Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão do esposo da mãe de Deus, São José, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. VIII Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DO ESPOSO DA MÃE DE DEUS, SÃO JOSÉ,

No dia dos anos de El-Rei N. Senhor Dom João IV, na Capela Real.

Joseph, fili David, noli timere[1]

§I

O José que sonhou e o José sonhado. A nova astrologia do dia do nascimento de el-rei. Assunto do sermão: Tudo o que havia mister, e tudo o que podia desejar, influiu neste seu dia a Portugal um planeta novo e superior, a quem o sol a lua e as estrelas adoram, S. José.

Sonhou José, o que depois foi vice-rei do Egito, que o sol, a lua e as estrelas, abatendo do céu à terra a majestade luminosa de seus resplendores, humildemente prostrados o adoravam. Quis interpretar este sonho seu pai, e disse que ele, Jacó, era o sol, Raquel, sua esposa, a lua, seus filhos, desde Rúben a Benjamin, as estrelas, e que viria tempo a José em que Deus o levantaria a tão soberana fortuna, que seu mesmo pai, sua mãe, e seus irmãos, com o joelho em terra, o adorassem. Os doutores comumente têm esta interpretação do sonho por verdadeira; mas o certo é que um José foi o que sonhou, e outro José foi o sonhado. O José que sonhou foi José, o filho de Jacó, o José sonhado foi José, o esposo de Maria. O José, filho de Jacó, sonhou somente, porque, ainda que digamos que em seu pai o adorou o sol, e em seus irmãos as estrelas, é certo que em Raquel, sua mãe, lhe faltou a adoração da lua, porque quando Jacó e seus filhos adoraram a José no Egito, já era morta Raquel, e ficava sepultada em Belém. Segue-se logo que o José verdadeiramente sonhado foi José, o esposo de Maria, porque nele se cumpriram cabalmente todas as partes do sonho. Adorou a José o sol, porque, a título de sujeição filial, lhe guardou reverência e acatamento o mesmo Sol de justiça, Cristo: Et erat subditus illis[2]; - adorou a José a Lua, porque, a título de verdadeira esposa, lhe deveu obediência e amor aquela Senhora que é como a lua formosa: Pulchra ut luna[3]; - adoraram a José as estrelas, porque, a título ou reputação de pai de seu Mestre, o respeitaram com grande veneração os apóstolos, aqueles de quem diz o Espírito Santo: Fulgebunt quasi stellae in perpetuas aeternitates[4]. - E quando só a Virgem Maria adorasse a José, seu esposo, nesta só adoração se cumpria todo o sonho inteiramente, porque nela o adorava o sol, nela a lua, nela as estrelas: o sol: Mulier amicta sole; a lua: luna sub pedibus ejus; as estrelas: et in capite ejus carona stellarum duodecim[5].

Este é S. José, Senhor, e este é o soberano planeta que predominou neste formoso dia, dia em que, com o felicíssimo nascimento de Vossa Majestade, nasceu outra vez aos portugueses a esperança, ao Reino a liberdade, e Portugal a si mesmo. Justo era que ao nascimento de tão grande e novo rei melhorasse suas constelações o céu, e lhe assistissem novos e maiores planetas. Nos nascimentos dos outros príncipes e monarcas do mundo, ou predomina o sol, ou predomina a lua, ou predomina alguma das estrelas; mas neste nascimento singular, para que fosse mais feliz que todos, predominou um planeta novo e superior, a quem o sol, a quem a lua, a quem as estrelas adoram. Parecerá isto modo de falar, e consideração só minha, mas é doutrina mui assentada, não menos que desde o antiquíssimo Tertuliano. Notou este grande doutor que os Magos no nascimento de Cristo não renunciaram à astrologia, mudaram-na. Antes de Cristo nascer observavam-se as estrelas do céu, depois de seu nascimento observavam-se as estrelas de Cristo: De Christo est mathesis hodie, stellas Christi, non Saturni et Martis Observat. - Parece que para este dia foram cortadas estas palavras: De Christo est mathesis hodie: A astrologia do dia de hoje é de Cristo. - Stellas Christi, non Saturni et Martis observat: Não observamos estrelas de Marte, ou de Saturno, cujos juízos são tão errados, como fabulosos seus nomes: observamos uma estrela de Cristo, estrela a quem todas as demais adoram, que é, não José, o filho de Jacó, senão José, o filho de Davi: Joseph, fili David, noli timere.

Sendo, pois, tão superior a estrela deste dia, sendo tão divino o planeta deste nascimento, quais serão ou quais seriam suas influências. Ora eu, para satisfazer a todas as obrigações desta solenidade, e para que com devoto agradecimento conheçamos os portugueses o muito que devemos ao divino Esposo da Virgem, pretendo mostrar hoje com alguma evidência que a liberdade, a que este Reino se restituiu, e todos os bens, que com ela gozamos, são e foram influências de S. José. Tudo o que havia mister, e tudo o que podia desejar, influiu neste seu dia a Portugal este soberano planeta. Tudo o que Portugal havia mister, e tudo o que podia desejar era ser reino, e ter rei. Porque, ainda que na realidade uma e outra coisa tínhamos, nem o reino sem rei era reino, nem o rei sem reino era rei. Pois, que fez neste seu dia S. José? Para que o rei tivesse reino, influiu ao reino restituição de liberdade. E para que o reino tivesse rei, influiu ao rei qualidades e perfeições reais. Esta será a matéria. Para fundamento e prova de toda ela, não quero mais que ametade das palavras do tema: Joseph, fili David. - Todas as palavras do Evangelho serão prova destas duas e estas duas palavras serão resposta de todas as dividas do Evangelho.

§II

A primeira razão do fili David e a primeira influência de S. José. Se a soberania da prosápia de José estava já tão envelhecida oumecânicos, como lhe chama filho de Davi o anjo? A restauração do Reino de Israel e a restauração do Reino de Portugal.

