Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão nono - Braço, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. VIII Erechim: EDELBRA, 1998

SERMÃO NONO 

BRAÇO

Posuit pedem suum dextrum super mare, sinistrum autem super terram.[1]

§I

A última cláusula da Novena.

A crueldade mais honrosa, ou a honra mais cruel que nunca viu o mundo, é um tremendo espetáculo, que primeiro assombrou a terra, e depois o mar, o qual eu reservei de propósito para esta última cláusula da nossa Novena.

§II

As espécies aromáticas celestiais que conservaram incorrupto o corpo de São Francisco Xavier Por que não executou a morte em Xavier os seus poderes? A indulgência universal e plenária que as relíquias de Xavier concederam de caminho no porto de Malaca, dizimado pela peste.

Morreu, enfim, S. Francisco Xavier, e como não há duas coisas tão parecidas como a morte e a vida, sendo tão miraculosa a sua vida, não podiam faltar milagres na sua morte. Depois dela não foi embalsamado seu corpo, como era antigo costume, ou rito funeral do Oriente; mas como o mesmo corpo foi habitado cinqüenta e cinco anos daquela alma santíssima, casa de tantas virtudes, elas foram o bálsamo, a mirra, o nardo, o aloés, e as outras espécies aromáticas celestiais, que o conservaram incorrupto, cheiroso, e tão inteiro como vivo. Inest quaedam ejusmodi virtus in corporibus sanctorum, propter tot annos, inhabitatas in illis animas justas, quorum ministerio usae sunt - diz S. Cirilo Jerosolimitano. É este privilégio raro, e concedido por Deus àqueles santos que particularmente mereceram o nome de seus: Non dabis sanctum tuum videre corruptionem[2]. - E quem mais santo de Deus: sanctum tuum - e de Deus todo, e em tudo, e por tudo que Xavier?

A morte é filha do pecado: Per pecattum mors (Rom. 5,12). - E no pecado de Adão, onde ela teve o seu princípio, alcançou também o poder, não de matar os homens, mas de lhes corromper os corpos, e os resolver em : Pulvis es, et in pulverem reverteris[3]. - Esta é a queixa ou horror que tinha Davi, não da morte, senão do , em que ela o havia de desfazer na sepultura: Et in pulverem mortis deduxisti me[4]. - Pois, se estes são os teus poderes, ó morte, por que os não executaste em Xavier? Não dirás que te faltaram os instrumentos mais eficazes deste teu segundo rigor, porque duas vezes foi o santo cadáver coberto de cal viva, que é a lima mais forte e mordaz para roer e desfazer em toda a matéria tão vária, de que se compõe a fábrica de um corpo, até lhe despir e desconjuntar os ossos. Mas foi tal o respeito com que a sua natural voracidade reverenciou aqueles despojos da vida na imagem morta de Xavier, que nem no menor fio da roupa se atreveu a lhe tocar, com que também a mesma cal por este milagre mereceu ser venerada por relíquia.

Mais. Aquele último acidente congela o sangue, seca a carne, endurece os nervos, muda e desmaia as cores; porém todos estes efeitos ou conseqüências da morte naquele corpo morto, ou naquele milagre vivo, ficaram tão parados, ou tão pasmados, que o sangue corria líquido, a carne cedia branda, os nervos se dobravam flexíveis, e a cor, frescura e graça do rosto estava tão constante, e tão a mesma, que os que trataram o santo em vida, porque não falava o julgavam por morto. Enganava-se a vista, enganava-se o tato, enganava-se o olfato, e até o gosto se enganou, porque houve devoção atrevida, ou tão faminta, que com os dentes lhe cortou parte um dedo do a furto, e como se a morte de Xavier fora mistério de , o ouvido cria e confessava que não estava vivo. Que fizeste logo, ó morte, ou por que não fizeste o que costumas?

Não fez a morte no corpo de Xavier o que costuma nos outros, porque morreu matando. Ela matou a Xavier, e Xavier a matou a ela. Foi como a abelha, que ferindo morre, ou menos doce, e mais nobremente, como Sansão, que morreu matando. Nem realçam pouco a propriedade de semelhança as duas colunas do anjo que representava a Xavier. A morte quando mata e vive, depois de separar a alma, corrompe o corpo; mas quando matando morre, perde totalmente as forças, ficando ela o cadáver da morte, e o cadáver inteiro e incorrupto com todos os outros acidentes de vivo. Assim antecipou Xavier em si mesmo, como precursor de Cristo nesta parte, o que ele como triunfador da morte há de fazer universalmente no fim do mundo. Ouçamos a S. Paulo: Oportet corruptibile hoc induere incorruptionem, et mortale hoc induere immortalitatem. Cum autem mortale hoc induerit immortalitatem, tunc fiet sermo, qui scriptus est: Absorpta est mors in victoria (1 Cor. 15, 53 s): Virá tempo - diz o apóstolo - em que este corpo corruptível e mortal se revista de imortalidade, e fique incorruptível, e então se cumprirá o que está escrito, que a morte ficará afogada na sua vitória. - Note-se muito aquele tunc: então, porque o revestir-se o corpo corruptível de incorruptibilidade, que é o que se há de fazer no fim do mundo, isso mesmo se fez na morte de Xavier antecipadamente, e pelo mesmo modo, isto é, afogando-se a morte na sua própria vitória: Absorpta est mors in victoria. - Venceu, afogou e matou a morte a Xavier, mas quando o afogou, ficou ela afogada, quando o venceu, ficou ela vencida, e quando o matou, ficou ela morta. Foi a morte como Eleazaro quando matou o elefante, e Xavier como o elefante da índia, que caiu morto sobre ele, e o sepultou debaixo de si.

Não é metáfora o que digo, senão verdade experimentada, e vista logo pelos olhos em próprios termos. A primeira jornada que fez Xavier depois de morto foi das praias de Sanchão, onde o sepultaram, ao porto de Malaca. Ardia a cidade em uma severíssima peste, andando a morte com a foice tremendamente ensangüentada por toda a parte, entre gentios e cristãos, segando vidas sem-número. E agora quero eu fazer uma apóstrofe, não aos vivos, ou moribundos, senão ao corpo morto de Xavier. Esta é, para que a um tão grande santo não faltasse o caráter da verdadeira santidade, que são as perseguições, e a herança que Cristo deixou em morgado aos seus apóstolos, quando lhes disse: Si me persecutì sunt, et vos persequentur[5]. -Esta é, padre mestre Francisco, aquela ingrata e indigna, por não dizer infame cidade na qual, devendo-vos a fé, a doutrina e a liberdade, tantas vezes e tão milagrosamente conservada por vós, e defendida de seus inimigos, por obedecer e adular a impiedade de um tirano, que a governava, fostes tão enormemente injuriado e afrontado pelas ruas públicas, e a autoridade e bulas apostólicas, como falsificador delas, desobedecidas e desprezadas, e da qual, como rebelde, maldita e excomungada, vos despedistes sacudindo o pó dos sapatos, conforme o conselho de Cristo, em testemunho ao céu e à terra de sua rematada obstinação. Então sofreu tudo vossa invicta paciência, como insensível e mudo; mas agora, que a justiça divina se tem declarado em a castigar, e defender vossa inocência, metendo-lhe nas entranhas o veneno irreparável do ar corrupto, com que a mesma respiração, em lugar de ser alento e alimento da vida, se lhe converta em laço e garrote da morte. Agora, agora é tempo que vós também vos ponhais da parte da mesma justiça, e que essa caixa tosca, em que estais metido morto, como outra Arca do Testamento, em que residia Deus vivo, faça a destruição e extermínio em Malaca, que ela cativa e afrontada fazia em todas as terras dos filisteus inimigos aonde chegava.

Isto é o que a razão, a verdade e a justiça devia aconselhar e persuadir a Xavier. Mas como mostraria, ele que era morto, o mesmo que tinha sido vivo? Sai, e aparece o sagrado depósito em terra, e no mesmo ponto, todos os que estavam feridos e expirando da peste, se levantavam subitamente sãos. Purificou-se o ar, desapareceu e fugiu o contágio, sem ferir mais nem tocar em cristão algum nem gentio. E a morte também quis fugir, mas nas mesmas covas que estavam abertas para os moribundos a meteu e encerrou Xavier como triunfador dela. Tinha a morte e os inimigos de Cristo presidia­do o seu sepulcro com guardas de muitos soldados armados: Cujus sepulchrum plurimo custode signabat lapis. - Mas que aproveitaram estas cautelas contra o triunfador da morte? Festiva e discretissimamente o cantou a Igreja: Victor triumphat, et suo mortem sepulchro funerat. A mesma morte que o tinha morto, sepultou ele no seu sepulcro. - Do mesmo modo o fez Xavier, não em uma só cova, onde ela o tinha metido nas praias de Sanchão, mas nas muitas covas que a mesma morte tinha aberto em Malaca, para os que nela ia matando. Na morte de Cristo abriram-se muitas sepulturas: Monumenta aperta sunt (Mt. 27, 52). - E que sucedeu pouco depois? Que quantas eram as covas abertas, tantos foram os mortos que delas saíram ressuscitados: Et multa corpora sanctorum, quae dormierant, surrexerunt (ibid). - Julgue-se agora se foi mais ou menos que se levantassem vivos e sãos, e não entrassem nas sepulturas tantas quantas eram as sepulturas que a morte lhes tinha aberto, e estes não somente santos como aqueles: Multa corpora sanctorum - mas cristãos com fé, e gentios sem ela, sem diferença nem exceção todos.

