Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da Publicação do Jubileu, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. VIII Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DA PUBLICAÇÃO DO JUBILEU,

Na Dominga Terceira post Epiphaniam, Em S. Luís do Maranhão, Ano de 1654.

Extendens Jesus manum suam, tetigit eum, dicens: dolo, mundare. Et confestim mundata est lepra ejus[1].

§I

Assunto do sermão: Publicar e declarar os benefícios concedidos pela bula do Papa Inocêncio X. O Evangelho de Cristo declarado pelo Evangelho de Roma. Por que pôs a Sabedoria divina encarnada o nome de boa nova à sua lei?

Publicar e declarar a todos o que nos diz e concede a Santidade de Inocêncio X, nosso senhor, na bula que vedes com os selos apostólicos pendentes, pendente também ela do meio daquele altar, assim como é o motivo do presente concurso, assim há de ser o assunto de todo o sermão. Esta é sem novidade a obrigação deste dia, mas o desempenho da mesma obrigação não será sem grande novidade. Nos outros sermões o expositor e intérprete do texto evangélico é o pregador; neste, porém — com encontro tão notável, que não parece caso, senão providência — o expositor daquele texto, que também é sagrado, não há de ser o pregador, senão o mesmo Evangelho que hoje nos propõe a Igreja. Será isto — se bem se considera, o que havemos de ouvir: declarar um Evangelho com outro Evangelho. Que quer dizer Evangelho? Quer dizer boa nova: Quam pulchri pedes evangelizantium pacem, evangelizantium bona[2]! — E por que pôs a Sabedoria divina encarnada, por que pôs Cristo legislador e redentor nosso, este nome de boa nova à sua lei? Será a causa por que só a lei de Cristo e da graça nos anuncia, e promete, e dá o céu, o que antes dela não podia nem a lei da natureza, nem a lei escrita? Esta é a primeira e principal razão. Mas a segunda, e não menos principal, é porque sendo esta boa nova tão boa, só ela é boa nova para todos: Praedicate Evangelium omni creaturaet[3]. — As boas novas deste mundo, por mais felizes e alegres que sejam, sempre trazem consigo alguma mistura de pesar e tristeza. São como as boas novas das batalhas e vitórias, as quais posto que universalmente se festejam com repiques e aplausos públicos, a muitas casas particulares cobrem de lutos, e se recebem com lágrimas. Esta é a diferença com que o anjo no nascimento de Cristo deu a boa nova aos pastores: Evangelizo vobis gaudium magnum, quod erit omni populo[4]. — Nova alegre, e alegria grande, mas não só para vós, senão para todos: Omni populo. —Tal é a boa nova que naquelas letras de Roma havemos de ouvir hoje, porque o sobrescrito delas diz que vêm para todos: Omnibus Christi fidelibus. — Nenhuma coisa mais se deseja neste novo mundo, em que vivemos, que as novas que se esperam do outro de ano em ano. Mas chegam cá tão várias e incertas, quantas são as cartas que as referem. Não há novas dadas por homens que sejam Evangelho. Estas, porém, que havemos de ouvir, como dizia, não são um só Evangelho, senão dois Evangelhos: um enviado de Jerusalém, por carta de Cristo, e outro de Roma, por carta do Vigário do mesmo Cristo. Evangelium est Dei epistola[5] — dizia o grande Antônio, como refere Santo Atanásio. Um e outro Evangelho, e uma e outra carta temos naquele altar. E para que o alvoroço de ouvir estas boas novas não pare só em alvoroço, mas passe dos ouvidos ao coração, e nos animemos a conseguir os grandes bens e graças que nelas se nos prometem e oferecem, peçamos ao divino Espírito nos assista com a sua. Ave Maria.

§II

A breve história do Evangelho: a cura do leproso, declaração e comento do jubileu do Sumo Pontífice. A lepra, contágio do pecado que desde Adão se derivou a todos seus descendentes. A confissão do leproso, ato de fé católica com que reconheceu em Cristo e em seus sucessores o poder de conceder indulgências e perdoar pecados: As palhas com que Lutero acendeu o fogo do incêndio fatal que abrasou e tisnou tantas nações e províncias.

Extendens Jesus manum suam, tetigit eum, dicens: dolo, mundare. Et confestim mundata est lepra ejus (Mt. 8, 3).

Conta o evangelista S. Mateus — cujo é o Evangelho que hoje nos propõe a Igreja — que apareceu diante de Cristo, Redentor nosso, um leproso, o qual, prostrado de joelhos, lhe disse: — Senhor, se vós quiserdes, eu sei que me podeis sarar e alimpar desta enfermidade tão asquerosa. Estendeu o Senhor a mão, dizendo: — Quero, sê limpo — e no mesmo ponto ficou limpo e são da lepra. — O que agora hás de fazer — continua o Senhor — é que, guardando segredo a este milagre, vás logo mostrar-te ao sacerdote, e lhe dês a sua oferta, conforme a lei. Esta é a breve história do Evangelho, o qual na consideração de suas circunstâncias, como prometi, será a declaração e comento do presente jubileu do Sumo Pontífice, e do que nós devemos fazer para ganhar os grandes tesouros das graças que nele se contêm. Vamos ponderando o texto parte por parte.

Supondo primeiramente que este leproso é cada um de nós, e somos todos enquanto pecadores, e supondo que a lepra, mal contagioso, é o contágio do pecado, que desde Adão se derivou a todos seus descendentes, em dizer o leproso: Si vis, potes me mundare (Mt. 8, 2): que o Senhor o podia sarar e alimpar — conforme a frase de Davi: A peccatis meis munda me[6]fez um ato de fé católica em que confessou à pessoa de Cristo, e nela à de seus sucessores, os Sumos Pontífices, o poder de conceder indulgência e perdoar pecados, que os hereges tão cega, como ignorantemente lhes negam. Funda-se este soberano poder naquelas palavras de Cristo a S. Pedro: Quidquid solveris super terram, erit solutum et in caelis (Mt. 16, 19): Tudo o que desatares na terra, será desatado no céu. — Os pecados são umas cadeias ou cordas com que estamos atados, como diz o profeta: Funes peccatorum circumplexi sunt me[7]. — E destas ataduras só nos podem desatar, não os reis, nem os imperadores, senão unicamente os sacerdotes. Quando Cristo houve de entrar triunfante em Jerusalém naqueles dois animais humildes, que foram o carro triunfante da sua modéstia e mansidão, disse aos apóstolos que os achariam atados, e que eles os desatassem: Solvite, et adducite mihi[8]porque só os apóstolos e seus sucessores, que são os sacerdotes, podem desatar os que assim estão atados — diz Santo Ambrósio. No mesmo sentido, quando Lázaro saiu da sepultura amortalhado e atado de pés e mãos, mandou Cristo que o desatassem: Solvite, et smite abire[9] porque só aqueles, a quem o mesmo Senhor dá esta jurisdição e este poder, podem desatar os que estão envoltos e atados nas mortalhas de seus pecados. E quando deu Cristo aos sacerdotes este poder? Quando disse a S. Pedro o que já alegamos. Santo Agostinho: Quod est solvite et smite abire, nisi quae solveritis in terra erunt soluta et in caelo[10]?

