outra conseqüência em Teologia mais formidável. E é que os grandes pecados e as grandes tentações não se podem vencer sem grandes auxílios, e justissimamente nega Deus os auxílios grandes, provocados pelos pecados veniais, posto que pequenos. Os que mais atenuam o pecado venial, dizem que não é rigorosamente ofensa, senão desagrado somente de Deus; e quem não tem medo de desagradar a Deus muitas vezes, vede se se atreverá facilmente a ofendê-lo. Aquela gota, que, continuando a cair na pedra, faz nela o mesmo efeito que o cinzel, não é porque a água seja tão forte como o ferro, mas porque cai muitas vezes: Non vi, sed saepe cadendo. - Se caís muitas vezes nos veniais, tende por certo que haveis de cair nos mortais.

Acabai de conhecer quão mal-entendido é o vosso escrúpulo e o vosso temor, se é que o tendes. Temeis os pecados mortais, porque são grandes, e não fazeis caso de veniais, porque são pequenos, como se os pequenos não cresceram, nem se fizessem grandes. Uma leoa, diz o profeta Ezequiel, tomou um leãozinho dos que criava, e meteu-o entre os leões, para que aprendesse a o ser; e crescendo saiu tão leão e tão feroz, que comia as gentes, e despovoava as cidades: Didicit praedam capere, et homines devorare; didicit viduas facere, et civitates in desertum adducere[9]. - Dos leõezinhos se fazem os leões, dos tigrinhos os tigres, e dos pecados pequenos os grandes. Coisa notável é naquela lavradora de Salomão - a qual, por ser de Salomão, não devia ser ignorante - que mandasse tomar as raposas nomeadamente pequeninas, porque destruíam a vinha: Capite nobis vulpes parvulas, quae demoliuntur vineas (Cânt. 2, 15). -Pois, se mandava que lhe tomassem as pequenas, ou pequeninas, por que não mandava tomar as grandes? Porque as raposas são muito astutas, e se não se tomam enquanto pequeninas, depois de grandes não se podem tomar. Neste sentido dizia alegoricamente Davi: Ditoso aquele que quebra a cabeça aos seus vícios, enquanto são pequeninos: Beatus qui tenebit, et allidet parvulos suos ad petram (SI. 136, 9). - A palavra parvulos suos não tem uma só, senão dobrada energia. Parvulos, enquanto pequeninos, por que não cresçam e se façam grandes; suos, enquanto seus, e enquanto os domina, porque, crescidos e grandes, não os dominará, antes será dominado deles. Os vícios, comenta aqui Hugo Cardeal, se ao princípio se deixam crescer, de cabelos se fazem traves, e os que dantes podia dominar facilmente a alma, eles, depois de crescidos, a dominam e fazem escrava: Parvuli in principio debiles sunt, sed crescentes paulatim fortiores fiunt. Sic mali motus in anima, si permittantur crescere, subito de capillo transeunt in trabem, et dominium sumunt in anima.

Neste mundo só o céu não cresce; do céu abaixo, assim como todas as outras coisas crescem, assim crescem os vícios. Cresce o homem e cresce a inveja; cresce o animal e cresce a ira; cresce a árvore e cresce a cobiça; cresce o peixe e cresce a luxúria; cresce a ave e cresce a vaidade e a soberba. E se vós não venceis os vícios enquanto são pigmeus, como os vencereis depois que forem gigantes? Não vos fieis em os verdes pequeninos, quando começam. Quando o demônio tentou a Judas que fosse ladrão, não lhe disse logo que havia de vender a Cristo; mas porque começou cerceando as esmolas dos discípulos, acabou vendendo o Mestre. Ponhamos este exemplo em praxe. Um ladrão formigueiro, que furta quatro reais de prata a quatro homens, faz quatro pecados velais; e quem furta quatro a quatro, parece-vos que também não furtará quatro a um, que é pecado mortal? A pior coisa que tem o pecado venial é o nome de venial. Significa perdão, e por isso não causa medo, sendo que por isso mesmo o havia de causar maior. Ouvi um notável pensamento de S. João Crisóstomo: Mirabile quiddam, atque innauditum dicere audeo[10]: Atrevo-me a dizer - diz o eloqüentíssimo padre - uma coisa admirável e inaudita. - E qual é? Solet mihi nonnunquam non tanto studio magna videri peccata esse evitanda, quanto parva, et vilia: Representa-se-me, e muitas vezes, que se não devem evitar com tanto cuidado os pecados grandes e mortais, como os pequenos e veniais. - E dá a razão: Illa enim, ut aversentur, ipsa natura peccati efficit; haec autem, hac ipsa re quia parva sunt, desides reddunt: Porque nos pecados grandes e mortais, o mesmo nome de mortal causa terror e espanto, e pelo contrário, nos pequenos o nome de leve e venial tira o medo, e nos faz descuidados. - E daqui se segue, conclui o salto, que enquanto desprezamos e fazemos menos caso dos pequemos, eles, por nossa negligência, de pequenos se fazem grandes: Et dum contemnuntur, non potest ad expulsionem eorum animus generose insurgere. Unde cito ex parvis magna fiunt negligentia nostra.

Aqui pudera acabar bem este discurso com uma coisa que o grande Crisóstomo chama admirável e inaudita; mas eu lhe quero pôr fim com outra, não inaudita, senão muito sabida de todos, porém muito mais admirável, e verdadeiramente tremenda. E qual será esta? Que não são necessários muitos pecados veniais, mas basta um só para que Deus o castigue com a permissão de muitos mortais. Quando S. Pedro disse - e levado do amor de Cristo - que, se os outros fugissem e o negassem, ele o confessaria até à morte, esta presunção, com que se antepôs aos demais, não passou de pecado venial, e bastou este pecado, um e venial, para que o mesmo Cristo, e a S. Pedro, o permitisse cair em três pecados mortais. Uma vez disse venialmelte: Non te negabo[11] - e três vezes o negou, pecando mortalmente. Para que veja a ignorância e cegueira destes segundos escrupulosos, se está mais que arriscada, e mais que perigosa a sua consciência, quando se dão por seguros no falso escrúpulo das coisas graldes, sem o fazer das pequenas.

§v

Os escrupulosos da terceira espécie: os que só fazem grandes escrúpulos das coisas pequenas, e nenhum totalmente das grandes. O anátema de Cristo contra os que pagavam os dízimos de hortelã e dos cominhos, e quebravam e desprezavam os preceitos de lei, maiores e de mais necessidade. Os cominheiros de Jerusalém e de Lisboa. Os escrupulosos e o gorgomilo das baleias. A história do juiz de mui escrupulosa consciência, que se negou a aceitar um cacho de uvas.

