Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão do mandato, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. VIII Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DO MANDATO

Na Capela Real. Ano 165O.

Et vos debetis alter alterius lavare pedes.[1]

§I

A verdadeira e literal inteligência do texto de S. João: Como amasse os seus que estavam no mundo, amou-os. - Assunto do sermão: Suposto que no amor de Cristo as finezas do fim foram maiores que as de todo o tempo da vida, entre as finezas do fim, qual foi a maior fineza? O estilo do presente discurso. Oração.

Como nas obras da criação acabou Deus no último dia pelas maiores do seu poder, assim nas da redenção, de que este dia foi o último, reservou também para o fim as maiores do seu amor. Isto foi ajuntar o mesmo amor o fim com o fino: In finem dilexit eos[2]. - Não diz o evangelista que, como amasse os seus, no fim os amou mais, senão, como amasse, amou: Cum dilexisset, dilexit. - E por quê? Porque é certo que o amor de Cristo para com os homens, desde o primeiro instante de sua Encarnação até o último de sua vida, sempre foi igual e semelhante a si mesmo: nunca Cristo amou mais nem menos. A razão desta verdade teológica é muito clara, porque, se consideramos o amor de Cristo enquanto homem, é amor perfeito, e o que é perfeito não pode melhorar; se o consideramos enquanto Deus é amor infinito, e o que é infinito não pode crescer. Pois, se o amor de Cristo foi sempre igual sem excesso, sempre semelhante a si mesmo sem aumento, se Cristo, enfim, tanto amou aos homens no fim, que diferença há ou pode haver entre o cum dilexisset e o in finem dilexit? Não é esta a dúvida que me dá cuidado. Respondem os santos em muitas palavras o que já insinuei em poucas. Dizem que usou destes termos o evangelista, não porque Cristo no fim amasse mais do que no princípio amara, senão porque fez mais seu amor no fim do que no princípio, e em toda a vida fizera. O amor pode-se considerar ou por dentro, quanto aos afetos, ou por fora, quanto aos efeitos, e o amor de Cristo quanto aos afetos de dentro tão intenso foi no princípio como no fim, mas quanto aos efeitos de fora muito mais excessivo foi no fim que em todo o tempo da vida. Então foram maiores as demonstrações, maiores os extremos, maiores os rendimentos, maiores as ternuras, maiores enfim todas as finezas que cabem em um amor humanamente divino e divinamente humano, porque naquela cláusula final ajuntou o fim com o fino: In finem dilexit eos.

Esta é a verdadeira e literal inteligência do texto. Mas agora pergunta a minha curiosidade, e pode perguntar também a vossa devoção: Suposto que no amor de Cristo as finezas do fim foram maiores que as de todo o tempo da vida, entre as finezas do fim, qual foi a maior fineza? Esta comparação é muito diferente da que faz o Evangelho. O evangelista compara as finezas do fim com as finezas de toda a vida, e resolve que as do fim foram maiores: eu comparo as do fim entre si mesmas, e pergunto: destas finezas maiores, qual foi a maior? O evangelista diz quais foram as maiores de todas, e eu pergunto qual foi a maior das maiores. Esta é a minha dúvida, esta será a matéria do sermão, e a última resolução de tudo as palavras que propus: Et vos debetis alter alterius lavare pedes[3].

O estilo que guardarei neste discurso, para que procedamos com muita clareza, será este: referirei primeiro as opiniões dos santos, e depois direi também a minha, mas com esta diferença, que nenhuma fineza do amor de Cristo me darão que eu não dê outra maior, e a fineza do amor de Cristo que eu disser ninguém me há de dar outra igual.

Parece-vos muito prometer? Parece-vos demasiado empenhar este? Ah! Senhor, que agora é o tempo de reparar que estais presente, todo-poderoso e todo-amoroso Jesus! Bem creio que no dia em que as fontes de vossa graça estão mais abertas, não ma negareis, Senhor, para satisfazer às promessas a que por parte de vosso divino amor me tenho empenhado. Mas para que os corações humanos, costumados a ouvir tibiezas com nomes de encarecimentos, não se enganem na semelhança das palavras, em descrédito de vosso amor, protesto que tudo o que disser de suas finezas, por mais que eu lhes queira chamar as maiores das maiores, não são exagerações, senão verdades muito desafetadas, antes, não chegam a ser verdades, porque são agravo delas. Todos os que hoje subimos a este lugar - e o mesmo havia de acontecer aos anjos e serafins, se a ele subiram - não vimos a louvar e engrandecer o amor de Cristo; vimos a agravá-lo, vimos a afrontá-lo, vimos a apoucá-lo, vimos a abatê-lo com a rudeza de nossas palavras, com a frieza de nossos afetos, com a limitação de nossos encarecimentos, com a humildade de nossos discursos, que aquele que mais altamente falou do amor de Cristo, quando muito, o agravou menos. Assim é, agravado Senhor, assim é! Hoje é o dia da paixão de vosso amor, porque mais padece ele hoje na tibieza de nossas línguas do que vós padecestes amanhã na crueldade de nossas mãos. Mas estas são as pensões do amor divino quando se aplica ao humano, estes são os desares do infinito e imenso quando se deixa medir do finito e limitado. Vós, Senhor, que conheceis vosso amor, o engrandecei, vós, que só o compreendeis, o louvai; e pois é força e obrigação que nós também falemos, passe por uma das maiores finezas suas sofrer que em vossa presença digamos tão pouco dele.

§II

Qual fineza de Cristo é a maior das finezas? A opinião de Santo Agostinho. Por que a fineza de morrer não foi a maior das maiores? Razões por que chorou mais a Madalena na madrugada da Ressurreição às portas do sepulcro, que no dia da Paixão ao pé da cruz.

Et vos debetis alter alterius lavare pedes.

Entrando, pois, na nossa questão, qual fineza de Cristo é a maior das maiores? Seja a primeira opinião de Santo Agostinho, que a maior fineza do amor de Cristo para com os homens foi o morrer por eles. E parece que o mesmo Cristo quis que entendêssemos assim, quando disse: Majorem hac dilectionem nervo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis (Jo. 15, 13): que o maior ato de caridade, a maior valentia do amor, é chegar a dar ele a vida pelo que ama.

Com licença, porém, de Santo Agostinho, e de todos os santos e doutores que o seguem, que são muitos, eu digo que o morrer Cristo pelos homens não foi a maior fineza de seu amor: maior fineza foi em Cristo o ausentar-se que o morrer; logo a fineza do morrer não foi a maior das maiores. Discorro assim: Cristo, Senhor nosso, amou mais aos homens que a sua vida; prova-se, porque deu a sua vida por amor dos homens: o morrer era deixar a vida, o ausentar-se era deixar os homens; logo, muito mais fez em se ausentar que em morrer, porque morrendo deixava a vida, que amava menos, ausentando-se deixava os homens, que amava mais. Alumiado o entendimento com a razão, entre a fé com o Evangelho. Sciens quia venit hora ejus ut transeat ex hoc mundo ad Patrem (Jo. 13, 1): Sabendo que era chegada a hora de partir deste mundo para o Padre. - Reparo, e com grande fundamento. O partir de que aqui fala o evangelista era o morrer, porque o caminho por onde Cristo passou deste mundo para o Padre foi a morte; pois, se o partir era o morrer, por que não diz o evangelista: Sabendo Jesus que era chegada a hora de morrer - senão: Sabendo Jesus que era chegada a hora de partir? Porque o intento do evangelista era encarecer e ponderar muito o amor de Cristo: Cum dilexisset, dilexit - e muito mais encarecida e ponderada ficava a sua fineza em dizer que se partia do que em dizer que morrera. A morte de Cristo foi tão circunstanciada de tormentos e afrontas, padecidas por nosso amor, que cada circunstância dela era uma nova fineza; contudo, de nada disto faz menção o evangelista: tudo passa em silêncio, porque achou que encarecia mais com dizer em uma só palavra que se partira que com fazer dilatadas narrações dos tormentos e afrontas - posto que tão excessivas - com que morrera: Ut transeat ex hoc mundo, in finem dilexit eos.

Que seja maior dor a da ausência que a da morte, não o podem dizer os que se vão, porque morrem, só o podem dizer os que ficam, porque vivem, e assim, nesta controvérsia da morte e ausência de Cristo, havemos de buscar alguma testemunha viva. Seja Madalena, como quem tão bem o soube sentir. É muito de reparar que chorasse mais a Madalena na madrugada da ressurreição, às portas do sepulcro, que no dia da paixão, ao pé da cruz. Destas lágrimas nada se diz no Evangelho, das outras fazem grandes encarecimentos os evangelistas: pois, por que chorou mais a Madalena no sepulcro que na cruz? Discretamente Orígenes: Prius dolebat defunctum, modo dolebat sublatum, et hic dolor major erat: Quando a Madalena viu morrer a Cristo na cruz, chorava-o defunto; quando achou menos a Cristo na sepultura chorava-o roubado, e eram aqui mais as lágrimas, porque era maior a dor. Maior a dor aqui? Agora tenho eu maior dúvida. E é maior dor a dor de considerar a Cristo roubado que a dor de ver a Cristo defunto? Sim, porque a dor de o ver ou não ver roubado era dor de ausência: Et hic dolor major erat. - Notai: tão morto estava Cristo roubado como defunto, mas defunto estava menos ausente do que roubado, porque a morte foi meia ausência: levou-lhe a alma, e deixou-lhe o corpo; o roubo era ausência total: levou-lhe o corpo depois de estar levada a alma; e como o roubo era a maior ausência do amado, por isso foi maior a dor do amante.