E sendo esta verdade tão clara e assentada no Evangelho, não só é miséria grande, senão ridícula, que os mesmos hereges, que dizem crêem o mesmo Evangelho, neguem aos sucessores de S. Pedro e Vigários de Cristo este poder. Para que vejais quão dignos são, não só de lágrimas, mas de riso nesta cegueira os hereges, ouvi uma história verdadeiramente ridícula. No ano de 1517 mandou o Papa Leão X promulgar Jubileu, e larguíssimas indulgências a todos os que concorressem com certa esmola para a guerra contra os turcos e fábrica do templo Vaticano de S. Pedro. E querendo Lutero ser o pregador que publicasse este jubileu e indulgências, o arcebispo de Mogúncia, a quem o Papa cometera a superintendência deste negócio, encomendou a publicação a outro pregador, por hábito e por outras causas seu êmulo. Queixoso e como afrontado Lutero, daqui tomou ocasião para pregar contra as indulgências, chegando por palavra, por escrito e por conclusões públicas, a negar e defender que o Pontífice não tinha poder, nem na Igreja o havia para conceder tais indulgências. — De sorte, maldito apóstata, que porque o arcebispo te negou publicar o Jubileu, tu negas ao Sumo Pontífice o poder concedê-lo? Dize-me, se tu foras o pregador, não havias de fazer grandes panegíricos das indulgências, e empregar toda a tua eloqüência em as persuadir? Claro está: logo, as mesmas indulgências, que, se tu as pregares, eram verdadeiras, por que as não pregaste, são falsas? — Tão ridículos são os fundamentos com que os hereges deixam uma fé, e tomam ou fazem outra. E estas foram as palhas com que se acendeu o fogo daquele incêndio fatal, que abrasou Alemanha, Suécia, Inglaterra, Holanda, e com o fumo tisnou tantas nações e províncias, para que demos graças a Deus, os portugueses, de nem esta, nem outra heresia chegar à nossa. Escolheu-nos Deus para levar a sua fé ao mundo que descobrimos. Levamo-la à África, estendemo-la pela Ásia, trouxemo-la a esta América, e em nenhuma gente bárbara ou política a transplantamos, que não seja da mesma cor que a nossa, obedecendo e adorando o nome do sucessor de S. Pedro, e confessando a verdade de seus poderes. Nós também teremos a nossa lepra, e as nossas lepras, mas o ponto de si vis, potes[11], está tão impresso e constante na nossa fé, que o defenderemos com a vida, e só por esta mesma fé, quando não houvera outras causas, era merecedora a nossa nação de que os Sumos Pontífices lhe concedessem as mesmas indulgências e graças, dizendo: Sicut credidisti, fiat tibi[12].

§III

O milagre de Cristo e os vagares de tempo e dificuldades das observações com que, segundo a lei do Levítico, se procedia a julgar e purificar um leproso. As duas palavras com que Cristo curou a lepra do corpo, e as duas palavras com que o sacerdote cura a lepra da alma. A fealdade do pecado e as excelências de um bom confessor.

Às duas palavras do leproso: Si vis, potes[13]respondeu Cristo com outras duas: dolo, mundares[14]e no mesmo instante fugiu delas e desapareceu a lepra: Et confestim mundata est lepra ejus. — Comparai-me agora o instante deste confestim com os vagares de tempo, e dificuldades das observações com que, segundo a Lei do Levítico, se procedia a julgar e purificar um leproso[15]. Eram muitos e mui exatos os exames; muitas as reclusões de sete dias, encerrado o enfermo, e separado da outra gente; muitas as vistas e revistas do miserável corpo, desde o remoinho da cabeça até às solas dos pés. Queimavam-lhe as roupas, queimavam-lhe as alfaias, picavam-lhe as paredes da casa, e também as purificava o fogo. No último ato da purificação eram tantas e tão miúdas as cerimônias, que até lidas cansam. O miserável, que já não era, mas tinha sido leproso, ou havia de provar que o não era, havia de trazer dois pardais, uma vara de cedro, uma pequena de lã tinta de vermelho, e não uma, senão duas vezes tinta, e a erva chamada hissopo. Atada esta erva e esta lã à vara ou estaca de cedro, prendia-se nela um dos pardais, e, levado ao campo, ali o degolavam sobre água viva, isto é, da que corre das fontes ou rios, e não morta, como a dos lagos. Tomado, pois, o sangue do pardal morto em um vaso de barro, com ele, e com a água sobre que fora degolado, borrifavam ao pardal vivo, e o lançavam a voar. Com o mesmo sangue aguado, ou água ensangüentada, faziam sete asperges. sobre o que se purificava da lepra, o qual, depois de lavar os vestidos e o corpo em água também viva, estava recolhido sete dias, sem poder comunicar com outra pessoa. Acabada esta reclusão, oferecia três cordeiros, um dos quais se sacrificava, e com o sangue lhe ungiam ou tingiam os dedos polegares da mão e do pé direito, e a ponta da orelha também direita. Sobre esta unção faltava ainda outra de óleo, com que o sacerdote, depois de fazer sete asperges ao Tabernáculo, tornava a ungir os dedos dos pés e mãos, e a orelha do que ainda não acabava de estar purificado, e tudo o que sobejava do óleo lhe lançava sobre a cabeça, que era a última cerimônia da purificação.

167 Por tudo isto havia de passar um homem, ainda que fosse rei, como Osias[16], e uma mulher, ainda que fosse, irmã de Moisés e Arão, como Maria,para se purificar da lepra, como se não fosse mais fácil e mais barato deixar-se estar leproso. S. João Crisóstomo pondera muito a diferença dos nossos sacerdotes aos da lei antiga[17], porque aqueles só podiam conhecer e julgar a lepra, mas não a podiam curar, e os nossos sim, sendo mais feia, mais asquerosa, e mais perigosa a lepra que eles curam. Mas eu não pondero esta diferença, senão a semelhança que tem com Cristo no caso em que estamos. Cristo, Senhor nosso, curou aquela lepra com duas palavras: os nossos sacerdotes curam a lepra do pecado com outras duas; as de Cristo foram: dolo, mundare — as do confessor, em que precisamente consiste a cura do pecado, são: Te absolvo. — E se alguém me perguntar quais destas duas palavras são mais milagrosas, se as de Cristo ou as do confessor, não há dúvida que as do confessor, porque as palavras de Cristo curaram a lepra do corpo, as do confessor curam a lepra da alma; e tanto mais feia é a lepra da alma que a do corpo, quanto maior sem comparação é a fealdade do pecado que a da lepra. Reparo na fealdade, porque é a que mais se vê, e a que mais se aborrece. Oh! se Deus nos descobrira e mostrara neste auditório a fealdade de um pecado, ainda dos menos feios! Sabeis vós, e vós — falo particularmente com o gênero feminino — sabeis por que não tendes ao pecado o horror e aborrecimento que o menor deles merece? É porque não conheceis a sua fealdade. Representá-la como verdadeiramente é, não é possível, mas, para que vejais ao menos quanto maior é que a da lepra...

Considerai-me uma cara — que não mereça nome de rosto, nem ainda de monstro- desformissimamente macilenta, seca e escaveirada: a cor verde-negra e funesta; as queixadas sumidas; a testa enrugada; os olhos sem pestanas nem sobrancelhas, e em lugar das meninas, com duas grossas belidas; calva, remelosa, desnarigada; a boca torta, os beiços azuis, os dentes enfrestados, amarelos e podres; a garganta carcomida de alporcas; em lugar de barbas um lobinho que lhe chega até aos peitos, e no meio dele um cancro fervendo em bichos, manando podridão e matéria, não só asqueroso e medonho à vista, mas horrendo, pestilente, e insuportável ao cheiro. Cuidais que tenha dito alguma coisa? Do que verdadeiramente é, nem sombras; mas isto basta para se conhecer que nenhum rosto há coberto de lepra, cuja fealdade não seja muito menos feia que a do pecado.