Joseph, fili David, noli timere. - Estando cuidadoso e aflito S. José entre as perplexidades do mistério da Encarnação, cujos efeitos via, e cujas causas ignorava, diz o nosso evangelista que lhe apareceu um anjo em sonhos, o qual lhe disse assim: Joseph, fili David, noli timere: José, filho de Davi, não temas. - Depois pode ser que pondere o não temas; agora reparo só no filho de Davi. Filho de Davi José a estas horas! Com que fundamento? Se a soberania daquela prosápia estava já tão envelhecida ou tão envilecida em José, que o cetro real de Davi, pela injúria e inconstância dos tempos, tinha já degenerado em suas mãos a instrumentos mecânicos, como lhe chama filho de Davi o anjo? Chame-lhe o que é, não lhe chame o que foi, que isso já não lembra. S. Pedro Crisólogo respondeu a esta dúvida com umas palavras que, sendo escritas em Itália há oitocentos anos, parece que se escreveram em Portugal de três a esta parte: Videtis, fratres, in persona genus vocari, videtis in uno totam prosa piam nuncupari, videtis in Joseph seriem Davidici stemmatis jam citari. Trigesima octana generatione natus quomodo David filius dicitur, nisi quia gentis aperitur arcanum, rides promissionis impletur? - Largas mas divinas palavras! - Chamou o anjo a S. José filho de Davi, sendo a trigésima-oitava geração daquele rei - diz Crisólogo - para que se lembrasse o santo das profecias antigas, e entendesse que o Reino de Israel, tiranizado pelos romanos em seus ditosos tempos, se restituía a seu legítimo sucessor, conforme o juramento feito a el-rei Davi, primeiro fundador daquela coroa: Juravit Dominus David veritatem, et non frustrabitur eam: de fructu ventris fui panam super sedem ruam[6].

Donde é bem que notemos as palavras do juramento, mas quais diz Deus a Davi que o fruto do seu ventre se assentaria no trono real de Judá: De fructu ventris fui ponam super sedem tuam. - Se Deus falara com alguma rainha, parece que estava dito com propriedade: O fruto do teu ventre se tornará a assentar no trono real; - mas falando com um rei, falando com Davi? Sim, porque, como diz Santo Irineu, Tertuliano e Santo Agostinho, quis Deus significar que, quando o reino se restituísse, havia de ser preferindo a prole feminina à masculina, como verdadeiramente aconteceu, porque, ainda que José e Maria eram filhos de Davi, Cristo, que foi o rei prometido, era filho de Davi por Maria, e não por José. O caso é tão semelhante ao do nosso Reino, que não necessita de acomodação. De maneira que temos a restauração de um reino tiranizado, restituído depois de muitas gerações a seu legítimo senhor, preferindo na sucessão a prole feminina à masculina, e tudo conforme as profecias antigas, e juramento do primeiro fundador do reino. Há propriedade mais própria? Pois estas foram as primeiras influências do nosso grande planeta: para que o rei, que hoje nascia, tivesse reino, influir ao reino restituição de liberdade. - E ninguém me diga que se não prova que foram isto influências suas, porque os planetas, quando dominam, influem conforme as suas qualidades, e, sendo este o dia, e estas as qualidades de S. José, não se pode negar que foram estas suas influências.

§ III

A segunda razão do fili David e a segunda influência de S. José. Se este título de filho de Davi o não dá o anjo em nenhuma outra ocasião a S. José, neste caso de sua perplexidade, porque lhe chama José, filho de Davi?

Esta é a primeira razão do fili David. Para a segunda, dificulto as mesmas palavras com diversa ponderação. Este anjo, que aqui apareceu a S. José, tornou-lhe a aparecer outras três vezes: apareceu-lhe em Belém, quando lhe notificou que se desterrasse para o Egito; apareceu-lhe em Egito, quando o avisou da morte de Herodes; apareceu-lhe no caminho de Judéia, quando assegurou que podia ir viver a Nazaré, e de todas estas vezes nenhuma lemos que lhe chamasse filho de Davi. Pois, se este título de filho de Davi o não dá o anjo em nenhuma outra ocasião a S. José, neste caso de sua perplexidade, por que lhe chama José, filho de Davi: Joseph, fili David, noli timere? - Várias razões dão os santos; eu darei também a minha, porque a quero provar. Chamou o anjo a S. José nesta ocasião filho de Davi, porque se houve o santo nesta tão dificultosa ação com tanta realeza de ânimo, que bem mostrava que, ainda que a fortuna lhe tirara a coroa da cabeça, tinha muito de rei no coração. Chamou-lhe filho de rei, porque viu que se portara muito como rei. Esta foi a segunda influência que dizíamos do nosso planeta José neste seu dia. Para que o reino tivesse rei, influir ao rei qualidades e perfeições reais. Bem conheço que parece coisa dificultosa, na ação de uns ciúmes formar a idéia de um príncipe perfeito; mas o discurso me desempenhará, e não nos há de desajudar o Evangelho. Vamos com ele.

§ IV

Como na ação de uns ciúmes formar a idéia de um príncipe perfeito? A primeira coisa em: que S. José se mostra ser filho de Davi. Se perdoar, e não acusar, são atos de piedade, e não de justiça, por que troca o evangelista os termos, e em lugar de chamar a José piedoso, lhe chama justo? O Bom Ladrão e a justiça dos reis.

Joseph autem, cum esset virjustus, et nollet eam traducere, voluit occulte dimittere eam (Mt. 1, 19). - Diz o evangelista que, vendo S. José os indícios tão manifestos da conceição de sua esposa, como fosse varão justo, e a não quisesse entregar à justiça, para que a castigasse conforme a lei... Aqui reparo, antes de ir mais por diante. Uma grande implicação parece que tem este texto. Que quer dizer que a não quis entregar à justiça, porque era justo? Se dissera que a não quis entregar à justiça porque era piedoso, então parece que estava mais propriamente advertido. Perdoar, não acusar, são atos de piedade, não são atos de justiça. Pois, por que troca o evangelista os termos, e em lugar de chamar a José piedoso, lhe chama justo: Joseph autem, cum esset vir justus? - Chama o evangelista a S. José justo, quando fazia uma tão grande ação de piedade, porque, como José tinha tanto de rei: Joseph, fili David - tinha obrigação de justiça a ser piedoso, e quem tem obrigação de justiça a ser piedoso, quando é piedoso é justo. A piedade nos outros homens é piedade, no príncipe é justiça.

Quis o Bom Ladrão que usasse com ele Cristo de piedade, e disse assim: Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum (Lc. 23, 42): Senhor, lembrai-vos de mim, depois que chegardes ao vosso reino. - Depois que chegardes! E antes, por que não? A quem tanto padecia, não lhe estava melhor o socorro jantes mais cedo que mais tarde? Sim, estava. Pois, por que não diz: lembrai-vos, Senhor, de mim agora, senão depois de chegardes a vosso reino? A razão foi, diz S. Crisóstomo, porque a lembrança e piedade que o ladrão pedia antes de Cristo ser Rei, era favor que lhe podia fazer; depois de ser Rei, era justiça que lhe não podia negar. Foi tão astuto requerente o ladrão que, sendo a sua petição de misericórdia, quis que fosse õ seu despacho de justiça. E como os reis têm obrigação de justiça a ser piedosos, por isso disse: Lembrai-vos, Senhor, de mim, não antes, senão depois de virdes ao vosso reino - porque a mesma piedade, que antes de Cristo ser Rei era piedade, depois de ser Rei era justiça. É verdade que a miséria que o ladrão padecia era presente; mas como a misericórdia que esperava antes de Cristo reinar era voluntária, e depois de reinar devida, por isso regulou sabiamente o seu requerimento, não, pelo tempo em que experimenta em si a necessidade, senão para o tempo em que considerava em Cristo a obrigação: Cum veneris in regnum tuum.