§ III

O afeto, o aplauso, a magnificência e o triunfo com que foram recebidas em Goa as relíquias de Xavier.

Tão universal e plenária foi a indulgência que as relíquias de Xavier ali concederam só de caminho, sendo a sua derrota direitamente a Goa. Mas que eloqüência será bastante a referir a devoção, o afeto, o aplauso, a magnificência e triunfo com que foi recebido naquela imperial metrópole da Ásia, morto, quem tanto lho tinha merecido em vida? Deixo sete manifestos naufrágios, de que o santo livrou a nau que o levava, com outros tantos milagres. Mas não posso passar em silêncio o que agora direi. Tanto que em Goa se soube a alegre nova, o padre provincial da Companhia, com outros três religiosos, partiram em um catur a encontrar o sagrado hóspede; acharam a nau em Baticala, não surta, mas sobre a vela ao pairo; e tanto que passaram ao catur a caixa em que vinha o santo corpo, a nau sem vento, sem tocar em baixio, e sem ocasião alguma de perigo, se foi por si mesmo direita ao fundo, como quem tinha cumprido com seu ofício. Para que se não cansem os expositores em inquirir que foi feito da estrela do Oriente, depois que parou sobre o presépio de Cristo, uma e outra se foi a pique, que também o ar tem fundo. Assim quis Deus honrar a Xavier, mostrando que o que tinha criado para servir a seu Filho, e o que tinha fabricado para servir a seu servo, era decência e autoridade que, em acabando de os servir, acabassem juntamente, e não servissem a outrem. Anoiteceu o catur na barra de Goa, onde ninguém dormiu aquela noite, nem houve dia que tanto tardasse em amanhecer, dizendo algum pensamento poético que a aurora se detinha em se enfeitar, para mais arraiada, e mais formosa que nunca, abrir as portas ao sol do Oriente. Ao primeiro romper da luz partiram de voga arrancada em demanda do catur dezoito bargantis, e neles a principal fidalguia daquela então segunda corte de Portugal, todos com tochas acesas; e depois de fazerem a devida reverência ao santo, divididos em duas fileiras, voltaram acompanhando o catur para a cidade. E como os bargantins vinham embandeirados de flâmulas e galhardetes de várias cores, e prevenidos de instrumentos sonoros de todo o gênero, as luzes que reverberavam e se multiplicavam nas águas, e a consonância dos instrumentos ao compasso lento dos remos, faziam tal harmonia aos olhos e aos ouvidos, que grandemente ajudavam a alegria dos corações.

Esperava na praia o vice-rei, com todos os tribunais do estado, e seus ministros, a câmara com a sua bandeira, juízes, vereadores, e todos os outros oficiais da república, e a cidade inteira, em uma multidão inumerável de todos os estados, e não só os sãos, senão também os enfermos, ou por seu pé, ou em braços alheios, esperando tornar para suas casas com saúde. Quando o catur já ia chegando, era muito para ver os braços que se levantavam e estendiam do meio da multidão, como abraçando de longe, e do modo que podiam, os pés do santo, havendo alguns que, não tendo paciência para esperar mais, assim vestidos como estavam, se lançaram ao mar. Desembarcado o santo, todos o salvaram com os joelhos em terra, e vivas que chegavam ao céu. E unindo-se com grande acordo o fúnebre com o triunfal, por não exceder os ritos da Igreja, se ordenou a procissão ou acompanhamento nesta forma: iam diante os meninos da doutrina, por quem Xavier naquelas mesmas ruas e praças tinha obrado tantos milagres; eram em número de noventa, todos vestidos de branco, com grinaldas de flores na cabeça, e palmas verdes na mão, cantando: Benedictus Dominus Deus Israel, quia visitavit, et fecit redemptionem plebis suae[6]. Seguia-se toda a Irmandade da Misericórdia, com suas insígnias, e após ela duas compridas fileiras da nobreza que esperava em terra, e da que tinha ido ao mar, todos com tochas acesas, e vestidos das melhores galas à competência. Depois deles os cônegos da catedral metropolitana, e os clérigos de todas as paróquias, entre os quais iam todos os religiosos da Companhia, que também levavam aos ombros o seu santo padre, em um esquife ou andor ricamente ornado. Fechava todo o acompanhamento o vice-rei, a cidade, e os embaixadores de quase todos os reinos e nações da Ásia, que com a diversidade de cores e trajos faziam um formoso e pomposo remate.

As ruas estavam alcatifadas com o mais fino, precioso, e artificioso do Or­muz; as paredes ricamente armadas de tapeçarias de ouro e seda; a espaços se viam levantados arcos triunfais, e outros corpos de devota e magnífica arquitetura; das janelas e eirados choviam flores sobre o andor e corpo do santo; as milícias postas em ala, quando ia passando, lhe abatiam as armas e as bandeiras; e em toda a parte, ou ardiam, ou ferviam em odoríferos licores todos os aromas da índia, entre os quais, com estupenda maravilha, recendia e se distinguia de muito longe a celestial fragrância que de si exalava o bem-aventurado cadáver. Enquanto assim marchava o mais solene triunfo de quantos tinha, visto aquela tantas vezes triunfante cidade, acompanhavam estrondosamente os aplausos os contínuos trovões da artilheria de todas as fortalezas, e os alegres repiques dos sinos de todas as igrejas, a cujo som se excitavam os enfermos, uns a sair às janelas, outros às mesmas ruas, com princípios da saúde em que o santo os confirmava. E aqui me lembra a fútil murmuração de um herege, o qual, mofando das relíquias dos católicos, não duvidou escrever que um religioso, depois de visitar os lugares da Terra Santa, trouxera de lá em uma caixinha o som dos sinos de Jerusalém. Mas o que ele então disse por riso, se verificou neste dia com verdadeiras experiências.

Chegada a procissão à Igreja da Companhia de Jesus, foi colocado o sagrado depósito na capela-mor, onde as grades, quebradas por muitas partes com o peso da gente, o não puderam defender do ímpeto com que uns sobre outros se lançava a lhe beijar os pés. Três vezes foi o santo levantado em pé, e mostrado ao povo; em que o pasmo daquela vista era igual às lágrimas que todos derramavam, e três dias revestido nos paramentos sacerdotais esteve assim exposto. Não houve sermão de honras nestas gloriosas exéquias, nem panegírico do morto triunfador da morte, porque as línguas de todos em toda a parte - não se falando por muito tempo em outra coisa - eram eloqüen­tíssimas oradoras dos seus louvores. Uns referiam profecias, outros milagres, outros conversões, outros excelentes virtudes, testemunhando em si mesmos os favores recebidos no mar e na terra, e contando outros o das suas os gentios e estrangeiros. Mas quando estes e outros estivessem mudos, bastavam só, sem memórias do passado, como pregoeiros presentes, os cegos, os aleijados, os tolhidos, os leprosos, e os outros enfermos de todo o gênero, os quais, concorrendo ao novo propiciatório da saúde, saíam de sua presença inteiramente sãos, porque o corpo, que Deus tinha conservado tão incorrupto e inteiro, não sabia fazer mercês nem milagres partidos.

§ IV

O particular merecimento pelo qual a divina providência concedeu a São Francisco Xavier o privilégio da incorrupção e inteireza.