Agora pergunto: se uma mulher de poucos anos, ou de muitos, se visse ao espelho com semelhante figura, que faria? Que sentiria? Que inventaria? Digam-no as boticas, e os seus venenos, e as penitências insofríveis a que se condenam estas mártires da vaidade, para emendar ou encobrir qualquer defeito. Mas, se no meio deste desgosto, desta desesperação, e deste aborrecimento de si mesmas, se lhes dissesse que havia neste mundo um homem, ainda que fosse nigromante, que podia curar aquela fealdade, e muito mais se a esta promessa se acrescentasse que não só a podia curar, senão convertê-la em tanta formosura e graça, como a de Raquel, que tesouros haveria que não dessem de boa vontade, que tormentos a que se não oferecessem, que impossíveis que não intentassem? Pois este homem, não fingido nem fantástico, senão verdadeiro, este homem que se não há de ir buscar ao cabo do mundo, nem comprar-se com a menor despesa, este homem, que não só há de curar aquela fealdade, mas convertê-la na maior formosura, é o confessor. O confessor é o que pode fazer e faz tudo isto, e não com medicamentos ásperos, ou instrumentos de ferro, senão com duas palavras somente. Assim o diz o Real profeta com outras duas: Confessio et pulchritudo[18]. — Quereis vos livrar da fealdade do pecado, quereis ver restituída e aumentada na vossa alma a formosura da graça? Ponde-vos aos pés do confessor, como o leproso aos pés de Cristo, manifestai a vossa lepra como ele a sua, e no mesmo momento se obrará em vós esta milagrosa mudança. As mais formosas criaturas que Deus criou foram os anjos, e bastou um só pecado para ficarem tão feios como são os demônios. Mas, se esses mesmos demônios se confessarem, tornariam a ser tão anjos e tão formosos como dantes eram. Eles não querem, porque não podem, e os que podem não querem, porque nem conhecem a fealdade do pecado, nem a virtude da confissão: Confessio et pulchritudo.

§ IV

Que razão ou mistério houve nesta cura do leproso para Cristo estender o braço até ele? Os poderes do braço encolhido e os poderes do braço estendido. Os privilégios do Jubileu. Os temerosos efeitos da mão estendida de Deus antigamente. O Jubileu da lei escrita e o Jubileu da lei da graça.

E por que não cuideis que tenho dito muito, tornemos ao nosso texto. Diz o evangelista, que não só pronunciou Cristo aquelas duas palavras tão milagrosas, mas que estendeu a mão até o leproso; Extendens manum suam, tetigit eum. — Esta ação não fazia Cristo, Senhor nosso, em outros muitos milagres, bastando só a sua divina palavra, ou que os enfermos lhe tocassem as vestiduras sagradas, para que ficassem subitamente sãos: Quia virtus de illo exibat, et sanabat omnes[19]. — Que razão houve logo, ou que mistério nesta cura do leproso, para Cristo estender o braço até ele? A razão e o mistério foi, como já notamos com S. João Crisóstomo, porque neste milagre foram significados os poderes que o mesmo Senhor por si ou por seu Vigário, o Sumo Pontífice, comunica aos sacerdotes da lei da graça. Todos os poderes do sacerdote são recebidos e comunicados pela mão de Cristo; mas esta mão, quando as comunica, ou é encolhendo o braço, ou estendendo-o: os poderes do braço encolhido são os ordinários e limitados, os do braço estendido são os extraordinários, e sem limite; e tais são os que o sacerdote recebe e exercita em virtude do Jubileu.

Nos outros dias chegais aos pés do confessor, absolve-vos dos vossos pecados quanto à culpa, mas não de toda a pena merecida por eles; porém hoje, por virtude deste jubileu pleníssimo, está Cristo com o braço tão estendido, nos poderes que concede ao confessor, que não só vos absolve de todas as culpas, senão juntamente de todas as penas temporais e eternas, e fica o confessado tão inocente e tão puro como se naquela hora, não digo nascera, mas saíra da água do batismo. Nos outros dias podeis-vos confessar, se sois leigo, ao confessor aprovado pelo vosso bispo, ou seu vigário, e, se sois religiosos, ao confessor aprovado pelo vosso prelado, e não a outro; porém hoje, por virtude do Jubileu, o secular, o eclesiástico, o religioso, pode eleger o confessor que quiser, e com quem mais se consolar, ou de dentro ou de fora da religião, contanto que na mesma parte, ou em outra, fosse aprovado. Nos outros dias pode o confessor absolver dos pecados ordinários, e que não tenham reservação; mas dos pecados reservados não pode, porque não tem jurisdição para isso; porém hoje, por virtude do Jubileu, não só vos pode absolver de todos os pecados, por graves e enormes que sejam, mas também de todos os reservados, ou sejam reservados ao bispo, ou reservados ao Papa, e ainda de todos os casos da Bula da Ceia. Nos outros dias pode o confessor absolver dos pecados, mas não das censuras; porém hoje, por virtude do Jubileu, pode também absolver de todas as excomunhões, suspensões e interditos, e só onde houver parte, satisfeita primeiro ela, ou com promessa segura de se satisfazer. Nos outros dias pode o confessor absolver dos pecados contra os votos, mas não de todos, porque dos votos essenciais da religião não pode, como também não pode da obrigação dos mesmos votos, que sempre ficam em seu vigor; porém hoje, por virtude do mesmo Jubileu, não só pode absolver de todos os pecados contra os votos, mas pode comutar os mesmos votos em outras obras pias, exceto somente o voto da castidade e religião, o que se entende; se não forem penais — isto é, impostos pelo mesmo penitente em pena de alguma promessa, se a quebrarem — porque na tal circunstância também os poderá comutar. Tão larga, tão aberta, tão estendida está hoje a mão de Cristo: Extendens manum suam.

Oh! Jubileu da lei da graça! Oh! mão estendida de Deus! Que diferente vos vejo hoje, e que menos estimada por mal entendida dos cristãos esta mesma diferença! Ouvi como Deus estendia a sua mão antigamente. O demônio, para oprimir e destruir a Jó, pediu a Deus que estendesse um pouco a sua mão sobre ele: Extende paululum manum tuam[20]. — O mesmo Deus, para castigar e assolar o Egito, diz que estenderia a sua mão: Extendam manum meam, et percutiam Aegyptum[21]. O profeta Isaías, para declarar a ira e vingança de Deus contra os idólatras, sem se mover a perdoar, nem usar de misericórdia com eles, repete uma e muitas vezes que ainda a mão de Deus estava estendida: Adhuc manus ejus extenta, adhuc manus ejus extenta[22]. — Estes eram os temerosos efeitos, e esta a mão estendida de Deus antigamente. Porém, depois que ele estendeu as mãos na cruz, e nelas se abriram aquelas fontes de sangue, já da sua mão estendida não saem, nem podem manar rigores e castigos contra nossos pecados, senão perdões, indulgências, graças, misericórdias, como as do presente Jubileu. Antigamente também de cinqüenta em cinqüenta anos concedia Deus um Jubileu, mas que Jubileu? Quitavam-se nele as dívidas de uns homens a outros, mas as que deviam a Deus não se quitavam. Os escravos restituíam-se à sua natural liberdade, mas do cativeiro do pecado não se libertavam as almas. As herdades tomavam a seus primeiros possuidores, mas da herdade, ou herança do céu, não se fazia memória, nem se lhe sabia o nome. Não assim o nosso Jubileu. Por ele as dívidas que devemos a Deus, que se não pagam senão com pena eterna, nos são perdoadas todas; por ele do cativeiro do pecado, muito maior mal que essa mesma eternidade de penas, ficamos absolutos e livres; por ele, com tanto direito à coroa e reino do céu, que, se nós mesmos o não quisermos perder, sem dúvida e incerteza alguma o iremos gozar, e seremos bem-aventurados eternamente.

§V

Os privilégios do Jubileu comparados com a mesma lei da graça. O segredo imposto por Cristo ao leproso e o segredo da Confissão. Os rigores da antiga penitência pública. O segredo do Juízo universal. Judas e o segredo confiado por Cristo a seus apóstolos antes de sua Paixão.

