LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão duodécimo – da sua proteção, do Padre Antônio Vieira.
Edição de Referência:
Sermões.Vol. IX Erechim: EDELBRA, 1998
SERMÃO
DA
Vas electionis est mihi iste, ut portet nomen meum coram gentibus et regibus.[1]
§1
De
A
Vamos ao
De
Todas as penas dos santos se fazem línguas à vista deste formoso mapa. Mas nenhuma ponderação é bastante a declarar, quanto mais a encarecer, o muito que o espírito e zelo sem medida de Paulo trabalhou, obrou e conseguiu na pregação e conversão das nações gentílicas, por onde mereceu o nome ou antonomásia de Apóstolo e Doutor das Gentes. Porém, no que pertence à segunda parte da sua missão: Coram gentibus et regibus[3] - não por falta do apóstolo e pregador, senão dos reis, a quem havia de pregar, faltou ao vaso de eleição a matéria, isto é, as coroas, com cuja fé e conversão se enchesse, porque em toda a história de S. Paulo só se nomeiam três cabeças coroadas: el-rei Aretas, el-rei Agripa, e o imperador Nero. E quanto a el-rei Aretas, nem S. Paulo o buscou para o converter, antes fugiu de um seu ministro, que o queria prender: Praepositus gentis Aretae regis custodiebat civitatem, ut me comprehenderet: et per fenestram in sporta dimissus sum, et sic effugi manus ejus[4]. - Quanto a Nero, não foi lá, nem quis ir S. Paulo com intento de pregação como apóstolo, mas como réu por apelação: Caesarem appellasti? Ad Caesarem ibis[5]. - E nem então viu ou falou a Nero, nem daí a oito anos, quando juntamente com S. Pedro o mandou matar por outra causa. Finalmente, quanto a el-rei Agripa, acaso estava este rei com o presidente Festo, quando S. Paulo se havia de defender das acusações dos Judeus, e, por ocasião do modo com que contou que Cristo o tinha chamado, disse Agripa que faltara pouco para o persuadir a ser cristão: In modico suades me christianum fieri (At. 26, 28).
Em suma, que no apostolado de S. Paulo, posto que sobejaram ao vaso de eleição as gentes, faltaram os reis; mas a glória de suprir esta falta, e encher este vazio, é certo, pela experiência de todos os séculos da Igreja, que Deus a tinha guardado, não para outro algum apóstolo, senão para o futuro de todo o Oriente, o grande Xavier. Dele diz a mesma Igreja: Fidem Japoniae, et sex aliis regionibus invexit: Que levou a fé e nome de Cristo ao Japão, e a seis outras regiões de gentios - aonde o nome do mesmo Cristo nunca fora ouvido, que é propriamente ut portet nomen meum - porque, se já lá fora conhecido, não seria ele o que o levou. E como aquelas regiões e nações, conforme o uso do Oriente, todas têm os seus reis particulares, a todos estes pregou Xavier, bastando para serem muitos só os do Império do Japão, em que se contam sessenta e seis reis debaixo do supremo cuboçama. Nomeadamente pregou Xavier a el-rei de Firando, a el-rei de Bungo, a el-rei de Maluco, e a el-rei de Ternate, a el-rei de Tidoré. E também nomeadamente - que de outros muitos não se sabe o nome - batizou por suas próprias mãos a el-rei de Nuliagra, a el-rei de 01 ate, a al-rei de Maluco, a el-rei de Ternate, a el-rei de Maçacar; e neste número se deve também contar o famoso rei de Bungo, o qual, posto que o não batizou Xavier, dizendo ele que primeiro queria examinar até o fundo todas as outras seitas, quando finalmente se houve de batizar, não quis outro nome senão o de Francisco, por ser o padre Francisco o primeiro que lhe pregou e ensinou a fé de Cristo. E a estes batismos reais seria injúria não ajuntar o da rainha Neaquile, que o mesmo santo converteu e batizou com nome de Isabel, filha de rei, mulher de rei, e mãe de três rei, porque foi filha de el-rei Almancor, mulher de elrei Bolcife, e mãe de el-rei Boaat, de el-rei Daialo e de el-rei Tabarija, que depois se batizou, e morreu cristão em Goa.
Digamos, pois, à boca muito cheia, que em S. Francisco Xavier se encheu o vaso de eleição no segundo e mais ilustre fim para que foi eleito, que era a propagação do nome de Cristo na fé, não só das gentes, senão dos reis: Coram gentibus et regibus. - E não foi nem é meu intento nesta demonstração preferir ou igualar, nem ainda comparar a S. Francisco Xavier com S. Paulo. Mas somente para me alegrar com a metrópole de todo este estado, e lhe dar o parabém de Sua Majestade e ter dedicado e posto debaixo de tão alto e poderoso patrocínio, e, principalmente, para representar a todos os reis e príncipes cristãos quão fiel e quão segura proteção é, e quão aprovada pelo céu a de S. Francisco Xavier, não só para os reinos e monarquias, senão para as mesmas pessoas reais, primeiro na infância, e depois na maioridade, pois tão especialmente encomendou Deus ao seu cuidado e zelo a doutrina e direção dos reis. Este será o argumento desta última exortação, e também, pois havemos de falar com as coroas, a coroa de tudo o que temos dito: Ave Maria.
