Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão do Santíssimo Sacramento, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. VIII Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO

Em Santa Engrácia. Ano de 1662

Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego in illo[1].

§1

Cristo na Eucaristia obrigado e juntamente ofendido, agradecido e juntamente queixoso, satisfeito e juntamente agravado pela corte portuguesa. A Eucaristia enquanto Sacramento e enquanto Comunhão.

Agravado e satisfeito, queixoso e agradecido, ofendido e obrigado considera o meu sentimento neste dia e neste lugar a vossa encoberta Majestade, todo-poderoso Senhor. Agravado e satisfeito, mas como satisfeito, se agravado? Queixoso e agradecido, mas como agradecido, se queixoso? Ofendido e obrigado, mas como obrigado, se ofendido? No mesmo dia, no mesmo lugar, no mesmo mistério, na mesma pessoa de Cristo, como podem caber juntas obrigação e ofensa, agradecimento e queixa, satisfação e agravo? Eu direi como, e isto é o que venho dizer. Ouça-me a nobreza ilustríssima de Portugal, porque com ela é o caso, para que ainda com esta circunstância cresça e se suspenda mais a nossa admiração. - Está Cristo naquele soberano mistério obrigado e juntamente ofendido, agradecido e juntamente queixoso, satisfeito e juntamente agravado, porque a mesma piedade portuguesa, que celebra os seus desagravos hoje, nem hoje cessa de multiplicar os seus agravos. Naquele altar e nesta mesa logra e padece Cristo os dois extremos desta tão notável diferença. Naquele altar enquanto Sacramento, nesta mesa enquanto Comunhão; naquele altar enquanto o adoramos, nesta mesa enquanto o recebemos.

O sagrado mistério da Eucaristia - no sentido em que o meu discurso o distingue - ou se pode considerar enquanto Sacramento precisamente, que faz presente a Cristo, ou enquanto Comunhão. Enquanto Sacramento foi instituído para o Senhor estar conosco, enquanto Comunhão foi instituído para estar em nós. Enquanto Sacramento para residir nos nossos altares, enquanto Comunhão para entrar nos nossos corações. Daqui se segue que a Comunhão foi um plus ultra do Sacramento. No Sacramento chegou o amor a tirar a Cristo do céu, e pô-lo em nossos altares, para que aí o adorássemos como mistério da fé; na Comunhão passou o amor a tirar a Cristo dos altares, e metê-lo em nossos corações, para que aí o abraçássemos como mistério da caridade. Estes são os dois efeitos maravilhosos que, para mais e mais nos obrigar, obra Cristo no mistério da Eucaristia, e estas são as duas considerações em que juntamente está recebendo de nós ali desagravos e aqui agravos. Desagravado enquanto o adoramos em nossos altares, agravado enquanto o recebemos em nossos corações; desagravado enquanto está conosco, agravado enquanto está em nós; desagravado enquanto mistério da fé, agravado enquanto mistério da caridade; desagravado, enfim, enquanto não comungado, e agravado enquanto Comunhão.

Tenho dito, mas não me tenho declarado, O modo - verdadeiramente digno de seus autores - com que a nobreza ilustríssima de Portugal desagrava em públicas demonstrações aquele divino mistério enquanto Sacramento não é necessário que eu o repita aos ouvidos, e mais quando os olhos os estão lendo em tão elegante escritura. Este paraíso da vista, tresladado do céu à terra, esta grandeza, esta riqueza, esta majestade, este culto exterior, verdadeiramente divino, de que Deus sempre se agradou tanto, ainda antes de ter corpo esta assistência da majestade e altezas, esta freqüência de tudo o ilustre e grande da corte de Portugal, estas adorações e estes obséquios, este zelo e esta piedade, esta fé e este amor, ambos com os olhos abertos, este nome e este instituto de escravos, estes tusões lançados ao peito, como ferretes dos corações, tudo isto são desagravos e satisfações gloriosas daquele sacrossanto mistério, contra a perfídia, contra a cegueira, contra a obstinação, contra o atrevimento, contra o desatino herético.

Mas, se Cristo neste dia e neste lugar está tão honrado e tão desagravado enquanto Sacramento, como pode estar ofendido e agravado enquanto Comunhão? Melhor fora não se poder dizer como, mas é lástima que se possa dizer, e é força que se diga. Corte nobilíssima de Portugal, falemos claro. A vossa fé e a vossa piedade é a que desagrava a verdade daquele mistério enquanto Sacramento, e a vossa desunião e a vossa discórdia é a que agrava o mesmo mistério e a mesma verdade enquanto Comunhão. Vamos ao Evangelho.

§II

As duas uniões do Sacramento da Eucaristia: união com Cristo e união entre nós. Razão da duplicação dos termos na instituição do Sacramento. A novidade e pedra fundamental de todo este discurso: dizer que por meio da união sacramental, com que na Comunhão nos unimos a Cristo, ficamos não só unidos com ele, senão também unidos entre nós. A etimologia de Comunhão. Como pode ser que da união particular com Cristo nasça a união comum entre nós? A oração de Cristo à sobremesa da última Ceia. A unidade da Trindade e a união da Eucaristia. O testemunho da Escritura, dos santos e dos mesmos acidentes sacramentais.

Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego in illo (Jo. 6, 57): Quem come o meu corpo e bebe o meu sangue - diz Cristo - está em mim e eu estou nele. - Se perguntarmos aos intérpretes o entendimento destas palavras, todos respondem que significam uma união real e verdadeira, com que por meio da Comunhão ficamos unidos a Cristo. Isto dizem os expositores e os teólogos comumente, mas eu, com licença sua, tenho para mim que neste mistério não há só uma união, senão duas, e essas mui diferentes: uma união com que Cristo nos quis unir consigo, e outra união com que nos quis unir conosco. O efeito da primeira união é estarmos unidos com Cristo; o efeito da segunda união é estarmos unidos entre nós. Ponderemos o nosso texto: Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem: Quem come o meu corpo e bebe o meu sangue - in me manet et ego in illo: está em mim e eu nele. - Reparo muito nesta duplicação de termos: ele em mim, e eu nele. Se Cristo na Comunhão pretendera somente unir-se conosco, um destes termos bastava, e o outro era supérfluo. Provo. Porque para estas duas mãos estarem unidas, basta que a direita esteja na esquerda, ou a esquerda na direita. Da mesma maneira, para Cristo é nós estarmos unidos basta que nós estejamos em Cristo: in me manet- ou que Cristo esteja em nós: et ego in illo. Pois, se para explicar a união que há entre Cristo e o que comunga bastava qualquer destes termos, por que os dobra e multiplica Cristo? Por isso mesmo. Dobra Cristo e multiplica os termos porque também a união se dobra e se multiplica. Se a união fora uma só, bastava dizer: in me manet ou ego in illo; mas diz in me manet, et ego in illo duplicadamente, para significar as duas uniões que obra aquele mistério: uma união imediata, com que nos unimos a Cristo, e outra união mediata, com que mediante Cristo nos unimos entre nós. Notai os termos destas uniões, e vereis como são distintas. Uma união se termina de nós a Cristo: in me manet- e outra união se termina de Cristo a nós: et ego in illo. Pela união que se termina de Cristo a nós fica Cristo unido conosco; pela união que se termina de nós a Cristo ficamos nós unidos entre nós. Mais claro. Pela união que se termina de Cristo a nós, fica Cristo unido a cada um de nós, e como dividido de si; pela união que se termina de cada um de nós a Cristo, ficamos todos unidos com Cristo e todos unidos entre nós.

Esta última proposição é toda a dificuldade e toda a novidade deste assunto: dizer que por meio da união sacramental, com que na Comunhão nos unimos a Cristo, ficamos não só unidos com ele, senão também unidos entre nós. E como esta verdade grande é a pedra fundamental de todo o discurso, mostrá-la-ei com o exemplo, prová-la-ei com a Escritura, confirmá-la-ei com os santos, e até os mesmos acidentes do Sacramento e o mesmo nome de Comunhão nos servirão de prova.