Somos chegados aos escrupulosos da terceira espécie, que só fazem grandes escrúpulos das coisas pequenas, e nenhum totalmente das grandes. E porque tal barbaria se não pode imaginar de entendimentos racionais, sejam os seus mesmos escrúpulos a prova desta temeridade. Eram tão escrupulosos os escribas e fariseus, em tempo de Cristo, na matéria de pagar o dízimo a Deus, que até o pagavam das hortaliças mais vis, de que o rendeiro do verde não faz conta. E quando eu cuidava que o zelo do mesmo Senhor passaria em silêncio estas miudezas, como assunto menos nobre para um auditório tão grave, como o da corte de Jerusalém, ou como menos decente para um lugar tão autorizado, como o púlpito, leio em S. Mateus que, nomeando o soberano Pregador as pessoas dos escrupulosos dizimadores, e declarando também por seu nome a vileza das verduras dizimadas, com voz mais alta, e um ai arrancado do peito, exclamou assim: Vae vobis scribae et pharisaei, qui decimatis mentham, et anethum, et cyminum (Mt. 23, 23): Ai de vós, escribas e fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e dos cominhos! - Mais vai por diante o divino Mestre. Mas antes que ouçamos a segunda parte da mesma sentença, paremos no muito que tem que admirar esta primeira. Começa dizendo: Vae - e parece que havia de começar dizendo: Euge! Não era Cristo, Senhor nosso tão zelador da Lei, que dizia e ensinava se haviam de observar nela, não só as palavras, as sílabas e as letras, senão também aquele pontinho, que se põe em cima do i: Jota unum, aut unus apex non praeteribit a lege, donec omnia fiant[12]? Não era tão delicado estimador das coisas pequenas, que ameaçou com ser mínimo no seu reino quem não observasse as mínimas: Qui solverit unum de mandatis istis minimis, minimus vocabitur in regno caelorum[13]. - O fiar muito delgado não é o argumento mais certo das boas consciências, e que amam a perfeição? O pagar os dízimos não era um dos mandamentos de Deus, e o mesmo Deus não mandava que fossem os homens nímios na observância dos seus mandamentos: Tu mandasti mandata tua custodiri nimis[14]? - Pois, como o mesmo Cristo, em vez de louvar aqueles ministros de sua Lei com dois euges: Euge, euge - os condena e anatematiza com um vae tão áspero e tão tremendo: Vae vobis?

Agora entra a segunda parte da mesma sentença, que é o comento da primeira. Depois de dizer: Qui decimatis mentham, etanethum, et cyminum: acrescenta: Et reliquistis quae graviora sunt legis, judicium, et misericordiam, et fidem (Mt. 23, 23): Pagais o dízimo das ervas que não têm preço nem nome, e desprezais e quebrais os preceitos da lei, maiores e de maior necessidade e importância, como são a justiça, a misericórdia, e a fé. - Notai como contrapôs o Senhor os três pecados maiores aos três dízimos e escrúpulos das coisas menores. Pagais o dízimo da hortelã, e não tendes fé; pagais o dízimo do endro, e não tendes justiça; pagais o dízimo dos cominhos, e não tendes misericórdia. Homens sem misericórdia, homens sem justiça, homens sem fé, e no cabo muito escrupulosos em coisas tão miúdas, tão baixas e tão vis, que se envergonha a língua de as pronunciar. Mas, assim como a soberana retórica da eloqüência de Cristo se abateu a nomear a matéria dos escrúpulos, assim, levantando a voz, lhes descobriu e declarou a brados as injustiças e impiedades, enormíssimas, com que sem nenhum escrúpulo, sacrílegos profanavam as leis divinas, e cruéis tiranizavam as humanas: Quia comeditis domos viduarum[15] - diz o Senhor por S. Mateus, e por S. Marcos e S. Lucas: Qui devoratis[16]. Com a salsa daquelas ervas e daqueles adubos, comiam e tragavam as casas das viúvas e dos órfãos. Comer, é levar pouco a pouco, e a bocados; devorar é tragar e engolir de uma vez. E uma e outra coisa faziam devotissimamente estes escrupulosos. E digo devotissimamente, porque acrescenta o texto que, quando faziam isto, faziam juntamente umas orações mui compridas:

Longas orationes orantes (Mt. 23, 14).

Aqui entra em seu próprio lugar o famoso epifonema, com que em duas palavras, elegantissimamente contrapostas, compreendeu e definiu a Sabedoria divina toda esta matéria: Excolantes culicem, camelum autem glutientes (Mt. 23, 24): Engasgavam - diz o Senhor - com um mosquito, e engoliam um camelo. - Ainda engoliam mais os nossos escrupulosos, a quem com razão podemos achar cominheiros. Engasgavam com um cominho, e engoliam, não só uma, senão muitas casas inteiras: Qui devorant domos viduarum. - Oh! Jerusalém! Oh! Lisboa! Quantas casas se vêem hoje em pé nessas grandes ruas e praças, devoradas e engolidas sem nenhum escrúpulo! Esta engoliu o amigo infiel, que ficou por tutor do órfão; aquela engoliu o parente esquecido do sangue, que ficou por testamenteiro; a outra engoliu o acredor fingido, por dívidas falsas; a outra, e muitas outras, engoliram os trapaceiros, por demandas injustas. E por estes e por tantos outros modos, tantas casas engolidas, tantas viúvas desamparadas, tantos órfãos deserdados, tantas pobrezas, tantas misérias, tantas lágrimas sem compaixão, sem piedade, sem remédio. E também sem nenhum escrúpulo? Isso não: com escrúpulo, e com muitos escrúpulos: com escrúpulo da hortelã, com escrúpulo do endro, e com escrúpulo dos cominhos!