Não peço a piedade para agora, senão para depois que estiverdes no vosso reino, porque, ainda que eu a não mereça agora, por ser culpado vós ma devereis depois, por serdes Rei. - E Cristo que já na cruz era Rei, e Cristo, que já na cruz estava no seu reino, que é o que fez? Hodie mecum eris in paradiso (ibid. 43). - O ladrão pedia a piedade para depois, porque cuidava que Cristo ainda não era rei, e Cristo concedeu-lhe a piedade logo, para mostrar que já o era: Hoje estarás comigo no Paraíso. - Como se dissera o Senhor: Pedes-me piedade a título de rei? Pois já ta dou, porque já ta devo: Rei sou. - E se a piedade nos reis é dívida, se a piedade nos reis é justiça, que muito que se chame justo quando foi piedoso quem tinha tanto de rei, como José? Joseph, fili David. - Sendo piedoso foi justo, porque, perdoando a ofensa que suspeitava, pagou o que devia a quem era. O perdão de sua esposa foram obrigações de seu pai. Josepifi fili David.

§V

A segunda coisa em que S. José se mostrou ser filho de Davi: quis deixar a esposa, e não a quis entregar Em nenhuma coisa se mostra mais o ser de rei que em ter querer é ter não querer Por que deserdou Deus a Jônatas, e deu a coroa a Davi? As causas dos padecimentos de Portugal, e a confusão do universo quando o sol parou às vozes de Josué. Quando se tornou Cristo rei de farsa e de zombaria?

Et nollet eam traducere, voluit dimittere eam: Não a quis entregar à justiça, quis deixá-la, e ir-se. - A segunda coisa em que S. José mostrou ser filho de Davi foi aquele nollet e aquele voluit: Quis deixá-la, e não a quis entregar. - Quis e não quis? Oh! quanto tendes de rei, divino José! Em nenhuma coisa se mostra mais o ser de rei que em ter querer e ter não querer. A liberdade da vontade humana, como dizem os teólogos, consiste em uma indiferença que se chama quero ou não quero. Tal há de ser a vontade real: livre, e não sujeita. O príncipe não há de ter a sua vontade sujeita a outrem, nem há de estar sujeito à sua vontade. Se tem a sua vontade sujeita a outrem, não é rei dos seus; se está sujeito à sua vontade, não é rei de si. Pois, para reinar sobre si e sobre os seus há de ter a vontade em uma indiferença tão livre e tão senhora, que seja seu o querer e seu o não querer: nollet, voluit.

Quis Deus tirar o reino a Saul, e, sendo que tinha Saul a Jônatas, seu filho herdeiro, não deu Deus o reino a Jônatas, senão a Davi. Pois, por que razão a Davi, e não a Jônatas? Jônatas era um príncipe muito generoso, muito liberal, muito benigno, muito esforçado, e, sobretudo, era filho herdeiro de um rei, que para o respeito dos vassalos importa muito. Davi, pelo contrário, era um pastor, filho de outro, de quem se não sabiam mais talentos que atirar uma funda e tocar uma harpa. Pois, por que deserda Deus a Jônatas, e dá a coroa a Davi? Eu o direi. Diz o texto, falando de Davi e de Jônatas: Anima Jonathae conglutinara est animae David (1 Rs. 18, 1): que a alma de Jônatas se atou à alma de Davi. - De sorte que, ainda que ambas as almas estavam atadas, a que se atou foi a de Jônatas a Davi, e não a de Davi a Jônatas. Advertiu-o agudamente S. Gregório Taumaturgo: Vincula inferre praestantioris erat, non inferioris, agglutinari autem deterioris, ira quidem ut vinculis expedire se quodammodo non posset. - E como Jônatas se atou a Davi, e Davi a Jônatas não, por isso tira Deus a coroa da cabeça a Jônatas, e mete na mão o cetro a Davi, porque príncipe como Jônatas, que ata a sua vontade à vontade do vassalo, tem talento de vassalo, não tem talento de rei; e vassalo como Davi, que não sabe atar a sua vontade à vontade doutrem, ainda que seja um príncipe, este tem talento de rei, não tem talento de vassalo. E como Deus reparte os ofícios conforme os talentos, e não conforme as qualidades, seja vassalo o príncipe Jônatas, seja rei o pastor Davi. Rei que tenha a vontade atada a outrem, não faz isso Deus.

E por que razão importa tanto que o príncipe não seja sujeito à vontade alheia? Por duas razões: uma da parte do rei, outra da parte do reino. Da parte do rei, porque não é rei, é súdito; da parte do reino, porque não é reino, é confusão, Comecemos por este segundo. Quando o sol parou às vozes de Josué, aconteceram no mundo todas aquelas conseqüências, que, parando o movimento celeste, consideram os filósofos. As plantas por todo aquele tempo não cresceram; as qualidades dos elementos e dos mistos não se alteraram; a geração e corrupção, com que se conserva o mundo, cessou; as artes e os exercícios humanos de um e outro hemisfério estiveram suspensos; os antípodas não trabalhavam, porque lhes faltava a luz: os de cima, cansados de tão comprido dia, deixavam o trabalho; estes pasmados de verem o sol, que se não movia, aqueles também pasmados de esperarem pelo sol, que não chegava; cuidavam que se acabara para eles a luz; imaginavam que se acabava o mundo; tudo eram lágrimas, tudo assombros, tudo horrores, tudo confusões. - Que é isto? Quem desordenou a compostura do universo? Quem descompôs a harmonia da natureza? Donde tanta desordem? Donde. tanta confusão ao mundo? Sabeis donde? A Escritura o disse em duas palavras: Obediente Domino voci hominis (Jos. 10, 14): Obedecendo o Senhor à voz de um homem. - E em um mundo onde o súdito manda e o Senhor obedece, em um mundo onde manda o criado, que havia de obedecer, e obedece o Senhor, que havia de mandar, que muito que haja confusões, que haja desordens, que haja descomposturas? Que muito que nada cresça, que nada se obre? Que muito que os de cima triunfem e os debaixo chorem, e que, nascendo o sol para todos, os de cima levem todas as luzes, e os debaixo todas as trevas?