Mas porque os privilégios deste Jubileu, ainda comparados com a mesma lei da graça em outros tempos, têm uma diferença muito notável, que reservou para os nossos a misericórdia e piedade divina, continuemos a ponderação do nosso texto, em que não há palavra vazia ou redundante, senão cheias todas de mistério sobre mistério.

Purificado o leproso, a primeira coisa que lhe encarregou o Senhor foi o segredo, mandando-lhe que a ninguém dissesse o que entre ambos tinha passado: Et ait illi Jesus: Vide, nemini dixeris[23]. — E este total segredo de quanto passa entre o confessor, que representa a pessoa de Cristo, e entre o confessado, que representa a do leproso, é uma graça e diferença notável, advertida de poucos, e ignorada de quase todos, a qual grandemente nos facilita hoje a salvação, e é digna e digníssima de que todos a advirtam e saibam. O juízo que por virtude do Jubileu se faz no tribunal da confissão é tão universal como o do dia do Juízo, e não menos da parte do juiz quanto aos poderes que da parte do réu quanto às culpas, porque, assim como no Juízo do último dia se hão de julgar todas as culpas, as de pensamentos, as de palavra e as de obra, assim no tribunal da confissão se julgam todas. Mas nesta mesma igualdade ou semelhança se deve considerar uma grande vantagem de conveniência e graça. Lá uns hão de sair absolutos, outros condenados; cá todos saem absolutos; lá todas as culpas e os castigos hão de ser públicos: cá as culpas, e sem castigo, todas são secretas. E neste segredo inviolável consiste dentro da mesma Igreja e lei da graça a maior graça e privilégio do tempo presente comparado com o antigo, e da maior facilidade da salvação.

Ouvi e notai com grande atenção. No tempo da primitiva Igreja — costume que durou nela até o século undécimo, isto é, por espaço de mil e cem anos — castigavam-se os pecados dos cristãos com penitências públicas. E que penitências, e por quanto tempo? É coisa que faz tremer. Por um pecado contra o sexto mandamento se prescrevem nos cânones de S. Basílio quinze anos de penitência. Estes anos se dividiam em três partes, com diferentes nomes dos mesmos penitentes. Nos primeiros cinco se chamavam prostrados, nos segundos ouvintes, nos terceiros e últimos assistentes, todos vestidos de luto, desgrenhados, e sem nenhum ornato ou composição das mesmas roupas, em significação da verdadeira dor. Os prostrados, no tempo dos Ofícios Divinos, lançados por terra e chorando, estavam fora das portas da igreja; os ouvintes, mais chegados a elas, mas também fora, e tanto que se entrava ao Ofertório, eram lançados uns e outros, e despedidos daquele lugar sagrado como indignos; os assistentes, enfim, eram admitidos à igreja, e a ouvir toda a Missa, mas de nenhum modo à Comunhão, a qual só se permitia aos mesmos penitenciados na hora da morte, com condição porém, que, se escapavam, tornavam outra vez a cumprir o que lhes faltava da penitência. Enquanto ela durava, nem podiam ser soldados, nem casar, nem assistir a convites, nem usar de banhos, jejuando, trazendo cilício, não dormindo em cama, e castigando-se a si mesmos com estas e outras asperezas que lhes eram sinaladas. Sobretudo, o que mais admira e faz ao nosso caso, é que estas penitências públicas, não só se davam pelos pecados públicos, senão também muitas, e as mais vezes, pelos ocultos e secretos: Nec vero semper publicae fiebant poenitentiae ob publice nota delicta, sed plerumque etiam propter occulta são palavras colhidas e resumidas fielmente dos sagrados concílios, santos padres e ritos antigos da Igreja[24]. E isto faziam não só os homens, senão as mulheres, como Fabíola, senhora principalíssima entre as romanas, cuja penitência pública na basílica lateranense, sendo viúva, descreve com elegância e louvores no seu epitáfio S. Jerônimo. E se depois a mesma Igreja moderou aquele estilo, foi porque se tinha esfriado o primitivo fervor e espírito dos cristãos, condescendendo como mãe piedosa com a nossa fraqueza.

Considerai agora que repugnância e dificuldade seria a dos homens, e muito mais das mulheres, se os seus pecados ocultos se houvessem de fazer públicos, e castigar-se com públicas e tão rigorosas penitências! Pelo contrário, que facilidade, que favor, que indulgência e graça maior que toda a estimação, é que, por virtude do Jubileu, se perdoem todas essas e quaisquer outras penitências, e que os pecados públicos ou secretos, por reservados que sejam, e pertencentes a outro foro ou tribunal, se absolvam debaixo de um sigilo tão inviolável, qual é o da confissão! Ponderemos as palavras do nosso texto em que estamos, que nenhumas há em toda a Sagrada Escritura com que melhor se possa declarar e definir a força, a obrigação e a natureza maravilhosa deste secretíssimo e sacratíssimo segredo. Que disse Cristo ao leproso? Que a ninguém dissesse o que tinha passado entre os dois: Vide, nemini dixeris. — Pois, isto mesmo é o que passa entre o confessor e o confessado quando o que se confessa lhe diz os seus pecados, porque dizê-los ao confessor debaixo daquele sigilo é não os dizer a ninguém: Nemini dixeris.

Falando Cristo, Senhor nosso, no dia do Juízo, diz que ninguém sabe quando há de ser aquele dia e aquela hora, nem os anjos do céu, nem ele, Cristo, enquanto homem, senão o Padre somente: De die autem illo vel hora nervo scit, neque angeli in caelo, negue-Filius, nisi Pater[25]. — É certo, porém, em sentença de todos os santos e teólogos, que Cristo não só enquanto Deus, senão enquanto homem, sabe quando há de ser o dia e hora do Juízo universal, porque a ele pertence, como juiz de vivos e mortos. Pois, se ele o sabe, como diz que ninguém o sabe, senão o Padre: Nemo scit, nisi Pater? Porque este segredo sabe o Cristo por revelação do mesmo Padre, mas com obrigação de o não poder dizer a outrem; e o que se sabe com obrigação de se não poder dizer, ainda que seja Cristo, ou quem está em lugar de Cristo o que o sabe, ninguém o sabe: Nemo scit. Negat tamen Christus id se scire, ut homo est, guia non ita sciebat ut revelare hominibus posset[26].Responde com os mesmos santos padres e teólogos o doutíssimo A. Lápide. Agora pergunto: aquele pecado secreto e secretíssimo, de que só vós tínheis notícia antes de o dizerdes ao confessor, sabia-o alguém? Ninguém, senão Deus somente. Pois o mesmo é depois que confessastes e dissestes o mesmo pecado, porque, como vós o dissestes a quem o não pode dizer, ninguém o sabe senão só Deus: Nemo scit, nisi Pater. E assim como, o que sabe quem o não pode revelar, ninguém o sabe: Nemo scit — assim o que se diz a quem o não pode dizer, a ninguém se diz: Nemini dixeris.

E porque ninguém cuide ou receie que pode haver algum sacerdote tão mau homem, e de tão danada consciência, que revele aquele segredo por algum caso, ouvi um bem notável. A última vez que Cristo, Senhor nosso, subiu a Jerusalém, revelou em segredo aos discípulos que ia a morrer, e os tormentos que havia de padecer na cruz e antes dela: Assumpsit duodecim discipulos secreto, et ai illis: Ecce ascendimus Jerosolyman, et Filius hominis tradetur principibus sacerdotum, etc.[27]. — O primeiro reparo que aqui ocorre é o que à flor da terra topa naquela palavra secreto, e que o Senhor fiasse de tantos homens um segredo de tanta importância; mas, como eles eram os primeiros ministros do sacramento da Confissão, e os que haviam de ser o exemplo de seus sucessores, nesta mesma confiança mostrou o divino Mestre quão fundados os tinha já a providência da sua eleição na firmeza e constância do segredo. Que diremos, porém, à palavra duodecim? De fiar Cristo o segredo a todos os doze discípulos, segue-se que também o fiou a Judas. Pois, a Judas, um tão mau homem, tão infiel, tão traidor, que o havia de entregar e vender, fia o mesmo segredo que aos demais discípulos, tão fiéis e tão santos? Sim, porque esta graça de guardar o segredo, que ali se figurava na Confissão, anda junta à santidade e virtude do Sacramento, e não à bondade ou maldade do homem que o exercita. Vede-o no mesmo Judas.