Mas parai como amante, Madalena santa, trocai as correntes às lágrimas, que não vão bem repartidas. O que vos matou a morte foi Cristo vivo, o que vos roubou a ausência foi Cristo morto; o bem que vos levou a Cruz foi todo o bem, o que vos falta na sepultura é só uma parte dele, e a menor, o corpo; pois, por que haveis de chorar mais a perda do morto que a perda do vivo, a perda da parte que a perda do todo? Aqui vereis quanto maior é o mal da ausência que o mal da morte. Chora a Madalena menos a morte de um vivo que a ausência de um morto, a morte do todo que a ausência da parte. E se o amor da Madalena, que era menos fino, avaliava assim a causa da sua dor entre a morte e a ausência, que faria o amor de Cristo, que era a mesma fineza? Por dois argumentos o podemos conhecer: o primeiro, pelos sentimentos que fez em cada uma, o segundo pelos remédios que buscou a ambos.

§III

Os sentimentos. Por que morreu Cristo com a facilidade com que os homens costumam se ausentar, e ausentou-se com todos os acidentes com que os homens costumam morrer?

Quanto aos sentimentos, sendo que padeceu Cristo a morte naquela idade robusta em que os homens costumam morrer fazendo termos, não só violentos, mas horríveis, agonizando ansiosamente, como se a morte lutara com a vida, e arrancando-se a alma do corpo como a pedaços, pela força com que a natureza resiste ao rompimento de uma união tão estreita, contudo, Cristo morreu tão plácida e quietamente, como o dizem aquelas palavras: Inclinato capite, tradidit spiritum[4] - que entregou uma vida de trinta e três anos, sem outra violência nem movimento mais que uma inclinação da cabeça. Passemos agora do Calvário ao Horto, e teremos muito de que nos admirar. Quando Cristo se despediu no Horto de seus discípulos, diz o evangelista: Avulsus est ab eis (Lc. 22, 41): que se arrancou o Senhor deles - e que, apartando-se um tiro de pedra, começou a agonizar: Et factus in agonia (ibid. 43). Notai como estão trocados os termos: o agonizar é de quem está morrendo, o arrancar é da alma quando se aparta do corpo; pois, se na cruz não houve arrancar nem agonizar, como o houve no Horto? Porque na cruz morreu Cristo, no Horto, apartou-se de seus discípulos, e como o Senhor sentia mais o ausentar-se que o morrer, os acidentes que havia de haver na morte, para os padecer mais em seu lugar, trocou-os: tirou-os da morte, e passou-os à ausência; sendo que o arrancar havia de ser da alma quando se apartou do corpo, Cristo foi o que se arrancou quando se apartou dos discípulos: Avulsus est ab eis; - e, sendo que o agonizar havia de ser no Calvário, não agonizou o Senhor senão no Horto, porque lá se apartou: Et factus in agonia. - Morreu Cristo com a facilidade com que os homens se costumam ausentar, e ausentou-se com todos os acidentes com que os homens costumam morrer.

Para ponderarmos bem o fino desta fineza, que ainda não está ponderado, havemos de entender e penetrar bem o que era em Cristo o ausentar-se e o que era o morrer. O morrer era apartar-se a alma do corpo, o ausentar-se era apartar-se ele dos homens, e mais sofrível se lhe fez a Cristo a morte, que era apartamento de si para consigo, que a ausência, que era apartamento de si para conosco, e muito mais sentiu Cristo o dividir-se do nós que dividir-se de si. Ainda não está encarecido. Cristo pela morte deixou de ser Cristo, porque naqueles três dias havia corpo de Cristo no sepulcro, e havia alma de Cristo no limbo, mas todo Cristo, quanto à humanidade, que consiste na união da alma com o corpo, não o havia. De maneira que pela morte deixou de ser Cristo, pela ausência deixou de estar com os homens, e sentiu mais o amoroso Senhor deixar de estar com quem amava, que deixar de ser quem era. A morte privou-o de ser, a ausência privou-o de estar, e mais sentiu Cristo o deixar de estar que o deixar de ser, mais sentiu a perda da companhia que a destruição da essência.

§ IV

Os remédios. A ressurreição, remédio da morte, e o sacramento, remédio da ausência. Por que razão não ressuscita Cristo senão três dias depois da morte, e não se quis sacramentar senão um dia antes?

Isto quanto aos sentimentos. Vamos aos remédios. Se repararmos nas circunstâncias da morte de Cristo, acharemos que ressuscitou três dias depois, e que se sacramentou um dia antes. Cristo pudera antecipar a ressurreição, e não só ressuscitar antes do terceiro dia, senão logo no outro instante depois de morto, que para a redenção bastava. Da mesma maneira pudera Cristo dilatar a instituição do Sacramento, e, assim como se sacramentou antes de morto, sacramentar-se depois de ressuscitado. Antes, era mais conveniente ao estado que Cristo tem no Sacramento, que é de impassível. Pois,por que razão não ressuscita Cristo senão três dias depois da morte, e não se quis sacramentar senão um dia antes? Ora vede. A ressurreição era remédio da morte, o Sacramento era remédio da ausência, e como Cristo sentia mais o ausentar-se que o morrer, o remédio da morte dilatou-o, o remédio da ausência preveniu-o. Como a ausência lhe doía tanto, aplicou o remédio antes: como a morte lhe doía menos, deixou o remédio para depois. Mais. Cristo ausentou-se uma só vez, assim como uma só vez morreu; mas reparai que o ressuscitar foi uma só vez, e o sacramentar-se infinitas vezes: todas as horas, e em todas as partes do mundo. E por que se não sacramentou Cristo uma só vez, assim como uma só vez ressuscitou? Porque, como Cristo sentia menos a morte que a ausência, contentou-se com remediar uma morte com uma vida; mas, como sentia mais a ausência que a morte, não se contentou com remediar uma ausência, senão com infinitas presenças. Morreu uma vez no Calvário, e ressuscitou uma vez no sepulcro; ausentou-se uma vez em Jerusalém, mas faz-se infinitas vezes presente em todo o mundo.

Das portas a dentro do mesmo Sacramento temos grandes provas disto. O mistério sagrado da Eucaristia é Sacramento e é sacrifício: enquanto Sacramento do corpo de Cristo é presença, enquanto sacrifício do mesmo corpo é morte, Daqui se segue que tantas vezes morre Cristo naquele sacrifício quantas se faz presente naquele Sacramento, ó excessiva fineza do amor! De sorte que cada presença que Cristo alcança pelo Sacramento lhe custa uma morte pelo sacrifício. E quem compra cada presença a preço de uma morte, vede se sente menos o morrer que o ausentar-se. O Sacramento do Altar, com ser um, tem estes dois mistérios: é contínua representação da morte de Cristo, e é contínuo remédio da ausência de Cristo. Mas entre a morte e a ausência - agora acabo de entender o ponto - há esta diferença: que a morte por um instante só pareceu-lhe ao amor de Cristo pouca morte, o ausentar-se, ainda que fosse por um só instante, pareceu-lhe muita ausência. Pois, que remédio buscaria o seu amor? Instituiu um Sacramento que fosse juntamente morte contínua e presença contínua: morte contínua, para morrer, não só por um instante, mas por muito tempo; presença contínua, para se não ausentar, não por muito tempo, mas nem ainda por um instante.

Em suma, que sentiu Cristo tanto mais o ausentar-se que o morrer, que se sujeitou a uma perpetuidade de morte por não padecer um instante de ausência. E como a Cristo lhe custava mais a ausência que a morte, reduzido hoje a termos em que nos importava a nós o partir-se: Expedit vobis ut ego nadam[5]. - não há dúvida que mais fez em se ausentar por nós que em morrer por nós. E, se me replicam com a autoridade de Cristo: Majorem hanc dilectionem nemo habet[6] que o morrer é a maior fineza, responde S. Bernardo que falava Cristo das finezas dos homens, e não das suas. Mas eu respondo que, ainda que falasse das suas, se prova melhor o nosso intento. Se o morrer é maior fineza, e o ausentar-se é maior que o morrer, segue-se que a fineza de se ausentar não foi maior fineza entre as grandes, senão maior entre as maiores: foi uma fineza maior que a maior: Majorem hanc dilectionem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis[7].

§V

A opinião de Santo Tomás: A maior fineza do amor de Cristo hoje foi deixar-se conosco, quando se ausentava de nós. Opinião do autor: maior fineza foi no mesmo Sacramento o encobrir-se que o deixar-se: logo a fineza de deixar não foi a maior das maiores. Por que dizia Absalão que melhor lhe era estar ausente em Gessur que presente em Jerusalém? Os tormentos da presença com proibição de vista.

A segunda opinião é de Santo Tomás, e de muitos, que antes e depois do Doutor Angélico tiveram a mesma. Diz Santo Tomás que a maior fineza do amor de Cristo hoje foi deixar-se conosco, quando se ausentava de nós. E verdadeiramente que o ir e ficar, o partir-se e não se partir, o deixar-se a si quando nos deixava a nós, não há dúvida que foi grande fineza. Foi tão grande que parece desfaz tudo quanto até agora temos dito, porque, ainda que no amor de Cristo seja maior fineza o ausentar-se que o morrer, a fineza de se deixar conosco desfaz a fineza de se ausentar de nós. Bem aviados estamos.