Começando por esta última, pergunto: que quer dizer comunhão? O nome comunhão - communio - não é inventado por homens, senão imposto por Deus, e tirado das Escrituras Sagradas em muitos lugares do Testamento Novo. E que quer dizer communio? Quer dizer communis unio: união comum. Assim explicam sua etimologia todos os intérpretes. De maneira que dando Cristo nome à Comunhão, não lhe pôs o nome da união particular que temos com ele, senão da união comum que causa entre nós. A união que cada um de nós tem com Cristo no Sacramento é união particular; a união que mediante Cristo temos todos entre nós é união comum, e esta união comum, como efeito principal e ultimadamente pretendido por Cristo, é a que dá o ser e o nome à Comunhão: communio: comunas unto. Mas como pode ser que da união particular nasça a união comum? Como pode ser que, por ficar cada um de nós unido com Cristo, fiquemos todos também unidos entre nós? Agora entra o exemplo.

É prolóquio dos filósofos que, quando dois extremos distintos se unem a um terceiro, ficam também unidos entre si. Dois ramos de uma grande árvore são muito distintos e muito distantes; mas, porque se unem ao mesmo tronco, ficam também unidos um com o outro. É o exemplo de que usou Cristo na mesma mesa em que acabava de comungar aos discípulos: Ego sum vitis, vos palmites (Jo. 15, 5): Eu sou a vide, e vós os ramos. - E assim como os ramos, pela união que têm com a vide, ficam unidos entre si, assim os que comungamos o corpo de Cristo, pela união que temos com Cristo, ficamos unidos entre nós. Parece-vos humilde comparação esta? Ora, remontai o pensamento sobre as nuvens, sobre os céus, sobre as estrelas, sobre os anjos, e ouvi a semelhança incomparável e incompreensível com que o mesmo Cristo se declara ou se comunica com seu Padre. A primeira comparação foi de homens a homens, a segunda é de Deus a Deus. Na sobremesa da instituição do Sacramento fez Cristo oração ao Padre eterno: Pater sancte, serva eos, ut sint unum, sicut nos unum sumus (Jo. 17, 11 s): Eterno Pai, encomendo debaixo de vossa divina proteção os homens de quem nesta hora me aparto; e o que vos peço para eles é que sejam tão unidos entre si como nós o somos entre nós: Ut sint unum, sicut nos unum sumus. - Só por esta comparação devíamos infinito amor e eterno agradecimento a Cristo. Mas é ela tão alta e tão sublime, que só o Padre, com que o Filho falava, a podia compreender. Pede Cristo ao Padre que sejam os homens uma só coisa: Ut sint unum - e parece que pede um impossível. Como pode ser que tantos homens, que são coisas tão diversas e tão distantes, sejam uma só: Ut sint unum? - Só no mistério da Eucaristia se pudera conseguir esta possibilidade, e só no mistério da Trindade se pudera achar esta semelhança. A maior maravilha do mistério da Trindade é haver nela multidão e unidade, muitas pessoas e uma essência. E o que faz no mistério da Trindade a unidade faz no mistério da Eucaristia a união. A pessoa do Padre é distinta do Filho e do Espírito Santo; a pessoa do Filho é distinta do Espírito Santo e do Padre; a pessoa do Espírito Santo é distinta do Padre e do Filho, e, contudo, são um só Deus. Por quê? Porque se unem todas - não falo bem - porque se identificam todas em uma só essência. Identifica-se o Padre com a essência divina, o Filho com a essência divina, o Espírito Santo com a essência divina; e como a divina essência é uma só, e uníssima, como lhe chamou S. Bernardo, ainda que as três pessoas sejam realmente distintas, podem ser, e são uma só divindade, podem ser, e são só Deus. O mesmo passa no mistério soberano da Eucaristia, só com chamarmos aqui união o que lá se chama unidade. Chegam todos os homens àquela sagrada mesa: eu que comungo uno-me com Cristo, vós que comungais uni-vos com Cristo, o outro que comunga une-se com Cristo, e por meio desta união com Cristo ficamos unidos também entre nós: Ue sint unum, sicut nos unum sumus.

Quereis Escritura mais clara? Texto de S. Paulo, expresso na primeira Epístola aos Coríntios: Unum corpus multi sumus, omnes qui de uno pane et de uno calice participamus[2]. - Não se pudera declarar mais breve e mais maravilhosamente o efeito, a causa, e todo o mistério: Somos muitos um só corpo - diz a maior trombeta da verdade, S. Paulo: Unum corpus multi sumus. - E estes muitos quem são, glorioso apóstolo? São todos os homens? Não. São todos os cristãos? Não. Pois, quem são logo? São todos aqueles que comemos um pão e bebemos um cálix, todos aqueles que comungamos: Omnes qui de uno pane et de uno calice participamus. - Vede a conseqüência do apóstolo, se é em termos a nossa. Como o pão é um: de uno pane - e como o cálix também é um: de uno calice - infere e conclui a Teologia de Paulo que também os que participamos e nos unimos a este um, por necessária conseqüência havemos de ficar unidos: Unum corpus multi sumus, qui de uno pane et de uno calice participamus.

Santos que confirmem a verdade deste pensamento não temos mais que dois, mas de grande antiguidade e autoridade em ambas as Igrejas. Da Igreja grega, S. Cirilo Alexandrino, da latina o maior lume de uma e outra, Santo Agostinho: Et si multi sumus - diz S. Cirilo - unum tamen in eo sumus, omnes enim unum participamus[3]. - E Santo Agostinho: Quia igitur corpus Christi sumus, qui corpus Christi accipimus, non solum capiti per dilectionem, sed etiam cum membris nostris invicem uniri debemus[4]. - Não me detenho, nem é necessário, em romancear as palavras destes grandes padres, porque o mesmo que eles resumiram em tão poucas é o que nós até agora dissemos em mais dilatado discurso.

Por conclusão de todo ele, ouçamos o último testemunho que prometi, dos mesmos acidentes sacramentais. Consagrou Cristo seu corpo e sangue debaixo de acidentes de pão e vinho. E por que mais escolheu o Senhor esta matéria vulgar para tão soberano Sacramento, que alguma outra de quantas tinha criado? Sem dúvida para que os mesmos acidentes visíveis - que é o que só naquele Sacramento ocultíssimo percebem os sentidos - nos estivessem pregando e apregoando por fora os efeitos maravilhosos que lá se obram por dentro. Não reparais - diz Santo Agostinho - que a matéria da hóstia e a do cálix, a matéria que cobre o corpo e a que disfarça o sangue, uma e outra é composta de coisas que, sendo primeiro muitas, se fazem uma? O pão, matéria do corpo, que foi antes, e que é depois, senão muitos grãos de trigos unidos e amassados em uma hóstia? O vinho, matéria do cálix, que foi antes, e que é depois, senão muitos cachos e muitos bagos espremidos e unidos em um licor? E por que, ou para quê? Para que naquelas paredes de fora vejam os olhos o que crê a fé por dentro, e para que aquela obra exterior da natureza seja testemunho visível e manifesto da virtude interior e oculta da graça. Assim como os acidentes sacramentais são composição de muitas coisas unidas em uma, assim o efeito do Sacramento é união de muitos homens unidos entre si. Este é o mistério daqueles acidentes sagrados, e este o documento divino que a fé nos está pregando e ensinando neles: Mas não é pensamento ou consideração só minha - diz Agostinho - senão tradição recebida dos antigos padres da Igreja, que, mais chegados às fontes da verdade, beberam delas primeiro, e depois nos descobriram este segredo. Propterea - são palavras do grande doutor -sicut etiam ante nos hoc intellexerunt homines Dei, Dominus noster Jesus Christus corpus et sanguinem suum in eis rebus commendavit, quae ad unum aliquid rediguntur ex multis. Namque aliud in unum ex multis granis conficitur, aliud in unum ex multis acinis confluit. - De sorte, como dizíamos, que o mistério do Sacramento, enquanto Comunhão, visto ao lume da fé, visto ao lume da razão e visto ao lume dos olhos, não só é união de Cristo aos que comungam, senão também, mediante o mesmo Cristo, união dos que comungam entre si: In me manet, et ego in eo.