Mas antes que passemos adiante, será não só justo, mas necessário, saber qual foi o particular merecimento, pelo qual a divina providência concedeu a S. Francisco Xavier este privilégio da incorrupção e inteireza, não só concedido a poucos santos, mas com tantas circunstâncias e acidentes vivos em um corpo morto - segundo o que lemos nas histórias eclesiásticas - pode ser que a nenhum outro. A razão ou merecimento declarou Santo Agostinho sobre aquele texto: Neque dabis sanctum tuum videre corruptionem[7]. - Diz o maior lume da Igreja que não concede Deus este privilégio aos santos por santificados, senão por santificadores; não por serem santos em si, mas por santificarem a outros: Neque sanctificatum corpus, per quod et alii sanctificandi sunt, corrumpi patieris. - E como S. Francisco Xavier, entre todos os santos e varões apostólicos da Igreja, não só foi o que havia de santificar: sanctificandi sunt - senão o que tinha santificado em sua vida, e cooperado à salvação de tantos milhares e milhares de almas, que os autores de maior lição, e mais noticiosos, estendem a dois milhões - o que se não sabe de algum outro santo - como havia Deus de consentir que padecesse corrupção a inteireza de tal corpo: Neque corrompi patieris? - S. Paulo, comparando as coroas dos que se salvam com as dos vencedores que neste mundo se coroam, a estas chama corruptíveis, e àquelas incorruptas: Et illi quidem ut corruptibilem coronam accipiant: nos autem incorruptam[8]. - S. Pedro, ponderando nas mesmas coroas do céu o preço por que foram compradas, que foi o sangue preciosíssimo do Cordeiro sem mácula, também considera nelas o incorrupto em comparação do corruptível: Non corruptibilibus auro vel argento, sed pretioso sanguine, quasi agni immaculati Christi[9]. - E quem distribuiu tão inumeráveis coroas incorruptíveis e incorruptas, como havia de padecer corrupção em si mesmo? Finalmente, quando Xavier chegou ao Oriente, podia-se dizer de toda a Ásia o que se disse do mundo antes do dilúvio: Quia omnis caro corruperat viam suam[10] e no meio desta imensidade, ou dilúvio de corrupções, que fez o grande apóstolo? Nos gentios alimpou e desterrou a corrupção da idolatria; nos mouros a corrupção da infame seita de Mafamede; em uns e outros, e nos mesmos cristãos, a corrupção da torpeza, da cobiça, da injustiça, e dos outros vícios arreigados em tantas nações tão diversas, e em tantas terras tão remotas. E aqueles pés, que tantas mil léguas caminharam, quase sempre descalços; aqueles braços, que tantas mil almas batizaram, mais de dez e vinte mil em um dia; aquele sangue, que tantas vezes se derramou das veias, com piedosa impiedade, para converter pecadores; aquela língua, que nunca cessou de pregar a fé do Evangelho em todas as línguas; aqueles olhos, que de dia e de noite vigiavam, e o coração, que sempre ardia no zelo de pregar o nome de Cristo; e todo aquele corpo, tão mortificado e tão vivo, tão abstinente e tão forte, tão fatigado e tão incansável, tão dividido em mil partes e tão inteiro, por que havia de haver corrupção que se lhe atrevesse à inteireza? Deixo tantos apestados, a quem em vida livrou da corrupção do contágio, e a vinte mortos que em vida livrou também da corrupção da sepultura.

§V

A crueldade mais honrosa, ou a honra mais cruel que nunca viu o mundo. O desejo do Sumo Pontífice Paulo V, e a honra sem exemplo com que a cabeça da Igreja singulariza entre todos os santos o braço direito de Xavier O abraço de Xavier à Igreja profetizado nos Cânticos. O novo Tabor do Grão-Jesus em Roma.

Assim perseverou inteiro o corpo morto de S. Francisco Xavier sessenta e três anos, até que no de mil seiscentos e catorze, que foi para a sua inteireza o climatérico, se dividiu, e lhe foi cortado o braço direito. E esta é a que no exórdio deste discurso chamei a crueldade mais honrosa, ou a honra mais cruel. Começando pela honra constando ao Sumo Pontífice Paulo V que o corpo do padre Francisco Xavier se conservava inteiro, com isenções da natureza e da morte tão singulares, desejou ter consigo uma relíquia insigne do mesmo corpo, que assim chama a Igreja às partes principais de que ele se compõe. E como os desejos da suprema autoridade são os modos mais apertados de mandar, declarado este por Sua Santidade à Companhia, ele foi o golpe que a obrigou a uma tão rigorosa separação. Mas que maior honra se pode imaginar no céu ou fingir na terra, que o mesmo Vigário de Cristo, e vice-Deus, tendo em Roma à sua mão direita a S. Pedro, com as chaves contra as quais não podem prevalecer as portas do inferno, e à esquerda a S. Paulo, com o montante da doutrina e fé católica, de que sempre temeu o mundo, quisesse juntamente por e ter a seu lado o braço de um homem ainda não canonizado por santo, nem beatificado? Oh! homem mais que homem na vida, e honra e exceção de todos os homens depois da morte! Não é Roma aquele santuário universal, que reparte relíquias a todo o mundo cristão? Não é aquela Terra Santa, regada com o sangue de infinitos mártires, em que não há parte mínima, em que se não possa e deva venerar como relíquia? Não é aquela, por antonomásia, cidade de cujos cemitérios se estão desenterrando continuamente corpos inteiros de santos, com que enriquecem e autorizam os altares de toda a cristandade? Como logo solicita com tanto empenho, e de tão longe, a mesma Roma uma relíquia de Xavier? Se víssemos que o mar pedia água a uma fonte, e o sol luz a uma estrela, que diria a nossa admiração? Pois esta é a honra sem exemplo com que a cabeça da Igreja singulariza entre todos os santos aquela parte de Xavier morto, que com tantos aplausos recebe e abraça, ou com que se gloria de se ver dele abraçado.

Mas que muito se a mesma Igreja o tinha profetizado assim, com grande expectação e alegria? Laeva ejus sub capite meo, et dextera illius amplexabitur me (Cânt. 8, 3). O seu braço esquerdo se pôs já debaixo de minha cabeça, e o seu braço direito me abraçará depois. -Assim o fizeram antes e depois os dois braços de Xavier: Quando renunciou os intentos das temporalidades do mundo, a que estava tão pegado, e se dedicou ao serviço da Igreja no Instituto de Santo Inácio, com especial sujeição e obediência ao Papa, que é a sua cabeça, então pôs o braço esquerdo debaixo da cabeça da Igreja: Laeva ejus sub capite meo - e quando, depois de ter obrado com o braço direito tantas maravilhas, o trouxe ou mandou a Roma, então acabou de abraçar a mesma Igreja, e se aperfeiçoou e inteirou o braço: Et dextera illius amplexabitur me. - Ela o profetizou, o pontífice o dispôs, Xavier o cumpriu, e Roma em honrar fez o que devia e o que costumava. Quando os seus capitães conquistavam reinos e províncias, lá levantavam os troféus, mas na mesma Roma se lhes punham as estátuas e decretavam os triunfos; e, tendo Xavier conquistado a mesma Roma um novo mundo, ainda que lá se lhe tinham levantado os troféus das vitórias, justo era que as honras das estátuas, triunfos e templos as viesse receber na mesma Roma. Santo Inácio e S. Francisco Xavier, no meneio do seu Instituto, foram como as duas pontas do compasso: Inácio, como a do centro, sempre fixo e imóvel em Roma; e Xavier, como a da circunferência, dando volta ao mundo; e ordenou com alto conselho o Pontífice que ele tornasse a Roma para aperfeiçoar o círculo, acabando-o no mesmo ponto donde tinha saído. Assim o tinha ensinado a este filho de Santo Inácio outro Filho de melhor e maior Pai: Exivi a Patre, et veni in mundum: iterum relinquo mundum, et vado ad Patrem[11]. - Assim como Cristo, saindo do Padre, veio em vida ao mundo, e depois de morto, deixando o mundo, tornou ao Padre, ao mesmo modo Xavier vivo e morto: vivo, se apartou de seu santo padre em Roma, e morto o veio outra vez buscar a Roma, onde eu os estou vendo gloriosos a ambos no templo que a mesma Roma chama o Grão-Jesus. Quando Cristo se mostrou aos apóstolos na glória do Tabor, apareceram majestosamente com ele ao lado direito Moisés, e ao esquerdo Elias. Quis S. Pedro então fazer três tabernáculos, mas fê-los seu sucessor, o Sumo Pontífice, neste segundo Tabor: na capela maior, Cristo com o nome de Jesus; na colateral da mão direita Santo Inácio, como Moisés e como legislador; na colateral da esquerda Xavier, como Elias, e como o maior zelador da fé. De Aquiles se disse: Unus Paeleo juveni non sufficit orbis: que a Aquiles lhe não bastou um mundo - e como o Aquiles da Companhia, Xavier, lhe não bastou para suas vitórias só o mundo antigo, mas conquistou o novo, necessário foi, para gozar as honras merecidas na vida, que se dividisse depois da morte, e repartindo-se entre Goa e Roma, no Oriente o venerasse e adorasse a cabeça da Ásia, e no Poente a cabeça da Europa, da cristandade e do mundo.