§II
A Cartilha Política e Cristã, oferecida à infância de um dos maiores monarcas da Cristandade. No X de Xavier estão recopiladas, e com maior eficácia, todas as virtudes que no resto de todo o abecedário se apontam para formar um perfeito rei cristão. O admirável e singular zelo de Xavier em cultivar a idade da infância dos meninos, e introduzir nela a primeira forma de homens. A idade do tempo e a idade da virtude.
Ainda S. Francisco Xavier tem que suprir e encher. E tanto mais gloriosamente quanto mais fora de toda a opinião. Muito acaso chegou às minhas mãos um livro intitulado Cartilha Política e Cristã, oferecida à infância de um dos maiores monarcas da cristandade, para que juntamente com os dias fosse crescendo nas virtudes e ditames reais. E, assim como a matéria não pode ser mais grave, nem o estilo mais desafetado e próprio, nem os exemplos e autoridades, que se alegam, mais ajustadas, assim a capacidade do campo, para tudo isto se estender naturalmente, e sem violência, não podia ser maior, assentando tudo o que se diz, debaixo da propriedade de cartilha, sobre cada uma das letras do abecedário vulgar, que vem a ser um como globo ou mapa universal, que contém dentro em si quanto compreendeu a natureza, descobriu o tempo, e retratou a história no céu e na terra. Assim aponta o A as armas, e o cuidado e vigilância delas; o B a bondade e sinceridade do rei; o C o conselho; o D o dar e liberalidade; o E o exemplo; o F a fama, e, pelo mesmo modo, as outras letras o abreviado tesouro, e como índice do que cada uma, ou dentro em si encerra, ou fora como princípio demonstra. Contudo, chegando à letra X, o mesmo autor a deixa totalmente sem comento, contente com a autoridade de Quintiliano, que quase a exclui do número das letras, tendo maior razão e melhores autores com que excluir do mesmo predicamento o H. Mas valeu-lhe a esta aspiração o escrever-se com ela a honra, a que tanto devem aspirar os reis em si e nos vassalos, como aquele nobilíssimo ídolo, que sempre foi no mundo o principal incentivo de todas as ações heróicas.
Que direi logo do X assim desamparado? Digo que no X se devia e deve pôr Xavier, porque debaixo deste famosíssimo nome, e sua proteção, estão recopiladas, e com maior eficácia, todas as virtudes, que no resto de todo o abecedário se apontam para formar um perfeito rei cristão, e o começar a ser desde sua infância, que é o assunto do abecedário referido, e a primeira parte do nosso. Admirável e singular foi o zelo de S. Francisco Xavier em cultivar a idade da infância nos meninos, e introduzir nela a primeira forma de homens. A este fim, como outras vezes dissemos, chamando-os pelas ruas com uma campainha, os tirava das casas dos pais, e muitos dos braços das mesmas amas; a este fim, por maiores que fossem as ocupações, não faltava por si mesmo à repetição de tão humilde exercício duas vezes no dia; a este fim instituía escolas e mestres em toda a parte, onde, tirados dos peitos das mães, fossem criados com o leite da verdadeira doutrina. Este foi o seu primeiro cuidado tanto que pôs os pés na índia. Mas, se Deus, meu santo, vos mandou à Ásia a desenganar e convencer os idólatras, como vos ocupais com a inocência daquela idade que não conhece os ídolos? Se vos mandou à Ásia, onde nasceram as primeiras coroas do mundo, principalmente para converter e ensinar os reis e os grandes, como vos empregais todo com os pequeninos? Não há dúvida que a mesma Providência que o mandou onde havia de ir lhe ensinou o que havia de ensinar. Por onde começa a natureza há de começar a graça, a qual não é segura na idade varonil, se não trouxe as disposições desde a infância. Naquela idade tenra e branda se imprime fácil e solidamente o que na robusta e dura mais fortemente se resiste do que se recebe. Grande caso é que Adão, saindo formado das mãos de Deus, recebesse tão mal um só preceito, e não bastasse a graça em que fora criado para a observar. Mas como Deus o tinha criado na idade de varão, não foi muito que o barro seco e duro rejeitasse o que na infância, diz S. Basílio, se recebe e imprime como em cera. Por isso o segundo Adão, não por necessidade, nem por este perigo, mas para nosso exemplo, não quis aparecer no mundo homem, senão menino.
Dele, que não podia crescer, afirma o evangelista que crescia na idade e juntamente na sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens; e só poderá crescer assim quem começar assim. Jó, tendo nascido rei, dizia que desde a sua infância crescera com ele a piedade: Ab infantia crevit mecum miseratio (Jó 31,18). -E S. Gregório, considerando na infância deste grande pequenino o modo tão antecipado de crescer, distingue nos que Deus escolheu para si duas idades: uma a do tempo, outra a da virtude, uma com que os mesmos crescem no corpo por fora, e outra com que na alma e na virtude crescem por dentro: Electis cum foris aetas corporis, intus, si dici liceat, crescit aetas virtutis. - E que lástima seria se um homem - e muito mais se fosse príncipe - passasse da infância à puerícia, e da puerícia à adolescência, e da adolescência às outras idades, e, contando muitos anos de vida, ainda nas virtudes e ornamentos do estado para que nasceu, não saísse do berço! Debalde se endireita o tronco depois de torcido, e mal se pode abrandar depois de duro. Os sábios antigos, nas frautas rústicas dos pastores costumavam declarar docemente o mais polido e fino dos seus pensamentos. Os Menalcas eram os Sênecas, os Títiros e Milibeus, os Plutarcos e Demócritos. E como os pastores da Arcádia eram estimados por mais discretos, deles se diz que no tronco brando e liso das plantas, quando novas e tenras, escreviam e entalhavam sutilmente os nomes ou motes dos seus afetos, para que, crescendo as árvores, fosse crescendo ao mesmo passo as letras, e com elas se fizessem e lessem sempre maiores os afetos do seu amor Crescent istae, crescetis amores[6].