§ III

Os agravos e ofensas dos que comungam a Cristo. Se a heresia é pecado contra a e a desunião é pecado contra a caridade, como chama logo S. Paulo à desunião heresia? Por que a desunião entre os que comungam é delito contra a fé? Os católicos do Sacramento e os hereges da Comunhão. O corpo de Cristo e a amizade entre Pilatos e Herodes.

Sendo, pois, o fim de Cristo naquele Sacramento, ou naquela oficina de amor, não só unir-se conosco, senão unir-nos entre nós, sendo o fim de Cristo em se nos dar a comer ou a comungar introduzir-se aos nossos corações para os concordar e unir entre si, e sendo o mesmo Cristo, não só o mediatário, senão também o meio desta união, vede se tem justas causas de estar queixoso, de estar ofendido e, de estar agravado. Tanta comunhão, e tão pouca união? Oh! que agravo, oh! que ofensa, oh! que afronta tão pública e tão injuriosa de Cristo comungado! Os hereges fizeram um agravo àquele Senhor, e nós, que professamos seus desagravos, atrevo-me a dizer que lhe fazemos outro igual. Grande agravo foi o que cometeram neste lugar os hereges contra Cristo sacramentado; mas não é menor o agravo que cometem os mesmos que o vêm desagravar, porque não só é agravo, senão também heresia. Heresia? Sim. E ninguém se ofenda da palavra, porque não é minha, senão do mesmo agravado Cristo, por boca do maior intérprete do Sacramento, S. Paulo.

Concorriam os coríntios a comungar juntos, como nós comungamos, e havia entre eles discórdias e dissensões, posto que não tão pesadas como as nossas. Soube S. Paulo o que passava, e diz assim por escrito: Convenientibus vobis in Ecclesiam, audio scissuras esse inter vos, et ex parte credo, nam oportet haereses esse (1 Cor. 11, 18 s): Quando vindes comungar ouço que há desunires entre vós, e em parte o creio, porque é força que haja heresias. -Notáveis conseqüências são hoje as de S. Paulo. De maneira que, porque é força que haja heresias, crê S. Paulo que há desuniões entre os que comungam? E porque há desuniões entre os que comungam daí infere que é força haver heresias? A heresia é pecado contra a fé, a desunião é pecado contra a caridade. Como chama logo S. Paulo à desunião heresia? Divinamente o apóstolo: porque era desunião de homens que comungavau. A desunião entre os outros homens é pecado contra a caridade; a desunião entre os que comungam é delito contra a fé, e por isso heresia: Nam oportet haereses esse. - Mas por que, ou como? Por que é, ou como é pecado contra a fé a desunião dos que comungam? Porque a Comunhão, como dizíamos, é união comum entre os couungantes, e quem depois de comungar não tem união, nega e desmente a verdade da Comunhão. Não a nega com a palavra, mas nega-a com a obra: Confitentur se nosse Deum factis autem negant[5]. - Há heresias que se dizem e heresias que se fazem, e tal é esta, dos que comungam e andam desunidos. Os hereges obstinados dizem que o Sacramento não é Sacramento, e os católicos desunidos fazem que a Comunhão não seja Comunhão. O mesmo apóstolo o disse assim, continuando o seu discurso: Convenientibus vobis in unum, jam non est dominicam coenam manducare (1 Cor. 11, 20): Comungar como vós comungais, comungados e desunidos, isso não é comungar: Non est dominicam coenam manducare. - Julgai agora se é espécie de heresia a vossa desunião, e em certo modo mais danosa e mais cruel que a dos mesmos hereges. O herege nega o Sacramento, mas não faz que o Sacramento não seja Sacramento; vós confessais a Comunhão, mas fazeis que a Comunhão não seja Comunhão: Non est dominicam coenam manducare. - Os hereges dizem que não é, e nós fazemos que não seja: non est. - Os hereges são blasfemadores daquele mistério, e nós destruidores dele. Os hereges negam-lhe a essência, nós desmentimos-lhe as virtudes. Os hereges desfazem nele, mas nós desfazemo-lo a ele. Oh! que desgraça nossa! Oh! que injúria daquele soberano mistério! Muito apesar dos hereges há e há de haver sempre Sacramento, mas muito apesar de Cristo nós fazemos que já não haja Comunhão: Convenientibus vobis in unum, jam non est dominicam coenam manducare.

Por reverência de nossa fé e de nossa piedade, que ponderemos e sintamos bem aquele jam non est. A heresia é contradição do Sacramento, a desunião é  contraditória   da Comunhão. Por isso o apóstolo chamou a este comungar não comungar: Jam non est dominicam coenam manducare. - De maneira que a desunião dos que comungam implica um non est da Comunhão. A fé diz est, a desunião diz non est; e desunião que inclui um não é contra a Comunhão, vede outra vez se é e se pode chamar heresia: Oportet haereses esse. - Não será heresia contra o Sacramento enquanto mistério da fé, mas será heresia contra o Sacramento enquanto mistério da caridade; não será heresia da palavra, pela qual vos queimem na terra, mas será heresia de obras, pela qual ardereis no inferno. E por que diz S. Paulo que cria isto em parte, e não em todo: Et ex parte credo? - Porque os coríntios verdadeiramente eram como nós somos hoje: muita fé, muita piedade, muito zelo, muita reverência ao mistério da Eucaristia, mas, como S. Paulo por uma parte os via tão devotos, e por outra tão desunidos, por uma parte tão amigos da Comunhão, e por outra tão inimigos da união, por uma parte com o Sacramento no peito - e ao peito - e por outra com o ódio nos corações, não acabava de se deliberar S. Paulo se eram os coríntios inteiramente católicos, ou se tinham parte de hereges, e por seu modo tudo eram. Eram católicos do Sacramento e hereges da Comunhão. E isto é o que nós somos: católicos no que professamos, e hereges no que fazemos; católicos de boca para com Deus, e hereges de coração para com os homens; católicos da fé e hereges da caridade; enfim, católicos do Sacramento, e hereges da Comunhão: Oportet haereses esse.

Para última ponderação deste agravo sejam exemplo aos grandes de Portugal dois também grandes de outro reino, em que se professava a mesma fé, posto que não tanta nem tão pura. Levado Cristo à casa de Pilatos, e remetido por ele a Herodes, diz assim o evangelista S. Lucas: Facti sunt amici Herodes et Pilatus in illa die, nam antea inimici erant ad invicem (Lc. 23, 12): Naquele dia se fizeram amigos Pilatos e Herodes, porque dantes eram inimigos. - Pois, saibamos. Disse Cristo alguma coisa a estes dois ministros? Persuadiu-os, exortou-os, rogou-os a que se reconciliassem, a que não escandalizassem o povo, a que não violassem a paz e caridade pública? Nada disto fez Cristo, antes não lhes falou nem uma só palavra. Pois, se Cristo não disse coisa alguma a Herodes nem a Pilatos, se mudo foi presentado, e mudo esteve diante deles, como os fez, ou se fizeram amigos? Aqui vereis a eficácia do corpo de Cristo para causar união entre homens desunidos. Bastou que o corpo de Cristo mudo entrasse em casa daqueles dois homens tão grandes, que eram os maiores da corte de Jerusalém, para que logo, sem mais diligência, estando discordes, se unissem, e, sendo inimigos capitais, se fizessem amigos. Oh! que grande confusão para a nossa fé! Oh! que afronta para a nossa desunião! Que entre Cristo uma vez em casa de Pilatos e Herodes, e que logo se reconciliem e se façam amigos, e que entre o mesmo Cristo - que não é outro - tantas vezes nos nossos corações, e que as nossas inimizades e as nossas desuniões fiquem tão inteiras, tão duras e tão obstinadas como dantes? As inimizades de Pilatos e Herodes eram dúvidas de jurisdições, desconfianças de autoridade, ciúmes do favor e graça do César, e todos aqueles achaques de que adoecem gravemente todos os que ocupam os postos supremos. E que, vencendo Cristo todos estes reparos em Pilatos e Herodes, sem nenhum empenho os não possa vencer nem derrubar em nós, empenhando nisso todo o corpo e todo o sangue? Se cada um quer conhecer nesta parte aonde chega sua fé e sua religião, considere quem foi Pilatos e quem foi Herodes, e onde estão hoje. Pilatos crucificou a Cristo, Herodes zombou de Cristo; Pilatos e Herodes foram dois homens precitos, e são hoje dois condenados que estão ardendo e hão de arder eternamente no inferno; e obrou Cristo, só entrando em suas casas, o que não obra comungando em nossos corações. Mas que digo, o que não obra, sendo os efeitos tão enormemente contrários? Acabamos de comer o corpo de Cristo no Sacramento, e logo partimos a nos comer uns a outros; acabamos de comungar o sangue de Cristo, e ali mesmo desejamos beber o sangue aos que ali conosco o comungaram. Vede se está bem justificada a queixa, se está bem provada a ofensa, se está bem conhecido - posto que nunca assaz ponderado - este segundo e novo agravo. Assim se quebraram na dureza de nossos peitos as mais fortes e finas setas do amor de Cristo, assim se malogrou na resistência de nossas vontades, e na rebeldia obstinada de nossas desuniões o maior invento de sua sabedoria e o maior empenho de seu poder. E este fim teve o fim daquele prodigioso desejo, com que traçou o amoroso Senhor unir-nos a si, para nos unir entre nós: In me manet, et ego in illo.