§ VI

Por que não era necessário ferro nem sangue para Roma conseguir insignes relíquias de São Francisco Xavier? O brandezém, e o uso e estilo antigo da Igreja Romana. Os milagres da roupeta e do rosário de Xavier As relíquias de S. Paulo e de S. Pedro em Roma. Os milagres da imagem de Xavier na Itália e na China.

Baste isto quanto ao honroso; e quanto ao que pode parecer cruel, dê-me licença Roma, para que fale com ela, e não será a primeira vez que me ouça. Para Roma alcançar relíquias, e insignes relíquias de Xavier, parece que não era necessário imitar a lançada de Longinos, nem ensangüentar o ferro. E argumento a Roma consigo mesma o uso e estilo antigo da Igreja Romana, quando os grandes príncipes pediam alguma relíquia dos santos, era mandarem-lhes os Sumos Pontífices, não parte alguma dos seus corpos, senão um véu chamado brandezém, tocado neles, ou nos seus sepulcros. Assim o mandou S. Gregório Papa à imperatriz Constância, como consta do terceiro livro das suas Epístolas[12], e o mesmo uso consta de toda a História Eclesiástica, que se pode ver em Barônio. Eram aqueles véus de linho finíssimo e branquíssimo, dos quais cantou Prudêncio: Candore nitescere claro lintea - e já pode ser que este exemplo aprendeu S. Pedro no sepulcro de Cristo, onde ele notou que deixara o Senhor por relíquias de seu sagrado corpo linteamina et sudarium[13]. - E porque a devoção de alguns príncipes se não dava bastantemente satisfeita com aquelas relíquias santificadas só com o tato dos corpos ou sepulcros santos, houve Pontífice que, mandando vir diante dos seus embaixadores estes véus, apertando-­os na mão manaram sangue. Que relíquia logo tão insigne seria de Xavier aquela sua roupeta pobre, grosseira e remendada, debaixo da qual sofrera tantas vezes o Santo as neves frigidíssimas do Japão, os sóis ardentíssimos das areias de Meliapor, e que nas poucas horas de sono, entre o fatigado corpo e a terra nua lhe servia de cama? No meio de uma terrível tempestade gritavam os pilotos e marinheiros que o navio se ia ao fundo; ia ali embarcado Xavier, e, rasgando depressa um pequeno retalho da aba da mesma roupeta, lançou-a ao mar, e os ventos e as ondas no mesmo momento ficaram em calma. Verdadeiramente que se o grande Antônio, patriarca de todos os monges, no dia de Páscoa se revestia da samarra de S. Paulo, primeiro ermitão, tecida das folhas de palma, digna era a roupeta de Xavier de que nas maiores solenidades, debaixo dos paramentos pontificais, a vestissem os pontífices romanos.

Mais. Na mesma Roma, em dia da conversão de S. Paulo, se mostra na sua Igreja, como particular relíquia do Apóstolo das Gentes, não todo, senão parte do báculo em que ele se arrimava nas suas grandes peregrinações, que, contudo, foram muito menores que as de Xavier. Não se referem desta relíquia, os quais não são necessários, quando por outra via consta serem verdadeiras, como consta do báculo de Eliseu ser do mesmo profeta, constando juntamente que, posto sobre o menino defunto, não se seguiu o milagre que ele esperava. Logo, muito mais provada relíquia seria de Xavier a em que ele caminhando, e não caminhando, todos os dias, e todas as noites, punha muitas vezes as mãos, e trazia sempre sobre o peito, que era o seu Rosário, o qual, aplicado em ausência pelos meninos da sua doutrina, dos corpos endemoninhados lançava os demônios, e dos enfermos as febres, e todas as outras enfermidades. Prove esta conseqüência outro maior argumento. Um grande devoto do santo, havendo de fazer viagem de Meliapor a Malaca, temeroso dos perigos de tão comprida navegação e mares tão arriscados, despedindo-se dele, e tomando sua bênção, lhe pediu que o consolasse e animasse com alguma prenda sua. Não se achou com outra Xavier mais que o seu Rosário: tira-o do pescoço, e, metendo-lho nas mãos, lhe encomendou muito o trouxesse sempre consigo, confiando que o livraria de qualquer perigo. Depois de alguns dias de viagem, foi tão grande o que padeceu o navio, que não podendo sustentar a fúria dos ventos, se deixava levar deles, e correr fortuna, como dizem, até que, encalhando em uns penhascos, onde se desfez, entre alguns poucos dos mareantes, que escaparam com vida, foi um o devoto do santo. Não havia na dureza do penhasco, nem para comer uma erva verde, nem para beber uma gota de água, com que, meio mortos à fome e à sede, dos madeiros do naufrágio engenharam uma balsa, em que se meteram e tornaram a entregar ao mar, mais para dilatar a morte, que com esperança de vida. E assim sucedeu, porque nem a balsa, nem eles apareceram mais, e só o devoto de Xavier, com o seu Rosário, dali a cinco dias se achou em uma praia desconhecida, a qual depois soube que era vizinha a Meliapor, donde partira, e onde tinha sua casa. Perguntado quem o trouxera ali, e como passara aqueles cinco dias, respondeu que não sabia, porque em todo aquele tempo, ou arrebatado imaginava, ou dormindo sonhava que estava conversando com a sua família. De sorte que a sagrada relíquia não só o livrou da morte e do perigo, senão da imaginação e do temor, portento dobradamente estupendo, e digno o instrumento dele de Roma o pendurar no templo da Minerva, diante do altar da Senhora e inventora do Rosário, como um dos mais famosos de seus troféus.

A Jeremias prometeu Deus de o livrar, não só dos perigos, senão também do temor deles: Nec enfim timere te faciam[14]. - E desta mesma graça foi efeito aquele sono tão profundo de S. Pedro, na mesma noite do dia em que havia de sair a ser publicamente justiçado, como pondera mais expressamente o Siríaco: In illa ipsa nocte erat Petrus dormiens[15]. - O anjo acordou-o, para o livrar da prisão das cadeias e da morte, e Deus antecedentemente o meteu nas prisões do sono, para o livrar do cuidado e do temor dela. E se este dobrado favor foi concedido a S. Pedro pelas orações de toda a Igreja, que rogava pela sua vida, grande excelência é de Xavier, que ao Rosário por onde ele orava, como se viu no caso que acabamos de referir, se concedesse uma e outra graça. Mas passemos às cadeias. As de S. Pedro são uma das mais famosas relíquias de Roma, com templo e dia dedicado a elas. O modo de comunicar esta relíquia, não era dar alguma parte ou fuzil das mesmas cadeias, senão alguma pequena limadura daquele sagrado ferro, santificado com o tato das mãos do mesmo Príncipe dos Apóstolos: Ceciderunt catenae de manibus ejus[16]. - Assim mandou uma destas limaduras S. Gregório Papa a Childeberto, rei de França. E Justiniano, que depois foi imperador, impetrou outra do Papa Hormisda. E se este era o estilo dos Sumos Pontífices, tão louvável e decoroso para as mesmas relíquias, em idade já tão adulta da Igreja, bem pudera Roma contentar-se com aquelas cadeias de Xavier, tantas vezes santificadas com o seu sangue, como a mesma Roma manda cantar nas suas lições: Ferreis in se flagellis ita saeviit, ut saepe copioso cruore diflueret. - Estas cadeias, com pontas agudas, serviam ao santo de cilício e disciplinas, e com elas, tomando sobre si os pecados de grandes e obstinados pecadores, disciplinando-se cruelmente diante deles, lavadas todas as costas em sangue, atônitos de tal espetáculo de caridade, os convertia. Tais, e não menores que estas conversões, eram os milagres das cadeias de Xavier, sendo doutrina e sentença de todos os santos, em todo o rigor da Teologia, que maior milagre é converter um pecador que ressuscitar mortos, o que Cristo fez três vezes, e que criar mundos, o que Deus fez uma só vez.