Com grandes exemplos destes se tem infamado o mundo em todas as idades, e, sem pedirmos aos séculos passados as memórias de Galba nem de Tibério, os nossos olhos são boas testemunhas. Nós o vimos, e nós o vemos. Pergunto: Portugueses, vós que vistes o que padecestes, vós que vedes o que gozais, donde veio tanta diferença em tão poucos anos? A diferença não a pondero, porque a vêem os olhos; a causa por que a vêem é só o que pergunto. Sabeis por quê? Porque então tínhamos um rei sujeito a uma vontade alheia, hoje temos um rei senhor das vontades alheias, e mais da sua; então tínhamos um rei cativo, hoje temos um rei livre; então tínhamos um rei obediente, hoje temos um rei obedecido; então tínhamos um rei senhoreando, hoje temos - e é a segunda razão - porque o rei sujeito à vontade alheia não é senhor. É rei súdito, é rei não rei.

Quando Cristo foi levado à presença de Pilatos, perguntou ele aos ministros daquela justiça: Quid vultis faciam de rege Judaeorum (Mc 15, 12): Que quereis que faça do rei dos judeus? - Responderam os escribas e fariseus: Tolle, tolle, crucifige eum (Jo. 19, 15): Queremos que o crucifiqueis. - E que fez Pilatos? Tradidit eum voluntati eorum (Lc. 23, 25): Entregou-o à vontade deles. - Pergunto agora: Quem fez maior injúria a Cristo enquanto rei dos judeus: os escribas e fariseus na sua petição, ou Pilatos na sua permissão? Os escribas em o pedirem para a cruz, ou Pilatos em o entregar à sua vontade? Todos os doutores comumente condenam mais a Pilatos, e com muita razão. Muito maior injúria fez Pilatos a Cristo com sua permissão do que os fariseus em sua petição, porque os fariseus no que pediam mostravam que Cristo era verdadeiro rei, e Pilatos no que permitia mostrava que Cristo não era rei verdadeiro. Os fariseus mostravam, que era rei verdadeiro, porque pediam a Cristo para a cruz, e não há maior prova de ser verdadeiro rei que chegar a dar o sangue e a vida por seus vassalos. E Pilatos, no que permitia, mostrava que não era rei verdadeiro, porque entregou a Cristo à vontade dos seus, e não há melhor prova de não ser verdadeiro rei que ser rei entregue à vontade alheia: Tradidit eum voluntati eorum. - E se não, vejamos o que se seguiu.

Tanto que Pilatos entregou a Cristo à vontade deles, imediatamente o vestiram de uma púrpura de farsa, deram-lhe um cetro de cana, puseram-lhe uma coroa de espinhos, e faziam-lhes grandes adorações zombando: Illudebant ei, dicentes: Ave rex Judaeorum[7] - De maneira que antes de Cristo estar sujeito à vontade alheia, ainda em suas bocas era verdadeiro rei: Quid vultis faciam de rego Judaeorum? - Mas tanto que o entregaram à vontade alheia, logo foi rei de farsa e de zombaria: Illudebant ei dicentes: Ave rex Judaeorum! - Rei entregue à vontade doutrem terá púrpura, terá cetro, terá coroa, terá adorações; mas a púrpura não é púrpura, o cetro é cana, a coroa espinhas, as adorações zombarias: Illudebant ei dicentes: Ave rex Judaeorum! - E como é tão grande qualidade de rei ter a vontade sua, e não sujeita, por isso o anjo chamou a São José filho de el-rei Davi, quando o viu tão isento senhor de sua vontade, que era seu o querer e o não querer: Cum nollet eam traducere, voluit dimittere eam.

§ VI

Haec autem eo cogitante: Se a vontade de S. José estava deliberada e resoluta, que é o que considerava José; cogitante? Por que Deus antes de condenar a Adão, passeava e se movia de uma parte para a outra? A terceira coisa em que S. José se mostrou ser filho de Davi: em não ser arrojado. Por que fugiu Cristo em Cafarnaum dos que o queriam matar?

Haec autem eo cogitante (Mt. 1, 20). - Resoluto São José a deixar sua esposa, diz o texto que andava o santo considerando: Haec autem eo cogitante. - Esta consideração de S. José me dá muito que considerar e que reparar. Não estava já o santo deliberado e resoluto? Sim, estava, que isso quer dizer aquele voluit: deliberação da vontade. Pois, se a vontade estava deliberada e resoluta, que é o que considerava José? Considerar antes de resolver, isso fazem ou devem fazer todos; mas depois de resolver considerar ainda? Sim, porque as matérias de grande importância - qual esta era – hão - se de considerar antes e mais depois. Antes de resolver há-se de considerar o caso; depois de resolver há-se de considerar a resolução. Esta diferença acho entre a Filosofia natural, e a moral e política: que a Filosofia natural pede um conhecimento antes da deliberação: Nihil volitum, quin praecognitum - a Filosofia moral e política pede um conhecimento antes e outro depois: um conhecimento antes, que guie a vontade a tomar a resolução, e outro conhecimento depois, que examine a resolução depois de tomada. Assim o fez S. José. Conheceu e considerou primeiro, e logo resolveu: voluit - e, depois de resoluto e deliberado, tornou ainda a considerar: Haec autem eo cogitante.

Pecou Adão, escondeu-se, e antes de Deus lhe notificar a sentença de desterro, diz o texto que andava o Senhor passeando e falando consigo no Paraíso: Audivit vocem Dei deambulantis[8] . - As vozes e os passeios, tudo era impróprio em Deus, porque o falar consigo encontrava o atributo de sua sabedoria, e o passear de uma parte para a outra encontrava o atributo de sua imensidade e imutabilidade. Pois, que obrigava a Deus a falar consigo contra o atributo de infinitamente sábio? Que obriga a Deus a passear de uma para outra parte, contra o atributo de imutável e imóvel? Se vinha castigar a Adão, por que o não castiga? Se vinha desterrá-lo do Paraíso, por que o não desterra? Por quê? Porque era matéria grande, e qui-la Deus considerar primeiro. Por isso passeava só, como pensativo, por isso falava consigo, como irresoluto. Procedeu Deus em desfazer o homem como havia procedido em o fazer. Quando o fez, fê-lo com conselho: Faciamus hominem[9] - quando o desfez, desfê-lo com consideração: Audivit vocem Dei deambulantis. - Passear Deus de uma para outra parte parecia descrédito de sua imutabilidade, mas não era senão honra. Com Deus ser por natureza imóvel e imudável, honra-se muito de haver uma coisa que o possa mudar e mover, que é a razão; e, conto no caso de Adão havia razões por uma e outra parte, por isso passeava Deus, e se movia de uma parte para á outra, porque de uma e outra parte havia razões que o movessem.