Com isto se representar assim, e com ser eu grande venerador da doutrina de Santo Tomás, digo que o deixar-se conosco não foi a maior fineza do seu amor: dou outra maior. E qual foi? Maior fineza foi no mesmo Sacramento o encobrir-se que o deixar-se: logo, a fineza de se deixar não foi a maior das maiores. Que fosse maior fineza o encobrir-se que o deixar-se provo: o deixar-se foi buscar remédio à ausência, isso é comodidade; o encobrir-se foi renunciar os alívios da presença, isso é fineza. Para maior inteligência desta matéria havemos de supor, com os teólogos, que Cristo, Senhor nosso, no Sacramento do altar, ainda que está ali corporalmente, não tem uso nem exercício dos sentidos. Assim como nós não vemos a Cristo debaixo daqueles acidentes, assim Cristo não nos vê a nós com os olhos corporais. Encobrindo-se, pois, Cristo no Sacramento, ainda que está presente com os homens, a quem ama, está presente sem os ver, e a presença sem vista é maior pena que a ausência.

Sabendo Absalão que Davi fazia diligência pelo prender, para que pagasse com a vida a morte que dera ao príncipe Amnon, diz o texto sagrado que se ausentou para as terras de Gessur, fora das raias de Judéia. Passados alguns tempos, por indústria de Joab, deu Davi licença para que Absalão pudesse vir viver na corte, e dizia assim o decreto: Revertatur in domum suam, et fatiem meam non videat (2 Rs. 14, 24): Venha embora Absalão para sua casa, mas não me veja o rosto. - Veio Absalão, continuou na corte sem ver o rosto a seu pai, e, chamando outra vez a Joab para que tornasse a interceder por ele, disse-lhe desta maneira: Quare veni de Gessur? Para que vim de Gessur, onde estava desterrado? - Melius mihi erat ibi esse: Melhor me era estar lá. - Obsecro ergo ut videam fatiem regis: Pelo que, fazei, Joab, que veja eu o rosto a meu pai - Quod si memor est iniqtlitatis meae, interficiat me (ibid. 33): E se ele se não dá ainda por satisfeito, mate-me antes.

Duas coisas pondero neste passo: primeira, dizer Absalão que melhor lhe era estar em Gessur que em Jerusalém: Melius mihi erat ibi esse. - Parece que não tem razão. Em Gessur em estava no desterro, em Jerusalém estava na pátria; em Gessur estava longe de Davi, em Jerusalém estava perto; em Jerusalém não via nem comunicava a seu pai, mas muito menos o podia ver nem comunicar em Gessur; pois, por que diz Absalão que melhor lhe era estar ausente em Gessur que presente em Jerusalém? Direi. Ainda que Absalão em Jerusalém estava presente, estava presente com lei de não ver a seu pai, a quem amava, ou a quem queria mostrar que amava, porque vedava o decreto que de nenhum modo o visse: Et faciem meam non videat. - E por isso diz que melhor lhe era estar ausente em Gessur que presente em Jerusalém, porque presença com lei de não ver é pior que ausência. Tal é a de Cristo no Sacramento: pô-lo assim o amor presente, com lei de não poder ver aos homens, por quem se deixou, e a quem tanto amava.

É verdade que Cristo, Senhor nosso, no Sacramento vê-nos com os olhos da divindade e com os olhos da alma, mas com os do corpo, que é o que imediatamente se sacramentou, não. E por que não? Não porque o modo sacramental o não permite, e não por outros respeitos e conveniências que o mesmo amor teve e tem para isso, e elas quais sujeitou a sua presença a tudo o de que Absalão se queixava na sua. Absalão tanto deixava de ver a Davi quando estava ausente em Gessur como quando estava presente em Jesusalém; porém, o não ver estando presente, ou não ver estando ausente, ainda que seja a mesma privação, não é a mesma dor: estar ausente, e não ver, é padecer a ausência na ausência; mas não ver estando presente é padecer a ausência na presença. E se isto nas palavras é contradição, que violência será na vontade?

Vamos ao segundo reparo. Diz Absalão que lhe conceda el-rei licença para lhe ver o rosto: Ut videam faciem regis - e se persiste em lhe negar a vista, que o mate antes: Interficiat me. - Vinde cá, Absalão; quando Davi vos queria matar, não vos ausentastes vós por espaço de três anos por escapar da morte? Sim. Pois, se para vos livrar da morte tomastes a ausência por remédio, agora que estais na presença, por que pedis a morte por partido? Porque, ainda que Davi concedeu a presença a Absalão, concedeu-lhe a presença com proibição da vista, e a presença com proibição da vista é um tormento tanto maior que a ausência, que o mesmo Absalão, que ontem escolheu a ausência por remédio, para se livrar da morte, agora toma a morte por partido, para se livrar de tal presença. Em Absalão, no primeiro caso, querer antes a ausência que a morte, não andou fino nem parecido a Cristo, que sentiu mais o ausentar-se que o morrer; mas em entender Absalão, no segundo caso, que presença sem vista era maior mal que a ausência, andou muito fino, muito discreto e muito parecido a Cristo, que assim o padece no Sacramento. Porém, nesta mesma semelhança de Cristo e Absalão acho eu uma diferença grande, e muito digna, de notar. Absalão toda esta fineza fá-la por amor de seu pai, Davi; mas Cristo, melhor filho de Davi que Absalão, ainda que no dia de hoje se partia para seu Pai, não fez esta fineza por amor de seu Pai, fá-la por amor de nós: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, in tinem dilexit eos.

§ VI

Se no Sacramento da Eucaristia não há mais que a semelhança de um só tormento da paixão, como se chama recopilação e representação de toda ela? As duas paixões de Cristo: a paixão dos homens e a paixão do amor.

Para que conheçamos de alguma maneira quanto Cristo sentiu esta privação da vista dos homens, não já por exemplos alheios, senão por experiências próprias; quero ponderar dois versos da Igreja, muitas vezes cantados, mas não sei se alguma vez bastantemente entendidos: O sacrum convivium, in que Christus sumitur: recolitur memoria passionis ejus[8]  -Diz a Igreja, fundada na autoridade de S. Paulo, que o mistério do Sacramento do altar é uma recordação e uma recopilação da paixão de Cristo. Ora eu, quando me ponho a combinar a paixão de Cristo com o Sacramento, nenhuma semelhança lhe acho. Na paixão houve prisão, houve açoites, houve cravos, houve lança, houve fel e vinagre, e no Sacramento nada disto há. Só um tormento houve na paixão além dos referidos, que se parece com o que se passa no Sacramento: porque na Paixão cobriram os olhos a Cristo, assim como no Sacramento está com os olhos cobertos: Velaverunt eum[9]. - Pois, se no Sacramento da Eucaristia não há mais que a semelhança de um só tormento da paixão, como se chama recopilação e representação de toda ela? Aí vereis quanto Cristo sente estar com os olhos cobertos, e privado da vista na presença dos homens, a quem tanto ama. Neste só tormento se recopilam todos os tormentos da paixão de Cristo. Em todos os membros de Cristo atormentado esteve a paixão por extenso; em só os olhos de Cristo cobertos esteve a mesma paixão recopilada. Por isso o Sacramento, não só em significação, senão em realidade, é uma recopilação abreviada, mas verdadeira, de toda a paixão de Cristo: Recolitur memoria passionis ejus. - Ainda não está ponderado o passo.

Duas paixões teve Cristo executadas por diferentes ministros: uma executaram os homens na cruz, outra executou o amor no Sacramento. E que fizeram os homens? Ajuntaram todos os tormentos que pôde inventar a crueldade, e tiraram a vida a Cristo; e esta foi a paixão dos homens. E que fez o amor, menos aparatoso, mas mais executivo? Tirou a venda dos seus olhos, cobriu os olhos de Cristo com ela no Sacramento, e esta foi a paixão do amor. Mas qual mais rigorosa: a do amor ou a dos homens? Não há dúvida que a do amor. A paixão dos homens teve maiores aparatos e maiores instrumentos; a paixão do amor mais breve execução, mas maior tormento. Houveram-se os homens e o amor na paixão de Cristo como os juízes dos filisteus na sentença de Sansão. Os primeiros juízes disseram que morresse, os segundos disseram que lhe tirassem os olhos, e esta sentença se executou por se julgar por mais cruel. Assim aconteceu a Cristo. Os homens tiraram-lhe a vida, o amor tiroulhe a vista; os homens na cruz deixaram-no morto, mas sem sentir; o amor no Sacramento deixou-o vivo, mas sem ver.

§ VII

Primeiro reparo: Não é fineza o não ver, onde se não sente a privação da vista. A impossibilidade de Cristo morto e a lançada no coração. - A Madalena e o ungüento da sepultura de Cristo. Por que razão, quando Cristo consagrou seu corpo, de tal modo que estivesse sempre privado da vista dos homens, padeceu recopiladamente passível o que depois não podia padecer impassível?