§ III
Os príncipes cristãos e o Abecedário Político das Virtudes Cristãs e Reais. O abecedário de el-rei Davi. Como se cumpriu nos meninos de S. Francisco Xavier a profecia de Isaías. Os áspides e basiliscos de que fala o profeta. Os pais e o exemplo de Filipe de Macedonia.
Oh! Xavier! Oh! príncipes cristãos! Que ditosas e abençoadas seriam as vossas faixas, se com as primeiras auroras de luz deste mundo, depois dos dotes sobrenaturais que se infundem na alma com o soberano caráter da cruz, se escrevesse também na lisa e pura inocência da vossa infância a formosa aspa daquele X! Juntamente com os dias, iria também crescendo nela a devoção e amor de Xavier, e com as letras deste nome, tão empenhado e empregado sempre na cultura e rudimentos daquela idade tenra, se iria imprimindo nesses pequenos, corpozinhos, e grandes almas, todo o abecedário político das virtudes cristas e reais. El-rei Davi, no Salmo cento e dezoito, compôs um famoso abecedário da política do céu, que toda consiste na observância da lei divina. E dando Santo Ambrósio a razão de ser esta obra repartida e ordenada nelas letras A, B, C, diz que foi inspirada àquele grande rei e profeta pela divina sabedoria, para que assim como os meninos começam a aprender pelas letras do A, B, C - as quais se chamam elementos, porque delas se compõe tudo - assim todos nos adiantemos e apressemos ao estudo dos documentos divinos que nelas se contém, tanto sem perder tempo, que desde a verdura da infância e primeira idade, vamos sempre crescendo por todas até à madureza da última: Intelligamus per literas Hebraeorum psalmum hunc esse digestum, ut homo noster tanquam parvulus, et ab infantia per literarum elementa formatus, quibus aetas puerilis assuevit, ad maturitatem virtutis excrescat.
Agora se entenderá com quanta prudência e espírito do céu, destinado Xavier para a conversão das gentes idólatras do Oriente, e muito particularmente dos reis delas, o seu primeiro cuidado em indústria foi não mover logo as armas contra os grandes, mas ganhar e fazer do seu partido os pequeninos, tendo por certo que, pela verdade da doutrina facilmente bebida com o leite na infância dos filhos, podia penetrar e abrandar a dureza dos pais, e derrubar a idolatria. Assim o entendeu com tanto encarecimento S. Jerônimo, que, escrevendo a Leta, senhora ilustríssima entre as romanas - a qual, sendo filha de pai gentio, ela o converteu e fez cristão - chegou a dizer que, se o mesmo Júpiter tivesse tal parentesco, poderia crer em Cristo: Ego puto etiam ipsum Jovem, si habuisset talem cognationem, potuisse in Christum credere. - E que diria o mesmo Doutor Máximo, se visse ou lesse o que os meninos da criação e doutrina de Xavier faziam e podiam? Saindo bem instruídos da escola, iam ser mestres a suas casas do que tinham decorado e aprendido, ensinando-o aos pais e mães, e a toda a vizinhança, e, como espias domésticas, que sabiam onde estavam os ídolos talvez escondidos, então se cumpria neles o que estava escrito por Isaías: Delectabitur infans ab ubere super foramine aspidis, et in caverna reguli, qui ablactatus fuerit manam suam mittet (Is. 11, 8): Que os meninos em sua infância, pouco depois de apartados do peito, lançariam as mãozinhas intrepidamente aos áspides e basiliscos, e os tirariam de suas covas. - E assim o entendem literal e nomeadamente dos meninos de S. Francisco Xavier na Índia os expositores que depois dele comentaram a Isaías: Sic Franciscus Xaverius in India mittebat pueros, qui fidem Christi docebant parentes, et vicinos, et idola eorum demoliebantur - Estes áspides e basiliscos eram os ídolos muitas vezes das mesmas figuras, e de outros bichos mais asquerosos e feios, os quais os meninos, sem medo, desencovavam donde os pais os tinham escondido, e em sua presença os quebravam, pisavam, cuspiam, e afrontavam de nomes injuriosos, o que vendo os mesmos pais, junto com o que tinham ouvido do verdadeiro Deus, se convertiam e faziam cristãos, podendo-se dizer com toda a verdade, que os pais neste gênero de nova e mais alta geração eram filhos de seus próprios filhos. E onde os filhos geravam os pais, como dizia S. Paulo: Per Evangelium ego vos genui[7] -bem ordenada e naturalmente procedia Xavier em começar pelos pequenos para converter os grandes.