Mas para Roma ter relíquias insignes, e muito insignes de Xavier, não era necessário ferro nem sangue, bastavam outras, que sem tocarem o corpo do santo, nem ele as tocar, obrariam, como obravam, estupendas maravilhas. Vamos a Nápoles. Diante do altar de S. Francisco Xavier, na Igreja da Companhia de Jesus, se vêem pendurados vinte e nove estandartes, com o nome cada um dos vinte e nove bairros em que aquela real cidade se divide, e uma inscrição em todos, que diz: Ob urbem a peste servatam: Por haver defendido esta cidade da peste. - A peste foi tão cruel que se contavam os mortos por centenas de milhares. E qual foi a relíquia que obrou esta universal maravilha? Uma imagem de Xavier, que primeiro sarou a um cidadão, logo a quatro, depois a muitos, e, conhecendo a república, que nela estava a saúde também contagiosa, elegendo o santo por seu protetor, na tarde do mesmo dia sarou mais de quatrocentas pessoas. E com a mesma pressa se foi apagando o incêndio com que toda a cidade ficou livre. Vamos à Calábria, e veremos por informações autênticas, tiradas com autoridade apostólica, que só na vila de Potamo, em ano e meio, além de infinitos outros milagres, ressuscitou S. Francisco Xavier vinte e nove mortos, e não por outra relíquia de seu corpo, senão por uma simples imagem sua, tão costumada a obrar semelhantes ressurreições, que os defuntos se não enterravam dois, três e quatro dias depois da morte, com esperança de que o santo os ressuscitasse, como alguns o conseguiram, ou antes de serem levados à sepultura, ou saltando dos esquifes vivos. Passemos finalmente à índia, onde o seu grande apóstolo, tinha doutrinado na fé uma mulher de origem china, por nome Luzia Vilhançano, a qual, sendo de idade de cento e vinte anos, e de conhecida virtude, com uma imagem do seu santo mestre sarava de repente todo o gênero de enfermidades, aplicando-a aos enfermos só com estas palavras: Em nome de Jesus Cristo, e do Padre Francisco Xavier, Deus te restitua a saúde. Alguns destes milagres, com o nome da mesma mulher se referem na bula da canonização do Santo. E afirmam com juramento as testemunhas oculares, que no mesmo momento em que a santa imagem era aplicada, viam sarar subitamente mancos, aleijados, cegos, surdos, mudos, leprosos, tísicos, paralíticos, encancerados com as carnes comidas e podres. E que não havia mal tão envelhecido e incurável, nem moribundo tão prostrado, e quase expirando, não tendo alguns mais que a pele sobre os ossos, e, parecendo mais cadáveres que homens vivos, os quais, tocados daquela sombra de Xavier, se não levantassem de repente com o vigor, com as forças, com os sentidos, com a cor e com a corpulência dos membros restituídos. Sendo logo tão insignes e poderosas relíquias estas imagens de Xavier, tão ausentes e remotas de seu corpo, e nunca tocadas nele, mandando Roma a Goa um de seus famosos pintores, que lhe retratasse uma vera efígie que fosse viva imagem de Xavier morto, com esta relíquia incruenta parece que tão enriquecida fica­na ela sem o seu braço, como o santo inteiro com ele.

§ VII

O sacrifício a que foi submetido o corpo de Xavier depois de morto. As circunstancias milagrosas que cercaram o acontecimento.

Mas já é tempo que vejamos o sacrifício, e preparem-se os corações de novo ânimo e valor para um nunca visto espetáculo. O lugar que se elegeu, foi uma capela interior, para onde se trasladou o santo corpo, a título de maior decência. O tempo, o mais secreto da meia-noite, sem notícia dentro nem fora do que estava determinado ne tumultus fieret in Populo[17] - porque, sabendo-se, toda Goa e toda a Índia se poria em armas, para defender o braço que tantas vezes a tinha defendido; os assistentes eram: o visitador, o provincial, o prepósito, e três consultores da província; o executor um irmão leigo, não parecendo decente que as mãos sagradas que oferecem a Deus o sacrifício incruento de seu Filho, se ensangüentassem no de Xavier. Postos assim de joelhos todos, levantou o executor o braço do santo, tão natural e flexível como se fosse de um corpo vivo que estivesse dormindo, indo para o cortar, eis que subitamente tremeu a terra, a capela, e todos os que nela estavam. Tornam segunda vez a intentar o golpe, e não só o pavimento, mas as paredes, com segundo tremor, pareceu que se queriam arruinar, desencaixando-se as pedras. Quem não desanimara com a repetição de tal prodígio! Insistindo, porém, terceira vez no mesmo intento, foi tanto maior o tremor e abalo, que o teto, e todo o edifício daquela grande casa, caía sobre os que estavam na capela, com que, todos atônitos, se saíram fora. Quem não dissera de cada um destes padres naquele caso, quando a execução não fora no verdadeiro corpo de Xavier, senão em alguma estátua sua: Ter conatus eras casus effingere in auro, ter patriae cecidere manus[18]. - Feita por eles nova consulta, quando parece que se havia de resolver nela que se reescrevesse a Roma, e se representassem os manifestos e prodigiosos indícios, com que Deus mostrava que não era servido que o santo corpo se dividisse, mas perseverasse inteiro, para que a sua mesma inteireza fosse um perpétuo testemunho a todo o Oriente da verdade da fé que lhe pregara, o que se resolveu foi que tomassem ao mesmo santo por intercessor contra si, e lhe pedissem licença para a execução do que eram mandados. Entram outra vez todos na mesma capela, e, postos de joelhos, falou assim um dos prelados: - Bem-aventurado santo, bem sabeis vós que vimos aqui, não tanto por nossa vontade, quanto por obediência de nosso Padre Geral. E pois em vida fostes tão obediente, dai-nos agora depois de morto licença para que possamos executar o que se nos ordena, mandando esta relíquia de vosso corpo, que a pede o Sumo Pontífice. - Disse, e, em se ouvindo o nome do Sumo Pontífice, do Padre Geral, e esta palavra obediência, obedeceu o santo, obedeceu a terra, obedeceram as paredes, obedeceu tudo, e o braço se deixou cortar, manando da ferida tanto sangue que encheu um vaso de prata, e banhou nele uma toalha, que para este efeito ia prevenida, a qual, depois de muitos anos, levou o conde de Linhares, vice-rei da índia, para apresentar a el-rei Dom Filipe IV.

Enfim, que depois de sessenta e três anos, temos o corpo de S. Francisco Xavier, como se nele se cumprisse a profecia do sacerdote Heli: Ecce dies venient, et praecidam brachium tuum[19]. - Mas, posto que lhe falte o braço direito, eu espero e prometo que serão tantas as suas vitórias do esquerdo, que, se trocando os termos do direito se podia dizer: Cadent a latere tuo mille[20] - do esquerdo se diga: Et decem millia a sinistris tuis[21] . - Se tudo, porém, o que se obrou neste caso foi mais por instinto divino, como depois mostrarei, que por razão humana, muita temos para desejar saber qual seria o fim da divina providência em permitir no corpo incorrupto e inteiro de Xavier, o que não lemos se fizesse em outro dos que Deus tem conservado até agora sem corrupção. Entendo e digo que os fins altíssimos desta tão particular providência foram dois: um da parte da Companhia, outro da parte de Xavier. Da parte da Companhia, para que em todas as circunstancias deste caso lhe ficasse expresso um perfeitíssimo exemplar da exata obediência que professa. E da parte de Xavier, para que depois da morte lhe concedesse Deus o martírio que ardentissimamente desejou e procurou sempre, sem o poder alcançar em vida.

§ VIII

Os fins da divina providência em permitir no corpo incorrupto e inteiro de Xavier o que não lemos se fizesse em outro dos que Deus tem conservado até agora sem corrupção. O primeiro fim: dar à Companhia um perfeitíssimo exemplar da obediência que professa. Os três documentos de Santo Inácio sobre a obediência, e afina e perfeita obediência do corpo morto de São Francisco Xavier aos superiores da casa onde estava tão venerado.

Quanto ao primeiro, concorreram neste caso três gêneros de superiores e súditos: o Sumo Pontífice, superior do Geral, e o Geral, súdito do Pontífice; o Geral, superior dos padres da índia, e os padres da índia, súditos do Geral; os padres da índia, superiores, do modo que o podiam ser, do corpo de Xavier, e o corpo de Xavier, súdito dos mesmos padres. Discorramos agora por todos os gêneros destes superiores e súditos, e veremos na sua obediência todos os primores e ápices da perfeição desta virtude, na qual Santo Inácio foi o mais exato de quantos legisladores a ordenaram, e de quantos escritores dela escreveram.