Já eu me dera por satisfeito, se do mais interior do mesmo Sacramento não resultara uma réplica tão forte, que na diferença da comparação parece que desfaz a fineza. Maior fineza é a de um vivo sem ver a quem ama, que a de um morto sem sentir o que padece. Mas Cristo no Sacramento também não sente, porque está ali impassível: logo, não é fineza o não ver onde se não sente a privação da vista. Concedo que Cristo no Sacramento está impassível, mas nego que essa impassibilidade lhe tirasse o sentimento de não ver aos homens. Assim como o amor de Cristo na privação da vista dos homens recopilou todos os sentimentos da sua paixão, assim na instituição do Sacramento recopilou todos os sentimentos desta privação da mesma vista. Mas como, ou quando? O quando foi quando consagrou o seu corpo, e o como, consagrando-o de tal maneira que estivesse nele como cego, e sem a vista dos olhos. Então padeceu recopiladamente passível o que depois não podia padecer impassível.

Coisa admirável é que, recebendo e padecendo Cristo tantas feridas nos pés, nas mãos, na cabeça, e em todos os outros membros do sacratíssimo corpo, só o coração, que é o principal, e a fonte e princípio da vida, tirando-lha os outros tormentos, ficasse inteiro, ileso e sem ferida; morto, porém, o Senhor, então recebeu-no peito a lançada que lhe trespassou o coração: Ut viderunt eum jam mortuum, unus militum lancea latus ejus aperuit[10]. - Perguntam agora os teólogos se mereceu Cristo na ferida da lança como nas outras que padeceu vivo, porque os mortos já não estão em estado de merecer. E responde S. Bernardo, com a sentença comum, não só que mereceu, mas com pensamento e agudeza particular, que também padeceu a mesma ferida: Dominus meus Jesus, post caetera in aestimabilis erga me beneficia pietatis, etiam dextrum propter me passus est tatus perfodi[11]. - Estas últimas palavras parecem dificultosas, porque o corpo de Cristo depois de morto estava impassível. Pois, se estava impassível, e incapaz de padecer, como padeceu a lançada? Passus est tatus perfodi? - Porque, ainda que a recebeu impassível depois da morte, aceitou-a vivo e passível no princípio da vida.

Notai muito. No princípio da vida de Cristo, e logo no primeiro instante da sua Encarnação, manifestou-lhe o Eterno Padre tudo o que queria que padecesse pela salvação dos homens, e estava escrito nos profetas. Isso quer dizer em sentença de todos os padres e teólogos: In capite libri scriptum est de me, ut facerem voluntatem tuam[12] - e a isso aludiu o mesmo Cristo quando, mandando embainhar a espada a S. Pedro, lhe disse: Quomodo implebuntur Scripturae[13]? - E que respondeu Cristo à proposta do Eterno Padre? Deus meus, volui, et legem tuam in medio corais mei[14]: Eu quero e aceito tudo, não só como vontade vossa, Pai meu, mas como preceito e lei, que eu desde agora ponho no meio do coração: Et legem tuam in medio cordis mei - e já daqui ficou o mesmo coração de Cristo sujeito e obrigado à lançada. Tanto assim que no mesmo lugar o diz o texto hebreu expressamente: Corpus autem perforasti mihi. - E como esta aceitação voluntária, antevendo a mesma lançada, foi de Cristo vivo e passível, por isso a padeceu morto e impassível, tanto por amor de nós como as outras feridas: Propter me passus est tatus perfodi.

Confirme o pensamento de Bernardo o mesmo Cristo: Vulnerasti cor meum, soror mea, sponsa, vulnerasti cor meum (Cânt. 4, 9): Feriste-me o coração, esposa minha, feriste-me o coração. - Duas vezes diz que lhe feriu a esposa o coração, sendo que uma só vez foi ferido. Por quê? a mesma lançada que recebeu depois de morto, já a tinha antevisto e aceito estando vivo. E por este modo padeceu o Senhor então o que não havia de padecer, suprindo de vivo e passível a impassibilidade de morto e impassível. E para que esta troca de morto e vivo, e de se aceitar em um estado o que se recebe em outro, não pareça imaginada ou fingida, vede-o no mesmo Cristo. Ungiu a Madalena a Cristo, e, respondendo o Senhor à murmuração de Judas, disse que a Madalena o ungira como morto para a sepultura: Mittens haec unguentum in corpus meum, ad sepeliendum me fecit[15]. - A Madalena, quando foi à sepultura ungir a Cristo, não o ungiu; pois, se o não ungiu na sepultura morto, como o ungiu para a mesma sepultura vivo? Porque o mesmo ungüento que o Senhor recebeu vivo no Cenáculo, o aceitou como morto no sepulcro, e tanto valeu a aceitação antecipada de Cristo vivo, como se a Madalena o ungira depois de morto: Ad sepeliendum me fecit. - Troquemos agora uma e outra ação! Assim como Cristo recebeu o ungüento como vivo, e o aceitou como morto, assim recebeu a lançada como morto, e a aceitou como vivo. E assim como esta aceitação bastou para que a Madalena fizesse o que não fez: Ad sepeliendum me fecit - assim bastou a aceitação da lançada para que padecesse o que não padeceu: Passus est tatus perfodi.

Vamos agora ao Sacramento - que toda esta suposição foi necessária para fundar um ponto de tanto fundo. - Disse que quando Cristo consagrou seu corpo, de tal modo que estivesse sempre privado da vista dos homens, então padeceu recopiladamente passível o que depois não podia padecer impassível. E assim foi, como acabamos de mostrar em exemplo tão semelhante. E se não, ponhamo-nos com Cristo no Cenáculo antes de dizer: Hoc est corpus meum[16] - e façamos esta proposta aos seus humaníssimos e amorosíssimos olhos. E bem, Senhor, por parte dos vossos mesmos olhos, vos requeiro que, antes de lhes correr essa cortina, vejais bem o que quereis fazer. Não são esses mesmos os olhos que, quando os levantastes no monte: Cum sublevasset oculos Jesus (Jo. 6, 5): se enterneceram de maneira, vendo aquela multidão de cinco mil homens famintos, que dissestes vós: Misereor super turbam[17])? - Pois, se esses olhos se compadeceram tanto dos homens, como se não compadecem de si? Neste Sacramento não haveis de estar em todas as partes do mundo? Nesse Sacramento não haveis de estar até o fim do mundo: Ecce ego vobis cum sum usque ad consummationem saeculi[18]? - Pois, é possível que em todas as partes do mundo, e até o fim do mundo, se hão de atrever e sujeitar vossos olhos a perder para sempre a vista dos homens? Sim. - Tudo isso estou vendo, diz o amoroso Jesus, mas como eu me quero dar aos homens todo em todo, e todo em qualquer parte deste Sacramento, e como neste modo sacramental não é possível a extensão que requer o uso da vista, padeçam embora os meus olhos esta violência sempre, contanto que eu me dê aos homens por este modo todo e para sempre.

Nesta resolução e neste só ato - bastante a remir mil mundos - padeceu Cristo por junto, e de uma vez, o que os seus olhos no estado impassível do Sacramento não podiam padecer, reduzindo-se toda a sua impassibilidade a um ato infinitamente tão dilatado, como é em lugar e duração todo este mundo. Com esta deliberação tomou o Senhor o pão em suas santas e veneráveis mãos: Accepit panem in sanctas ac venera biles manus suas, et elevatis oculis in caelum: e levantando os olhos ao céu: - Tende mão, Senhor, e perdoai-me. Agora que estais com o pão nas mãos para o consagrar, agora levantais os olhos ao céu, e os tirais dos homens? - Sim, agora, e neste ato, porque, se em consagrar o pão consiste o Sacramento, em não ver os homens consiste o sacrifício. Ali o temos impassível e incruento, mas pelo impedimento daquelas paredes, que nós vemos, e pelas quais ele nos não pode ver, sacrificado. Disse paredes, e não parede, porque são duas: uma da humanidade que encobre a divindade e a Cristo enquanto Deus; outra dos acidentes sacramentais, que encobrem a humanidade e a Cristo enquanto homem. Da primeira parede dizia a esposa, antes de Cristo ser homem: En ipse stat post parietem nostrum, respiciens per fenestras, prospiciens per cancellos[19]- porque, encoberto daquela primeira parede, que é a da humanidade, ele via-nos a nós enquanto Deus, posto que nós o não víamos a ele; porém, depois que sobre aquela parede se pôs a segunda, que é a dos acidentes, nem nós enquanto homem o vemos a ele, nem ele nos vê a nós. E esta é a fineza cruel e terrível ao amor, pela qual, deixando-se com os homens, se condenou a não ver os mesmos por quem se deixou. Com declaração e sentença final, e sem embargos, que mais fez em se encobrir que em se deixar.

§VIII

A opinião de S. João Crisóstomo: A maior fineza de Cristo hoje foi o lavar os pés a seus discípulos. Opinião do autor: Muito foi, e mais que muito, lavar Cristo os pés aos discípulos, mas lavá-los também a Judas, essa foi a fineza.