Busquem-me agora em todo o abecedário da cartilha outra política mais fina, mais bem-entendida, mais certa, e mais efetiva. E se S. Jerônimo não duvidou dizer que, onde os filhos convertem os pais, se faria cristão o mesmo Júpiter, o mesmo Júpiter, na gentilidade, rei dos reis e dos ídolos, que indústria mais eficaz e mais forte para converter os reis idólatras, e os obrigar a pôr as coroas aos pés do Criador, que verem os seus mesmos ídolos pisados dos pés das crianças? Escreva-se logo rubricado com letras de ouro o nome de Xavier no X, com maior razão e justiça que a mesma justiça no J, e a razão no R. E vós, ó reis e monarcas da cristandade, imitai a Filipe, rei de Macedonia, que, quando lhe nasceu Alexandre, não festejou tanto seu nascimento por se ver com sucessor e herdeiro, do que sobre o que recebera de seu pai tinha conquistado, mas por ser em tempo que vivia Aristóteles, debaixo de cuja disciplina e criação podia vir a ser tão grande, como verdadeiramente foi. E dai infinitas graças a Deus por vos dar os filhos quando desde sua infância os podeis oferecer ao patrocínio, direção e magistério de S. Francisco Xavier. Estando certos que não faltará ao agradecimento e desempenho desta devoção o seu zelo e cuidado sempre imortal daquela primeira idade, tão importante a toda a república cristã, e mais nos que em maiores anos, não digo hão de ter o cetro nas mãos, mas sustentar o leme dela.
§ IV
Quanto se serve Deus dos meninos criados na doutrina de Xavier, e quão capazes os faz de empresas muito maiores que a sua idade. A aparição do Malabar A conversão do índio de Mindanau. O admirável modo por que S. Francisco Xavier despachava as petições que lhe faziam em Mindanau. O significado dos braços trocados de Jacó na bênção de Manassés e de Efraim.
Disse zelo e cuidado imortal, porque antes parece que terão inveja os presentes aos passados, e que tiveram a ventura de alcançar o santo no tempo em que vivia. Mas bem podem estar livres deste pensar, porque a morte, ainda que lhe tirou a vida, não lhe sepultou com ela o zelo tão particular de doutrinar os meninos, e ter especial cuidado de os favorecer, encaminhar, assistir, e não apartar de si. No Malabar, muitos anos depois de morto, apareceu Xavier em dois lugares distantes a um sacerdote e a uma boa mulher, caminhando acompanhado de meninos, como quando fazia doutrina; e, perguntado para onde ia, respondeu que a dar saúde à filha de uma família muito conhecida, cujos pais, depois de lha encomendarem, a tinham chorado por morta. E passadas as horas que eram necessárias para chegar àquela casa, como despertando de um leve sono, se levantou a quase-morta inteiramente sã. Onde se deve notar, mais que o milagre da saúde, o acompanhamento do santo com os seus meninos, provado com duas testemunhas de vista, para que ninguém duvide que o mesmo cuidado que tinha deles o seu zelo na vida, tem depois da morte.
Em Mindanau adoeceu mortalmente um índio, fiscal dos outros, mas tão pouco zeloso da vida cristã e honesta deles como da sua. Exortado a que se confessasse, cria mais ao demônio, que lhe aconselhava que o não fizesse, porque, confessando-se, havia de morrer. Nesta suposição, era tão dificultosa empresa persuadi-lo a que se quisesse confessar, como a que desejasse a morte; e Xavier, que lhe desejava a salvação, a quem encarregaria, e de quem fiaria esta vitória? Caso admirável! Não a encarregou a nenhum religioso, ou homem de madura idade, senão a um dos seus meninos, o qual, com espírito varonil, lhe deu tão eficazes razões que, ouvidas elas, e perguntado o índio se queria morrer, respondeu que sim, e de muito boa vontade. - Pois agora, concluiu o menino, te aparecerá S. Francisco Xavier, e te dará não só a saúde da alma, senão a do corpo. - E assim foi. Tornando a mostrar Deus quanto se serve dos meninos criados na doutrina de Xavier, e quão capazes os faz de empresas muito maiores que a sua idade.
Mas o maior exemplo de todos, ou a maravilha mais rara e sem exemplo nesta matéria, foi na cidade de Aquila, ou distrito dela, o de um menino de dois anos e meio, chamado Maurício, ao qual tinha o santo sarado da peste, e livre de muitos outros perigos, e se empenhou em o favorecer com tal extremo, que lhe falava por uma imagem sua, e despachava por ele sensível e vocalmente as petições que lhe faziam. O modo era admirável, porque o menino, pondo-se diante da mesma imagem - que era em hábito de peregrino - falava ao santo, como se estivera e o vira presente, e depois, aplicando o ouvido à imagem, esperava a resposta, e, recebida em voz clara e inteligível, a dava como oráculo aos que o consultavam, cumprindo-se sempre o que profetizava ou prometia, com alusão muitas vezes ou expressões de segredos, que os pretendentes não tinham revelado. Era naquele tempo e naquele lugar - que se chama Potamo - a imagem de Xavier um segundo Propiciatório, e o menino o intérprete, que, declarando, como voz segunda, o que ouvia, anunciava os despachos, pela maior parte milagrosos e favoráveis aos que se encomendavam ao santo.