Primeiramente manda Santo Inácio nas suas Regras que todos procurem observar e sinalar-se na obediência, de tal sorte que para obedecer não seja necessário preceito ou mandado expresso do superior, mas baste somente o sinal da sua vontade: Omnes obedientiam observare, et in ea excellere studeant, licet nihil aliud quam signum voluntatis superioris sine ullo expresso praecepto videretur[22]. - E tal foi a perfeição da obediência do Padre Geral, que era Cláudio Aquaviva, ao Sumo Pontí­fice Paulo V, porque o Sumo Pontífice não lhe mandou ou pôs preceito, e só lhe significou a vontade que tinha de ter em Roma uma relíquia insigne do corpo de S. Francisco Xavier, ou de Francisco Xavier, que ainda não era santo, e ele queria canonizar; e bastou este sinal da vontade do único superior que tem o Geral da Companhia, que é o Sumo Pontífice, para que Cláudio mandasse aos padres da Índia executar o que lá se fez. Confirma-se este alto grau de obediência com o que S. Paulo ensinou ou insinuou a seu discípulo Timóteo, quando lhe escreveu: Quia lex justo non est posita[23] - porque obedecer por leis e preceitos, é obediência ordinária; mas a obediência excelente, qual é a do Instituto da Companhia: In obedientia excellere studeant - não tem necessidade, nem espera leis ou preceitos, e basta-lhe só o sinal da vontade do superior. Assim comenta este texto do apóstolo, aplicando-o à obediência de Samuel, o nosso doutíssimo português Mendonça, como discípulo da escola e espírito de Santo Inácio, exposição que se não acha nos doutores antigos, ainda que santos, os quais eu só costumo alegar quando é necessário. Perfectus obediens - diz ele - qualis erat Samuel, imperium non requirebat, quia solo nutu etiam absque ullo justo ad voluntatem praelati exequendam ferebatur.

O segundo documento de Santo Inácio, é que seus filhos se devem haver nos casos da obediência como nas matérias da fé, fechando os olhos a quaisquer dificuldades e objeções que neles se lhes ofereçam, sem as examinar ou inquirir, bastando para crer o dito do superior que o manda: Ut ad credenda quae catholica fides proponit, toto animo, assensuque vestro incumbetis; sic ad ea facienda quaecumque superior dixerit, caeco quodam impetu voluntatis parendi cupidae, sine ulla disquisition feramini[24]. - E esta foi a perfeita obediência dos padres da índia em obedecer e não replicar ao Padre Geral. Terrível objeção era haver de meter o ferro naquele santo e milagroso corpo, e cortar e dividir a inteireza com que Deus tantos anos havia o conservava. E mais terrível, ainda depois dos tremores cada vez mais sensíveis e temerosos, uma e duas e três vezes repetidos, e, contudo, obedeceram, fechando os olhos e cativando os entendimentos, como se fora a um decreto da fé. A confirmação neste gravíssimo ponto não é menos que do Príncipe dos Apóstolos, S. Pedro, o qual, contando a famosa visão do que tinha visto e ouvido no Monte Tabor, acrescenta aos cristãos, a quem escreve, que ainda tem outro testemunho mais firme, que é o dos profetas, aos quais fazem bem seguir e crer com toda atenção: Et hanc votem nos audivimus a caelo allatam, cum essemus cum ipso in monte sancto. Et habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefacitis attendentes[25]. - Pois, se o mesmo S. Pedro, e os outros dois apóstolos, tinham visto e ouvido todas as coisas tão maravilhosas que se ouviram no Monte Tabor, por que diz que tem outro testemunho mais firme que o seu, que é o dos profetas, a que fazem bem de atender: Cui benfacitis attendentes? - Também aqui há de ser o comentador da escola e espírito de Santo Inácio, o doutíssimo A Lápide, o qual, apertando mais o argumento na voz do Padre, diz assim: Licet enim vox Patris objective, puta in se, esset verissima et certissima aeque ac oracula prophetarum, tamen subjec­tive, quatenus in auribus S. Petri recipiebatur et resonabat, non erat tam certa et firma quam visiones prophetarum: auditus enim omnisque sensus falli potest visio vero prophetarum falli nequit, quia fit per lumen supernaturale et divinum. - De sorte que a razão da diferença é porque a visão dos apóstolos foi pelo conhecimento natural dos sentidos, em que pode haver engano. E a dos profetas é por lume sobrenatural e divino, em que não pode haver falência. Por isso, contra o que vemos, ouvimos e apalpamos, cremos o que diz a fé; e assim deve crer o verdadeiro obediente o que diz o superior, cuja voz é a de Deus, como ensina o mesmo Cristo: Qui vos audit, me audit[26].

Resta a terceira consideração da fina e perfeita obediência, que foi a do corpo morto de S. Francisco Xavier aos superiores da casa onde estava tão venerado. E neste tão extraordinário ponto parece que falou Santo Inácio, não só como legislador, senão como profeta. Diz que os que vivem debaixo da obediência, se devem deixar guiar e reger da divina providência por meio de seus superiores, como se fosse um corpo morto, que se deixa levar para qualquer parte para onde o levarem, e que o tratem de qualquer modo que o quiserem tratar Qui sub obedientia vivunt se ferri ac regi a divina Providentia per superiores suos sinere debent, perinde, ac si cadaver essent, quod quoque versus fern, et quacumque ratione tractari se sinit. - Pode haver coisa mais própria e mais natural, ou mais sobrenatural do nosso caso? O corpo morto de S. Francisco Xavier não: ac si cadaver esset - senão como cadáver que era, se deixou levar para onde quiseram, porque se deixou levar da Ásia à Europa, e de Goa a Roma, para onde quis o Pontífice que fosse; e como cadáver que era, se deixou tratar como quiseram, porque o quiseram ferir, posto que sem crueldade, cruelmente, chegando a lhe espedaçar a sua inteireza, e lhe cortar não menos que o braço direito. Em uma só coisa não mostrou Xavier que estava totalmente morto, que foi o copioso sangue que lhe correu das veias. Do lado do corpo morto de Cristo coreu sangue, mas ao mesmo corpo estava unida outra natureza viva e imortal. E como se a obediência de Xavier fosse nele outra natureza, o corpo estava morto, mas a obediência viva. Santo Inácio quis que os obedientes vivos fossem como corpos mortos, e S. Francisco Xavier fez que o seu corpo morto fosse como obediente vivo. Obedecendo a Cristo, saiu vivo da sepultura Lázaro, que estava morto. Maior milagre seria se, morto como estava, saísse e obedecesse, porque esta obediência então não seria de todo lázaro, senão de ametade dele: Ad unam vocem Domini totus Lazarus vivos processit, qui totus ibi non fuerat. -Lázaro - diz Santo Agostinho - na sepultura não estava todo, senão só ametade, que é o corpo; mas à voz de Cristo saiu dela vivo e todo. De sorte que para lázaro obedecer foi necessário que primeiro vivesse, e primeiro se lhe restituísse a parte que lhe faltava, que era a alma, e assim obedeceu vivo e todo: totus Lazarus vivus processit. -Porém, o corpo morto de Xavier, motto e sem vida, parte, e não todo, obedeceu com tal generosidade e fineza que, sendo naquele estado só ametade de si mesmo, consentiu que até dessa ametade lhe cortassem uma parte tão principal, como se dissera Contanto que a obediência fique inteira, despedace-se embora o corpo, e cortem quanto quiserem. Tão heróica foi a cláusula com que nestes três atos de obedecer se acabou de aperfeiçoar a imagem, e como retratar e iluminar o verdadeiro e exato exemplar da obediência da Companhia.

§ IX

O segundo fim da providência divina: querer Deus conceder a Xavier depois da morte o martírio que tanto desejara em vida. Quão contínuos e ardentes foram no grande apóstolo os desejos de martírio. Qual foi o gênero de martírio no corpo morto de Xavier Razões das demonstrações do desagrado divino, que precederam e seguiram ao martírio do corpo morto de Xavier.

Quanto ao segundo fim da providência divina neste caso tão gloriosamente trágico, dissemos que foi querer Deus conceder a Xavier depois da morte o martírio que tanto desejara em vida. E para entendimento de quão contínuos e ardentes foram no grande apóstolo estes desejos, bastava considerar as muitas e manifestas ocasiões de lhe tirarem a vida pela fé que pregava, em que sempre e em toda a parte se meteu intrepidamente, condenando as falsas seitas dos brâmanes, dos bonzos, dos maometanos, e todo o gênero de gentios, em presença dos mesmos sacerdotes e reis que as defendiam, abominando e chamando diabólica a divindade dos camis e fotoquês, e dos outros monstros que adoravam por deuses, quebrando-lhes os ídolos, e derrubando-lhes os templos, e vivendo sempre de milagre, com o único e verdadeiro Deus na boca, e o estandarte da cruz publicamente nas mãos entre tantas nações, umas tão tenazes das suas superstições, outras tão presumidas da sua ciência, e todas tão bárbaras e feras. Isto, como digo, bastava para entender quão ardentes eram em Xavier os desejos do martírio. Mas o mesmo santo o declarou depois de motto, quando tirou das gargantas da morte ao padre Marcelo Mastrilli em Nápoles, na forma do voto que lhe ditou, e todos os presentes ouviram, prometendo de ir ao Japão, e padecer martírios pela fé, acrescentou: - Como eu sempre desejei, e nunca pude conseguir. - Daqui se segue que o que S. Francisco Xavier padeceu no seu corpo morto, não foi involuntário, senão muito por sua vontade, como a lançada de Cristo morto na cruz pela previsão e aceitação antecedente dela.