A terceira e última opinião é de S. João Crisóstomo, o qual tem para si que a maior fineza do amor de Cristo hoje foi o lavar os pés a seus discípulos. E parece que o mesmo evangelista o entendeu, e quis que o entendêssemos assim, pois, acabando de dizer: In tinem dilexit eos[20] - entra logo a descrever a ação do lavatório dos pés, ponderando uma por uma todas as suas circunstâncias, como se foram ela e elas a maior prova do que dizia. O mesmo confirmam os assombros e pasmas de S. Pedro, nunca semelhantes em outra alguma ação de Cristo: Domine; tu mihi lavas pedes (Jo. 13, 6)? E bem, Senhor, vós a mim lavar-me os pés? Tu mihi? Vós a mim? A distância que há entre estas duas tão breves palavras é infinita; e, posto que Pedro a cria por fé, nem ele nem outro entendimento humano o pôde compreender nesta vida. Por isso lhe disse o mesmo Cristo: Quod ego facio tu nescis modo (ibid. 7): O que eu faço, tu agora não o sabes - mas sabê-lo-ás depois, isto é, quando no céu conheceres a grandeza da glória e majestade, que agora vês prostrada a teus pés. Assim entendem o postea S. Agostinho, Beda e Ruperto. Finalmente, o mesmo evangelista, ponderando a diferença dos pés, que haviam de ser lavados, e das mãos, que os haviam de lavar, acrescenta aquela notável prefação: Sciens qui omnia dedit ei Pater in manus (ibid. 3): Isto fez o soberano Senhor sabendo que seu Eterno Padre lhe tinha posto tudo nas mãos. - Como se duvidara, e dissera consigo o seu mesmo amor, antes de se arrojar aos pés dos discípulos: Eu tenho tudo nestas mãos, e que posso fazer nesta despedida, para que os meus amados conheçam quanto os amo? Pois tenho nas mãos tudo, dar-lhes-ei tudo. Mas é pouco, que também eles deixaram tudo por amor de mim: Ecce nos reliquimus omnia[21]). - Pois, se é pouco tudo o que tenho nas mãos, quero com essas mãos, em que tenho tudo, lavarlhes os pés: Coepit lavare pedes discipulorum (Jo. 13, 5).

Sendo tão fundada como isto a opinião de S. Crisóstomo, e dos outros doutores antigos e modemos, que a encarecem e seguem, eu contudo não posso consentir que seja esta a maior fineza do amor de Cristo, porque dentro do mesmo lavatório dos pés darei outra maior. E qual é? Não excluir dele Cristo a Judas. Muito foi, e mais que muito lavar Cristo os pés aos discípulos; mas lavá-los também a Judas, essa foi a fineza. Não é consideração minha, senão advertência e ponderação do mesmo evangelista. Notai a ordem e conseqüência do texto. Depois de ter dito: Cum dilexisset suos, in tinem dilexiteos[22]. - continua logo, em prova do que dizia: Et coena facta, cum diabolus jam misisset in cor, ut traderet eum Judas, surgit a coena, et coepit lavare pedes discipulorum (Ibid. 2, 4, 5): E feita a ceia, tendo já o demônio persuadido o coração de Judas a que entregasse a seu Mestre, então se levantou da mesa a lavar os pés dos discípulos. - E por que advertiu e interpôs o evangelista aquela notável cláusula de que, antes de lavar os pés a todos os discípulos, já um deles tinha consentido com o demônio, e determinado a traição, e nomeadamente que este era Judas? Porque nesta circunstância consistia o mais profundo da humildade, o mais subido da ação, e o mais fino do amor de Cristo.

Notai mais. Cum dilexisset suos, qui erant in mundo: Como amasse os seus que deixava neste mundo. - E quem eram estes seus? Eram os doze da sua escola, da sua família e da sua mesa, donde se levantava. Todos estes eram os seus, mas com grande diferença seus: os onze seus, porque eram os seus amigos, e o duodécimo também seu, porque era o seu traidor; mas, sem embargo desta diferença, todos amados neste fim: Cum dilexisset suos, in tinem dilexit eos. - Mais ainda. Quando Cristo disse a S. Pedro que os que estavam limpos de pecado, ou maldade grave, bastava que lavassem os pés: Non indiget nisi ut pedes lavet[23] - acrescentou: Et vos mundi estis, sed non omnes: E vós, discípulos meus, estais limpos, mas não todos. - E por que fez o Senhor esta exceção: e não todos? O mesmo evangelista o declarou: Sciebat enfim quisnam esset qui traderet eum; propterea dixit: Non estis mundi omnes: Disse que não estavam limpos todos, porque ele sabia que um estava infeccionado com o pecado da traição, e quem era. - Pois, se Cristo fez esta exceção entre todos: sed non omnes - por que não excetuou também ao mesmo traidor? Por que o não excluiu do regalo e favor amoroso do lavatório? E por que, não sendo ele como todos, antes tão indigno, o admitiu com todos? Porque hoje não era o seu dia do juízo, senão o do seu amor.

§ IX

Por que há de ter o amor alguns ressábios de injusto para ser fino? A igualdade do sol e da chuva e a desigualdade de Cristo no lavatório dos pés. Quanto vai de Judas, irmão de José, a Judas, traidor de Cristo? A possível queixa do discípulo amado. A amabilidade de Cristo em Judas e em João, e o amor de Davi a Saul, seu inimigo, e a Jônatas, seu amigo e amante?

A fineza do amor mostra-se em igualar nos favores os que são desiguais nos merecimentos: não em fazer dos indignos dignos, mas em os tratar como se o fossem. Há de ter o amor alguns ressábios de injusto para ser fino. Amai a quem vos tem ódio, e fazei bem a quem vos quer mal, diz Cristo: Ut sitis filii Patris vestri, qui in caelis est (Mt. 5, 45): Para que sejais filhos de vosso Pai, que está no céu. - E que faz o Pai do céu no céu? Solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos (ibid.): No céu nasce o sol, e faz que nasça sobre bons e maus; do céu desce a chuva, e faz que desça sobre justos e injustos. - Verdadeiramente não pode haver maior igualdade com todos, mas igualdade que parece injustiça. Não é coisa injusta medir os bons e maus, os justos e os injustos com a mesma regra? Os bons e justos servem a Deus, os maus e injustos ofendem-no, e, sendo tanto maior a diferença de servir ou ofender, a servir mais ou a servir menos, os operários da vinha, que tinham servido mais, queixavam-se muito do pai de famílias os igualar aos que serviram menos: Hi novissimi una hora fecerunt, et pares illos nobis fecisti[24]. - Mas ponhamos o exemplo no mesmo sol e na mesma chuva. Quando Deus castigou a dureza do coração de Faraó, que não era mais duro que o de Judas, o sol alumiava os hebreus, e os egípcios estavam em trevas; nos campos dos hebreus as nuvens choviam água, e nos dos egípcios choviam raios. Pois, se a mesma diferença entre bons e maus podia agora fazer Deus com o seu sol e a sua chuva, por que trata com a mesma igualdade a todos? Porque então obrava no Egito como juiz severo, agora comunica-se ao mundo como pai amoroso. E o amor fino - qual é sobre todos o amor de pai - quando é igual na benignidade para os que a merecem e desmerecem, nessas mesmas aparências de menos justiça realça mais os quilates da sua fineza. E se isto é o que ensina Cristo aos que quiserem ser filhos de Deus por imitação, que faria ele, que o é por natureza? Assim como os raios do sol e os da chuva, que também são raios, descem do céu, assim ele desceu neste dia, não super bonos et malos, et super justos et injustos, mas até os pés de uns e outros. Os outros discípulos eram justos e bons, Judas era injusto e péssimo, e, contudo - antes por isso - com reflexão que era Filho de Deus, tratou igualmente a todos. Para todos lançou água na bacia: Mittit aquam in peluim - a todos lavou os pés: Coepit lavare pedes discipulorum - a todos os enxugou com a toalha de que estava cingido: Et extergere linteo, quo erat praecinctus (Jo. 13, 5). - Também aqui tem lugar o sol e a chuva, porque a chuva a todos molha, e o sol a todos enxuga. E porque os outros discípulos, na grande diferença de Judas, se podiam queixar desta igualdade, e dizer, como os operários: Parem illum nobis fecisti[25] - não desistiu por isso o amor de Cristo, antes se gloriou da mesma desigualdade, porque as queixas, quando as houvesse, da sua justiça, eram os maiores panegíricos da sua fineza.

Cristo, Senhor nosso, antes de lavar os pés aos discípulos, tinhalhes já revelado que um deles era traidor e o havia de entregar a seus inimigos, mas não lhes descobriu quem era. Com esta notícia da traição e ignorância da pessoa, quando o Senhor começou e continuou o lavatório, estavam todos suspensos, esperando que o traidor fosse excluído daquele favor; mas quando viram que todos eram tratados com a mesma igualdade, sem nenhuma exceção, os onze, a quem segurava a própria consciência, como cada um só sabia de si, estavam atônitos e pasmados. A todos dava a água da bacia pelos artelhos, mas na profundidade do mistério e do amor nenhum tomava pé. Só S. João entre todos sabia que o traidor era Judas, porque o Senhor só a ele tinha descoberto este segredo, e por isso só o mesmo S. João parece que se podia queixar desta igualdade, em nome de todos, e muito mais no de seu amor.

Em nome de todos podia dizer S. João, com a confiança e familiaridade de valido: - Basta, Senhor, que com a mesma igualdade haveis de tratar a um discípulo tão indigno e os que tanto vos servem e vos merecem? Com a mesma igualdade os fiéis e ao traidor? Aos maiores amigos e ao mais cruel inimigo? Aos que vos entregaram a sua liberdade, e ao que há de vender a vossa? Sempre este nome de Judas foi fatal para vós. Na figura deste mesmo caso em que estamos, Judas se chamava o que aconselhou e tratou a venda de José; mas quanto vai de Judas a Judas! Estava José condenado à morte: Venite, occidamus eum[26] - e aquele Judas traçou-lhe a venda para lhe salvar a vida; mas o vosso Judas - que bem lhe posso chamar vosso, pois tão amorosamente o tratais - não só vos vende à liberdade, mas a aqueles, que vós sabeis, e ele sabe, que não só vos hão de dar a morte, mas morte de cruz. Que dirão agora as cruzes de Pedro, e de André, e as dos outros? Tanto merece o que vos tem fabricado a cruz e a morte, como os que hão de morrer todos, e dar a vida por vós? Não quero ir buscar as desigualdades mais longe, e ao futuro: baste a presente.