Parecem-me estas gargantas, ou gorgomilos, com o que se diz das baleias. A baleia, com aquela sua grande boca, pesca de um lanço ou de um bocado um cardume de sardinhas; e dizem os anatomistas daquele monstro, que tem o gorgomilo tão estreito, que não pode ir engolindo senão uma e uma. Mas eu leio, não nas fábulas, senão na Sagrada Escritura, que quando a baleia, no meio da tempestade, chegou a bordo do navio que ia para Jope, ou o seu gorgomilo fosse tão estreito, ou não, ela engoliu o profeta Jonas vestido e calçado. Se foi por milagre naquele mar, eu não o nego; mas só posso afirmar que vi semelhantes milagres em outra terra. Como estive em tantas, bem posso referir o exemplo, sem que se entenda quem foi o milagroso. Era um julgador de muito escrupulosa consciência, o qual não só partiu deste porto com o mesmo escrúpulo muito recomendado, mas chegou também com ele a um dos portos das nossas conquistas. E note que não só partiu, mas chegou com o mesmo escrúpulo, porque os escrúpulos nesta navegação costumam ser como os açúcares rosados, que refervem na Linha. Chegado pois o julgador, como lhe mandassem um cacho de uvas de moscatel de Jesus, por ser fruta do reino, ele, metido nas conchas do seu escrúpulo, com o mesmo nome de Jesus na boca se benzeu da tentação, e tornou a mandar as uvas para donde tinham vindo. Espalhou-se pela terra a repulsa, e todos deram graças a Deus de a ter provido de um juiz tão desinteressado e tão inteiro. Mas esta inteireza, e este desinteresse, e este escrúpulo tão isento, quanto durou? Não era passada ametade do tempo da alçada, quando soube todo o mundo que o meu juiz, que tinha engasgado com o cacho de uvas, engoliu duas barcas, que lá têm outro nome, uma confeitada de fechos de açúcar, e outra perfumada de rolos de tabaco.

§ VI

O escrúpulo dos príncipes e ministros da Sinagoga em não quererem entrar na casa de Pilatos, para se não contaminarem, enquanto cometiam o maior crime de lesa-majestade divina e humana. Os dois escrúpulos da Samaritana.

Mas, tornando a Jerusalém, clima tão fecundo de escrúpulos como de hipocrisias, porque ambas estas más plantas nascem da mesma raiz, que é o engano e a mentira, infinita coisa seria se eu houvesse de ponderar tudo o que referem os evangelistas daquela terra e tempo. Contentar-me-ei só com ponderar dois casos muito particulares, um de escrúpulos masculinos, outro de femininos, para doutrina de todos.

Preso Cristo, nosso Redentor, e levado primeiro ao palácio de Anás, e depois ao de Caifás, iam com ele triunfando com a presa os ministros e os príncipes da Sinagoga, e, como guardas mais fiéis e seguras, entravam em um e outro palácio, porque ambos os pontífices eram hebreus. Presentado, porém, o Senhor diante de Pilatos, todos os hebreus ficaram fora do pretório, e a causa deste retiro foi, diz o evangelista: Ut non contaminarentur (Jo. 18, 28): Para não se contaminarem. - Como Pilatos era gentio, e eles judeus, tinham para si que só com meterem o pé em casa de um gentio, a santidade da sua lei, a pureza da sua religião e a inocência imaculada da vida que professavam, ficava manchada e perdida. Tudo isto quer dizer: Ut non contaminarentur - e isto é o em que só reparo, e me admira. Que os príncipes dos sacerdotes procurem tão descoberta e impiamente tirar a vida a quem a dava aos seus enfermos e aos seus defuntos; que multipliquem contra a sua inocência tantas acusações; que busquem e tragam ajuízo tantas testemunhas falsas; que negoceiem a absolvição e liberdade de Barrabás; que peitem os algozes, para que os açoites sejam tantos e tão cruéis, que neles acabe a vida, porque viam inclinado Pilatos a o livrar; que provoquem e subornem os clamores do povo, e que intimidem ao juiz com a inimizade do César; e finalmente, que se não satisfaçam com outra morte, senão a de cruz, tão cruel, tão infame e tão atroz: não me admira, nem o estranho, quanto por outra via merece, porque tudo isto faz o ódio, a inveja, a ira, a vingança, o interesse e ambição desatinada e cega; mas que estes mesmos homens, por tantos modos pérfidos e sacrílegos, sem lei, sem religião, sem verdade, sem fé, sem consciência, no mesmo tempo façam tantos escrúpulos, tantos retiros e tantos ascos de entrar em casa de Pilatos, seu governador, e que digam que se não querem contaminar, por ser gentio, esta é a minha admiração e a minha raiva. Pilatos é o que havia de fazer asco de vós, e o que não havia de querer que tão maldita e infame gente entrasse das suas portas adentro, e lhe contaminasse a casa. Mas estes são os escrúpulos, e estas são as consciências farisaicas. Grandes escrúpulos de entrar em casa de um gentio, e nenhum escrúpulo de crucificar ao Filho de Deus entre dois ladrões. O impia, et stulta caecitas! - exclama Santo Agostinho -Habitaculo videlicet contaminarentur alieno, et non contaminarentur scelere proprio[17]: Basta que vos há de contaminar a casa alheia, e não vos contaminam tantas maldades próprias! - Em uma cerimônia da lei de Moisés tantos escrúpulos; e na maior traição, na maior ingratidão, na maior aleivosia, na maior injustiça, na maior tirania, na maior abominação, no maior sacrilégio, no maior crime de lesa-majestade humana e divina, nenhum escrúpulo! Tais são os escrúpulos dos que só o fazem das coisas pequenas, e não das grandes, ainda que a sua grandeza seja tão imensa e infinita.

Este é o escrúpulo que eu chamei do gênero masculino; vamos ao feminino, menos cruel, mas muito mais delicado. Chegado Cristo, Senhor nosso, ao poço de Sicar, fatigado do caminho e abrasado da calma, pediu um púcaro de água a uma mulher, que no mesmo tempo ali a veio buscar, samaritana de nação (Jo. 4, 7). E que responderia ao Messias encoberto uma mulher publicamente de cântaro? Não só teve escrúpulo de lhe dar água, mas o argüiu de pouco escrupuloso em lha pedir: Quomodo tu, Judaeus cum sis, bibere a me poscis, quae sum mulher Samaritana (Jo. 4, 9)? - Como vós, sendo judeu, me pedis de beber a mim, sendo eu uma samaritana? -Tão delicada e mimosa era a sua consciência, que não só a picavam os escrúpulos próprios, senão também os alheios. E não pode ser mais fino o escrúpulo, nem subir mais o encarecimento dele, que chegar uma mulher a meter escrúpulos ao mesmo Cristo. Mulher enfim, e metida a beata, posto que sem manto nem capelo. Era erro corrente entre os hebreus que só os da sua nação eram próximos. Mas, propondo esta mesma questão a Cristo um doutor da lei, respondeu-lhe o Senhor com o caso de um samaritano, o qual, achando em um caminho, despojado e ferido dos ladrões um hebreu, não só o curou com suas próprias mãos, mas o socorreu com casa, cama e dinheiro, e ficou ensinado e confessando o letrado que a diferença das nações não encontrava nem impedia o exercício da proximidade. Logo, se foi lícito a um samaritano curar as feridas a um judeu, por que não seria lícito a uma samaritana matar a sede a outro? Mas ela, como se fora mais doutora que o doutor, e mais cristã que Cristo, especulou no seu caso, não um, senão dois escrúpulos.