Tanto que ele soube que o Senhor, relaxado pelo príncipe dos sacerdotes a Pilatos, ia condenado, no mesmo ponto se arrependeu da venda, e foi entregar o dinheiro aos mesmos de quem o recebera. Assim o nota o evangelista: Tunc Judas, videns quod damnatus esset, poenitentia ductus, retulit triginta, argenteos principibus, sacerdotum[28]. — Agora entra o grande mistério. Judas pela experiência de três anos sabia muito bem a certeza infalível com que Cristo dizia antes o que havia de suceder depois. E o Senhor, quando revelou aos doze discípulos o que havia de padecer em Jerusalém, expressamente disse pelas mesmas palavras que havia de ser condenado à morte: Et damnabunt eum morte[29]. — Pois, se Judas se arrependeu agora da venda com esta segunda notícia de Cristo ser condenado: Videns quod damnatus esset — por que se não arrependeu com a primeira, sendo totalmente a mesma: Et damnabunt eum? Porque esta notícia foi pública, e a primeira foi revelada a todos em segredo: secreto — e deste segredo, que Cristo fia e encarrega a seus ministros, nem um homem tão mau, e tão infiel e traidor, como Judas, se atreve a usar, ainda em caso de tanta importância que lhe custe a própria vida, e haja de rebentar pelo meio, como Judas rebentou. Cristo revelou e disse o segredo a todos, mas Judas não se valeu dele, como se o Senhor o não tivera revelado, nem o dissera: Nemini dixeris.

§ VI

Os poucos passos a que nos obriga o Jubileu para o ganhar, e os muitos de que nos desobriga e livra. Como pode um homem, sem sair de sua terra, colher os frutos de todas as outras? A visita às Igrejas. O mapa universal, ornamento da túnica talar do Sumo Sacerdote na lei velha, e os poderes do Sumo Pontífice na lei nova. Como pode o Sacerdote Sumo, que está em Roma, comunicar aos sacerdotes inferiores, que estão divididos por todo o mundo, seus poderes universais?

Segue-se no mesmo texto a breve palavra dita por Cristo ao leproso: vade: vai. Sobre ela declararemos os poucos passos a que nos obriga o Jubileu para o ganhar, e também os muitos de que nos desobriga e livra. O tempo desta graça, para maior comodidade dos que a hão de receber, se reparte em duas semanas, de tal maneira que, dentro da que cada um escolher, há de cumprir inteiramente as obras de piedade e devoção que Sua Santidade ordena. A primeira é que se visitem ao menos uma vez as cinco igrejas sinaladas, ou cinco vezes a mesma, onde houver só uma, como nos lugares pequenos. E para que ninguém fique excluído de lucrar para sua alma tão grandes tesouros, os que tiverem legítimo impedimento para não ir à igreja os podem conseguir desde o mesmo lugar onde estiverem impedidos, como os presos no cárcere, os enfermos na cama, os homiziados no seu retiro, e em sua mesma casa as pessoas que, sem a devida decência, não podem sair dela.

Este é o primeiro modo com que aquele breve nos abrevia os passos. Mas o segundo e mais admirável é que, sem sair desta vossa cidade, ganhais todas as indulgências e graças que estão concedidas a todos os que pessoalmente visitam os maiores santuários da cristandade. Quantas vezes ouvistes falar nas indulgências de Santiago de Galiza, nas das estações de Roma, nas de Jerusalém e do Santo Sepulcro? Considerai as léguas, os caminhos, os gastos, os trabalhos, e os perigos de mar e terra que padecem os que fazem estas compridíssimas peregrinações; e tudo o que eles vão granjear e adquirir tão longe para suas almas, adquiris e granjeais vós igualmente para a vossa, por virtude deste santo Jubileu, sem sair nem dar um passo fora da vossa terra. Confesso que parece isto enigma ou milagre: enigma pelo que diz, milagre pelo que significa. Porque se sem sair da vossa terra haveis de adquirir os tesouros de graças que estão repartidos por todas as do mundo, ou a presença do homem se há de alargar imensamente, ou a grandeza do mundo se há de estreitar outro tanto: a presença do homem estendendo-se a todos os lugares da redondeza da terra, e a mesma redondeza da terra reduzindo-se ao lugar de um só homem. Assim se segue. E por que nem o enigma pareça escuro, nem o milagre ou maravilha impossível à dignidade e poder do Sumo Pontífice que concede o Jubileu, vamos à Escritura.

Descreve a Sabedoria divina o ornato pontifical do Sumo Sacerdote da lei velha, e diz que na túnica talar, isto é, que o revestia dos ombros até os pés, estava toda a redondeza da terra: In veste enim poderis quam habebat, totus erat orbis terrarumt[30]. — De sorte que naquela túnica pontifical, ou fosse tecida, ou bordada, ou pintada, estava representado todo o mundo, e abreviado ou recopilado nela como em um mapa. E por que ou para que era este mapa universal o ornato ou vestidura exterior do Sumo Sacerdote? Para que todos vissem — diz Filo Hebreu — quando olhassem para ele, e ele entendesse de si, que não só lhe pertencia o domínio espiritual de Jerusalém, senão também e igualmente o de todo o mundo e suas partes, por mais distantes e remotas que fossem; que assim como vestido o cercava, assim ele era o centro da redondeza da terra, e a redondeza da terra a sua circunferência; que assim como o vestido está junto ao corpo, e o corpo junto ao vestido, assim para ele não havia distância em todo o mundo, como se estivera presente em toda a parte; e assim como o vestido não tem movimento próprio, e em tudo se move ao compasso de quem o veste, assim ele, como alma do mesmo mundo, havia de ser o único e imediato móvel de suas ações, e a vida dos espíritos vitais que lhe influísse.

Este é, mais declarado e amplificado, o sentido do que diz em menos palavras Filo, o qual, porém, manifestamente se enganou na aplicação, porque aplica o mapa universal à vestidura do Sumo Sacerdote da lei velha, sendo que só pertence ao da nova. Ao da lei velha, não, porque só era Sumo Sacerdote de uma nação e de um povo, qual era o hebreu, e de nenhum modo de todo o mundo. Ao da lei nova, sim, porque o Sumo Sacerdote de todo o mundo é só o Sumo Pontífice da Igreja, que por isso se chama católica, isto é, universal. E porque aquele pontífice era a figura de enigma em que se representa o nosso, por isso se lhe pintou na vestidura o mapa do mundo. E não só pelas razões que bem considerou Filo, mas muito particularmente porque um dos admiráveis poderes do Pontífice, não de Jerusalém, mas de Roma, é abreviar o mundo e suas distâncias, e reduzi-las, por remotíssimas que sejam, a tão pequeno espaço como de um mapa, e esse mapa não maior que a grandeza ou estatura natural de um homem, por cujas medidas se corta o vestido, que isto quer dizer: In veste poderis totus erat orbis terrarum (Sab. 18, 24). — E, suposta esta primeira maravilha, não menos acreditada que com a fé da palavra divina, já fica corrente a que parecia dificultosa, de poder um homem, sem sair da sua terra, colher os frutos de todas as outras.