A maior fineza que fizestes pelos homens na vossa Encarnação, não foi fazer-vos homens como nós, mas tomar a natureza humana no mais baixo grau da sua fortuna, que é a de escravo: Cum informa Dei esset, formam servi accipiens[27]. - Trinta e três anos, Senhor, vos contentastes com exercitar só a condição de homem, conforme a sentença do primeiro, comendo o vosso pão com o suor do vosso rosto, e reservando sempre o exercício de escravo para este último ato da tragédia de vosso amor, lavando como escravo os pés dos homens. Mas reparai, amoroso Mestre, na diferença com que aceitaram este extremo de humildade vossos discípulos. Chegastes aos pés de Pedro, e que fez ele, pasmado de horror e assombro? A sua resolução foi igual à sua fé e aos vossos atributos: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo. 13, 8): Eternamente disse que não consentiria tal coisa, porque a um ato de humildade infinita era devido outro de resistência eterna. Assim reconheceu e reverenciou Pedro vossa Majestade, posto que deposta a púrpura, e assim a reconhecemos nele todos vossos servos fiéis, como na cabeça de todos. Chegastes, enfim, o mesmo, e não outro, aos pés de Judas, assombradas e tremendo aquelas paredes de que a água da bacia se não sumisse, e o metal se não derretesse; e como se portou a dureza daquela pedra, a fereza daquele bruto, e a vilania, que só assim se pode encarecer, sua? O manus tornatiles aureae[28]! Quando dessas soberanas mãos se haviam de formar grilhões de ouro aos pés do cobiçoso traidor, para que se esquecesse da pouca e falsa prata que esperava na venda, tão fora esteve de se enternecer com tal vista, e se lhe abrandar o coração com tais abraços, que no mesmo tempo estava dizendo dentro de si: - Já que agora, como escravo, me estais lavando os pés, eu nesta mesma noite te venderei como escravo. - Oh! insolência! Oh! descomedimento! Oh! maldade mais que infernal, digna de que no mesmo momento se abrisse a terra, e não depois se rebentasse tal coração, mas logo o tragassem os abismos. E a este Judas, e àquele Pedro será justo, Senhor, que vós trateis com a mesma igualdade?

Sim, discípulo amado, e sim outra vez como amado e como amante. Bem vejo que esta igualdade, que tanto admirais e encareceis entre extremos tão desiguais, não é para argüir injustiça no amor de Cristo, mas para mais apurar a sua fineza. Concedo-vos que o desmerecimento de Judas é igual, e ainda maior, se quiserdes, ao merecimento de Pedro. Quanto é o amor de Pedro, tanto e maior ainda é o ódio de Judas a Cristo; mas daí, que se segue na igualdade dos mesmos favores? Segue-se que Cristo paga a Pedro amor com amor, que é o que se chama correspondência; porém a Judas paga-lhe ódio com amor, em que propriamente consiste a fineza. Pergunto - e a vós com maior razão, como ao maior teólogo do apostolado: - Cristo morreu por todos? Sim: Pro omnibus mortuus est Christus[29]. - E morreu também por Judas? - Também. - Pergunto mais: E Cristo lavou a todos no seu sangue? - Vós mesmo o dissestes: Qui dilexit nos, et lavit nos a peccatis nostris in sanguine suo[30]. - E lavou também em seu sangue a Judas? - Também. - Pois, se Cristo não excluiu a Judas do lavatório do seu sangue, por que o havia de excluir do seu lavatório de água? A mesma razão que depois teve no Calvário teve agora no Cenáculo. E qual foi? A fineza do seu amor. S. Paulo: Quid enim Christas pro impus mortas est (Rom. 5. 6)? Por que morreu Cristo pelos injustos e ímpios? - Porque pelo justo apenas há quem dê a vida: Vix enim pro justo quis moritar (ibid. 7). - E quando apenas há quem morra pelo justo, Cristo, para mostrar a fineza do seu amor, morreu por justos e por injustos. Qual é mais: morrer por quem há de morrer por mim, ou morrer por quem me mata?. O primeiro fez o amor de Cristo por Pedro, o segundo por Judas. Olhava Cristo na cruz para seus inimigos, diz S. Agostinho, mas não como para aqueles que lhe tiravam a vida, senão como para aqueles por quem ele a dava: Non a quibus, sed pro quibus moriebatar. - Disse bem Agostinho, mas disse pouco: para todos olhava seu amor, e para tudo: para uns como mais efetivo, e para outros como mais fino.

Parece que não quer o discípulo amado que seja fino para outrem o amor de seu amante; mas ouça-me agora, que folgo de falar com quem me entende - e lhe direi o maior louvor do seu amor, e a maior fineza do de Cristo. O amor de Cristo para com João não podia ser fino, porque era tão alta a correspondência do amado que, se lhe não engrossava as finezas, impedida que o fossem. E, suposto que ele só foi o sabedor da traição, saiba e ouça agora que não achou Cristo menos amabilidade em Judas que no mesmo S. João. Provo. Chorava Davi a morte de Saul e Jônatas, e que diz de ambos? Saul et Jonathas amabiles (2 Rs. 1, 23): Saul e Jônatas, ambos se pareciam como pai e filho, ambos eram amáveis. - Não reparo na amabilidade do segundo, mas muito na do primeiro, e mais em boca de Davi. Assim como Jônatas era o maior, não só amigo, mas amante de Davi, assim Saul era o seu maior e mais cruel inimigo. Pois, se um era tão amigo, e outro tão inimigo do mesmo Davi, como ambos para com ele podiam ser igualmente amáveis? E, se o eram, em que consistia a amabilidade de um e do outro?

A amabilidade de Jônatas consistia no amor, nos afetos, nas saudades, nas lágrimas que levavam após si o coração e a correspondência do amor de Davi; e a amabilidade de Saul consistia no ódio, na ingratidão, na inveja, nas perseguições tantas e tão obstinadas, com que por si mesmo e pelos seus lhe desejava beber o sangue e tirar a vida; e estas lhe provocavam as finezas do amor forte e heróico, com que tantas vezes, tendo-o debaixo da lança, lhe perdoou a morte. Façamos distinção de amor a amor, como de raio a raio. O raio do sol derrete favos de cera, o raio da nuvem não se contenta com menos que com escalar montanhas de diamante. - Uma coisa é o amor afetuoso e brando, outra o forte e fino. Era a fortaleza do amor no coração de Davi, como nos seus braços a da sua valentia. Na montaria da campanha não competia com os servos e gamos: desafiava os ursos e os leões. Para o amor afetuoso e brando eram as carícias de Jônatas, que ele agradecia e pagava com outras; mas para o amor forte e fino eram os ódios, as ingratidões, os agravos, as invejas, as vinganças, as traições e perseguições mortais de Saul, as quais ele vencia com armas iguais, amando heroicamente a quem tanto lhe desmerecia. Tal era a amabilidade de Saul, tal a amabilidade de Jônatas para com Davi, e as mesmas foram para com Cristo a de João, que era o seu Jônatas, e a de Judas, que era o seu Saul. Por isso lhe pagou o beijo de paz com o nome de amigo, derivado da mesma amabilidade: Amice, ad quid venisti[31]?

§X

A fineza sobre fineza do lavatório dos pés: Os pés dos outros discípulos ficaram lavados, os de Judas molhados sim, mas lavados não. Nos outros logrou o intento, em Judas perdeu a obra.

Acabemos com o mais fino de todas as finezas deste ato, compreendendo desde o princípio até o fim dele todos os discípulos e todo o lavatório: Coepit lavare pedes discipulorum. - A fineza tanto maior quanto mais sentida de Cristo, nesta última cena do seu amor, foi que começou lavando, e acabou sem lavar. Os pés de outros discípulos ficaram lavados, os de Judas molhados sim, mas lavados não. Nos outros logrou o intento, em Judas perdeu a obra. Desgraça grande, se o Senhor não soubera o que havia de ser; mas, sabendo-o, como advertiu o evangelista, por isso a maior fineza! Definindo S. Bernardo o amor fino, diz: Amor non quaerit causam nec fructum: amo quia ama, amo ut amem: O amor fino é aquele que não busca causa nem fruto: ama porque ama, e ama por amar. - Nos outros discípulos teve o amor de Cristo causa, e tão grande causa como amar os que o amavam e haviam de amar até a morte.

Em Judas, não só não teve causa para o amar, mas muitas para o aborrecer e abominar, quais eram a sua ingratidão, o seu ódio, a sua traição e desatinada cobiça, e a vontade por tantos modos obstinada de um coração entregue ao demônio. Dos apóstolos, entrando também neste número Judas, esperou Cristo fruto na sua eleição: Non vos me elegistis, sed ego elegi vos, ut eatis, et fructum afferatis[32] . - Para este fruto regou hoje tão copiosamente aquelas plantas, e só Judas foi a estéril e maldita, que deu espinhos em lugar de fruto: Expectata est ut faceret uvam, fecit autem spinas[33]. - E como o Senhor sabia o mau grado que havia de colher deste seu cuidado e diligência, que quando a devera mandar cortar, e lançar no fogo, a regasse tão amorosamente como as demais, e perdesse o trabalho de suas mãos, e também o regadio mais alto das suas lágrimas, esta foi a fineza sobre fineza do lavatório dos pés.