As razões que havia para castigar o levavam, as razões que havia para perdoar o traziam. - Que me desobedecesse Adão!. Hei de castigá-lo. - Esta razão o levava. - Que haja de lançar do Paraíso um homem que ainda agora pus nele! Não o hei de castigar. - Esta razão o trazia. - Fazer um homem de nada foi crédito de minha bondade; desfazê-lo por pouco mais de nada, por uma maçã, parece demasiado rigor de minha justiça. Ora, perdoe-lhe. - Voltava Deus o passeio. - Mas que um homem levantado de nada se atrevesse contra quem o criou, é grande soberba! E que um homem, por pouco mais de nada, por uma maçã, arrastasse tantos respeitos, é grande ingratidão! Não lhe hei de perdoar. - Tornava a voltar Deus e ir por diante. De maneira que assim andava o supremo rei, como flutuando de uma razão para outra, considerando antes de resolver, e depois de resolver tornando a considerar. Bem assim como São João neste caso. Uma vez sobre considerado resoluto, e outra vez sobre resoluto considerado: Haec autem eo cogitante.

Se fora noutra matéria, não me espantara muito; mas em matéria de ciúmes, em matéria em que lhe não ia menos que honra e amor, que não se arrojasse José, que não se precipitasse? Grande capacidade de ânimo! Lá diz Cristo que, se um cego guia outro cego, ambos se despenham: Caecus si caeco ducatum praestet, nonne ambo in foveam cadunt (Mt. 15, 14; Lc. 6, 39)? - Aqui guiou um cego a outro cego, e não se despenhou nenhum. O ciúme guiava a José, o amor guiava o ciúme, e, sendo cego o ciúme e cego o amor, não foram bastantes dois afetos cegos, e tão cegos, para que a prudência de S. José se precipitasse. Disse afetos cegos, e tão cegos, porque os ciúmes de S. José eram fundados nas evidências do que via, e não há mais perigosas cegueiras que as que têm da sua parte os olhos. Dois olhos e dois cegos guiavam a José neste caso. Oh! que ocasião para um precipício! E que ele se tivesse tão firme nos estribos de sua prudência, que nem a vista lhe deslumbrasse a cegueira, nem a cegueira lhe escurecesse a vista para que se arrojasse! Grande valor! Mas era José filho de Davi, e quem tinha tanto de rei, como havia de ser arrojado?

Quiseram matar a Cristo os de Cafarnaum, e com este intento o levaram a um monte alto, para daí o despenharem. Que faria Cristo neste passo? Fez-se invisível, e, passando oculto pelo meio deles, escapou de suas mãos. Senhor, que resolução é esta? Vós não viestes ao mundo a morrer pelos homens? Sim, viestes. Morrer a mão dos mesmos por quem se morre, ainda é maior crédito do amor que seja o instrumento quem é a causa. Pois, se tendei tão boa ocasião de dar a vida, por que a não lograis? Por que fugis da morte? Direi: Cristo, Senhor nosso, no dia de sua morte tinha determinado tomar o título de rei, de que na vida fugira; estes homens queriam-no matar, arrojando-o de um monte abaixo: Ut praecipitarent eum[10] - e posto que o Senhor desejasse muito morrer, não admitiu este gênero de morte, porque não dizia bem o nome ou semelhança de arrojado com o título de rei. Rei, e crucificado, sim, que assaz cruz é o reinar; mas rei, e arrojado, não, porque encontra o título dessa cruz. Lá outra vez aconselhou o diabo a Cristo que se arrojasse ele: Mitte te deorsum[11]. - Estes homens quiseram-no arrojar com suas mãos: Ut praecipitarent eum - mas Cristo nem se sujeitou a esta violência, nem quis tomar aquele conselho, porque o príncipe nem se há de arrojar a si, nem o há de arrojar outrem. Nem por ímpeto próprio, nem por impulso alheio. E como é tão grande parte de rei não ser arrojado, por isso S. José o foi tão pouco nesta ocasião, que o achou o anjo temeroso, quando o pudera achar temerário: Joseph, fili David, noli timere. - Oh! que glorioso não temas! Que desçam anjos a sossegar temeres em ocasião que deveram descer a resistir temeridades! Mas assim obra quem assim considera, e assim considera quem é filho de Davi: Haec autem eo cogitante.

§ VII

Eo: consigo, uma palavra de duas letras que tem muito que reparar. Quando o segredo importa mais que a resolução. Por que adormeceu João a resposta de Cristo, quando lhe perguntou quem era o traidor? Quanto importava um segredo para a conservação do império de Cristo. O véu do templo e o império da Sinagoga. Como venceu Davi os exércitos de Absalão? O grande poder do segredo. Cristo e o segredo entre a mão direita e a mão esquerda. Por que o anjo apareceu à S. José em sonhos, é não acordado?

Já reparamos no cogitante; reparemos agora no eo: Haec autem - eo -cogitante. - Com ser uma palavra de só duas letras tem muito que reparar. Diz o evangelista que as considerações que José fazia sobre este caso ele as discorria consigo - eo: ele. Muito pondera Eutímio que as não comunicasse com outrem, e tem razão, porque o cuidado e aflição de S. José havia mister alívio e remédio: o alívio estava na comunicação, o remédio no conselho; pois, por que se não aconselha S. José em um caso tão duvidoso, por que o não comunica com outrem? Porque em matérias grandes, como era esta, muitas vezes importa mais o segredo que a resolução, e negócio em que importa tanto o segredo, não fora S. José filho de Davi, se o comunicara com outrem. Matérias em que pode ser perigosa a falta do segredo, não hão de sair do peito do príncipe nem para o maior valido, nem para o maior confidente, nem para o maior amigo.

É certo que perguntou S. João a Cristo quem era o traidor que o havia de entregar, é certo que Cristo lhe respondeu, é certo que dormiu reclinado em seu peito S. João, mas não é certo quando adormeceu. Pergunto: em que ponto adormeceu S. João? Dizem alguns doutores que adormeceu tanto que acabou de perguntar, de maneira que, quando Cristo respondeu, já S. João estava dormindo. Fundam este parecer no texto, porque diz absolutamente que nenhum dos que estavam à mesa soube o que Cristo disse a Judas, quando logo foi executar o mesmo segredo: Hoc autem nemo scivit discumbentium[12]. - Se nenhum, logo nem S. João. E se S. João, a quem se disse, o não ouviu, logo já estava dormindo. Pois, que mistério teve este sono súbito, que em tal ocasião não podia ser acaso? Por que adormeceu S. João à resposta de Cristo? O mistério foi este. Viu-se Cristo, Senhor nosso, naquela ocasião a faltar a uma de duas: ou ao respeito de amigo, ou à obrigação de rei. - Se não digo a João o que me pergunta, falto aos respeitos de amigo; se descubro um segredo de tanta importância, falto às obrigações de rei: pois, que remédio para não faltar ao amor nem ao segredo?