Os samaritanos do tempo de Cristo eram assírios transplantados à Samaria, corte que tinha sido dos reis de Israel, e assim como, segundo uso da sua pátria, adoravam os ídolos; assim, segundo o da terra em que viviam, adoravam o Deus verdadeiro. E sendo tal a fé samaritana, que não tinha escrúpulo de adorar dois deuses, tinha escrúpulo de dar uma sede de água a um homem. O Deus verdadeiro mandava-lhe que desse a esmola; o falso devia de lhe mandar que a não desse, e daqui lhe vinha o escrúpulo. Porém, o que mais me escandaliza é que, dizendo a samaritana a Cristo que aquele poço fora edificado por Jacó, chamou a Jacó pai seu: Numquid tu major es paire nostro Jacob, qui dedit nobis hunc puteum[18]? - E outra vez, como tão letrada, tornou a repetir o mesmo: Patres nostri in monte hoc odoraverunt[19]. - Pois se Jacó é teu pai, e tu não podes negar que és judia, por que põe o teu escrúpulo a Cristo a exceção de ser judeu: Quomodo tu, Judaeus cum sis? - Provera a Deus que este escrúpulo e esta conseqüência ficara sepultada no mesmo poço. Mas os caldeirões que chegam ao fundo muitas vezes tiram a água misturada com lodo.

Finalmente, disse Cristo à samaritana que fosse chamar seu marido, e como ela respondesse que o não tinha, equivocando o Senhor na palavra vir - que quer dizer homem e marido. - Assim é, lhe disse, porque cinco homens, que já tiveste, não eram teus maridos, nem é teu marido o que agora tens. - E esta era a santinha dos escrúpulos. De sorte que o escrúpulo de se dar a seis homens, que não eram seus maridos, esse bebia ela como um púcaro de água, e sobre dar um púcaro de água a um homem morto à sede, não só argüía um grande escrúpulo, senão dois: um, com que ela a não podia dar; outro, com que ele a não podia pedir: Quomodo tu, Judaeus cum sis, bibere a me poscis[20]?

§ VII

A qual espécie pertence o escrúpulo dos escribas e fariseus do nosso Evangelho, e que censura merece o caso de consciência, ou a consciência do caso, sobre que vieram consultar a Cristo. A traição e aleivosia dos laços armados por escribas e fariseus a Cristo. Dois exemplos de sacrilégios praticados debaixo da capa do escrúpulo: Herodes e Acás.

Parece-me que tenho bastantemente declarado as três espécies de escrupulosos que propus ao princípio e quão boa e temente a Deus é a consciência dos primeiros, quão arriscada e perigosa a dos segundos, e quão péssima e maldita a destes últimos. Resta agora saber a qual destas espécies pertence o escrúpulo dos escribas e fariseus do nosso Evangelho, e que censura merece o caso de consciência, ou a consciência do caso, sobre que vieram consultar a Cristo.

Digo que este escrúpulo dos escribas e fariseus não era de alguma espécie das três referidas, mas de outra quarta espécie, muito pior que péssima, e digna de mais infernal e diabólica censura do que cabe em significação de palavras. Era um escrúpulo que não era, porque o pretexto do escrúpulo era fingido, e debaixo desta ficção vinha dissimulada e encoberta uma tal maldade, e traçada e armada uma tal traição e aleivosia, que, se Cristo não fora Deus, não pudera escapar dela como homem: Bicipiti complexione insidiantes, ut quodlibet eligens caperetur Si licere responderet, tanquam reus esset adversos populum Dei; si autem diceret non licere, tanquam Caesaris adversarius perimeretur: A pergunta fraudulenta e traidora - diz Santo Agostinho - vinha dividida e armada sobre dois laços, compostos e tecidos com tal artifício que, se Cristo escapasse de um, não podia deixar de cair no outro. A questão se resumia toda em um licet, an non? Se era lícito ou não era lícito pagar o povo de Deus o tributo a César: se dizia que não era lícito, incorria na indignação do imperador, e ficava réu de lesa-majestade humana; se dizia que era lícito, incorria no ódio do povo, no desprezo da lei, da religião, e do mesmo Deus, com que ficava réu de lesa-majestade divina; e por qualquer destes dois crimes, ambos de primeira cabeça, sujeito à pena, não só de morte, mas de morte infame, como aqueles que tanto ódio lhe tinham à vida, como inveja à honra. - Pelo contrário, os escribas e fariseus ficariam honrados e celebrados por religiosos e santos, como zeladores da liberdade, da pátria, das imunidades da lei, e do culto e reverência de Deus, e tudo isto contra Cristo, e para si, debaixo da capa fingida de um escrúpulo. Os outros escrúpulos maiores eu menores só fazem mal à consciência própria; este dos escribas e fariseus, desprezada a própria consciência e a própria condenação, todo se armava contra a vida, contra a honra, e também contra a consciência alheia, com tal aparência, porém, de virtude e santidade, que, sendo forjado no inferno, parecia caído do céu: Pluet super peccatores laqueos[21] - e tais eram estes dos ministros eclesiásticos armados contra Cristo.

Mas donde lhe acharemos exemplo para maior declaração? Tenha Deus de sua mão aos reis, porque três que acho na Escritura todos três são em palácio. Muito havia que Herodias desejava tirar a cabeça ao Batista, também por um non licet: e que traça inventaria aquela má mulher para uma execução tão abominável como esta? A invenção, concertada com Herodes, não foi outra, que um escrúpulo muito bem fingido. No dia em que festejava os seus anos Herodes, saiu a dançar na sala do banquete a filha de Herodias: celebraram todos os aduladores o ar, que propriamente se devia chamar desenvoltura, e o rei, para encarecer o extremo do seu agrado, disse na última mesura à menina que pedisse, confirmando juramento, que, ainda que fosse ametade do seu reino, cumpriria a promessa. Por não parecer a petição ensaiada, entrou a dançante a consultar a mãe do que pediria; tomou a sair, e pediu a cabeça do Batista em um prato, e logo: dolo ut protinus des mihi in disco caput Joannis Baptistae (Mc. 6,25). - Ah! rei, que se souberas responder, seria digna a tua resposta de se escrever com letras de ouro! Dize que não prometeste tanto, porque um só cabelo da cabeça do Batista vale mais que todo o teu reino. Mas, como a fatal iguaria antes de pedida já estava guisada: Contristatus est rex propter jusjurandum (Me. 6,26): Entristeceu-se o rei, ou mostrouse muito triste de haver jurado o que tinha prometido - e, por escrúpulo de não quebrar o juramento, mandou cortar a cabeça ao maior dos nascidos. Veio à mesa, ainda quente com o sangue, o prato horrendo e sacrílego, e foi recebido sem horror, antes com lisonjas à fé da palavra e juramento real, porque vinha encoberta nele a vingança e tirania com pretexto de religião, e o sacrilégio mais ímpio e cruel com nome de escrúpulo.