Assim que, destes três testemunhos póstumos, e tão vivos, se confirma, como eu dizia, ser imortal o cuidado e magistério de Xavier com os seus meninos, e que o X inicial de tão sagrado nome está mais adornado e estabelecido com sólidos e elegantes comentos das obras e palavras dos mesmos inocentes, aprendidas na sua escola, que todas as outras letras do abecedário político, ilustradas com o estudo e sentenças dos Aristóteles, Tácitos e Políbios, filhas todas da agudeza e discurso humano, não só incerto e duvidoso, mas nas experiências tão falso, como nos acidentes das ocasiões diversos. E agora me lembra que no princípio deste discurso chamei ditosas e abençoadas as infâncias, que nas primeiras usuras da luz desta vida pusessem os seus menores anos debaixo das aspas cruzadas daquele X, e dele esperassem a bênção dos seus aumentos. Assim o disse, e seja o fim do mesmo discurso a prova. Tendo cheio Jacó o número dos dias, que ele chamava pequenos, apresentou-lhe José os seus dois filhos Manassés e Efraim, para que o avô lançasse a bênção aos netos do filho que mais amava, e pôs à mão direita o mais velho, que era Manassés, e à esquerda Efraim, que era o de menor idade. Porém, Jacó, que nos olhos do corpo era quase cego, e nos da alma tão grande profeta como santo, trocando as mãos, estendeu a direita sobre Efraim, e a esquerda sobre Manassés: Extendens manum deveram, posuit super caput Ephraim minoris fratris: sinistram autem super caput Manasse, commutans manus (Gên. 48,14). - E, replicando José por parte da idade de ambos, como se a troca dos braços fosse por engano dos olhos, respondeu Jacó: Seio, fili mi, scio (ibid. 19): Bem sei, filho meu, bem sei - como se dissera: Bem sei a idade de ambos, mas também sei a bênção que hei de dar a cada um; e deu a primeira, melhor e muito avantajada, a Efraim, declarando que ele, sendo o menor, seria maior que o outro: Frater ejus minou, major erit illo. - O original hebreu, em lugar decommutans manus, diz com frase notável: Fecit intelligere manus suas: Que fez entender as suas mãos - sinal que houve ali mais inteligência que a de Efraim e Manassés, que o mesmo Jacó declarou. E que segunda e nova inteligência foi ou seria esta, que as mãos e braços de Jacó assim trocados significaram? S. João Damasceno, Tertuliano e Ruperto dizem que significavam a cruz, por meio da qual são abençoados e benditos todos os que crêem no Crucificado. Contudo, venerando esta acomodação como pia, não posso deixar de reconhecer nela o que tem de violenta e imprópria, porque a cruz de Cristo compõe-se de duas linhas retas, uma perpendicular de alto a baixo, e outra transversal ou atravessada de um lado para o outro. E se Jacó quisera representar esta, havia de estender os braços como Cristo os teve na cruz, e pôr, ou fazer pôr os netos, um à mão direita, outro à esquerda. Assim o entendem os expositores mais literais, os quais explicam o modo com que Jacó atravessou os braços pelo verbo decussare, e advérbio decussatim. E que significa propriamente este verbo e este advérbio? Os autores da língua latina, com Cícero, e também os da grega, com Columela, o dizem, declarando que a significação de qualquer destes vocábulos é pôr as coisas de tal modo atravessadas, que representem a figura da letra X: Decussare est res aliquas eo ordine collocare, ut inter se literae X speciem praebeant. -Bem pudera Jacó pôr primeiro a mão direita sobre Efraim, e depois a esquerda sobre Manassés; mas trocou-as juntamente, de modo que formassem um X, para que os que soubessem que a troca daquelas mãos tinha outra inteligência, entendessem que os de menor idade, qual era Efraim, os quais no abecedário cristão se pusessem debaixo da letra X de Xavier, esses seriam os seus abençoados. Desde Jacó até Xavier passaram mais de três mil e duzentos anos, e, se em todo este tempo nas histórias sagradas e eclesiásticas se achar outro X, a que esta alegoria convenha com maior propriedade, ou tanta, eu me retrato.
§V
Objeção: Assim como o Abecedário de Xavier para a inocência da menoridade é o meio mais próprio e natural para receber do céu os seus aumentos, assim para a idade provecta dos reis, e malícia do mundo, que eles governam, não só parece o menos eficaz, senão ainda o mais contrário. As virtudes religiosas e as virtudes reais. As inconveniências dos religiosos nos conselhos dos reis.
Supondo, pois, dos fundamentos sólidos, e que não dependem da cortesia dos ouvintes, o que fica dito no discurso passado, quanto à primeira parte da infância e menoridade, sujeita ou consagrada à direção de S. Francisco Xavier, debaixo das benignas influências daquele X, como estrela de quatro raios, ninguém haverá que a contradiga. Mas quando os reis, na maioridade - que é a segunda parte - houverem de seguir a mesma estrela, muito receio que do mesmo abecedário político se tirem as objeções, e da mesma cartilha se lhes formem os capítulos, e ainda da mesma letra. Pitágoras, em uma só letra, achou e ensinava dois caminhos, um que guiava à bem-aventurança, e outro à perdição. E na mesma letra de São Francisco Xavier, que se compõe de duas aspas encontradas, poderá dizer outro tanto a política secular, e não fundada em diferente princípio, senão no mesmo de ser religioso e santo. Dirá que, assim como para a inocência da menoridade é o meio mais próprio e natural, assim para a idade provecta dos reis, e malícia do mundo, que eles governam, não só parece o menos eficaz, senão ainda o mais contrário. Arsênio foi mestre do imperador Arcádio, e Cassiodoro de el-rei Teodorico, ambos, porém, antes de serem, o primeiro, anacoreta, e o segundo, monge. E se S. Raimundo de Penha Forte, sendo religioso, acompanhou a el-rei D. Jaime a Malhorca, desenganado do pouco que valiam com ele seus bons conselhos, negando-lhe embarcação, a fez do seu próprio manto, e navegou sobre ele a Catalunha, obedecendo o mar e os ventos a quem não pôde sujeitar um rei cristão dominado de seus apetites.