Qual foi, pois, o gênero de martírio no corpo morto de Xavier? Digo que o mais perfeito. S. Bernardo, nos três mártires que a Igreja celebra nos três dias seguintes ao nascimento do Redentor, distingue com engenhoso reparo três gêneros de martírio. Em Santo Estêvão, martírio com vontade, e com sangue; em S. João, martírio sem sangue, e com vontade; nos Santos Inocentes, martírio sem vontade, mas com sangue. O martírio de Xavier não foi como o dos Inocentes, porque teve a antecedente vontade, que eles não puderam ter, nem foi como o de S. João, porque teve o sangue, que a ele lhe faltou. Foi logo como o de Santo Estêvão, em que o sangue aperfeiçoou a vontade, e a vontade o sangue. E teve mais alguma perfeição? Sim. Porque no martírio de Santo Estêvão, em ódio da fé, foi envolto o martírio com ódio e com o pecado dos executores. E no martírio de Xavier, por obediência, não entreveio ódio nem pecado, senão amor e merecimento. Foi o martírio de Xavier como havia de ser o de Isac, se se conseguira. Isac, o mártir, e o mais amado; o pai o executor, ou piedoso tirano, e o que mais o amava. Assim foram todos os que concorreram para o martírio de Xavier. O Pontífice com amor, o Geral com amor, os padres da índia, como Abraão, com amor, e Xavier, o padecente, como Isac, não só amado, senão por muito amado. Não houve mais puro, nem mais defecado martírio, entrando também neste número o do mesmo Cristo, posto que mártir da obediência: Factus obediens usque ad mortem[27] - porque também o seu cálix não careceu das fezes do ódio e do pecado: Veruntamen faex ejus non est exinanita[28]. - Por isso o mesmo Senhor tornou a repetir o mesmo sacrifício, e consagrar o mesmo sangue no Sacramento do Altar, onde lhe chama o profeta vindemia defaecata[29] - porque o ódio dos que no cálix da Paixão o derramaram foram as fezes, e estas defecou o amor puro com que no cálix do Sacramento se deixou, e no-lo deu a beber o amorosíssimo Redentor.

Pode parecer, porém, que se não agradou Deus deste martírio do corpo de Xavier, não só pelos tremores prodigiosos que o precederam, mas porque depois dele foi coisa notável, e muito notada, que todos os seis padres, que concorreram à execução, morreram dentro em seis meses. E o irmão mais imediato, e principal executor, cegou, e, posto que vivesse muitos anos, acabou cego. Logo demonstrações foram estas, com que Deus não aprovou o martírio. Respondo que uma e outra coisa quis e ordenou Deus, ambas para maior glória de Xavier, e o provo, não com um, senão com infinitos exemplos. Que coisa mais ordinária e maravilhosa em quase todos os mártires que livrá-los Deus das unhas das feras, dos leões e dos tigres, e da fúria dos elementos do mar e do fogo? E, contudo, não os livrava dos fios da espada nas mãos dos homens. E por quê? A primeira razão, como autor da natureza, para não violar os foros do alvedrio, que só se acha nos homens, e não nas feras nem nos elementos. A segunda, como autor da graça, para com os milagres e reverências destes honrar os santos, e com a execução dos outros os não defraudar da coroa. Assim resolve solidamente esta tão controvertida questão o doutíssimo Teófilo, e o mesmo digo no nosso caso. Onde a obediência não foi culpa, não podiam as demonstrações de Deus, posto que rigorosas, ser castigo. Mas não deixou a providência divina de as fazer, e tão públicas e notórias, por dois fins: o primeiro, para maior honra e glória de Xavier, e exemplo de respeito e veneração com que quer sejam reverenciadas suas relíquias. O segundo, para satisfazer os desejos de martírio, com que o santo ardia em vida, e depois da morte o coroar com esta nova lauréola, ou o revestir com esta nova estola, como lemos que foi dada no céu aos mártires que pediam nova satisfação do seu sangue. Finalmente, para última e milagrosa confirmação de tudo o que tenho filosofado sobre a separação do braço de Xavier, note-se muito no anjo forte, figura do mesmo santo, que tendo dois pés, que serviam de bases às duas colunas, não se faz nele menção mais que de um só braço: Et in manu ejus libellum apertum.[30]

§X

O primeiro milagre do braço direito de Xavier Como se salvou a caravela em que ia a sagrada relíquia das mãos dos corsários holandeses? Qual foi maior milagre: o da voz de Josué em deter e parar o sol, ou o do braço morto de Xavier em deter e parar o pirata? O braço direito de Xavier e a rêmora que deteve a nau em que navegava o imperador Caio. De que modo alcançaram os dois braços de Xavier aquela glória que não chegou a imaginar nem apetecer a soberbíssima ambição de Alexandre Magno.

Até aqui a parte da prodigiosa tragédia do corpo morto, e braço cortado de Xavier, que se representou na terra. Agora vejamos brevemente, pois o tempo não permite mais, a segunda, que teve por teatro o mar. Embarcado em Goa o santo braço, e segunda vez arrancado do santo corpo, apartamento em que o não posso considerar sem grandes saudades, e como dizendo mudamente: Non aliter dolui, quam si mea memora relinquam[31] - devendo ser a embarcação e a escolta de tão inestimável tesouro a maior e mais poderosa armada que nunca partiu da índia, como aquele, porém, que só consigo ia mais bem-defendido, permitiu o governo do céu - o que não sei como fez o da terra - que fosse embarcado em uma caravela. Já então não éramos tão senhores daqueles mares, como no tempo de Xavier. E a poucos dias de viagem viram, não os soldados, porque os não havia, senão os marinheiros, que os vinha seguindo na mesma esteira um corsário holandês. Bem pudera eu aqui enxerir como fui a causa de que as nossas caravelas se convertessem em tão poderosas e bem-armadas naus, como são as de que hoje se compõem as nossas frotas. Foi o caso que, estando el-rei D. João o IV, de sempre gloriosa memória, em Alcântara, em uma véspera de S. João, ofereci a Sua Majestade um alvitre com que festejar aquela noite o seu santo, e o alvitre era, que se fizessem trinta e nove fogueiras de outras tantas caravelas que tinha contado no rio de Lisboa, porque as caravelas, Senhor, não servem à nossa marinhagem, e aos que nelas se embarcam, mais que de escolas de fugir. Assim o fizeram os daquela caravela, e depois de acrescentarem pano sobre pano, e alijarem ao mar quanto a pedia fazer mais ligeira, reconheceram que o corsário a vinha entrando, e já tão vizinho, que a tomaria sem remédio. Então se lembrou o padre Sebastião Gonçalves, reitor do noviciado de Goa, de acudir à sagrada relíquia que levava a seu cargo; e tanto que o poderoso braço obrador de tantas maravilhas apareceu no convés, a nau do pirata, com as velas cheias, parou no mesmo momento, como se dera fundo. E como se todas as cordas se converteram em amarras, e todos os pregos em âncoras, não deu mais um passo adiante.

Não reparo na fraqueza do vento, e seus impulsos, com as velas cheias, e elas e o navio parado, porque costumados estavam todos os ventos, e o mesmo tufão, rei deles, ou assoprando, ou acalmando, a obedecer aos acenos daquele braço. O que pondero é que a cobiça raivosa do pirata ficasse ali atada e presa. Duas vezes fez S. Francisco Xavier parar o sol, uma vez pelas orações do padre Sebastião Vieira, navegando ao Japão, onde morreu queimado pela fé, outra invocado com lágrimas por outros navegantes em perigo extremo, por falta de luz, e em ambas repetindo os dois milagres do mesmo sol, que se referem na História Sagrada. O primeiro, como em tempo de Ezequias, tornando o sol atrás, porque depois de metido no ocaso tornou a nascer e subir, perseverando sobre o horizonte quanto espaço foi necessário para o navio se pôr em salvo. O segundo, como em tempo de Josué, quando à sua voz obedeceu o sol[32], porque esteve parado e imóvel, correndo já a se esconder no ocidente, enquanto o houveram mister os navegantes, para vencer os ventos e mares, mais poderosos inimigos que os amorreus. Agora pergunto: qual foi maior milagre: o da voz de Josué em deter e parar o sol, ou o do braço mudo de Xavier em deter e parar o pirata? Esta questão já está sentenciada e decidida, não menos que pelo grande doutor da Igreja, Santo Ambrósio, para cuja inteligência é necessário supor que quando Josué entrou na Terra de Promissão, antes de render a primeira cidade, que foi a de Jericó, lançou pregão que dos despojos da cidade ninguém tomasse coisa alguma, sob pena da vida, por ela estar consagrada a Deus, a cuja honra havia de ser queimada. Contudo, diz o texto sagrado que um soldado chamado Acan furtou alguma parte dos despojos: Tulit aliquid de anathemate (Jos. 7, 1). - Este furto foi causa de que o exército de Josué padecesse uma rota na conquista da segunda cidade, chamada Há. Isto posto, diz agora Santo Ambrósio: Jesus nave qui potuit solem sistere ne procederet, avaritiam hominum, non potuit sistere ne serperet. Ad vocem ejus sol stetit, avaritia non stetit Sole itaque stante confecit Jesus triumphum, avaritia procedente pene amisit victoriam[33]: Josué pôde parar o sol, mas não pôde parar a cobiça do ladrão. Parou o sol, mas não parou a cobiça. Assim que, parado o sol, aperfeiçoou o triunfo,  e, não parada a cobiça, quase perdeu a vitória - E como é maior milagre parar a cobiça do ladrão que parar o curso do sol, pois Josué pôde parar o curso do sol, e não pôde parar e deter o ladrão, muito maior milagre foi do braço de Xavier parar esta vez o ladrão a sua cobiça e o seu navio, que parar duas vezes o sol.