§ XI

Opinião do autor para a qual ninguém há de dar outra igual. A maior fineza de Cristo hoje foi querer que o amor com que nos amou fosse dívida de nos amarmos. Cristo trespassou em nós todo o direito do seu amor, e, pelas escrituras desse trespasso, todas as obrigações de o amarmos a ele são dívidas de nos amarmos a nós.

Referidas e refutadas as principais opiniões dos doutores, seguese por fim dizer eu a minha. Muito se empenhou, mas creio que se há de desempenhar. Digo que a maior fineza de Cristo hoje foi querer que o amor com que nos amou fosse dívida de nos amarmos: Et vos debetis alter alterius lavare pedes[34]: Amei-vos eu, cheguei a servir-vos eu - diz Cristo - pois quero que me pagueis essa fineza e essa dívida em vos amardes e em vos servirdes uns aos outros. - Abramos bem os olhos, e vejamos a diferença desse amor a todo o que se usa e tem visto no mundo. O amor dos homens diz: Amei-vos? Pois amai-me. - O amor de Cristo diz: Amei-vos? Pois amaivos. - Amei-vos, amai-me, é voz do interesse; amei-vos, amai-vos é voz, posto que nunca ouvida, do verdadeiro e só amor. Isto é amar, e o demais amar-se. O amor dos homens, e muito racional, diz: O que me deveis a mim, pagai-mo a mim; o amor de Cristo, superior a toda a razão, e só igual a si mesmo, que diz? Não diz: O que me deveis a mim, pagai-mo a mim - senão: O que me deveis a mim, pagai-o a vós. E quem são estes vós? Somos todos e cada um de nós. Vós me haveis de pagar a mim o amor de Cristo, e eu vos hei de pagar a vós o amor de Cristo, e todos hão de pagar a cada um o mesmo amor, e cada um o há de pagar a todos. E que razão ou conseqüência é está? A que só se podia achar nos arcanos do racional divino. Assim a tirou de lá o secretário do mesmo amor, S. João: Si sic Deus dilexit nos, et nos debemus alterutrum diligere[35].

Amou-nos Cristo, ou enquanto Deus, ou enquanto homem, ou como Deus e homem juntamente? Logo devemo-lo amar a ele, bem se segue; mas, que a obrigação desse amor seja dívida de nos amarmos uns aos outros: Et nos debemus alterutrum diligere? - Sim, porque o seu mesmo amor o quis assim. Cristo trespassou em nós todo o direito do seu amor, e pelas escrituras desse trespasso: et vos debetis, et nos debemus - todas as obrigações de o amarmos a ele são dívidas de nos amarmos a nós. Fez-nos herdeiros das dívidas do seu amor, e assim, quando ele é o amante, nós havemos de ser os correspondidos. O amor e a correspondência são dois atos recíprocos, que sempre olham um para o outro, donde se segue que, sendo o seu amor nosso, a nossa correspondência havia de ser sua; mas o amante divino trocou esta ordem natural de tal maneira, que o amor e a correspondência, tudo quis que fosse nosso: nós os amados e nós os correspondidos: nós os amados, porque ele foi o que nos amou, e nós os correspondidos, porque nós somos os que nos havemos e devemos amar: Et vos debetis.

Diga-me agora a terra e o céu, digam-me os homens e os anjos, se houve, ou pode haver, nem amor maior que este amor, nem fineza que iguale esta fineza? Por isso eu me empenhei a dizer que, dando a todas as outras finezas de Cristo hoje outra maior, como fiz, a última que eu sinalasse ninguém me havia de dar outra igual. Para as outras finezas, tão celebradas por seus autores, e tão encarecidas por seus extremos, tivemos Madalenas, Absalões e Davides, que los dessem exemplos; para esta, nem dentro nem fora da Escritura se achará algum que se pareça com ela, quanto mais que a iguale. Se Raquel dissesse a Jacó, que o amor que lhe devia o pagasse a Lia, se Jônatas dissesse a Davi que o amor que lhe devia o pagasse a Saul, se o mesmo S. João dissesse a Cristo que o amor com que o amava o pagasse a Pedro, então teriam aqueles afetos humanos alguma aparência com que pudessem arremedar esta fineza de Cristo; mas nem o amor dos irmãos, nem o dos pais, nem o dos filhos, nem o dos esposos, nem o dos amigos, que se não funda em carne e sangue, ainda fingidos e imaginados se poderão nunca medir, quanto mais igualar o que tem as raízes no imenso e o tronco no infinito. Mas demos três passos atrás, e ponhamos esta fineza à vista das outras três, que tanto adelgaçamos. Todas foram por nós e para nós: a primeira, dar vida por amor dos homens; a segunda, deixar-se no Sacramento com os homens; a terceira, lavar os pés aos homens. E todas estas finezas tão grandes, quem as deve, e a quem se há de pagar? Quem as deve somos nós: et vós debetis - e a quem se hão de pagar, não a mim, que vos amei - diz Cristo - senão a vós, amando-vos uns a outros: alter aiterius.

§ XII

Se o mandamento de os homens se amarem uns aos outros era mandamento velho e antigo, como lhe chamou Cristo mandamento novo? O amor de Cristo e o amor dos homens. Em que consiste a novidade do mandamento? O que é verdadeiramente pregar o Mandato?

Agora, depois de declarado o que prometi, vos quero mostrar o fundamento sólido de quanto disse, e prová-lo, não com outras palavras, senão do mesmo Cristo, e não pronunciadas em outro dia e lugar, senão neste mesmo em que estamos. É texto notável, e que pede toda a atenção. Mandatum novum do vobis: Ut diligatis invicem (Jo. 13, 34): Discípulos meus - diz o divino e amoroso Mestre - que vos darei nesta hora em prendas do meu amor? Dou-vos por despedida um mandamento novo, e é que vos ameis uns aos outros. - Reparam aqui todos os doutores, e a razão do reparo é chamar o Senhor a este mandamento mandamento novo. Amarem-se os homens uns aos outros absolutamente era preceito da lei velha: Diliges proximum tuum sicut te ipsum[36] - amarem-se os homens uns aos outros, ainda que fossem inimigos, era preceito da lei nova, que Cristo já tinha dado: - Diligite inimicos vestros[37]. - Pois, se este mandamento de os homens se amarem uns aos outros era mandamento velho e antigo, como lhe chamou Cristo mandamento novo: Mandatum novum do vobis?

Para responder a esta dificuldade se dividem os doutores em catorze opiniões diferentes, tão pouco se satisfazem uns dos outros, e cada um da sua. Mas, com licença de todos, eu cuido que hei de dar o verdadeiro entendimento ao texto, e com o mesmo texto. Não só diz Cristo: Mandatum novum do vobis, ut diligatis invicem - mas acrescenta: Sicut dilexi vos, ut et vos diligatis invicem. - Dou-vos um mandamento novo, o qual é que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei a vós, para que vós vos amei a vós. - De sorte que a novidade do mandamento e do amor não está em os homens se amarem uns aos outros; está em que o amor com que se amarem seja paga do amor com que Cristo os amou: Sicut dilexi vos, ut et vos diligatis invicem. - Amarem-se os homens uns aos outros, em satisfação do amor com que eles amam, e ainda sem essa satisfação - como sucede no amor dos inimigos - é mandamento velho, com maior ou menor antiguidade; mas amarem-se porque Cristo os amou, e querer Cristo que o amor com que amou aos homens lho paguem os homens com se amarem a si, e que sendo o amor com que ele nos amou dívida, seja o amor com que nos amarmos paga, este é o amor novo e mandamento novo: Mandatum novum do vobis - porque nem Deus deu nunca tal preceito, nem Cristo ensinou nunca tal doutrina, nem os homens imaginaram nunca tal amor.

Tal amor como este inventou a ingratidão para o maior dós tormentos, que é quando o amor que se devia a um se aplica a outro. E este amor que a ingratidão inventou para o maior torcedor do coração humano, foi tal a fineza do amor de Cristo, que no-lo deixou em preceito. Os homens, quando menos, querem que o seu amor seja dívida de os amarem a eles, e obrigação de não amarem a outrem. E Cristo quer que o seu amor seja dívida de nos amarmos a todos, e obrigação de todos nos amarem a nós. Mais. No amor dos homens, em que o ciúme se reputa por fineza, um amor leva sempre por condição dois aborrecimentos, porque quando amam é com condição que nem vós haveis, de amar a outrem, nem outrem vos há de amar a vós. Pelo contrário, o amor de Cristo leva por obrigação dois amores, porque nos ama com preceito de que cada um de nós ame a todos,e de que todos amem a cada um de nós. E porque tal fineza de amor se não viu nunca no mundo, por isso o preceito deste amor se chama mandamento novo: Mandatum novum do vobis.