As virtudes religiosas são mui diversas das reais, e o que é em um religioso a maior virtude seria em um rei o maior vício. Vê-se claro na obediência, que, sendo no religioso o fundamento e essência da sua profissão, no rei, como diz o Rei Profeta, seria o maior de todos os delitos deixar-se dominar e obedecer a algum, quando deve mandar a todos: Si mei non fuerint dominati, tunc immaculatus ero, et emundabor a delicto maximo[8]. - Do religioso pode-se esperar que faça bom um homem; mas, fazendo um homem bom, pode fazer um rei mau, porque a bondade que faz bom a um é particular, e a do rei há de ser universal para todos. Os mestres são os espelhos daqueles a quem ensinam, e como serão nestes espelhos os reflexos reais, mostrando à púrpura o saial, à opa a cógula, e o capelo à coroa? A forma que se há de introduzir, faz semelhante a si a matéria. E como seria Afonso Henriques, tão grande rei, se não fosse Egas Moniz, em tudo o mais leigo, tão grande aio? Que espíritos soberanos e reais pode influir um professor de tão diferente estado, ainda que seja de grande espírito? Ensinará o rei a orar, e quando saia grande rezador, para encaminhar o seu reino será cego. Davi, que fez o Saltério, dizia que nas suas matinas meditava em Deus: In matutinis meditabor in te (SI. 62, 7). - Mas os pontos da meditação, nas mesmas matinas, eram arrancar da terra todos os maus: In matutino interficiebam omnes peccatores terrae[9]. - Incliná-lo-á, como virtuoso, a que prefira os virtuosos, e, com isto, sem querer, o deterá nos enganos santos da hipocrisia, agradando-lhe mais um hipócrita mal vestido que um capitão bem armado. O cavalo troiano foi recebido em procissão dentro dos muros, como voto dos gregos à deusa Palas, e, debaixo desta espécie de religião, levava dentro o incêndio com que ardeu Tróia. Como árbitro da consciência, fá-lo-á muito escrupuloso, mas por isso irresoluto, perdendo em consultas o tempo que se havia de empregar nas execuções, como bem estranhou Tácito no imperador Valente: Inutili cunctatione agendi tempora consultando consumpsit.[10] - E isto acontece aonde falta a resolução, que, buscando-se o impossível de meios que não tenham inconveniente, tudo se teme, e nenhuma coisa se faz. Deixo os danos, não do hábito religioso, senão dos hábitos que se podem pegar ao rei, tão alheios da obrigação como da majestade. Pelo desejo da paz a desatenção das armas e da guerra, pelo escrúpulo da vanglória e esquecimento da fama, pelo amor e nome da piedade o perdão, ou tolerância dos delitos, enfim, pelo pensamento único do céu, perder a terra, e ser como o matemático de Sêneca, que, não vendo onde punha os pés, porque levava os olhos nas estrelas, caiu na cova. Tais estátuas são, dizem os políticos - e estátuas somente - as que se podem fabricar e sair das oficinas claustrais, e no cabo de muita lima ou fundição, quando a república há mister um grande rei, achar-se-á quando muito com um beato.
§ VI
São Francisco Xavier, conselheiro dos reis, posto que religioso. O voto de Xavier em um conselho de Estado e guerra, diante do Governador Martim Afonso de Sousa, em Cambaia. Xavier e a prodigiosa vitória dos portugueses sobre a poderosa armada dos Aquéns em Malaca. Por que a Cartilha Castelhana não deve excluir do seu abecedário o X do nome de Xavier? A milagrosa vitória dos espanhóis sobre os mouros nas Filipinas. De que modo Xavier no seu X traz pintadas as quinas de Portugal?
Mas, deixada a questão ou apologia dos reguladores nesta parte, quando todo o abecedário político - que muitas vezes é dos que não sabem o A, B, C - se verificará contra eles, S. Francisco Xavier é a exceção desta regra. Há uns religiosos que são religiosos, e nada mais, como os Paulos, Hilariões e Macários; há outros que são religiosos, e mais outras muitas coisas, e grandes, como os Agostinhos, Gregórios, doutores da Igreja, bispos e papas. E pode haver outros que não só sejam religiosos, e muitas e grandes coisas, senão religiosos e todas. Destas qualidades reconheço dois, um por fé, outro por experiência. Por fé S. Paulo, que dizia: Omnibus omnia factus sum (1 Cor. 9, 22): Eu sou todas as coisas para todos. - E por experiência Xavier, que o podia dizer com a mesma, e porventura maior universalidade. Por nascimento, era do sangue real de Navarra; por profissão, religioso da Companhia; por gênio, universal em todos os talentos e artes. Com o soldado tratava da guerra, com o marinheiro da navegação, com o mercador dos comércios, com o lavrador da agricultura, com o matemático das estrelas, com o político das razões de estado, com o cortesão da corte, e até com o taful das cartas e dados; mas sempre e em tudo santo, como o maná que cai do céu, e contém em si todos os sabores. As advertências e cautelas que a cartilha dá ao rei são uma em cada letra e o grande coração e cabeça de Xavier era tão capaz, que nela se achariam quantas de todo o abecedário se podem compor. Assim conta Salmeirão de um monge, que a oração que rezava era o A, B, C, dizendo a Deus que com aquelas letras escrevesse e mandasse tudo quanto fosse sua divina vontade, que para tudo estava pronto. O mesmo oferecimento faço eu a todos os príncipes e reis cristãos, na pessoa, no conselho, no patrocínio e nos talentos de S. Francisco Xavier, posto que religioso.