§ IV

Quem há de desagravar o agravo da Comunhão? Onde a desunião é o agravo, o desagravo não pode ser outro senão a união. Os três motivos da união.

Temos demonstrado o agravo, mas quem se atreverá a persuadir o remédio? Desagravamos o agravo alheio, e quem há de desagravar o nosso? Desagravamos o agravo herético, e quem há de desagravar o católico? Desagravamos o agravo do Sacramento, e quem há de desagravar o agravo da Comunhão? Como homens, como cristãos e como ilustres corre por conta da nobreza de Portugal esta nova satisfação e desagravo. E estes mesmos três respeitos nos descobrem três motivos dele. Onde a desunião é o agravo, o desagravo não pode ser outro senão a união. Três motivos, pois, de união nos descobrem os mesmos três respeitos que concorrem nesta congregação ilustríssima. Motivo de união como cristãos, motivo de união como homens, motivo de união como ilustres. Como cristãos o motivo da fé, como homens o motivo da conveniência, como ilustres o motivo da honra. Do motivo da fé, como a cristãos, não direi palavra, porque, se o não convenceu o discurso passado, não vejo meio de o persuadir. Os dois motivos da conveniência e da honra são os que agora quisera apertar. Até agora me ouvistes como cristãos, dai-me agora atenção como homens e como ilustres.

§V

Os motivos da conveniência e os motivos da honra. Por que razão nos deu o Senhor, não só a carne, senão também o sangue? A conveniência da carne e a nobreza do sangue. Primeira consideração: a nobreza do sangue. A união, qualidade natural da nobreza. A desunião e a nobreza das aves. A nobreza e a desunião entre os metais da estátua de Nabucodonosor Não há desunião que não seja vil de nascimento. Os quatro vícios que geram a desunião. A culpa da desunião entre Caim e Abel e o mérito da união entre Davi e Jônatas. Quem solicitou a união entre Deus e os homens? A nobreza de sangue de Cristo.

Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem. Assim como as duas cláusulas das palavras que já ponderamos nos deram as duas uniões, assim as presentes, que também são duas, nos hão de dar os dois motivos. Todos os padres e expositores reparam muito em que a caridade e providência de Cristo não só nos desse sua carne, senão também seu sangue, e este mesmo reparo, por si só, e sem outro respeito, é muito bem fundado em seguimento do nosso discurso, e sobre a suposição de tudo o que até aqui temos dito se esforça ainda e se aperta muito mais. Para a união consigo e entre nós que era o intento de Cristo, bastava dar-nos só o corpo, ou só o sangue, porque tanta virtude e eficácia tem o corpo só, como o corpo e o sangue juntamente. Pois, por que razão nos deu o Senhor não só a carne, senão também o sangue? Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem? Porque, para a união que pretendia, não só nos quis dar os efeitos, senão também os motivos. Como aquela união dependia do seu poder e mais da nossa vontade, eram necessários meios que obrassem a união, e meios que nos afeiçoassem a ela. Para obrar a união bastava só o corpo ou o sangue de Cristo, mas para nos afeiçoar a ela foi necessário o corpo e mais o sangue: o corpo, para nos dar um motivo, e o sangue para nos dar outro. E que motivos foram estes? O da conveniência e o da honra. Deu-nos a carne para nos sustentar, deu-nos o sangue para nos enobrecer. E não podia dar-nos maiores motivos para nos unir, porque o primeiro levava consigo a conveniência da conservação, e o segundo o pundonor da nobreza.

Começando por esta segunda - a que sempre é devido o primeiro lugar - o sangue com que Cristo nos enobreceu no Sacramento, não só é meio da união que pretende, senão motivo mui forte para nos unir, porque não há coisa mais contrária à verdadeira nobreza que a desunião: Qui bibit meum sanguinem in me manet. Fez Abraão um sacrifício a Deus, em que ofereceu certo número de aves e outro de animais terrestres, e diz o texto sagrado que dividiu os animais, e que não dividiu as aves: Tollens universa haec, divisit ea per medium, aves autem non divisit[6]. - Pois, se o sacrifício era o mesmo, consagrado ao mesmo Deus, e oferecido pelo mesmo sacerdote, suposto que se dividem os animais, as aves também por que se não dividem? Sabeis por quê? - diz Santo Ambrósio. - Porque as aves eram de melhor elemento e de melhor nascimento. Na criação do mundo os animais nasceram da terra, e ficaram na terra: as aves nasceram da água, e passaram à região do ar. E como os animais terrestres eram de baixo nascimento e de baixo elemento, admitiam divisão; porém, as aves, que eram de nascimento claro, e de elemento sublime, achou Abraão que era contra sua natural nobreza o dividi-las: Aves autem non divisit. - Nobreza nobilíssima de Portugal, ali está o verdadeiro sacrifício, figurado no sacrifício de Abraão. Será bem que neste sacrifício veja o mundo as aves divididas? Antes de vir ao sacrifício podem as aves fazer bandos, antes de vir ao sacrifício podem as aves estar divididas, mas depois de oferecidas àquele altar já não admitem divisão: Aves autem non divisit.

E por que não pareça esta união reverência do sacrifício, e não qualidade natural da mesma nobreza, saímos do templo às praças, e ainda da fé ao gentilismo. A estátua de Nabucodonosor dos pés à cabeça era composta daquela variedade de metais que todos sabemos. A cabeça de ouro, o peito de prata, o ventre de bronze, do ventre aos pés de ferro, os pés de ferro e de barro. E nota o texto sagrado que o ferro e o barro dos pés não estavam unidos: Sicut ferrum non potest misceri testae, etc.[7]. - De maneira que o ouro estava unido com a prata, e a prata estava unida com o bronze, mas o barro dos pés não estava unido com o ferro. Olhai por onde rendeu a estátua, olhai por onde estava a desunião: nos pés e no barro. A parte mais baixa da estátua eram os pés, a matéria mais vil dos metais era o ferro e o barro, e onde estava a maior baixeza e a maior vileza, ali se achou a desunião. Pelo contrário, o mais alto da estátua era a cabeça e o peito, o mais ilustre dos metais era o ouro e a prata, e o que na estátua era o mais alto e o mais ilustre, isso era o que estava unido. À cabeça e ao peito, ao ouro e à prata não lhes faltavam seus altibaixos, em que poder tropeçar a desunião. A prata pudera dizer que era mais branca que o ouro, ó ouro pudera dizer que tinha mais quilates que a prata, a cabeça pudera dizer que tinha mais juízo que o peito, o peito pudera dizer que tinha mais coração que a cabeça. Mas como a cabeça e o peito, como o ouro e a prata eram o mais alto e o mais ilustre, todos se compunham entre si, todos estavam unidos.