Acompanhe o de Herodes o de Acás. Em prova de que não seria vencido da liga ou conjuração, que contra ele tinham feito dois reis, cada um igualmente poderoso, mandou-lhe dizer Deus por Isaías que pedisse o milagre que mais quisesse, ou do céu, ou da terra, ou do inferno. E que responderia Acás, não menos empenhado nesta guerra que com a coroa e a vida? Non pecam, et non tentabo Dominum (Is. 7,12): De nenhum modo pedirei, porque não quero tentar a Deus. - Notável razão, ou sem-razão: Se Isaías dissera a el-rei Acás que pedisse milagres a Deus em confirmação do que lhe prometia, ainda no tal caso não era tentar a Deus, porque assim o fez Gedeão, não só uma, senão duas vezes, e Deus lhe concedeu, não outros, senão os mesmos milagres que ele pedira; mas, se Deus era o que convidava a Acás com os milagres, e lhe mandava oferecer que os pedisse, em que fundava o dizer que não queria tentar a Deus? S. Jerônimo, S. Cirilo, S. Basilio, e comumente os outros intérpretes, dizem que se fundava Acás em uma tão refinada maldade, qual só podia imaginar um homem tão mau e tão ímpio como ele. Acás era idólatra, e se pedisse os milagres a Deus, e não aos ídolos, que os não podiam fazer, ofendia aos ídolos; e se Deus fizesse os milagres, ou sem os fazer lhe desse a vitória, como havia de dar, pois a tinha prometido, ficava acreditado Deus, e os ídolos desacreditados. E porque o mau e ímpio idólatra queria tirar a glória honra a Deus, e dar as graças aos seus ídolos, para não declarar a Isaías a impiedade destes seus pensamentos, fingiu o escrúpulo de que não queria tentar a Deus: Non petam, et non tentabo Dominum. - De sorte que a falta da fé, o sacrilégio da idolatria, o roubo da glória do verdadeiro Deus, e o crédito e honra dos deuses falsos, tudo isto encobriu e disfarçou um homem chamado rei, debaixo da capa de um escrúpulo, e esse fingido, Se eu pregara em Constantinopla, grande matéria se me oferecia neste caso de el-rei Acás e no de el-rei Herodes para fazer uma tremenda exclamação sobre estes escrúpulos. Mas também não quero ir ao Egito, nem ao palácio de el-rei Faraó, que era o terceiro exemplo: pode ser que tenha lugar depois.

§ VIII

Os remédios do escrúpulo. O remédio de Pilatos e o remédio de Lutero. O terceiro remédio de algumas almas sem escrúpulos, as quais, pelo que obram e têm obrado, assim no reino como fora dele, deveram andar muito tristes e muito escrupulosas.

O que agora se segue, e somente resta para complemento da matéria e obrigação deste lugar, é que, assim como dividimos e definimos os escrúpulos, assim examinemos os remédios, e qualifiquemos o verdadeiro. A maior coisa que neste mundo intentou e executou a temeridade humana foi a morte do Filho de Deus, e nenhuma com maiores e mais conhecidos escrúpulos. Quantas vezes afirmou Pilatos que nenhuma causa achava naquele homem: Ego nullam invenio in e o causam[22]? Quantas vezes respondeu às instâncias dos acusadores que nenhum mal tinha feito: Quid enim mali fecit[23] ? Por isso cometeu aos príncipes dos sacerdotes que eles o julgassem: Accipite eum vos, et secundum legem vestram judicate[24]. Por isso, sabendo que era galileu, o remeteu a el-rei Herodes: Ut cognovit quod de Herodis potestae esset, remisit eum ad Herodem[25]. - Tudo isto eram escrúpulos de não ser ele o que julgasse a causa de Cristo, a que se acrescentou também a visão e recado de sua mulher: Nihil tibi, et justo illi[26]: que se guardasse de ter parte alguma nas coisas daquele justo. - Sem embargo, porém, de todos estes escrúpulos, podendo mais os clamores do povo que a razão, e o respeito e dependência do César que a justiça, e, prevalecendo a fraqueza, a covardia e a pusilanimidade do juiz à obrigação do ofício, aqui foi o maior escrúpulo de Pilatos, porque já não era sobre a dúvida de condenar ou não o inocente, mas sobre a resolução de o ter condenado. E que remédio tomaria para aquietar a consciência, que naturalmente estava tremendo de um tão horrendo escrúpulo? Accepta aqua, lavit manus coram populo dicens: Innocens ego sum a sanguine justi hujus (Mt. 27, 24): Tomou a água, e lavou as mãos diante de todo o povo, protestando e dizendo: Eu estou inocente no sangue deste justo. - E quantas cerimônias destas se tomam por remédios de escrúpulos, que não são cerimônia! Condenava a inocência, e declarava-se por inocente! O escrúpulo era o sangue do justo, e o purificatório da consciência do juiz lavar as mãos com uma pouca de água! Ó Pilatos, que há tantos anos estás no inferno! ó julgadores, que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos e tão graves escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras, e cuidais, cegos e estúpidos, que essas mãos com que escreveis as tenções, e com que firmais as sentenças, se podem lavar com uma pouca de água! Não há água que tenha tal virtude. A água benta lava os pecados veniais, a água do batismo lava dos veniais e mortais passados, mas nem a água que corre dos olhos, que é a mais poderosa de todas, pode lavar destes escrúpulos, porque, sem restituição dos danos que causais, não pode haver contrição verdadeira.