Assim o entendeu o grande rei D. João, o Terceiro, pelo muito que nele reconheceu de grande homem - quando pelo muito que tinha de grande religioso nos granjeou o título de apóstolos - pedindo-lhe e encomendando-lhe encarecidamente quisesse visitar todas as praças, cidades e fortalezas que Portugal tinha na índia, emendando e reformando tudo o que cumprisse ao serviço de Deus e seu. E para que isto se veja por suas próprias razões e palavras, referirei o seu voto em um conselho de Estado e guerra, diante do governador Martim Afonso de Sousa, em Cambaia. Tinha um rei ou tirano de Jafanapatão martirizado muitos vassalos só por se fazerem cristãos, contando-se só em uma cidade seiscentos. Tratava-se cristã e politicamente se com nome de castigo se lhe devia fazer guerra, e, ouvido o parecer vário dos capitães, falou Xavier desta maneira:
A quem devemos, senhor, a índia, senão à pregação da fé, e para que a queremos senão para ela? Onde e para que se pode melhor aventurar uma armada, que pela defensa da cristandade, por cuja dilatação se fazem todas as de Sua Alteza? Quanto mais que a ventura aqui não está em romper com o tirano de Jafanapatão, pois sempre foi de menos prejuízo o inimigo descoberto que o falso amigo. O risco seria tomarem ele e os mais ânimos e forças do nosso sofrimento, em um caso que tem por si o zelo da lei, o serviço de el-rei, a obrigação da honra, e a reputação do Estado. Que podemos esperar de Deus nas outras empresas mais nossas, se nas suas o desamparamos? Ninguém sabe melhor que Vossa Senhoria o que el-rei, nosso senhor, fizera, se aqui fora. Escuso requerê-lo da sua parte, porque sei que tenho das dos cristãos de Ceilão e Manar a Vossa Senhoria. Quem se fiará em todo o Oriente da amizade, do nome, da fé dos portugueses, se vir que faltamos tão fracamente àqueles, que não só nos deram a sua humana, mas tomaram a nossa verdadeiramente divina? Necessário nos será daqui por diante pregar o martírio junto com o batismo, pois vós, senhores, não tratais de amparar aos que se fizerem cristãos, por que não periguem, não se atrevendo a ser mártires. Mas quem não sabe de quanto momento são à gente portuguesa, na paz e na guerra, os próprios naturais da índia, se têm conosco verdadeira amizade, que nem o foi, nem o será nunca aonde a lei e religião não for a mesma. E assim se entende que um dos respeitos que o bárbaro teve para matar tão cruelmente os cristãos, foi porque, depois de o serem, já os havia mais por vassalos de el-rei de Portugal que seus. Foramno e são-no para morrerem, e não o serão para os defendermos?
Até aqui a oração de Xavier, tão forte, e tão viva, que nas de Lívio e Salústio não lemos outras que o sejam mais. A resolução foi que se fizesse a guerra, e que, vencido o rei, se entregasse vivo ao padre Francisco, o qual não lhe pretendia o castigo com o seu sangue, senão a sua fé com o batismo. Mas porque neste conselho, pela parte que tocava aos novos cristãos, parece que falou Xavier também como religioso, passemos brevemente a outro, que só pertencia aos portugueses, e à reputação do Estado, e vejamos se pode ter nos seus algum rei, nem conselheiro de guerra mais prudente e resoluto, nem capitão mais animoso e valente. Quando o rei de Pedir, com a poderosa armada dos aquéns apareceu sobre Malaca, e com uma carta tão afrontosa como arrogante mandou desafiar aos portugueses, que não se achavam mais que com quatro fustas varadas em terra, o capitão da fortaleza, fazendo graça do desafio, perguntou ao padre Francisco Xavier o que lhe aconselhava, esperando, diz a história, que tanto mais se afastasse das armas, quanto menos as professava. Mas a resposta foi que, com inimigos e bárbaros, mais se perdia na reputação se lhe não saíssem, do que se aventurava em um encontro, ainda que o perdessem. Que ao menos, quando a armada levantasse ferro, a mandasse seguir e picar na retaguarda, tomando-lhe os navios de menos voga, para que não fossem tão folgados do desafio. E como o capitão, mais sentenciosamente que malsofrido, respondesse: - Há casos em que é forçado fazer da impossibilidade prudência, como em outros se faz da necessidade virtude. - Tem Vossa Mercê muita razão - acudiu Xavier - mas a mim se me representava que o que dizia era aqui o voto da virtude, da necessidade e da prudência. E quanto à impossibilidade, eu que menos posso que todos, confiando na infinita bondade do Senhor, cujo poder é o querer, por glória sua, e honra de seu servo, El-rei de Portugal, Nosso Senhor, tomo sobre mim dar as fustas prestes a tempo, por podres que estejam. - Dizem que os votos se hão de tomar pelo peso, e não pelo número. E aqui mostrou o X de Xavier que assim como o número de dez, que com ele se significa, é o mais perfeito, assim pesou mais que todos os votos de Malaca. E as poucas fustas que Xavier fez aprestar, posto que não levassem o mesmo X pintado nas bandeiras, como os soldados o levavam impresso nos corações, e na batalha o tiveram sempre na boca, foi a sua vitória naval uma das mais prodigiosas que nunca viu o mundo.