546.O remédio foi ordenar Cristo que S. João adormecesse tanto que perguntou, para que não pudesse ouvir o mesmo que lhe respondia. E desta maneira ficou o Senhor satisfaz respeitos de amigo: aos respeitos lhe perguntara, e às obrigações d encobrir-se. De sorte que na boca segredo juntamente encoberto e segredo de amigo; encoberto nos devem os príncipes recatar algum era João. E se não, considerem seguiam. Se o Senhor descobrir, Pedro, que para isso o pergunta matar a Judas, que a esse fim o não se executava a venda e moro impedido o remédio do mundo, do mesmo Cristo frustrado. Há maiores inconvientes? De maneira que de se conservar aquele segredo, que não parecia nada, dependeu a conservação do império de Cristo. Não importa menos um segredo que um império.

Tanto que Cristo expirou, rasgou-se o véu do Templo, em sinal de  que também a Sinagoga expirava, e se acabava a monarquia hebréia.Assim o dizem todos os doutores, mas eu replico. O sinal sempre há de ter proporção com o que significa, e muita, se é natural; pois, que proporção tinha rasgar-se o véu do Templo com se haver de acabar o império da Sinagoga? Grande proporção, diz S. Leão Papa: Sacrum illud mysticumque secretum, queri solum summus Pontifex jussus fuerat intrare, reseratum est; Aquele véu do Templo era a cortina que cobria o Sancta Sanctorum, onde estavam escondidos os segredos e mistérios daquela lei, vedados a todos, e só ao Sumo Sacerdote permitidos, e por isso tinha grande proporção rasgar-se o véu do Templo, para significar que se acabava a Sinagoga, porque não há mais próprio sinal de se acabar um império, uma monarquia, que romperem-se as cortinas dos seus mistérios, e rasgarem-se os véus dos seus segredos. Os reinos e as monarquias sustentam-se mais do misterioso que do verdadeiro, e se se manifestam seus mistérios, mal os defendem as suas verdades. A opinião é a vida dos impérios, o segredo é a alma da opinião. A prevenção sabida ameaça a uma só parte, secreta ameaça a todas. Os intentos ignorados suspendem a atenção do inimigo, manifestos são a guia mais segura de seus acertos. Reino cujas resoluções primeiro forem públicas que executadas, oh! que perigosa conjectura tem de sua conservação!

Que bem entendia esta política el-rei Davi! Levantou-se Absalão com o reino, começou a fazer grandes levas de gente, grandes exércitos contra Davi; e Davi, que faria contra Absalão? Chamou Cusai, um grande seu conselheiro, disse-lhe que se passasse à confidência de Absalão, e que, como fosse admitido aos conselhos, lhe revelasse por vias ocultas tudo o que lá passasse: Omne verbum quodcumque audieris de domo regis, indicabis[13]. - Isto fez Davi, e não fez mais. - Pois, Davi, se vêm contra vós tão numerosos exércitos de Absalão, por que não fazeis também exército? E já que vos descuidais destas prevenções, a que fim mandais lá Cusai? Que há de fazer um homem contra Absalão? Obrou Davi como soldado tão experimentado, e como rei tão político. Querendo-se opor ao poder de Absalão, tratou sobretudo de lhe meter um confidente seu no conselho, porque entendeu que maior guerra fazia a Absalão com um homem que lhe rompesse os seus segredos, que com muitos mil homens que lhe rompessem os seus exércitos. Um exército roto pode-se refazer, mas um segredo roto não se pode remediar. Um exército roto pode-se refazer com soldados, um segredo roto não se pode soldar com exércitos.

Qualquer grande poder sem segredo é fraqueza, e a mesma fraqueza com segredo é grande poder. Enquanto Sansão encobriu o segredo dos seus cabelos, destruiu exércitos inteiros; como descobriu o segredo a Dalila, coroaram-lhe os cabelos os filisteus, e puderam atar aquelas valentes mãos, de quem tantas vezes foram vencidos. Oh! que grande exemplo do poder do segredo! De maneira que sete cabelos, com segredo, faziam tremer exércitos armados; e esse mesmo poder que fazia tremer exércitos armados, sem segredo, bastou um golpe de uma tesoura para o desbaratar. Por isso Davi contra Absalão tratou de lhe conquistar os segredos, e não de lhe vencer os exércitos. E se tanta estimação fazia de um segredo Davi, porque era rei, que muito que fizesse tanta estimação do segredo José, porque era filho de Davi? Joseph, fili David.

Fez tão grande estimação do segredo S. José, que não só o não fiou de outrem, mas também não o fiou de si. Para bem se guardar o segredo, não só o havemos de recatar dos outros, mas também o havemos de recatar de nós. O meu segredo há-o de saber alguma parte de mim, mas todo eu não o hei de saber. Hei de fazer, um repartimento entre eu e mim, e se o souber ametade de mim, não o há de saber a outra ametade. Parece doutrina paradoxa, e é conselho expresso de Cristo: Cum facis eleemosynam, nesciat sinistra tua quid faciat dextera tua (Mt. 6, 3): Quando fizeres alguma esmola com a mão direita, não o saiba a mão esquerda. - Pergunto: E por que não disse Cristo: quando fizeres alguma esmola com a mão esquerda não o saiba a mão direita? Porque a mão direita é mais nobre, a mão esquerda menos; e da mais nobre fiou Cristo a liberalidade, da menos nobre desconfiou o segredo. O segredo a ninguém; mas, havendo de ser, às maiores qualidades. Diz, pois, Cristo: O que souber a mão direita, não o saiba a esquerda. -Como se dissera: Haveis dê fazer um repartimento entre vós e avós, e o segredo que souber aquela ametade, que chega da mão direita até o coração, não o saiba a outra ametade, que chega do coração até à mão esquerda. - Assim o fez S. José.

551.O seu segredo sabia-o parte de S. José, mas todo S. José não o sabia. Sabia-o a parte mais nobre da alma com suas potências; mas não o sabia a parte menos nobre do corpo com seus sentidos. Sabiam-no as potências da alma, porque o sabia a vontade: voluit - e o entendimento: cogitante; mas não o sabiam os sentidos do corpo, porque nem a boca o pronunciou, nem os olhos o significaram, nem em outro algum sentido se viu indício. Donde se verá a razão por que o anjo apareceu a S. José em sonhos: Angelus Domini apparuit in somnis Joseph (Mt. 1, 20). - E por que não acordado, senão dormindo? Porque como S. José fiara o segredo só às potências da alma, e não aos sentidos do corpo, esperou o anjo que os sentidos estivessem dormindo, para acudir ao remédio sem violar o segredo: Angelus Domini apparuit insomnis Joseph, quod nulli fuerat ipse confessus, sed inclusum tantummodo mente volvebat- disse advertidamente S. João Crisóstomo. Tanto recato guardou S. José, e tanto respeito o anjo a um segredo!

§ VIII

Como podia S. José dormir e cuidar juntamente? Diferença entre o sono dos príncipes e o dos outros homens. Como dormia o rei do Egito, Faraó, e o rei dos assírios, Nabuco.