Quis Nabuco emendar o erro ou melhorar a fortuna da estátua que vira, e mandou fazer outra estátua dos pés até a cabeça toda de ouro: Fecit statuam auream (Dan. 3, 1). - E esta estátua toda de ouro tinha alguma desunião? Nenhuma. Como tudo era ilustre, tudo estava unido. Tão própria qualidade e tão próprio atributo é da nobreza a união. Mas se esta estátua toda de ouro - vede o que agora digo - se esta estátua toda de ouro tivera alguma desunião, ainda que a desunião fora na cabeça, também havia de ter pés de barro. Pés de barro? Pois, como assim, se da cabeça até os pés a estátua toda era de ouro, e se a desunião, como supomos, não estava nos pés, senão na cabeça? Por isso mesmo. Porque ouro sem união é barro, e cabeça sem união é pés. Não havemos de ir longe buscar a prova. Quando esta mesma estátua de Nabuco se desfez em pó, e foi levada dos ventos por esses ares, diz Daniel - que é o autor desta prodigiosa história - que se desfez o ouro, a prata, o bronze, e todos os outros metais, e que todos se converteram em pó de terra: Quasi in favillam aestivae areae (Dan. 2, 35). - Aqui é o meu reparo, e grande reparo. Que os pés de barro se convertessem em pó de terra, bem está; mas o ferro parece que se havia de converter em pó de ferro, e o bronze em pó de bronze, e a prata em pó de prata, e o ouro em pó de ouro, ou em ouro em pó. Mas não foi assim o caso. Pois, por que razão o ouro da cabeça e os metais dos outros membros se converteram em pó de terra, como o barro dos pés? Porque, quando se desfez a estátua, desuniram-se todos os membros e desuniram-se todos os metais; e como houve desunião, o ouro e todos os outros metais logo foram barro, a cabeça e todos os outros membros logo foram pés. Por isso todo o pó foi de pés de barro: Quasi in favillam aestivae areae. - Por mais alta que esteja a cabeça, se não está unida, é pés; por mais ilustre que seja o ouro, se não está unido, é barro. Nobreza, e desunida, não pode ser, porque, em sendo desunida, logo deixa de ser nobreza, logo é vileza.

Ora, eu tive curiosidade de averiguar o nascimento à desunião, e consultando, não os vossos nobiliários, senão os livros da verdade, achei nas Escrituras Sagradas que não há desunião que não seja vil de nascimento, ou de um, ou de dois, ou de três, ou de todos os quatro costados. Toda a desunião quanta há no mundo, e muito mais nas cortes, ou nasce do vício vil da ambição, ou do vício vil da cobiça, ou do vício vil da inveja, ou do vício vil da vingança. Para que venha a prova mais em seu lugar, vejamo-lo em quatro irmandades ilustres, que todas se prezavam muito de seus nascimentos. Houve desunião entre Caim e Abel, e nasceu a desunião da inveja de Caim; houve desunião entre Esaú e Jacó, e nasceu a desunião da ambição de Esaú. Houve desunião entre Absalão e Amnon, e nasceu a desunião da vingança de Absalão. Houve desunião entre o Filho Pródigo e o outro filho, e nasceu a desunião da cobiça do Pródigo. Se se examinar bem o nascimento de qualquer desunião honrada, achar-se-á que não há desunião que não nasça de alguma destas vilezas, e se se examinar melhor achar-se-á que não há desunião que não nasça de todas quatro. Todas têm - e se não diga-o a consciência de cada um - todas têm sua parte de ambição, sua parte de cobiça, sua parte de inveja, e sua parte de vingança. E desunião que nasce de quatro vilezas, como pode deixar de ser vil e vilíssima? Nobreza, e desunida, torno a dizer que não é possível, porque, em sendo desunião, logo é vileza.

Só vejo que poderá replicar alguma advertência crítica que bem pode um homem estar desunido, sem ser culpado na desunião. Depois que houve desunião entre Caim e Abel, bem pode Caim ser o desunido, e Abel o inocente, porque pode a desunião estar da parte de Caim, e não da parte de Abel. Concedo tudo. Ainda que a desunião não pode ser senão entre dois, a culpa da desunião bem pode ser de um só; mas o culpado nesse caso sempre há de ser quem eu tenho dito. Entre os unidos sempre a união está da parte do mais nobre, e entre os desunidos sempre a desunião está da parte do mais vil. O ferro e o barro da estátua estavam desunidos, e de que parte esteve a desunião? É certo que esteve da parte do barro, que era o mais vil. Provo. Porque o ferro na mesma estátua estava unido com o bronze: logo a falta de união não ficava por parte do ferro, senão pela do barro. Se entre o ferro e o barro havia quebra, claro está que o barro era, e não o ferro, o que havia de quebrar. A união, assim como todas as outras coisas, sempre quebra pelo mais fraco, e quem é sempre o mais fraco, senão o mais vil? De sorte que entre os desunidos sempre a desunião está da parte do menos nobre.

E que entre os unidos esteja a união da parte do mais nobre também é fácil de comprovar. Os homens mais unidos que houve no mundo foram Jônatas e Davi: Jônatas era príncipe, filho de el-rei Saul: Davi naquele tempo não era mais que um soldado de fortuna, muito valente, mas filho de um pastor. E de qual destas partes vos parece que estaria a união? Todos hão de dizer que da parte de Davi, porque até os filósofos naturais dizem que donde está a dependência daí está a união; e, posto que Davi fundava os seus despachos na funda, e não no favor, enfim era vassalo, e Jônatas príncipe. Consta, contudo, que estava a união da parte de Jônatas, e não da parte de Davi. -É verdade expressa do texto: Anima Jonathae conglutinata est animae David (1 Rs. 18, 1). Notai bem. Não diz que a alma de Davi se uniu à alma de Jônatas, senão a alma de Jônatas à alma de Davi. Porque, como Jônatas era o mais nobre, uma vez que estavam unidos, havia de estar a união da sua parte: da parte de Davi estava a fortuna, da parte de Jônatas a união.

Ah! Jônatas de Portugal, se seguirdes todos este generoso exemplo! Bem creio que a causa de se não comporem muitas amizades, e de se não unirem muitas desuniões, é aquela desconfiança ou aquele pundonor de nenhum querer ser o primeiro que concorra para a união. Oh! que errados e que mal-entendidos brios! O mais nobre, o mais ilustre, o mais príncipe, o mais Jônatas, o de sangue mais real, esse há de ser o primeiro que concorra, que procure, que deseje, que solicite, que concerte a união. Quis sicut Deus? Fidalguia endeusada de Portugal; quem como Deus? Havia desunião entre Deus e o homem, e qual foi o que solicitou a união? Não foi o homem, senão Deus. Ele foi o que desceu do céu, ele foi o que cortou pela majestade, ele foi o que abraçou os homens, e o que se lançou a seus pés com estupendo exemplo, só por se unir com eles e os fazer seus amigos. Lembremo-nos que depois que comungamos somos sangue de Deus. Se o sangue de vossos avós fizer alguma repugnância a esta união, o sangue de Deus, que é o mais honrado, vos inclinará e levará logo a ela. Este sangue, com que Cristo nos enobreceu no Sacramento, não só é sangue seu absolutamente, senão sangue seu enquanto derramado: Qui pro vobis et pro multis effundetur [8]. - E para que derramou Cristo este sangue? Só para afogar desuniões e para matar inimizades, e as tirar do mundo: Interficiens inimicitias in semetipso (Ef. 2, 16)-diz S. Paulo que matou Cristo as inimizades em si mesmo. - Os homens matam os inimigos, Cristo matou as inimizades, e matou-as em si mesmo; in semetipso - porque, como as inimizades e os ódios estão em nossos corações, dentro em nós mesmos se hão de matar. Ora, em reverência do sangue de Cristo, que neste ponto cada um de nós mate todas as inimizades no seu coração. Morram, morram as inimizades, morram os ódios, morram as desuniões, e só viva a paz, a amizade, a concórdia, e aquela tão desejada união que Cristo pretendeu entre nós, quando nos enobreceu com seu sangue: Qui bibit meum sanguinem, in me manet.