Daqui infiro eu que só hoje acertei a pregar o Mandato, não no discurso, que não sou tão desvanecido, mas no intento. O assunto dos pregadores neste dia é encarecermos o amor de Cristo para com os homens, e isto não é pregar o Mandato. Diga-o o mesmo Cristo: Hoc est mandatum meum, ut diligatis invicem (Jo. 15, 12, in radice graec): O meu mandato, ou o meu mandamento, é que vos ameis uns aos outros. - De maneira que o amor de Cristo não é mandato porque ele nos amou, é mandato para que nós nos amemos. E, falando propriamente, o mandato compõe-se de dois amores: o amor de Cristo para conosco, e o amor dos homens entre si; o amor com que Cristo nos amou entra no mandato como meio, e o amor com que nós nos devemos amar, como fim. Isso quer dizer, em sentido de Ruperto, aquele in tinem dilexit eos: que nos amou a fim. E a que fim? A fim de nós nos amarmos. Os homens amam a fim de que os amem; Cristo amou-nos a fim de que nos amemos: Et vos debetis alter alterius lavare pedes.

Por que razão nos aponta Cristo a dívida, e não nos persuade a paga? Por que diz S. Paulo que havemos de dever sempre o amor de uns a outros? Razão por que em um dia como o de hoje, o homem que se não faz amigo do maior inimigo quase pode desesparar de sua salvação. Oração.

Este é, cristãos, o mandato do amor, este é o mandamento de Cristo, esta é a obrigação nossa, e a dívida em que hoje nos pôs o amoroso Jesus: Et vos debetis. - Notemos muito neste debetis, que não disse que pagássemos, senão que devíamos. Pois, por que razão nos aponta Cristo a dívida, e não nos persuade a paga? Com duas palavras de S. Paulo entenderemos estas: Nemini quidquam debeatis, nisi ut invicem diligatis (Rom. 13, 8): Cristãos - diz S. Paulo - não devais nada a ninguém, senão o amor de uns aos outros. - Dificultosa doutrina! Antes parece que havia, de dizer: Se não tiverdes com que pagar as outras dívidas, ao menos não devais o amor de uns aos outros, porque o não pagar as outras dívidas pode ter escusa na impossibilidade, mas não pagar o amor nenhuma escusa pode ter, porque basta a vontade para pagar. Pois, por que diz S. Paulo que havemos de dever sempre o amor de uns a outros? Porque o amor, em que se funda esta divida, não é amor dos homens, senão amor de Cristo. Se nós houvéramos de pagar aos homens o amor que lhes devemos, muito fácil era a paga, porque eles nunca se empenham muito. Mas como havemos de pagar aos homens o amor que devemos a Cristo, por tantos modos infinito, por mais e mais que paguemos, sempre é força a ficar devendo: Nisi ut invicem diligatis.

Sendo, pois, as dívidas deste amor tão imensas, e o nosso cabedal tão estreito, que faremos, depois de publicada a maior de todas? Primeiramente, ponhamos os olhos no que deixamos visto na cruz, no Sacramento, no Cenáculo: na cruz, a Cristo morto por nós; no Sacramento, a Cristo sacrificado por nós; no Cenáculo a Cristo prostrado aos pés dos homens por nós, e logo o mesmo Cristo com a terceira tábua do seu mandamento novo nas mãos, em que está escrito: Haec mando vobis: ut diligatis invicem, sicut dilexi vos (Jo. 15, 17, 12). - Vimos já? Ouçamos agora o que nos diz o mesmo Senhor, com voz tão amorosa como tremenda: diz uma só palavra: Et vos debetis: Isto é o que deveis. - E haverá homem cristão que neste passo deixe de amar a qualquer outro homem, por mais que lhe desmereça? Para se deixar de amar aos homens, pelo que se lhes deve a eles, muitas razões pode haver: os ódios, as ingratidões, os agravos; mas, para deixar de amar aos homens pelo que devemos a Cristo, que razão pode haver senão a de não sermos cristãos? Será cristão quem no dia de hoje se não conforme com o mandamento de Cristo? Será cristão quem no dia de hoje conserve ainda no coração algum ódio, e não ame ao maior inimigo?

Verdadeiramente - só isto peço que nos fique - verdadeiramente que em um dia como o de hoje, o homem que se não faz amigo do maior inimigo quase pode desesperar de sua salvação, e resolver-se que não é predestinado. Pilatos e Herodes eram inimigos, e diz deles o evangelista: Facti sunt amici Herodes et Pilatus in ipsa die: nam antea inimici erant (Lc. 23, 12): Que naquele dia - em que ainda não eram passadas doze horas deste em que estamos - naquele dia Pilatos e Herodes, que dantes eram inimigos, se fizeram amigos. - E quem era Pilatos e Herodes? Herodes era um homem que teve a Cristo por louco, e Pilatos foi um homem que pôs a Cristo em uma cruz; pois, se homens que desprezam a Cristo, se homens que crucificam a Cristo se fazem amigos neste dia, que homens serão os que em tal dia como hoje ficarem inimigos? Maior desesperação ainda. Pilatos e Herodes eram dois homens precitos, ambos estão ardendo hoje, e arderão eternamente no inferno; pois, se em um dia como o de hoje até os precitos se fazem amigos, quem neste dia se não reconciliar com seus inimigos, que esperança pode ter de ser predestinado?

Ah! Deus! não permitais tão grande maldade entre cristãos. Pelo excessivo amor com que nos amastes, que nos comuniqueis vossa graça, Senhor, para que todos nos amemos. Pela humildade com que vos abatestes a lavar os pés aos homens, que nos deis um conhecimento do que somos, para que se humilhem nossas soberbas. Por aquele assombro de rendimento, com que estivestes prostrado aos pés de Judas, que nos deis um auxílio eficaz, com que todos os que aqui estão em ódio vão logo pedir perdão a seus inimigos. Enfim, pelo preço infinito desse sangue, pela ternura infinita dessas lágrimas por nós derramadas, que nos abrandeis estes duríssimos corações, para que só a vós amem, e ao próximo por amor de vós, começando nesta vida com um tão fino e tão firme amor, que se continue na outra por toda a eternidade, vendo-vos, amando-vos, adorando-vos, não já com os olhos cobertos, como nesse diviníssimo Sacramento, mas face a face, e não nas dúvidas de vossa graça, mas nas seguranças eternas da glória, que foi o fim para que nos amastes: In finem dilexit eos.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Deveis vós também lavar os pés uns aos outros(Jô.13,14)

[2] Amou-os até ao fim (Jo. 13, 1).

[3] Deveis vós também lavar os pés uns aos outros (Jo. 13, 14).

[4] Abaixando a cabeça, rendeu o espírito ( Jô. 19, 30)

[5] A vós convém-vos que eu vá (Jo. 16, 7).

[6] Ninguém tem maior amor do que este (Jo. 15, 13).

[7] ninguém tem maior amor do que este, de dar um a própria vida por seus amigos (ibid.).

[8] Ó sagrado banquete, em que se recebe a Cristo e se cultua a memória de sua paixão.

[9] Vendararam-lhes os olhos ( Lc.22,64).

[10] Como viram que já estava morto, um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança (Jo. 19, 33 s).

[11] Bernard. in Ps. Qui habitat.

[12] Na cabeceira do livro está escrito de mim, para fazer a tua vontade (SI. 39, 8 s).

[13] Como se poderão cumprir as Escrituras (Mt. 26, 54)?

[14] Deus meu, eu o quis, e no íntimo de meu coração desejei se cumprisse a tua lei (SI. 39, 9).

[15] Derramar ela este bálsamo sobre o meu corpo foi ungir-me para ser enterrado (Mt. 26, 12).

[16] Este é o meu corpo (Mt. 26, 26).

[17] Tenho compaixão deste povo (Mc. 8, 2).

[18] Estai certos de que eu estou convosco todos os dias, até à consumação do século (Mt. 28, 20).

[19] Ei-lo aí está posto por detrás da nossa parede, olhando pelas janelas, estendendo a vista por entre as gelosias (Cânt. 2, 9).

[20] Amou-os até o fim (Jo. 13, 1).

[21] Eis aqui estamos nós que deixamos tudo (Mt. 19, 27).

[22] Como tinha amado os seus, amou-os até o fim (Jo. 13, 1).

[23] Não tem necessidade de lavar senão os pés (ibid. .10).

[24] Estes, que vieram últimos, não trabalharam senao uma hora, e tu os igualaste conosco (Mt. 20, 12).

[25] Tu o igualaste conosco.

[26] Vinde; matemo-lo (Gên. 37, 20).

[27] Tendo a natureza de Deus, e tomando a natureza de servo (Flp.2,6s).

[28] Ó mãos de ouro, feitas ao torno ( Cânt.5, 14)

[29] Cristo morreu por todos (2 Cor. 5, 15).

[30] Que nos amou, e nos lavou dos nossos pecados no seu sangue (Apc. 1, 5).

[31] Amigo, a que vieste (Mt. 26, 50)?

[32] Vós não fostes os que me escolhestes a mim, mas eu fui o que vos escolhi a vós, para que vades, e deis fruto (Jo. 15, 16).

[33] Ex D. August. trac. 80 in Joan.

[34] Deveis vós também lavar os pés uns aos outros (Jo. 13, 14).

[35] Se Deus nos amou assim, devemos nós também amarmo-nos uns aos outros (1 Jo. 4,11).

[36] Amarás o teu amigo como a ti mesmo (Lev. 19, 18). (37)Amai a vossos inimigos (Mt. 5, 44).

[37] Amai a vossos inimigos ( Mt. 5, 44).