Navegando o imperador Caio em uma armada de galés, subitamente parou a capitania, sem lhe valerem quatrocentos valentes remeiros, e cinco ordens de remos para se mover. Buscada a causa, se achou que a detinha uma rêmora pegada ao leme, a qual, arrancada dele, e metida dentro, diz Plínio que o que mais se admirou no caso foi que fora do navio tivesse tanta força e virtude, e dentro dele nenhuma: Peculiariter miratum, quomodo adhaerens tenuisset, nec idem polleret in navigium receptus[34]. - Comparemos agora o braço de Xavier, que foi a rêmora do corsário, como esta de Caio, que também vinha de corso. A rêmora viva, o braço de Xavier morto; a rêmora pegada ao leme, o braço de Xavier sem tocar coisa alguma; a rêmora prevalecendo ao impulso de tantos remos e remeiros, o braço de Xavier ao das velas e dos ventos; a rêmora tirada do mar perdeu todas as forças, porque a tiraram do seu elemento: o braço de Xavier com a mesma força em toda a parte, porque dominava todos os elementos; a rêmora, finalmente, dentro da galé onde estava, não podendo deter a mesma galé, e o braço de Xavier dentro no navio, onde estava, que era outro, fazendo parar o navio onde não estava.

Mas é muito digno de reparar que o mesmo braço de Xavier ia no mesmo navio antes de o avistar nem seguir o pirata; pois por que não fez este milagre, senão depois que apareceu no convés a caixa em que estava encerrado? Por isso mesmo. Apareceu a Arca do Testamento no Jordão, e no mesmo ponto a parte superior do rio parou, e a inferior fugiu para o mar. Pergunta-lhe agora Davi: Quid est tibi, mare, quod fugisti? Et tu, Jordanis, guia conversus es retrorsum (Si. 113, 5)? Que causa tiveste tu, Jordão, para parar, e tu, mar, para fugir? - Já aqui temos um parado, ou fugindo, como no nosso caso; e se eu lhe fizer a mesma pergunta, a resposta também é a mesma: A facie Domini, a facie Dei Jacob[35]. - Lá parou um, e fugiu outro, porque apareceu a Arca em que estava Deus. E cá um parou, e outro fugiu, porque apareceu a caixa em que estava o braço de Xavier.

Assim fugindo - que é a primeira vez em que o fugir foi valor, e a fugida triunfo - navegou felizmente o resto da viagem o venturoso lenho que levava o sagrado depósito, e, tomando porto, primeiro no Tejo, e depois no Tibre, o recebeu e festejou Roma com a solenidade e aplausos que prometia tão desejada expectação. Desta maneira alcançaram os dois braços de Xavier, ainda neste mundo, aquela glória que não chegou a imaginar nem apetecer a soberbíssima ambição de Alexandre Magno. Disseram-lhe os embaixadores dos citas, como refere Cúrcio: Si dii habitam corporis tui aviditati animi parem esse voluissent, orbis te non caperet: altera manu Orientem, altera Occidentem contingeres: Se os deuses, ó rei, te quisessem dar o corpo igual ao teu espírito, não caberias no mundo, porque com um braço alcançaria a tua mão o Oriente, e com outro o Ocidente. - E não é isto o que com imensa extensão abraçam hoje os dois braços de Xavier, um no Oriente, em Goa, cabeça da Cristandade da Ásia, e outro no Ocidente, em Roma, cabeça da Cristandade e do mundo? Assim é, e ainda não sabemos o que será Só sei que uma pequena relíquia deste braço, levada à cidade de Matinas em Flandes, obra tantos e tão contínuos milagres que já não cabem nos livros. E se isto pode, uma pequena parte daquele braço, ocasiões pode haver, em que veja Roma e o mundo o que pode inteiro.

§ XI

O que devem esperar de São Francisco Xavier os que, com nobre e desinteressada liberalidade, o servem e veneram.

Com estas esperanças tenho acabado a nossa novena, e as prometo muito firmes e certas, de que S. Francisco Xavier não será ingrato aos que com tanta devoção, aparato, solenidade e despesas, o servem e veneram. E, posto que seja com tão nobre e desinteressada liberalidade, é o santo tão primoroso, e tão pontual a sua correspondência, que não consentirá se perca nada com ele. Quando chegou o seu corpo defunto a Malaca, houve um devoto que, em lugar de a lâmpada, acendeu um círio adiante da arca do sagrado depósito. Este círio, que quando muito_ podia durar vinte e quatro horas, durou sempre aceso dezoito dias e dezoito noites, e depois pesou mais do que dantes pesava. O que noto é que os dias e as noites foram dezoito, que fazem duas novenas, para que fique entendido, que o que se emprega nas novenas de Xavier, se é fogo, não queima, se é cera, não se derrete, e se é preço, não se diminui, antes se aumenta.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Pôs o pé direito sobre o mar, e o esquerdo sobre a terra (Apc. 10, 2).

[2] Não permitirás que o teu santo experimente corrupção (SI. 15, 10).

[3] Tu és pó, e em pó te hás de tornar (Gên. 3, 19).

[4] E me tens conduzido até ao pó da sepultura (SI. 21, 16).

[5] Se eles me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós (Jo. 15, 20).

[6] Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e fez a redenção do seu povo (Lc. 1, 68).

[7] Nem permitirás que o teu santo veja corrupção (SI. 15, 10).

[8] E aqueles, certamente, por alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível (1 Cor. 9, 25).

[9] Não por ouro nem por prata, que são coisas corruptíveis, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado (1 Pdr. 1, 18 s).

[10] Porque toda a carne tinha corrompido o seu caminho (Gên. 6, 12).

[11] Eu saí do Pai, e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo, e torno para o Pai (Jo. 16, 28).

[12] Gregor. Epistol. lib. 3, epist. 30.

[13] Os lençóis e o lenço (Jo. 20, 6 s).

[14] Eu farei que tu não temas (Jer. l, 17).

[15] Nessa mesma noite se achava Pedro dormindo (At. 12, 6).

[16] Caíram as cadeias das suas mãos (At. 12, 7).

[17] Para que não suceda levantar-se algum motim no povo (Mt. 26, 5).

[18] Paráfrase dos versos de Virgílio (Eneida, lib. VI, v. 32): Bis conatus erat, etc: Três vezes o artista tentou cinzelar no ouro tua queda, e três vezes deixou cair as mãos paternais.

[19] Eis aqui são chegados os dias em que eu cortarei o teu braço (1 Rs. 2, 31).

[20] Cairão mil ao teu lado (SI. 90, 7).

[21] E dez mil à tua esquerda (ibid.).

[22] Summ. Regul. 33.

[23] Porque a lei não foi posta para o justo (1 Tim. 1, 9).

[24] Epistol. Obed. c. 28.

[25] E nós mesmos ouvimos esta voz que vinha do céu, quando estávamos com ele no monte santo. E ainda temos mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem de atender (2 Pdr. 1, 18 s.).

[26] O que a vós ouve, a mim ouve (Lc. 10, 16).

[27] Feito obediente até à morte (Flp. 2, 8).

[28] Certamente as suas fezes não se apuraram (SI. 74, 9).

[29] Vinho sem fezes (Is. 25, 6).

[30] E tinha na sua mão um livrinho aberto (Apc. 10, 2).

[31] Senti tanto como se me visse privado de uma parte de meu corpo (Ovid.).

[32] Jos. 10, 12 ss.

[33] Ambr lib. 2 De Offic., cap. 26.

[34] Plin. lib. 31, cap. 1.

[35] Na presença do Senhor, perante o Deus de Jacó (SI. 113, 7).