§ VI

Segunda consideração por que Cristo nos deu a comer seu corpo ou carne: a conveniência. A união e a desunião do universo. As duas uniões do inefável composto de Cristo. A queda da estátua de Nabucodonosor e a causa da ruína dos reinos. Quão fácil é a ruína, quão aparelhada está onde há desunião.

Passando à segunda consideração - que era a da conveniência - digo da mesma maneira que o corpo ou carne com que Cristo nos sustenta no Sacramento, não só é meio para a união que deseja entre nós, senão motivo igualmente forte, e ainda mais eficaz para nos unir: Qui manducat meam carnem, in me manet. - E por quê? Porque não há coisa mais alheia da conservação, nem mais contrária a ela que a desunião. Quem se não pode sustentar nem conservar desunido, por que se não há de unir? Deus me dê sua graça para declarar este ponto como eu o entendo e como ela há mister, pois não é só de muita, senão de toda a importância.

As obras da natureza e as da arte, todas se conservam e permanecem na união, e todas na desunião se desfazem, se destroem e se acabam. Esta máquina tão bem composta do mundo, com ser obra de braço onipotente, que é o que a sustenta e a conserva, senão a perpétua e constante união de suas partes? Não vemos o cuidado vigilantíssimo com que a natureza anda sempre em vela sobre este ponto principal de sua conservação, violentando-se a si mesma - se é necessário - e fazendo subir os corpos pesados e descer os leves, só para não impedir os danos daquela desunião, a que os filósofos chamam vácuo? Seis mil anos há que dura o universo, sem se sentir nem ver nele o menor sinal de desunião, e por isso dura tanto; e quando finalmente chegar seu fim, a falta ou a rotura desta união será o último paroxismo de que há de morrer o mundo. Esse foi o pensamento profundo do grão príncipe da Igreja, S. Pedro, o qual chamou ao fim do mundo desunião do universo; e, para dizer que todas as coisas se hão de acabar, disse que todas se hão de desunir: Cum igitur haec omnia dissolvenda sint[9]. - Toda a vida - ainda das coisas que não tenham vida - não é mais que uma união. Uma união de pedras é edifício, uma união de tábuas é navio, uma união de homens é exército. E sem esta união tudo perde o nome, e mais o ser. O edifício sem união é ruína, o navio sem união é naufrágio, o exército sem união é despojo. Até o homem - cuja vida consiste na união de alma e corpo - com união é homem, sem união é cadáver. A maior obra da Sabedoria e da onipotência divina, que foi o composto inefável de Cristo - consistia em duas uniões: uma união entre o corpo e a alma, e outra união entre a humanidade e o Verbo. Quando perdeu a primeira união deixou de ser homem; se perdera a segunda, deixara de ser Deus. Oh! Deus! Oh! homens! Que a vossa união vos há de conservar, e só a vossa desunião os pode perder.

Perdeu-se a nossa estátua de Nabuco - que bem lhe podemos chamar nossa, pois nos servimos tanto dela. - Vejamos quem a perdeu. Estava ela em pé, robusta, ufana e soberba, prometendo-se duração eterna na riqueza, na formosura e na dureza dos metais de que era composta; arranca-se uma pedra do monte, tocalhe nos pés de repente, e no mesmo ponto caiu a estátua, desapareceram os metais, e não ficaram dela e deles mais que o lugar e as cinzas. Notável caso, mas mais notável o tiro! Sei eu que a pedra de Davi foi direita à cabeça do gigante. Pois, se a pedra do gigante tirou à cabeça, a da estátua, por que tira aos pés? Não vos lembra que nos pés da estátua estava a desunião entre o barro e o ferro? Pois, por isso o tiro se encaminhou aos pés, e não a outra parte, porque onde havia desunião ali estava certa a ruína. Nos corpos inteiros e unidos, como era o gigante, o melhor tiro é a cabeça; mas em corpos onde há desunião, como era o da estátua, o mais seguro tiro é ao desunido, ainda que sejam pés.

E adverti que não são necessárias muitas desuniões para uma total ruína. Unido estava o ouro, unida estava a prata, unido estava o bronze, e ainda o mesmo ferro em parte estava unido; mas bastou uma só desunião para dar contudo em terra. Faça cada um muito escrúpulo da sua desunião, porque pode ser que dela dependa ou a ruína ou a conservação da estátua. Cuida a providência política que os reinos se conservam com ferro e com bronze, e sobretudo com ouro e com prata, e é engano. O que sustenta e conserva os reinos é a união. Muito ferro e muito bronze, muito ouro e muita prata tinha a estátua; mas, porque lhe faltou a união, não lhe serviram de mais todos esses metais bélicos e ricos que de acrescentar maior peso para a caída. Ainda não tenho dito a maior admiração. O ouro e a cabeça significava o império dos Assírios; a prata, o peito e os braços significavam o Império dos Persas; o bronze, da cintura até o joelho significava o Império dos Gregos; o ferro do joelho até os pés significava o Império dos Romanos; e bastou uma só desunião para derrubar e desfazer quatro impérios, dos mais valentes, dos mais poderosos, dos mais sábios e dos mais bem governados homens do mundo. Se quatro impérios, com uma só desunião se arruinam e acabam, um reino, e não muito grande, dividido em muitas desuniões, que se pode temer dele?

Ainda falta que ponderar, e é a coroa de tudo. A pedra que fez aquele tiro fatal, com que de um golpe obrou tamanho estrago, que mão e que impulso foi o que a tirou? Oh caso estupendo e inaudito! Abscissus est lapis sine manibus (Dan. 2, 45): Ninguém pôs a mão na pedra; ela per si se despegou, caiu, e rodou do monte, e desfez o que desfez. Aqui vereis quão fácil é a ruína, e quão aparelhada está onde há desunião. Para derrubar um reino, e muitos reinos, onde há desunião não são necessárias batarias, não são necessários canhões, não são necessários trabucos, não são necessárias balas nem pólvora: basta uma pedra: lapis. - Para derrubar um reino, e muitos reinos, onde falta união não são necessários exércitos, não são necessários cavalos, não são necessários homens, nem um homem, nem um braço, nem uma mão: Sine manibus. - Nós temos muito boas mãos, e o sabem muito bem nossos competidores; mas, se não tivermos união, nem eles haverão mister mãos para nós, nem a nós nos hão de valer as nossas.

§ VII

A união e a conservação do Reino de Portugal. Na construção da Torre de Babel, se era totalmente impossível, e se tantos impossíveis envolviam aquela insana empresa, como supõe e afirma Deus que seus fabricadores a haviam de continuar e levar ao cabo?

Pois, se na união está o remédio, e na desunião a ruína, por que nos não aconselharemos com a nossa mesma desunião, para nos unirmos? Será bem que nos demos nós as batalhas, para que nossos inimigos logrem as vitórias? Não sabemos que a nossa desunião é a maior vitória que lhes podemos dar, como a nossa união a maior guerra que lhes podemos fazer?Pax nostra bellum illi est - disse lá Tertuliano. Que importa que nos cansemos em fechar as cidades de muros, se a brecha está aberta nos corações? Que importa - outra vez - que fortifiquemos e muremos as cidades, se dentro dos muros e dentro da maior cidade temos a mais arriscada guerra e o mais perigoso inimigo? Não basta que, para conquistar Portugal, convoque Castela todas as nações: também nós nos havemos de armar contra nós? Que todas as nações de Europa se alistem contra Portugal, oh! que glória! Mas que na guerra de Portugal se vejam também portugueses contra portugueses, oh! que desgraça, por lhe não chamar outro nome! Que agravo - pergunto - e que ofensa nos fez Portugal, ou que nos tem desmerecido a Pátria? Será justo que possa mais conosco o ódio particular que o amor público? Será justo que, por levantar uma casa e abaixar outra, queiramos assolar todo o reino? Pode haver resolução mais mal entendida que lançar a pique o navio em que vou embarcado, só por que meu inimigo se afogue? Mas vamos a esse inimigo. Já que esse inimigo e esse ódio é tão irreconciliável, por que não matais esse inimigo? Responde vossa bizarria que o não matais porque não há causas para tanto. Agora vos convenci. Basta que a vossa desunião não tem causas para matar um homem, e tem causas para matar um reino?