Haec autem eo cogitante, ecce angelus Domini apparuit in somnis Joseph. Estando. S. José cuidando nestas coisas, apareceu-lhe um anjo em sonhos - diz o evangelista. Notável conseqüência! Se sonhava, logo dormia; e se dormia, como cuidava? Dormir e cuidar juntamente, parece que não pode ser. Pois, se estava cuidando: haec autem eo cogitante - como estava juntamente dormindo: Ecce angelus Domini apparuit in somnis Joseph? - Dormia e mais cuidava S. José, porque era filho de Davi. Esta diferença faz o sono dos príncipes ao dos outros homens - que os reis cuidam dormindo, e dormem cuidando. O sono dos reis é um sono desvelado, é um dormir cuidadoso, um descansar inquieto, um desatender advertido, um descuidar-sese vigiando. Nos outros homens o sono é prisão dos sentidos; nos reis é dissimulação somente. Por isso ao leão lhe deram o império dos animais, porque dorme com os olhos abertos. Nenhum rei fechou os olhos, que lhe não fizesse sentinela o coração: Ego dormio, et cor meum vigilat[14] - dizia o rei mais sábio.

Dormindo estava Faraó quando viu aquele sonho admirável das sete vacas fracas, que comiam as sete robustas, em que se significavam os sete anos de fartura e os outros sete de fome, que haviam de suceder no Egito (Gên. 40). Era rei, por isso lhe inquietavam o sono estes cuidados. Catorze anos antes levava Faraó adiantado o governo de seus vassalos, e já então sonhava com seus bens, e o desvelavam seus males. Isto é dormir como rei. Nos outros homens o sono é uma morte, nos príncipes o sono são duas vidas. Faraó acordado, vivia no tempo presente; dormindo, vivia no presente e mais no futuro: no presente por duração, no futuro por cuidado. Mais via Faraó dormindo com os olhos fechados que acordado com os olhos abertos: acordado com os olhos abertos via o que já era, dormindo com os olhos fechados via o que ainda não era, só porque havia de ser. Fechou os olhos para dobrar a esfera da vista. Com os olhos abertos, via poucos espaços de lugar; com os olhos fechados, alcançava grandes distâncias de tempo. Assim dormia o rei do Egito, Faraó. E o rei dos assírios, Nabuco, como dormia? Dormia sonhando com o seu reino e com os estranhos.

Viu Nabucodonosor aquela prodigiosa estátua, que representava os quatro impérios: dos assírios, dos persas, dos gregos, e dos romanos (Dan. 2): o corpo estava descuidado com os sentidos presos, e a alma andava cuidadosa, levantando e derrubando estátuas, fantasiando reinos e monarquias. Mais fazia Nabucodonosor dormindo que acordado, porque acordado cuidava no governo de um reino, e dormindo imaginava na sucessão de quatro. Pois, se Nabuco era rei dos assírios, quem o metia com o império dos persas, com o dos gregos, com o dos romanos? Quem? A obrigação do ofício que tinha. Era rei, e quem quer conservar o reino próprio há de sonhar com os estranhos. Do reino próprio há de ter cuidado, e os reinos alheios lhe hão de dar cuidado. Ninguém governou bem o seu reino, que não atendesse ao governo de todos. O bom rei tem por esfera o mundo. É rei do seu reino pelo domínio, e rei de todos os reinos pelo cuidado. E como o dormir e o cuidar não é contradição nos reis, senão natureza, ou obrigação quando menos, tendo S. José"tanto de rei, não é muito que estivesse cuidando e dormindo juntamente: Haec autem eo cogitante, ecce angelus Domini apparuit in somnis Joseph.

§IX

Como podia S. José cuidar e dormir juntamente? Por que foi Cristo alegrar-se ao Monte Tabor quando mais cuidadosamente tratava o negócio da redenção? Por que também é parte de rei no meio dos, maiores cuidados tomar algum descanso?

Ora eu não me espanto tanto de que S. José dormindo cuidasse, senão de que cuidando dormisse. Que dormindo pudesse ter tais cuidados, não me espanta; mas que tendo tais cuidados pudesse dormir, isto me admira. O certo é que tanto mostrou S. José a realeza de seu ânimo em dormindo poder ter tais cuidados, como em tendo tais cuidados poder dormir. No meio dos maiores cuidados ter magnanimidade de coração para dar algum alívio aos sentidos também é parte do rei.

Transfigurou-se Cristo no Monte Tabor (Mt. 17), dando um bom dia a sua humanidade sagrada, o melhor que nesta vida teve, ação em que sempre reparei muito, não tanto pelo descostume, quanto pelo tempo. O tempo em que Cristo se transfigurou foi quando trazia entre mãos os negócios da redenção do mundo, e andava em vésperas de a concluir, como bem mostraram as práticas que teve com Moisés e Elias. Pois, Senhor meu, se andais com um negócio de tanta importância entre as mãos, se andais em vésperas de concluir não menos que a redenção do mundo, como vos ides ao retiro de Monte Tabor? Como tomais horas de recreação? Como vos pondes a ouvir vozes do céu? No meio de tão grandes cuidados esse divertimento? Sim. Foi Cristo alegrar- se ao Monte Tabor quando mais cuidadosamente tratava o negócio da redenção, para mostrar que não é contra a obrigação de rei, nem de redentor, no meio dos maiores cuidados tomar um dia de monte: Duci in montan.a pars regni est - disse discretamente S. Jerônimo: Tomar um dia de monte, tomar uma hora de recreação no meio dos maiores cuidados, também é parte de rei. - Descansar para cansar mais, antes é ambição de trabalho que desejo de descanso. Quando as potências da alma estão tão fatigadas, justo é que se dê algum alívio aos sentidos do corpo. Mas reparo nas palavras do santo: Pars regni est: se dissera S. Jerônimo que os moderados passatempos são privilégios das majestades, se dissera que são gages do poder supremo, que são divertimentos lícita e honestamente soberanos, bem estava; mas dizer que são qualidades de rei, e parte de reinar: pars regni est? Sim, porque o principal atributo de reinar é atender ao cuidado do reino, e também é parte de atender aos cuidados descuidar-se por uma hora deles.

Para digerir o negócio é necessário desafogar o ânimo; parte é logo de cuidado o divertir-se, quando o recrear os sentidos vem a ser habilitar as potências. Não quero outra prova mais que a do nosso Evangelho. Dois estados teve S. José neste seu caso, um de cuidadoso, quando imaginava, outro de divertido, quando dormia. Pergunto: E quando resolveu S. José o negócio que tanta pena lhe dava? Quando? Quando se divertiu um pouco dele. Quando cuidadoso imaginava, tudo eram dúvidas, tudo escrúpulos, tudo perplexidades; quando se divertiu um pouco dormindo, sanaram-se as tempestades do ânimo, e desfez a verdade a confusão que o trazia perplexo. De maneira que o demasiado cuidado lhe embaraçava a resolução, e o moderado descanso lhe resolveu o cuidado. Quando deu a recreação aos sentidos, então achou a solução dos negócios: Ecce angelus Domini apparuit in somnis Joseph. - E como também é parte de rei no meio dos maiores cuidados tomar algum descanso, por isso o anjo, quando achou dormindo a S. José no meio dos seus, lhe chamou filho de el-rei Davi: Joseph, fili David, noli timere.