Só se pode duvidar que, sendo os poderes deste mapa, ou o mapa destes poderes ornato próprio das vestiduras pontificais, os possa comunicar o Sacerdote Sumo, que está em Roma, aos sacerdotes inferiores, que estão divididos por todo o mundo. Do Sumo Sacerdote da lei velha é certo que só o que lhe sucedia na dignidade se podia paramentar com as mesmas vestiduras. E assim, quando Eleazaro, primogênito de Arão — que foi o primeiro Sumo Sacerdote — lhe houve de suceder, mandou Deus que Moisés despisse delas ao pai, e vestisse com elas ao filho: Cum que nudaveris patrem veste sua, indues ea Eleazarum filium ejust[31]. — Mas também aqui faltou a semelhança da figura, para que se visse a diferença do Sumo Pontífice da lei da graça, o qual, sem se despir da mesma vestidura e mapa do mundo, veste dela e dele a todos os sacerdotes inferiores, a quem se digna comunicar a mesma graça. E isto quando, e por que modo? O quando é em semelhantes dias ao de hoje, e o modo por meio dos privilégios e poderes daquele Jubileu. Qualquer sacerdote, com aquele Jubileu na mão, está revestido do mapa pontifical do mundo, tendo-o todo tão junto a si para abreviar as distâncias dele, como tem o mesmo vestido. Publica-se um jubileu na Europa, vem a esta América, passa à África, chega à Ásia, e no mesmo ponto o sacerdote da índia, da China, do Japão, e de qualquer outra região ainda mais remota, assim como, se estivesse vestido de um mapa do mundo, podia tocar com o dedo qualquer parte daquele mundo pintado, assim pode pôr aos que gozam do Jubileu em qualquer parte do mundo verdadeiro para ganhar as graças que ao mesmo lugar são concedidas. Quereis as graças do Santo Sepulcro? Aqui está Jerusalém. Quereis as de Santiago? Aqui está Compostela.Quereis as de S. Pedro? Aqui está o Vaticano. Quereis as de Santa Maria Madalena? Aqui está Marselha. Quereis as de S. Marcos? Aqui está Veneza. Quereis as de Santo Antônio? Aqui está Pádua. Quereis as do Loreto ou Guadalupe? Aqui está Guadalupe, aqui o Loreto. Finalmente, se quereis a de Roma no Ano Santo que são as maiores de todas, aqui está Roma no Ano Santo, e não só no de cinqüenta, que já passou, senão no de setenta e cinco, que está por vir. Ide, pois, a qualquer parte do mundo: vade — mas ide sem sair da vossa pátria, ide sem dar um passo fora da vossa casa, ide sem caminhar, ide sem vos abalar nem mover, ide, enfim, sem ir, que é o modo mais fácil e descansado: Vade.

§ VII

Três circunstâncias necessárias para se conseguir as indulgências do Jubileu. Como pode suceder que muitos religiosos e sacerdotes ganham a indulgência plenária, e contudo vão para o Purgatório? Como se define a indulgência plenária? Importância da inteireza das confissões para a aquisição da indulgência.

Ostende te sacerdoti[32]continua o texto, e ao mesmo passo que até agora, as obrigações do Jubileu, que ele comenta. Mandou Cristo ao leproso que se mostrasse e presentasse ao sacerdote; e na mesma forma manda Sua Santidade que o façam os que houverem de ganhar o Jubileu, e não uma só, senão duas vezes, e por dois modos. A primeira vez que se presentem ao sacerdote no tribunal do Sacramento da Penitência, que é a confissão; a segunda na mesa do Santíssimo Sacramento de altar, que é a Comunhão. E porque a perfeição e pureza da Comunhão dependem da perfeição e inteireza da Confissão, deixadas as condições e circunstâncias necessárias, que todos sabem, só farei uma advertência de grande importância, e por falta ou ignorância da qual se não consegue nos Jubileus a indulgência plenária tão plenária e perfeitamente como ele promete, e de sua parte é capaz.

Para inteligência do que hei de resolver, havemos de supor, com todos os teólogos, que para se conseguir a indulgência é necessário que concorram juntamente três coisas. Da parte do Sumo Pontífice, que a causa por que concede a indulgência seja justa; e, da parte do que a há de ganhar e conseguir, que não só cumpra inteiramente todas aquelas coisas ou obras que o mesmo Pontífice prescreve e ordena, senão também que esteja em graça. De sorte que faltando qualquer destas três circunstâncias, de nenhum modo se consegue nem pode conseguir a indulgência. E, pelo contrário, se todas três concorrem, infalivelmente se consegue. Funda-se esta certeza infalível, como já disse, naquelas palavras de Cristo a S. Pedro, e seus sucessores: Quidquid solveris super terram, erit solutum et in caelis[33]. — Mas porque o supremo Legislador acrescentou nomeadamente esta limitação super terram: sobre a terra, daqui inferem muitos doutores que a indulgência plenária, que o mesmo Pontífice concede per modum suffragii às almas do Purgatório, as quais já não estão sobre a terra, senão debaixo da terra, não tem esta infalível certeza — posto que a contrária opinião também é provável, e porventura mais provável e mais conforme à benignidade divina — porém as indulgências que se concedem aos vivos até a hora da morte, como estão sobre a terra, e por isso isentos daquela limitação ou cláusula exclusiva, de nenhum modo pode suceder que deixem de conseguir a indulgência, senão que todos certa e infalivelmente, e sem dúvida alguma, ganham a indulgência plenária.

Mas, contra a verdade desta suposição, se opõe um fortíssimo argumento, cuja solução tem dado muito trabalho a famosíssimos teólogos, e é este. Consta das histórias eclesiásticas, e crônicas das religiões, que muitos religiosos foram ao Purgatório, e padeceram aquelas penas por muito tempo; logo, a indulgência plenária não tem tão certo e infalível efeito, como se supõe. Provo por todas as três circunstâncias referidas. Primeira, porque o Sumo Pontífice concede indulgência plenária a todos os religiosos que perseverarem na sua religião até a morte, e não pode haver causa mais justa nem mais justificada que aquela mesma perseverança e sujeição, não de um dia, ou muitos dias, nem de um ano, ou de muitos anos, senão de toda a vida. Segunda, porque a obra pia e santa, que o Pontífice requer, não é ato algum particular de oração ou mortificação, senão a mesma perseverança do hábito e estado religioso, em que supomos que acabou a vida este que foi penar ao Purgatório. Terceira e última, porque também se supõe que o tal Religioso acabou em graça, porque, se morrera em pecado mortal, não iria ao Purgatório, senão ao inferno: logo, não basta que a causa seja justa, nem que se cumpra o que o Pontífice requer, nem que esteja em graça o sujeito que há de alcançar a indulgência, para que o efeito dela se cumpra e seja infalível.

A força deste argumento obrigou a muitos doutores a filosofarem nas indulgências dos vivos como nas dos defuntos, dizendo que o cumprimento delas também depende da aceitação divina, o que se não compadece com o sentido absoluto das palavras: Quidquid solveris super terram. — Outros, por defender, como devem, esta parte, disseram com notável audácia que todas aquelas histórias, enquanto afirmam o contrário, são apócrifas: sentença que parece tira do mundo não só a fé humana, mas a autoridade de gravíssimos escritores. Eu entre uns e outros não tenho voto, e por isso me trouxe atormentado este mesmo argumento mais de vinte anos, até que sem revelação do outro mundo nem especulação nova deste, a mesma e simples definição da indulgência plenária me deu fácil e naturalmente a solução que tenho por verdadeira. Como se define a indulgência plenária? Deixadas outras cláusulas ou partículas, que não importam ao nosso caso; Indulgentia plenaria est relaxação totius poenae temporalis debitae pro peccatis jam dimissis: É a indulgência plenária uma relaxação ou perdão universal de toda a pena temporal devida pelos pecados já perdoados quanto à culpa, e diz a definição perdoados quanto à culpa, que isso, é jam dimissis, porque antes de se perdoar a culpa, não se pode perdoar, ou não se perdoa a pena. Ao intento agora. E como os religiosos e os outros cristãos de qualquer estado podem morrer, e morrem, com muitos pecados veniais não perdoados quanto à culpa, ou porque os não confessaram, ou porque havendo-os confessado não se estendeu a eles a contrição ou atrição dos demais, daqui se segue que podem ganhar e ganham infalivelmente a indulgência plenária, e contudo vão pagar no Purgatório a pena dos pecados veniais não absolutos nem perdoados quanto à culpa, dos quais lá se purificam, com maior rigor de tormentos e maior dilação do tempo do que nós imaginamos, como consta de muitas revelações.