Pois, estai certos que só a vossa desunião o pode matar. Omne regnum in seipsum divisum desolabitur (Lc. 11, 17): Todo o reino desunido será assolado. - E se alguém cuida que, sendo assolado o reino, pode a sua casa ficar em pé, engana-se muito enganado. E se não, veja o que continua Cristo: Et domus supra domum cadet (ibid.): O reino dividido sorri assolado, e umas casas cairão sobre outras casas. - Notai bem. Se umas casas hão de cair sobre as outras casas, segue-se que as mais altas hão de cair primeiro. Das casas mais humildes será a opressão, mas das mais altas há de ser a ruína. Pois, se a ruína universal do reino, se a particular da casa de cada um não tem outro reparo, nem outra resistência, nem outra conservação segura, mais que a da nossa união, por que nos não uniremos todos? Oh! quem pudera examinar este porquê! Os porquês desta desunião nenhuma coisa valem, nenhuma coisa montam, nenhuma coisa pesam, e as conseqüências dela montam tudo, pesam tudo, e levam tudo. Senhor, para vós só apelo. Espero na eficácia daquele divino mistério, Sacramento de amor e de união, que de tal maneira há de assistir à força destas razões, e com tal força há de unir a resistência de nossas vontades, domando a rebeldia de nossos ânimos, quebrando a dureza de nossos afetos, e alumiando a cegueira e vaidade de nossos juízos, que hoje - neste grande dia - havemos de sair de sua presença todos unidos com Cristo e todos unidos entre nós. Àquele Senhor havemos de dever nossa conservação, nossa defensa e nossa vitória; porque a ele havemos de dever nossa união: In me manes, et ego in illo.

Mas por que não pareça a algum menos confiado que prometo e fio dos poderes da união mais do que dela se deve esperar, quero conceder liberalmente tudo o que presumem contra nossa conservação, assim os inimigos como os neutrais, uns discorrendo com a vontade, outros com o entendimento. Não meto neste número os nossos, porque desses nenhum há que receie ou suspeite que podemos ser vencidos ou conquistados. E verdadeiramente eles têm razão na experiência, na qual se reforça ainda mais o meu argumento. Se mal unidos fizemos tanto, bem unidos que faremos? Se mal unidos temos sido tão duros e tão impenetráveis, bem unidos e inteiros, quem nos romperá ou quem nos resistirá? Mas tomemos aos que menos nos conhecem, e discorrem de fora. Quando Portugal tão inopinadamente se restituiu à sua liberdade, fizeram juízo sobre nossa conservação todos os políticos da Europa: uns a julgaram por arriscada e duvidosa, outros - e não eram poucos - por temerária e impossível. Assim o brasonam ainda hoje, e o espalham pelo mundo nossos competidores, e, segundo a fé desta voz, ou deste sonido, obram também ainda em nosso despeito os adoradores daquela potência. Já os puderam ter desenganado vinte e dois anos de conservação, e vinte e dois de vitórias. Se medem a monarquia, de que nos separamos, como gigante, contemlhe bem os golpes da cabeça, e verão que Portugal é Davi. Mas quando a nossa conservação - como eles cuidam, ou dizem sem o cuidar - fora empresa verdadeiramente impossível, ainda digo e tomo a dizer que na nossa união estava segura, porque ela faria possível esse impossível, e ainda outros maiores.

Antes que os homens depois do dilúvio se dividissem a povoar o mundo, tomaram uma resolução notável, e, se a não referira a Escritura, totalmente incrível. Venite, faciamus nobis civitatem et turrim, cujus culmen pertigat ad caelum, et celebremus nomem nostrum, antequam dividamur (Gên. 11, 4): Antes que nos dividamos - diziam - deixemos célebre o nosso nome, e fabriquemos uma cidade e uma torre, cuja altura chegue ao céu, e cujas ameias vão topetar com as estrelas. - Não sei se reparastes no termo antequam dividamur: antes que nos dividamos. - Bem sabiam eles já - com saberem por outra via tão pouco - que depois de divididos não podiam fazer coisa grande, nem merecedora de nome. Tomada à resolução, mãos à obra, começaram a edificar a torre. O que agora se segue parece a fábula dos filhos da terra, e a guerra dos gigantes com Júpiter. Diz o texto que desceu Deus a ver o que intentavam os filhos de Adão, e que disse - devia ser aos anjos que o acompanhavam - estas palavras: Unus est populus, et unum labium omnibus, nec desistent a cogitationibus suis, donec eas opere compleant: Venite igitur, descendamus, et confundamus ibi linguam eorum (ibid. 6 s): Estes homens - diz Deus - estão unidos, e todos falam pela mesma língua: não hão de desistir do que começaram, até não levarem a obra ao cabo, pelo que importa dividi-los e confundir-lhes as línguas: vamos logo a fazê-lo assim. - Oh! poderes, oh! prodígios da união! Vede bem que coisa são homens unidos. De maneira que se fora possível alguma força ou potência do mundo que desse receio ou cuidado a Deus, essa força, e esse poder, havia de ser o de homens unidos; e se dentro dos muros de diamante do céu se pudessem temer assaltos e combates de fora, só de homens unidos, e que falassem todos pela mesma língua, se puderam temer. E, finalmente, querendo o mesmo Deus estorvar e resistir intentos de homens unidos, não tomou outro meio, nem teve outra traça mais pronta com que o fazer, senão com os desunir. Mas vamos ao ponto rijo da nossa suposição.

Levantar esta torre era empresa por muitos títulos impossível: impossível pelo sítio, impossível pela matéria, impossível pela condução, e por outras mil coisas, impossível. Era impossível pelo sítio, porque em toda a redondeza do mundo não havia campo ou terreno capaz em que lançar os fundamentos a tão enorme edifício. Era impossível pela matéria, porque todo o globo da terra, ainda que se minasse até o centro, não podia ministrar materiais bastantes para a fábrica de tão imensas muralhas. Era impossível pela condução, porque em muitos centos e em muitos milhares de anos não chegaria a se guindar uma pedra a tão inacessível altura. E, dado que fosse crescendo e subindo a máquina da torre, em tocando a segunda região do ar, a todos havia de matar o agudíssimo frio, e o mesmo ar, que em seu puro elemento é incapaz da respiração. Finalmente, quando pudessem escapar deste inimigo, lá acima os estava esperando a esfera do fogo, ou o fogo sem esfera, em que todos sem remédio haviam de morrer abrasados. Pois, se era totalmente impossível, ou se tantos impossíveis envolviam aquela insana empresa, como supõe e afirma Deus que seus fabricadores a haviam de continuar e levar ao cabo: Nec desistent a cogitationibus suis, donec eas opere compleant? - Era obra impossível, e haviam de fazer? Era impossível, e haviam de acabar? Sim, que tudo isso podem homens unidos. O que é impossível à arte e à natureza é possível à união. Valorosos portugueses, já que com tanta resolução e ventura começastes a edificar esta torre, não permitais que a vossa desunião a faça Babel. A nossa empresa é grande, foi arriscada, será trabalhosa, mas não é impossível; porém, quando fora uma e muitas vezes impossível, haja em nós união, que todos esses impossíveis ficarão vencidos.

§ VIII

A razão vulgar e famosa em que se funda a esperança dos inimigos de Portugal: a desigualdade da competência. As vitórias dos portugueses nunca se alcançaram por aritmética. Como a união de dois unidos faz dez? Para que a união faça de poucos muitos, é necessário que de muitos e de todos faça primeiro um só. A união que Cristo sacramentado pretende de nós. Por que Cristo, falando do maná, fala de muitos, e, falando da Comunhão, fala de um só?