Reprovado o remédio de Pilatos contra os escrúpulos, que foi da água, qual será o que agora se segue? Estou certo que ninguém o imagina. É o do vinho. Pois, o vinho, remédio contra os escrúpulos? Sim. Lutero, por uma causa e vingança tão leve, como todos sabem, rebelou-se contra a Igreja, e fez-se, não só herege, senão heresiarca. Mas, como era grande letrado, e fora criado em uma religião tão santa, eram também contínuos os escrúpulos com que a consciência o acusava, e fortissimamente lhe batia e combatia a alma. E que remédio tomava Lutero para se livrar da bataria, da aflição e da tristeza que naturalmente causam escrúpulos, ainda nas mais depravadas e obstinadas consciências? O que fazia Lutero era fazer-se Calvino: Calvinus, quia mane cales et vespere vino[27]. - Tinha sempre presto muito e bom vinho; bebia valente e alegremente; perturbava-se-lhe o juízo, e, posto desta maneira fora de si, tinha paz consigo. Cum acres ob novatam fidem et adinventam haeresim pateretur conscientiae scrupulos, ut eos vino sopiret, vel extingueret, quotidie perpotabat, et pergraecabatur strenue, ut videretur semper vinolentus et temulentus. - São palavras de Cocleu na vida do mesmo Lutero. E porque os seus discípulos e sequazes, como antigos filhos da Igreja Católica, também não podiam aquietar naquela nova doutrina, e padeciam os mesmos escrúpulos, diz o mesmo autor que, quando recorriam a Lutero com as suas dúvidas, ele os brindava logo, e com o mesmo antídoto lhes carregava juntamente, e aliviava o cérebro: Atque suae perfidiae asseclis, qui similibus conscientiae scrupulis exagitabantur, idem remedium suggerebat, ut scilicet scrupulos vino obruerent[28].

Depois de ouvida uma tão admirável história, quase dos nossos tempos, em terras dantes tão católicas, parece-me que todo este auditório está dando graças a Deus por nos vermos livres, por mercê sua, tanto de semelhante escrúpulo como de semelhante remédio. Do escrúpulo, porque todos somos fidelíssimos filhos da Santa Madre Igreja, sem heresia; e do remédio, porque aos portugueses as fontes são as que nos matam a sede, e não as vides. Contudo, em outras matérias, não poucas, nem pouco graves, vejo entre nós viver muito leves e muito alegres sem nenhum escrúpulo algumas almas, e não das menores, como fala Sêneca - umbrae minores[29] - as quais, pelo que obram ou têm obrado, assim no Reino como fora dele, deveram andar muito tristes e muito escrupulosas. Aquelas dívidas que não se pagam, aquelas violências e os danos delas, aqueles votos injustos, e suas conseqüências, aquelas informações falsas, antepostas ao merecimento verdadeiro, aquelas riquezas adquiridas não sei corno, ou como todos sabem, não são matérias bastantes para causar grandes escrúpulos? Pois, como é possível que o não façam homens cristãos, e que se confessam e comungam? É porque lhes diverte o escrúpulo, e porque lhes perturba e tira o juízo, não o remédio de Lutero, mas outro muito semelhante.

Fala com a corte de Samaria o profeta Isaías, e chama-lhe com esta mesma exceção: Ebria, et non a vino[30]. - Não é só o vinho, senhores, o que embebeda. E se me estranhais a palavra, perdoai-me a licença, como a quem veio há poucos dias de cortes muito autorizadas, onde nem a palavra nem a significação se estranha. E basta que usem dela os santos e profetas, e o mesmo Deus, para que não sejam tão mimosos ou tão escrupulosos os nossos ouvidos. O mesmo profeta Isaías, em outro lugar: Vae coronae superbiae, ebriis Ephraim[31]. O profeta Joel: Expergiscimini, ebrii, et flete[32]. S. Paulo: Alius esurit, alius ebrius est[33]. Salomão: Vinum, et tumultuosa ebrietas[34]. E Jó - que é mais - falando dos príncipes e seus conselheiros, debaixo da censura do mesmo nome, diz que permite Deus neles esta alienação do juízo, para que não acertem com o que devem fazer: Palpabunt quasi in tenebris, et non in luce, et errare eos faciet quasi ebrios[35]. - Assim que, não é só o vinho o que embebeda. Embebeda a soberba, embebeda a ambição, embebeda a cobiça, embebeda a luxúria, embebeda a ira, embebeda a inveja, e até aos que não têm que invejar embebeda a sua mesma fortuna, como de Cleópatra disse o poeta: Fortuna que dulci ebria[36] - Por este modo, sem perder a fé, bebendo-se docemente os vícios, se adormentam neles os escrúpulos, e se divertem os estímulos da consciência, como fazia Lutero. Na mocidade, esperando pela velhice, na velhice, não crendo a morte, e na mesma morte, por amor da família que cá fica, levando o escrúpulo atravessado na garganta, e sendo levados dele aonde já não têm remédio.

§ IX

O verdadeiro e único remédio que têm ou podem ter os escrúpulos: fazer com sinceridade e verdade o que os escribas e fariseus fizeram com fingimento. Por que nenhum homem, e muito menos os maiores, se deve fazer juiz dos escrúpulos da sua consciência? O julgamento do copeiro-mor e do veador da casa de el-rei Faraó. Que significa hieroglificamente a pedrinha encontrada no pão de el-rei. A etimologia de escrúpulo. Os pesos e medidas do escrúpulo.

Excluídos estes dois, que só seus autores podiam chamar remédios, tais como eles, segue-se receitar os verdadeiros e qualificados. Mas estes, a que botica os iremos buscar? Será donde menos se espera. Digo que o único remédio que tem ou podem ter os escrúpulos de todos os três primeiros gêneros, e também do quarto, é fazermos com sinceridade e verdade o que os escribas e fariseus fizeram com fingimento. Duas coisas observaram os escribas e fariseus neste caso: a primeira, que não quiseram, sendo letrados, resolver o seu escrúpulos por si mesmos; a segunda, que buscaram para a resolução o sujeito da maior sabedoria e virtude, e mais independente e isento de todos os respeitos humanos, como eles mesmos confessaram.