Esta é a advertência que chamei importantíssima, e de muitos não advertida, a qual se deve observar com grande atenção e cuidado, assim nas confissões ordinárias, como — e muito mais particularmente — nos jubileus da vida e da hora da morte, para que as indulgências plenárias se consigam tão plenariamente da nossa parte, quanto da sua são pleníssimas. Feito, pois, diligente exame, hão-se confessar, não só todos os pecados mortais lembrados e esquecidos, mas também todos os veniais da mesma forma, e o ato de contrição, ou quando menos de atrição, com que verdadeiramente nos doemos de ter ofendido a Deus, e com que detestamos os mesmos pecados com propósito firme da emenda, há de ser tão universal e geral, e feito com tal tenção e advertência, que não só se estenda, abrace e compreenda todos os pecados mortais, senão também todos os veniais. E desta maneira ficando a alma, ou na vida ou na morte, purificada totalmente de toda a culpa, ficará também plenária e plenissimamente livre de toda a pena.

Finalmente, quanto à inteireza da confissão não tenho mais que dizer que o que dizem com toda a clareza as palavras do texto. Ostende te sacerdote: Mostra-te a ti, e manifesta-te ao sacerdote. — Aquele te: a ti, é enfático, porque alguns — e mais algumas — parece que mais vão confessar os pecados alheios que os próprios. E os seus os confessam com tais escusas e rodeios, e tão disfarçados e enfeitados — como se não foram manifestar-se ao confessor, senão esconder-se dele — de tal modo e com tal artifício, que o mesmo pecado que o confessor sabia antes da confissão, por ser público, depois da confissão ignora. Lembremo-nos que somos filhos de Cristo e da Igreja, e não de Adão e Eva. Adão e Eva pecaram, e em lugar de confessar o seu pecado esconderamse, por onde disse Jó: Si abscondi quasi homo peccatum meum[34]. — E que mais? Ainda depois de argüidos por Deus não observaram o ostende te, ou o te do ostende. Eva lançou a culpa à serpente, Adão lançou a culpa a Eva, e por isso, quando os sois haviam de ficar absolutos, todos três foram condenados.

§ VIII

A última cláusula do Evangelho e do Jubileu: a tríplice oferta de orações, jejuns e esmolas. Advertências do anjo Rafael a Tobias. Propriedade e proporção com que reduz o Sumo Pontífice a essas três obras tão leve satisfação de nossos pecados.

Et offer munus, quod praecepit Moyses[35]. — Somos chegados à última cláusula do texto, e também à última do Jubileu. Ao leproso mandou o Senhor, que ainda sendo milagrosa a saúde que recebera, concorresse com a sua oferta, conforme a lei[36].E do mesmo modo manda Sua Santidade que, sendo tão fácil, e verdadeiramente tão milagrosa a indulgência de culpas e penas que por virtude do Jubileu se nos concede, concorramos também com a nossa oferta. Esta oferta consiste em três coisas: oração, esmola, jejum. A oração é aquela que havemos de fazer quando visitarmos as igrejas, devota e pela tenção do mesmo Sumo Pontífice. A esmola há de ser quando menos uma, conforme a caridade e possibilidade de cada um. O jejum o ordinário, mas de três dias dentro na semana em que se ganhar o Jubileu. Todas estas três coisas fez também o leproso. Orou, quando prostrado de joelhos diante de Cristo confessou o seu poder e lhe representou a sua miséria; deu a esmola, quando levou a sua oferta segundo a lei; e também então jejuou, porque a esmola que faz o pobre é tirando-a da boca.

E por que manda e ordena o Sumo Pontífice mais estas três obras pias que outras? Porque a estas três obras de oração, esmola e jejum se reduzem todas as obras penais e satisfatórias, e é muito justo e conforme a razão que quando tão liberalmente se nos perdoam as culpas e penas de nossos pecados da parte de Deus, concorramos nós também da nossa parte com algum modo e reconhecimento de satisfação, posto que tão fácil e leve. Estas mesmas três obras nomeadamente, e o valor delas para com Deus, encareceu muito o anjo Rafael, louvando-as em Tobias, e atribuindo a elas as grandes e milagrosas mercês, que, por meio do mesmo anjo, assim o pai como o filho tinham recebido: Bona est oratio cum jejunio, et eleemosyna magis quam thesauros auri recondere[37]. — Melhor é a oração acompanhada da esmola e do jejum que entesourar ouro. — Assim o dizem os anjos, posto que são poucos os homens como Tobias que assim o entendam. E a razão é porque o ouro entesourado fica com os ossos na terra, e a oração acompanhada de esmola e do jejum leva as almas ao céu. E porque diz o anjo não que a esmola seja acompanhada da oração e do jejum, ou que o jejum seja acompanhado da oração e da esmola, senão que a oração seja acompanhada da esmola e do jejum? Porque oração est elevatio mentis in Deum: é um vôo com que o homem se levanta e sobe a Davi; e como o homem de terra é tão pesado, para que a sua oração se levante e suba a Deus, é necessário que seja ajudada destas duas asas, de uma parte a asa da esmola, e da outra a asa do jejum; Oratio cum eleemosyna et jejunio — e com razão se chamam asas a esmola e o jejum, porque ambas aliviam: o jejum o peso do corpo, a esmola o da bolsa.

E para que se veja com quanta proporção e propriedade reduz o Sumo Pontífice àquelas três obras esta leve satisfação de todos os pecados que nos perdoa, a proporção e propriedade é tão admirável e divina como o mesmo oráculo que a dispõe e ordena. Ora vede. Todos os pecados que cometem ou podem cometer os homens, ou são imediatamente contra Deus, ou imediatamente contra o próximo, ou imediatamente contra nós mesmos. Contra Deus, como a infidelidade, a blasfêmia, o juramento, não guardar as festas; contra o próximo, como o ódio, a inveja, a detração, o homicídio, o furto; contra nós mesmos, como o ócio, a gula, a sensualidade, e todas as outras intemperanças. E para que neste perdão e indulgência universal de todas as culpas satisfaçamos também universalmente e com a mesma proporção de algum modo por todas, na oração satisfazemos pelos pecados que são imediatamente contra Deus, na esmola pelos que são imediatamente contra o próximo, no jejum pelos que são imediatamente contra nós mesmos. Mais, e por outro modo. Todas estas três espécies, em que se dividem os pecados, se reduzem também a um gênero sumo, em que todo o pecado em comum se define: Aversio a Deo, et conversio ad creaturaml[38].E também aquelas três obras penais se reduzem a um sacrifício comum, no qual desfazemos toda aquela conversão às criaturas, e satisfazemos por toda a aversão de Deus, convertendo e sacrificando ao mesmo Deus tudo o que somos e temos. O que somos, é a alma e o corpo; o que temos, é o que possuímos, pouco ou muito. Na oração, que é elevação da alma a Deus, sacrificamos a alma; no jejum, que é mortificação do corpo, sacrificamos o corpo; e na esmola, que é parte do que possuímos, sacrificamos o que temos. E como por este modo nos sacrificamos a nós e o nosso, com a proporção que é possível satisfazemos por toda a aversão e conversão do pecado. Entre agora ou saia S. Paulo, confirmando e fechando tudo o que temos dito, não com outra proporção ou divisão de obras, senão a mesma. Sobrie, et pie, et juste vivamus in hoc saeculo (Ti. 2, 12): Vivamos neste mundo — diz o apóstolo — sobriamente, piamente e justamente: — piamente para com Deus: pie; justamente para com o próximo: juste; e sobriamente para conosco: sobrie. E desta maneira, assim como o leproso por meio da palavra de Cristo ficou puro e limpo, assim nós o ficaremos por meio do santo Jubileu: Volo, mundare,

§ IX

Conclusão: Se este jubileu se publicasse no inferno, que efeito causaria nos condenados. E se se publicasse no Purgatório ou no Céu, que fariam os bem-aventurados? As indulgências e os tesouros da Igreja.