E por que não fique sem resposta a razão vulgar e famosa em que se funda a esperança de nossos êmulos, quero satisfazê-la. Todo o fundamento de sua opinião, e todo o Aquiles da sua teima, é a desigualdade da nossa competência. Contam mais léguas nas suas terras, contam mais cidades nos seus reinos, contam e fazem muito por contar mais soldados nos seus exércitos, e dizem que a fortuna e a vitória sempre se põe da parte dos mais mosqueteiros, posto que ela não o faz assim, ao menos nos nossos campos. As vitórias de portugueses nunca se alcançaram por aritmética: sempre vencemos poucos a muitos. Mas, quando às nossas batalhas lhes importara ser a tantos por tantos, com a vantagem só da nossa união podemos igualar e exceder largamente o número de nossos inimigos. Desunidos somos menos, unidos seremos muito mais. E por quê? Porque assim como é natureza da união de muitos fazer um, assim é milagre da união de poucos fazer muitos.

No capítulo trinta e dois do Deuteronômio promete Deus assistir poderosamente na guerra aos que o servirem, e, explicando o excesso deste favor e desta assistência, diz assim: Quomodo persequatur unus mille, et duo fugent decem millia[10]? -Tal será o ânimo que infundirei em vossos corações, e o esforço com que armarei vossos braços, que um de vós vença e ponha em fugida a mil de seus inimigos, e dois a dez mil. - Bem entendo eu a grandeza deste favor, mas a proporção desta conta não a entendo. Se um há de vencer a mil, segue-se que dois hão de vencer a dois mil; mas Deus não diz assim, senão um a mil e dois a dez mil: Unus mille, et duo decem millia. - Pois, se um vence a mil, dois por que não hão de vencer a dois mil, senão a dez mil? Porque essa é a vantagem e a maravilha da união. Ora vede. Em um há unidade, mas não pode haver união; em dois, que são duas unidades, já pode haver união; e vai tanto de haver união e não haver união entre os homens, que um homem antes da união é um, e dois homens depois da união são dez. E como dois, por virtude e benefício da união, se multiplicam em dez, bem se segue que se um vence a mil, dois hão de vencer a dez mil: Unus mille, et duo decem millia. - De sorte que, para sermos mais do que somos - quando assim nos importara - não é necessário multiplicar homens, basta unir corações. Se a união de dois unidos faz dez, e de dez, pela mesma conta, duzentos, e de duzentos dois mil, sendo tantos mil os que temos, e estando unidos, vede se somos inconquistáveis a toda Espanha, a toda Europa, e ao mundo todo.

Finalmente, atando o fim de todo o discurso com o princípio, acabo com dizer ou lembrar que esta última maravilha da união supõe necessariamente a primeira, assim como as propriedades supõem a natureza. A natureza da união é unir, a propriedade multiplicar, e para que a união faça de poucos muitos, é necessário que de muitos e de todos faça primeiro um só. Quando el-rei Saul convocou todas suas gentes para a defensa da cidade de Jabés, cercada pelos amonitas, ajuntaram-se de Israel e Judá trezentos e trinta mil homens. E nota o texto sagrado que acudiram todos tão unidos como se fora um só: Egressi sunt quasi vir unus, fueruntque filiorum Israel trecenta millia, virorum autem Juda triginta millia[11].- Não somos nem havemos mister trezentos mil homens para a defensa do nosso reino, mas se formos unidos como um só: quasi vir unus - seremos muitos mais do que somos e muitos mais do que havemos mister. E esta é com toda a propriedade a união que Cristo sacramentado pretende de nós, e a que obram nos corações, que lhe não resistem, os poderes soberanos daquele sacrossanto mistério. Não só quer Cristo de nós qualquer união, senão uma união tão estreita, tão forte, tão inteira e tão unida que de união passe a ser unidade. Assim o estão clamando as primeiras palavras do nosso texto, ou a primeira palavra dele, que só nos restava por ponderar: Qui manducat. - Reparai que não diz Cristo: aqueles que me comem - senão: aquele que come: qui manducat; fala de singular, e não de plural, fala de um, e não de muitos, porque o fim por que Cristo se dá a comungar a todos é para que todos os que o comungarem se unam em um só. Falando do maná, fala de muitos: Non sicut manducaverunt paires vestri manna[12] - porque o maná, depois de o comerem muitos, ainda ficavam muitos: manducaverunt; mas o corpo de Cristo não é assim, porque depois de o comerem muitos, já não ficam nem devem ficar muitos, senão um só: Qui manducat. - O maná que comiam os filhos de Israel não era um só em todos, senão diverso para cada um deles; e como os manás comidos eram muitos, ficavam também muitos os que o comiam. Davalhes o maná os sabores, porque os tinha, mas não lhes dava nem lhes podia dar a unidade, porque a não tinha. Porém, o corpo de Cristo, a quem comungamos, como é um só e o mesmo em todos os que o comungam, a mesma unidade que tem e conserva comido comunica aos que o comem. E assim todos, por mais e mais que sejam, ficam não já muitos, senão um só: Qui manducat.

§ IX

Conclusão e oração.

Com esta união - nobreza ilustríssima de Portugal - com esta união tão unida e tão uma, ficarão gloriosamente satisfeitas as justas queixas daquele segundo, posto que não pretendido agravo. E o mesmo agravado Senhor ficará tão servido e tão obrigado enquanto o comungamos nesta mesa, quão satisfeito e quão agradecido nos está enquanto o veneramos naquele altar. Com esta união tão unida e tão uma, ficaremos todos, não só unidos, senão aunados com Cristo, entre nós e conosco: unidos pela graça: In me manes, et ego in illo - e aunados pela unidade: Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem.

E vós Senhor - que não quero exortar aos homens, senão orar-vos e pedir-vos a vós - vós, Senhor, que nesse trono ardente de vosso mais subido amor, todo sois unidade e todo união; vós, que em todas as vossas obras mostrastes a eficácia e suavidade de vossa onipotência em unir os extremos de maior dificuldade e resistência; vós, que nas obras da criação unistes extremos tão opostos, como corpo e espírito; vós que nas obras da redenção unistes extremos tão distantes, como homem e Deus; vós, que nas obras da justificação unistes extremos tão desproporcionados, como natureza e graça, com a graça, com a eficácia e com a suavidade desse onipotente mistério, vencei as repugnâncias de nossos afetos, abrandai a dureza de nossos corações, dobrai a resistência de nossas vontades, e quebrantai a rebeldia de nossos vãos e mal-entendidos juízos. Domai, abatei, sujeitai, e ponde rendido a vossos pés tudo aquilo que pode impedir a verdadeira concórdia e união deste reino todo vosso, para que unidos o defendamos, unidos o conservemos, unidos logremos nele os aumentos e felicidades que lhe tendes prometido, e unidos, finalmente, vos sirvamos e recebamos de tal modo nesse soberano mistério, que, conservando sempre inteira e perfeita unidade em vós e conosco, na terra perpetuamente vos louvemos em união de graça, e no céu eternamente vos gozemos em união de glória. Ad quam, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] O que come a minha carne, e bebe o meu sangue, esse fica em mim, e eu nele (Jô. 6,57).

[2] Nós Todos somos um só corpo, nós que participamos de um mesmo pão – e de um mesmo cálice ( 1 Cor.10,17).

[3] Se somos muitos, nele contudo somos um, pois participantes de um só pão (S.Cirilo).

[4] Pois se nós que recebemos o corpo de Cristo somos o corpo  de Cristo, devemos nos unir não só à cabeça pelo amor, mas também aos membros (S. Agost.).

[5] Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no com as cobras (Ti. 1,16).

[6] Tomando todos estes animais, partiu-os pelo meio, mas não dividiu as aves (Gen. 15, 10).

[7] Como o ferro se não pode ligar com o barro (Dan. 2, 43).

[8] Que será derramado – por vós – por muitos (Mt. 26, 28).

[9] Como, pois, todas estas coisas hajam de ser desfeitas (2 Pdr. 3,11).

[10] Como pode ser que um persiga a mil, e dois façam fugir a dez mil (Dt. 32, 30).

[11] Saíram como se fossem um só homem, e acharam-se trezentos mil homens de Israel , e trinta mil homens da tribo de Judá (1 Rs.11, 7 s).

[12] Não como vossos pais , que comeram o maná (Jô.6, 59).