Primeiramente, nenhum homem, e muito menos os maiores, se deve fazer juiz dos escrúpulos da sua consciência, pelo grande perigo a que se expõe de errar. Entre os egípcios todos os seus mistérios se declaravam por jeroglífcos, e é notável a nosso propósito a propriedade do que agora direi. Conta a História Sagrada que estavam presos no cárcere daquela corte dois oficiais maiores da casa real, um o copeiro-mor, outro, que não tem semelhante ofício no palácio dos nossos reis, mas responde ao veador da casa. De ambos diz o texto que tinham pecado contra el-rei seu senhor: Accidit ut peccarent duo eunuchi, pincerna regis Aegypti, et pistor, domino suo[37]. - E, posto que do mesmo texto não conste qual fosse o pecado, é tradição dos hebreus que a culpa do copeiro foi ver el-rei no vinho da taça um mosquito, e a do veador achar com os dentes no pão uma pedrinha. Veio, pois, o dia em que o mesmo rei fazia anos, e, estando à mesa com muitos convidados, mandou que o copeiro viesse exercitar nela o seu ofício, e que o veador o pusessem na forca. Quem esperara tal sentença, e em tal dia? Mas não há reino sem o seu Herodes, nem Herodes sem morte de inocentes. Se combinarmos as culpas, não há dúvida que a do copeiro foi maior, e a do veador, se culpa se pode chamar, tão merecedora de desculpa e de perdão, que com nenhum cuidado ou vigilância se podia evitar. Aquela pedrinha, se foi da eira, como devia ser, da eira passou ao celeiro, do celeiro à joeira, da joeira ao crivo, do crivo ao moinho, do moinho à peneira, da peneira à massa, da massa ao pão, e do pão à boca do rei, sem a poder ver, como o mosquito, o pobre veador. Pois, se o copeiro, por defeito tão manifesto, que o viram os olhos do rei, não desmereceu ser restituído, o veador pelo que não podia ver, nem adivinhar, por que o condena o mesmo rei à forca? Eu não vejo nem sei a razão: só digo que livre Deus ao criado, ou vassalo, não de que veja o rei os seus defeitos, ainda que grandes, mas de que os seus, ainda que mínimos e sem culpa, os tome o mesmo rei entre dentes.

Esta é a resposta historial; vamos à jeroglífica, que significa hieroglificamente aquela pedrinha? Com toda a propriedade do nome e da etimologia significa o escrúpulo, porque escrúpulo quer dizer pedrinha. E porque basta uma pedrinha metida entre o sapato e o pé para que o pique e magoe, de modo que não possa dar passo sem moléstia, daqui se tomou a metáfora e etimologia de se chamarem escrúpulos aqueles estímulos e moléstias da consciência, com que se afligem e inquietam os escrupulosos. Sendo, pois, a pedrinha jeroglífico do escrúpulo, se o rei do Egito mandara julgar o caso dos dois criados por José ou outros dois ministros retos, não há dúvida que o veador havia de sair absolto, e julgado inocente. Mas, como ele, estimulado da pedrinha que lhe tocou nos dentes, quis ser o juiz daquele escrúpulo, por isso julgou injustamente por culpa mortal a que verdadeiramente o não era, e condenou no mesmo ato o seu próprio juízo, julgando a do companheiro, que não tinha desculpa, por venial, pois lhe deu perdão.

E já que estamos nas significações da palavra escrúpulo, nos pesos e nas medidas se acha também este mesmo nome. Nos pesos uma onça se divide em vinte e quatro escrúpulos; nas medidas um escrúpulo contém e se estende a cem pés quadrados de comprimento. Oh! quão enganados andam os juízos, e muito mais os afetos humanos, em pesar e medir os escrúpulos! De um defeito alheio, leve e levíssimo, que, quando muito, pesa uma onça, fazem vinte e quatro escrúpulos, e de uma centopéia de pecados próprios, tão quadrados, que por nenhuma das quatro faces podem deixar de ser e parecer pecados, apenas fazem um escrúpulo. Mas a maior injustiça, a maior maldade e a maior hipocrisia destes escrupulosos é que os compassos com que medem e as balanças com que pesam os vícios nos próprios e nos alheios são muito diferentes. Ouçamos esta diferença da boca da mesma verdade: Quid autem vides festucam in oculo fratris tui, et trabem in oculo tuo non vides (Mt. 7, 3)? Como é ou pode ser - diz Cristo - que não vendo tu, ó hipócrita, nos teus olhos uma trave, vejas nos de teu irmão um argueiro? -Tal modo de quimera ninguém a inventou jamais, com

olhos juntamente de lince e de toupeira! De toupeira, para não veres em ti os vícios grandes e enormes; e de lince, para notares e descobrires nos outros os átomos e argueiros, que não merecem nome de vício! De um argueiro, que não pesa a quarta parte de uma onça, tantos escrúpulos; e de uma trave quadrada de cem pés, que pode ser quilha a uma nau da índia, nenhum escrúpulo! E como neste medir e pesar, ou acrescentando, ou diminuindo, não só os juízos e afetos, mas até os olhos próprios, erram e se enganam tanto, se a tenção dos escribas e fariseus não fora tão perversa e fingida, é sem dúvida que o ditame era muito verdadeiro, acertado e prudente, em não quererem eles, posto que letrados, ser os árbitros e juízes do seu escrúpulo: Licet censum dare Caesari, an non?

§X

Quem escolher para juiz de nossos escrúpulos? A magnífica definição de Cristo feita pelos escribas e fariseus, e as cinco cláusulas ou qualidades de que se deve revestir o bom médico de consciências. Conclusão.

Quanto à eleição da pessoa que escolheram para a segurança de suas consciências - se elas foram sinceras e bem intencionadas - nenhuma houve nunca, nem podia haver, em que concorressem tão altamente todas as qualidades e suposições necessárias para aquele juízo, como as pintou a sua lisonja e enfeitou o seu engano. As palavras que disseram foram estas: Magister, scimus quia verax es, et viam Dei in veritate doces, et non est tibi cura de aliquo: non enim respicis personam hominum: dic ergo nobis quid tibi videtur[38] ? - Se o evangelista ou o mesmo Cristo, quisera descrever ou definir, não digo um sujeito humano, mas um oráculo do céu e da verdade, que nas dúvidas ou escrúpulos da consciência se deva consultar com segurança, e aquietar e sossegar a alma com o seu parecer, com nenhumas outras cláusulas se pudera formar a definição, nem mais sérias nem mais sólidas, nem mais exatas nem mais santas. Nem eu tenho que tirar ou acrescentar, nem que dizer nelas.

Todo o escrupuloso, pois, que verdadeiramente quiser sarar desta tão molesta enfermidade - digo verdadeiramente, porque os que de verdade quiseram adoecer raramente têm verdadeiro propósito de sarar: não querem quem os cure, senão quem lhes dê certidões de saúde. - Mas se verdadeiramente, como dizia, querem estar seguro dela, assim para a vida como para a morte, eu não lhes receito o remédio, senão o médico. Seja tal qual os escribas e fariseus o pintaram em Cristo. Ouçamos e ponderemos as cláusulas uma por uma.