Aqui acabou o Evangelho de publicar e explicar o Jubileu. E se eu agora quisesse exortar a que o tomássemos todos e ganhássemos estes grandes tesouros para nossas almas, e nos aproveitássemos desta ocasião, que é certo para muitos será a última, parece-me que seria descrédito e afronta não pequena de um auditório tão cristão. O leproso disse a Cristo: Si vis, potes: Se quereis, podeis. — O mesmo nos diz Cristo a cada um de nós: se quereis a minha graça e as minhas graças, ali as tendes assinadas por mim; e se algum de vós as não quiser agora que pode, pode ser que não possa quando as queira.

Oh! quantas almas há neste mundo que quiseram poder o que nós podemos! Se este Jubileu se levara ao Purgatório, que festa, que alegrias se fariam naquele cárcere, e como todas aquelas labaredas se converteriam em luminárias e fogos artificiais de prazer! Se fosse possível descer o mesmo Jubileu ao inferno, que efeito causaria esta indulgência naqueles condenados, e nos mesmos demônios, ainda que fosse por um só momento! Demônio era aquele que respondeu ao santo frei Jordão que de boa vontade padeceria as penas, não só suas, senão de todo o inferno, só por ver a Deus enquanto se abre e fecha uma mão. Refiro com alguma esperança este exemplo, porque ele foi o que me fez religioso. Se é grande felicidade a dos que morrem depois do Batismo, porque vão direitos a ver a Deus, não é menor a dos que ganham o Jubileu como devem, pois se tornam a repor no mesmo estado de inocentes. Mas vamos ao mesmo céu. Se no céu se publicasse este Jubileu, que faria os bem-aventurados? Não há dúvida que todos em luzidíssimos exércitos voariam à terra, não para ganhar as graças, ou se pôr em graça, mas para granjear a qualquer preço, de obras penais muito maiores, maiores aumentos da mesma graça e da mesma glória que gozam.

Sabeis o que considero que fazem no céu todos os santos em tal dia como este? Parece-me que por uma parte se estão rindo, e por outra indignando contra nós, da nossa tibieza e pouca fé, pois tão frouxamente nos aplicamos a querer de graça o que eles nos granjearam a preço de tantos trabalhos e de tantas penitências, de tantos tormentos, de tantos martírios. As indulgências tiram-se dos tesouros da Igreja, e estes tesouros, além do preço infinito do sangue de Cristo, constam de tudo o que sobejou aos merecimentos de todos os santos. Do que sobejou a Abraão e aos outros patriarcas; do que sobejou ao Batista, e aos outros anacoretas; do que sobejou a S. Pedro, e aos outros apóstolos; do que sobejou a Santo Estevão, e aos outros mártires; do que sobejou a S. José, e aos outros confessores; do que sobejou com todas as virgens sem conta, nem peso, nem medida à Virgem das virgens. Alii laboraverunt, nos in labores eorum introivimus[39]. — Eles nos ajuntaram estes tesouros com tanto trabalho, e nós somos ou seremos tais que os não queiramos de graça! Deus, por quem é, no-la dê, para que vamos considerar bem neste ponto, de que depende não menos que a glória.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1]E Jesus, estendendo a mão, tocou-o; dizendo: Pois eu quero. Fica limpo. E logo ficou limpa a sua lepra (Mt. 8, 3).

[2] Que formosos são os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam os bens (Rom. 10, 15)!

[3] Pregai o Evangelho a toda a criatura (Mc. 16, 15).

[4] Eis aqui vos venho anunciar um grande gozo, que o será para todo o povo (Lc. 2, 10).

[5] O Evangelho é a epístola de Deus.

[6] Purifica-me de meus pecados (SI. 50, 4).

[7]Laços de pecadores me cingiram por todas as  partes(SI.118, 61).

[8] Desprendei-a, e trazei-mos (Mt. 21, 2).

[9] Desatai-o, e deixai-o ir (Jo. 11, 44).

[10] Que quer dizer desatai-o, e deixai-o ir-senão: o que desligares na terra será desligado também no céu (Aug. in Joan. c. 61)?

[11]Se tu queres, podes (Mt. 8, 2).

[12] Faça-se-te segundo tu creste (Mt. 8, 13).

[13] Se tu queres, podes (MI 8, 12).

[14] Quero, fica limpo (ibid. 3).

[15] Leu. caps. 13 e 14.

[16] 2 Par. 26, 19.

[17] Chrysost. lib. 3 de Sacerd.

[18] Louvor e formosura (SI. 95, 6).

[19] Pois saía dele uma virtude que os curava a todos (Lc. 6, 19).

[20] Estende tu um pouco a tua mão (Jó 1, 11).

[21] Estenderei a minha mão, e ferirei o Egito (Êx.3,2O).

[22] Ainda está alçada a sua mão (Is. 5, 25; 9, 12. 17.21).

[23] Então lhe disse Jesus: Vê, não o digas a alguém (MI 8, 4).

[24] Ita Joannes Gabassutius in notitia Conciliorum ad Canon Nicaenos 11, 12, 14.

[25]  A respeito, porém, deste dia ou desta hora ninguém sabe quando há de ser, nem os anjos no céu, nem o Filho, mas só o Pai (Mc. 13, 32).

[26] Cornei. ex D. Heron. Chrys. August. Beba. Origem. Theophilact. Suar in cap. 25 Matth. vers. 26.

[27] Tomou de parte os seus doze discípulos, e disse-lhes: Eis aqui vamos para Jerusalém, e o Filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes, etc. Mt. 20, 17; Mc. 10, 33).

[28]Então Judas, vendo que fora condenado Jesus, tocado de arrependimento, tornou a levar as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes (Mt. 27, 3).

[29] E sentenciá-lo-ão à morte (Mc. 10, 33).

[30] Porque na vestidura talar que trazia estava simbolizado todo o mundo (Sab. 18, 24).

[31] E depois deteres despido de seu vestido ao pai, vestirás com ele a Eleazar, seu filtro (Núm. 20, 26).

[32] Mostra-te ao sacerdote (Mt. 8, 6).

[33] Tudo o que desatares sobre a terra será desatado também nos céus (Mt. 16, 19).

[34] Se encobri como homem o meu pecado (Jó 31, 33).

[35]E faze a oferta que ordenou Moisés (Mt. 8, 4).

[36] Lev. 14, 13.

[37] É boa a oração acompanhada do jejum, e dar esmola vale mais do que juntar tesouros de ouro (Tob. 12,8).

[38]Aversão a Deus, e conversão às criaturas.

[39]Outros foram os que trabalharam, e nós entramos nos seus trabalhos (paráfrase de Jo. 4, 38).