§X

S. José e a proteção aos reis. Por que se perdeu Portugal por falta de anos, e não por falta de reis? As boas influências do benigno planeta nas qualidades do nascimento e na conservação de vida de el-rei. Conclusão.

Temos acabado a segunda influência do nosso planeta, que foi, para que o reino tivesse rei, influir ao rei qualidades e perdições reais. Na aplicação delas se me oferecia agora larga matéria a um agradável discurso, se pregara em outro lugar. Mas aconteceu-me hoje o que a Plínio com a majestade de Trajano, que a presença de tão moderado príncipe lhe impedia a maior parte de sua oração, quase ofendendo com o silêncio suas virtudes, por não ofender com o discurso sua modéstia: Orationem meam ad modestiam principis moderationemque submittam, nec minus considerabo, quid.aures ejus pati possint, quam quod virtutibus debeatur. - E assim, para que os louvores sejam só de S. José, e para que se não falte da nossa parte ao reconhecimento agradecido das grandes obrigações que lhe devemos, saibamo.s que não só foram influências deste benigno planeta as qualidades do nascimento, senão a conservarão da vida, que Sua Majestade logre por compridíssimos anos, para que contemos muitos dias destes. Nenhum rei teve mais arriscada a vida, e com ela o reino, que aqueles três reis que no nascimento de Cristo o adoraram, porque estavam debaixo da jurisdição de Herodes, e sujeitos às temeridades de sua tirania. Contudo, Deus os levou por tais caminhos, que eles conservaram as vidas, e se restituíram a seus reinos. Mas por que merecimentos?

Ouvi umas palavras de S. Jerônimo, de poucos até hoje bem entendidas: Responsum accipiunt non per angelum, sed per ipsum Dominum, ut meritorum loseph privilegium demonstraretur: Ensinou-lhes Deus imediatamente o caminho por onde se haviam de restituir salvos a seus reinos, por que se vissem os privilégios de S. José: Ut Joseph privilegium demonstraretur. - Salvarem-se os reis apesar do tirano, privilégio dos reis parece, porque eles o gozaram; pois, como diz S. Jerônimo que não foi senão privilégio de S. José: Ut privilegium Joseph demonstraretur? Como S. José era do real sangue de Davi, ainda por força natural do sangue estão tão vinculados seus merecimentos ao patrocínio das pessoas reais, que quando Deus guarda os reis, fá-lo pelos privilégios de S. José. Dos reis foi o benefício, mas de S. José foi o privilégio: Ut Joseph privilegium demonstraretur. Assim que conservar sua Majestade a vida apesar do opositor - que lhe não quero dar outro nome - dentro em suas próprias terras, e restituir-se a seu reino por caminhos tão outros do que se podia esperar: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam[15] - fortunas são de Sua Majestade, mas foram privilégios de S. José: Ut Joseph privilegium demonstraretur. A S. José devemos a vida e os anos do rei, que nos deu em seu dia.

Mas quero eu por fim que advirtamos que, ainda que nos deu o rei e os anos, mais lhe devemos pelos anos que pelo rei. Ora, notai. O reino de Portugal não se perdeu por falta de rei, perdeu-se por falta de anos. Não se perdeu por falta de rei, porque nas mãos de dois reis se perdeu: nas mãos de el-rei D. Sebastião e nas mãos de el-rei D. Henrique. Perdeu-se, porém, por falta de anos, porque el-rei D. Henrique tinha tantos anos que nos não pôde deixar sucessor, e el-rei D. Sebastião tinha tão poucos que, sem nos deixar sucessor, se foi matar à África. E como o reino se perdeu por falta de anos e não por falta de rei, não devemos tanto a S. José pelo rei, como pelos anos, porque nos deu um rei de tal idade, e em tal mediania de anos, qual o havíamos mister. Nem tão poucos anos como os de el-rei D. Sebastião, porque havia mister mais anos o governo; nem tantos anos como os de el-rei D. Henrique, porque havia mister menos anos a sucessão. Um rei que tivesse vivido os anos que bastassem para a experiência, e que lhe faltassem por viver os anos que são necessários para a conservação. Anos maduros para o conselho, eficazes para a execução, robustos para o trabalho, fortes e animosos para a guerra, enfim anos que se hão de continuar com muitos e felicíssimos, que debaixo do patrocínio de José não há anos infelizes, ainda que os prometeu o tempo. Faraó sonhou com sete anos de fartura e sete de fome: pôs-se debaixo do patrocínio de José, e todos os catorze anos foram de fartura. De maneira que na previsão do rei havia anos felizes e infelizes, mas na proteção de José os felizes e os infelizes todos foram ditosos. Assim serão os anos que esperamos - por mais que o mundo padeça calamidades - felizes todos por favor de S. José: felizes na vida de suas Majestades e Altezas, felizes em gloriosas vitórias de nossas armas, felizes na conservação e perpetuidade do nosso reino, felizes, enfim, na reforma dos costumes e aumento das virtudes cristãs por meio da graça. Quam mihi, et vobis, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] José, filho de Davi, não temas (Mt. 1, 20).

[2] E estava à obediência deles (Lc. 2, 51).

[3] Formosa como a lua (Cânt. 6, 9).

[4] Luzirão como as estrelas por toda a eternidade (Dan. 12, 3).

[5] Uma mulher vestida de sol, que tinha a lua debaixo dos pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça (Apc. 12,1).

[6] Jurou o Senhor verdade a Davi, e não deixará de cumpri-Ia: Do fruto do teu ventre porei sobre o teu trono (SI.131,11).

[7] Escarneciam-no, dizendo: Deus te salve, rei dos judeus (Mt. 27, 29).

[8] Ouviu a voz de Deus, que passeava (Gên. 3, 8).

[9] Façamos o homem (Gên. 1; 26).

[10] Para o precipitarem (Lc. 4, 29).

[11] Lança-te daqui abaixo (Mt. 4, 6).

[12]Nenhum, porém, dos que estavam à mesa percebeu (Jo. 13, 28).

[13]Tudo o que ouvires da casa do rei, avisarás (2 Rs. 15, 35).

[14] Eu durmo, e o meu coração vela (Cânt. 5, 2).

[15] Voltaram por outro caminho para a sua terra (Mt. 2,12).