Magister. A primeira cláusula ou condição é que seja douto, e não mestre pelos graus, nem ainda pelas cadeiras da Universidade, senão pela ciência e teologia sólida e bem fundada, e onde ela tiver opiniões, pela mais segura, e que não deixe a salvação e eternidade em dívida. - Scimus quia verax es - segunda condição: que não seja verdadeiro só pela verdade, senão pela veracidade, isto é, que não só saiba a verdade para a conhecer e distinguir, senão que tenha valor e constância para a dizer claramente, e não a dissimular. - Et viam Dei in veritate doces - terceira condição: que não só creia, mas ensine que para o céu não há mais que um caminho, e esse estreito, como ensinou Cristo, e não dois, que é encaminhar as almas com um pé para o céu e com outro para o inferno. - Et non est tibi cura de aliquo - quarta condição: que não tenha outro cuidado, nem outra pretensão ou dependência, porque no tal caso tratará mais de agradar ao conselheiro, de quem depende, que de fundar bem o conselho que se lhe pede. -Non enim respicis personam hominum - quinta e última: que se não deixe levar de respeitos humanos, nem olhe para quem é o homem que o consulta, ou a quem pode tocar a verdade da sua resolução ainda que seja o mesmo César, e esse tão injusto e cruel como Tibério, para que o tema.

Finalmente, depois de cada um eleger um tal médico, e lhe declarar os seus escrúpulos, sem encobrir ou dissimular circunstâncias algumas que o possa agravar ou favorecer, a doutrina comum de todos os santos, de todos os teólogos e de todos os mestres da vida espiritual - não beatos ou beatas, que são a peste da salvação e das consciências - é que com a resolução que lhe der a pessoa consultada, tal qual fica dito, e com a confissão geral - se por seu conselho for necessária - se aquiete de tal sorte na consciência, como se por uma revelação do céu fora certificado de estar seguro. Não quero citar ou alegar mais autores que dois, os que mais exatamente trataram esta matéria, Santa Antonino, e o grande cancelário de Paris, João Gerson. Santo Antonino, depois de ensinar o que tenho dito, confirma a sua doutrina com a resposta de um religioso de S. Domingos, defunto, que apareceu ao outro muito fatigado de escrúpulos, e, perguntado que remédio tomaria para se livrar daquelas moléstias da sua alma, respondeu: Consule discretum, et acquiesce ei: Consultai um confessor discreto, e aquietai-vos com o que ele vos disser. - Com o mesmo conselho curou S. Bernardo outro religioso muito escrupuloso da Ordem de Cister. E, como replicasse outro: Se eu tivera um confessor tão douto e tão santo como S. Bernardo, também eu me aquietara - responde e conclui Gerson: Quis quis ita dicis, et sapis, erras, et deciperis. Debes ergo sibi obedire non ut homini, sed ut Deo jubenti, cujus vices gerit: Tu, escrupuloso, que isso dizes, e assim o entendes, erras e te enganas, porque a esse confessor, posto que não seja tão santo nem tão douto, deves obedecer, não como a homem, senão como a Deus, que assim o manda, e em seu lugar te guia.

Agora determinava eu tratar da matéria em que se fundava o escrúpulo dos escribas e fariseus, que é a dos tributos dos Césares, mas fique para sermão particular sobre o mesmo tema: Licet censum dare Caesar, an non[39]?

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] É lícito dar tributo a César, ou não (Mt. 22, 17)?

[2] Ali tremeram de medo, onde não havia que temer (Si. 52, 6).

[3] Nada ficará sem castigo (Dies Irae).

[4] Ainda que tu saiba que eu não cometi impiedadee alguma (Jô 10, 7).

[5] Que me salvou da pusilanimidade do espírito, e da tempestade( Sl. 106, 16)

[6] Sobem até aos céus, e descem até aos abismos (SI. 106, 16)

[7] Bem-aventurado o homem que está sempre com temor (Prov. 28, 14).

[8] Mentirosos são os filhos dos homens em balanças (SI. 61, 10).

[9] Aprendeu a apanhar a presa, e a devorar os homens; aprendeu a fazer viúvas, e a tornar em deserto as cidades (Ez. 19, 6 s).

[10] Chrys. Homil. 88 in Matth.

[11] Não te negarei (Mt. 26, 35).

[12] Não passará da lei um só i, ou um til, sem que tudo seja cumprido (Mt. 5, 18).

[13] Aquele que quebrar um destes mínimos mandamentos será chamado mui pequeno no reino dos céus (ibid. 19).

[14] Tu ordenaste que os teus mandamentos fossem guardados à risca (SI. 118, 4). (1s)

[15] Que devorais as casas das viúvas (Mt. 23, 14).

[16] Mc. 12, 40; Lc. 20, 47.

[17] August. tract. 114.

[18] És tu porventura maior do que nosso pai Jacó, que foi o que nos deu este poço (Jo. 4, 12)?

[19] Nossos pais adoraram sobre este monte (ibid.20)

[20] Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim (Jo. 4, 9)?

[21] Fará chover laços sobre os pecadores (SI. 10, 7).

[22] Eu não acho nele crime algum (Jo. 18, 38).

[23] Que mal tem ele feito (Mt. 27, 23)?

[24] Tomai-o lá vós outros, e julgai-o segundo a vossa lei (Jo. 18, 31).

[25] E quando soube que era da jurisdição de Herodes, remeteu-o ao mesmo Herodes (Lc. 23, 7).

[26] Não te embaraces com a causa deste justo (Mt. 27,19).

[27] Calvino.

[28] Cocl relat. a Cornei. in c. 31, Proverbior n. 4.

[29] Senec. In Traged. Troas.

[30] ) Embriagada, sem ser de vinho (Is. 51, 21).

[31] Ai da coroa da soberba dos embriagados de Efraim (Is. 28, 1).

[32] Espertai-vos, embriagados, e chorai (JIA. 1, 5).

[33] Uns têm fome, e outros estão muito fartos (1 Cor. 11, 21).

[34] O vinho e a embriaguez cheia de desordens (Prov. 20, 1).

[35] Andarão às apalpadelas, como em trevas, e não em luz, e os fará desatinar como bêbados (Jó 12, 25).

[36]Embriagada pela fortuna propícia.

[37] Aconteceu que dois eunucos, o copeiro-mor, e o padeiro-mor do rei do Egito, pecaram contra seu senhor (Gên. 40, 1).

[38] Mestre, nós sabemos que és verdadeiro, e que ensinas o caminho de Deus pela verdade, e não se te dá de ninguém, porque não fazes acepção de pessoas: Dize-nos pois, qual é o teu sentimento (Mt. 22, 16 s)?

[39] É lícito dar tributo a César, ou não (Mt. 22,17).