E como para a proteção e defensa dos reinos e estados, o que os reis devem esperar de S. Francisco Xavier não depende só da boca, senão das mãos, não só de palavras, senão de obras, pudera eu aqui trazer à memória a vitória já referida do exército dos badagás, que Xavier alcançou só e desarmado por sua pessoa, e de novo pudera referir outra contra os morotos, que se tinham rebelado contra a Igreja, os quais também sujeitou pessoalmente, acompanhado de muitos poucos cristãos animados por ele. Só contarei uma das Filipinas contra os mouros, por duas razões que depois apontarei. Defendia no reino de Buaiém uma companhia de soldados espanhóis uma pequena fortaleza, cujos muros ou trincheiras eram de madeira, e os tetos das casas cobertos de palha, e os mouros que a vieram sitiar, não só muitos em número, mas fornecidos de artilharia,. bombas, e todos os petrechos de guerra, e guiados por um rebelde doméstico, que, fugido da mesma fortaleza, se passara a eles. Sucedeu pois que passados os primeiros combates, em que mataram o alferes e feriram mortalmente o capitão, houve de suprir o posto de ambos o ajudante. Este e os mais, reconhecendo o perigo na desigualdade das forças, resolveram encomendar a defensa a uma imagem de S. Francisco Xavier. Puseram-lhe na mão a bandeira, pediram-lhe as ordens, que o ajudante distribuía em seu nome, e nada se obrava sem o mudo consentimento do novo capitão, o qual, tanto que tomou o governo das armas, como se mandara tocar caixa aos milagres, começaram a aparecer na campanha uns após outros, e a guerra a mudar de semblante. A bandeira, por mais que assoprassem diversos ventos, sempre esteve direita contra o inimigo. As balas de tal sorte se divertiam do ponto a que eram atiradas, que em nenhum soldado tocaram. As setas de fogo que choviam sobre os telhados, ali se consumiam sem prender em uma palha. Tendo fabricado dois castelos, para que levados da corrente abrasassem a fortaleza, um ardeu antes de chegar, e o outro voltou atrás contra a mesma corrente. E, posto que com a artilharia tivessem derrubado duas cortinas e um baluarte, tal foi o terror dos mouros, que se não atreveram ao assalto, e, finalmente desenganados e raivosos, mais fugindo que retirando-se, puseram fogo aos seus alojamentos, que serviram de luminárias a tão gloriosa vitória.
Agora darei as duas razões por que contei mais largamente esta, contentando-me só com apontar as outras. A primeira, por ter sucedido no ano de mil e seiscentos e cinqüenta, quase cem anos depois da morte de S. Francisco Xavier, que é o que podia pôr dúvida, ou escrúpulo às assistências do seu patrocínio. A segunda, por serem as outras vitórias obradas pelo santo nas índias Orientais, e esta nas Ocidentais; as outras nos domínios de Portugal, e esta, como outras muitas maravilhas, nos de Castela. Motivo era este não só bastante, mas igual, para que a Cartilha Castelhana não excluísse do seu abecedário o X do nome de Xavier, principalmente sendo este grande herói, como navarro, súdito de uma das suas coroas. É verdade, como vimos nos dois votos do mesmo santo, que sempre a el-rei de Portugal chamava el-rei nosso senhor, porque militava debaixo da bandeira das suas quinas, as quais trazia pintarias no mesmo X. Não é novidade ou observação minha, senão de Cícero e Quintiliano, os quais alegam e declaram as fontes da língua latina por estas palavras: Dimidium literae X figura est literae V: veteres enim numerum denarium et quinariam hujusmodi notis X et V pingere solebant[11]. - E como a letra X, por todas as partes, ou se forma ou é formada de letra V, e nela do número quinário, bem se segue que Xavier no seu X traz pintadas as nossas quinas.
§ VII
O maior milagre de São Francisco Xavier no seu dia: a separação de Portugal e Castela. A necessidade de tal divisão. O prudente, generoso e justo desinteresse com que quis Deus que Abraão e Lot estivessem divididos.
E para que o mundo veja que os castelos e leões espanhóis não são menos obrigados que as quinas de Portugal a S. Francisco Xavier, e por isso muito merecedor ele de ter lugar no abecedário da sua cartilha, como devoção e virtude muito importante aos reis, quero reduzir este ponto ao mais universal e sensível, em que o mesmo santo parece se mostrou parcial de Portugal, apartando-o e dividindo-o no seu dia, que foi o de mil seiscentos e quarenta, da sujeição e união de Castela. Tenho por tão evidente a demonstração, que se ele estivera neste auditório a não havia de negar.
Criados nas ribeiras ocidentais do mar Oceano, nadavam no meio dele dois grandes práticos deste exercício, os quais, chegando-se um ao outro, por razões que tinham de amizade e parentesco, se abraçaram; senão quando, assim abraçados ambos, naturalmente se iam a pique. Digam-me agora até os cegos, que remédio tinham estes nadadores para se não afogarem, senão soltar outra vez os braços, e dividirem-se? Pois este foi o maior milagre de S. Francisco Xavier naquele seu dia, e tão seu de Portugal como seu de Castela Nadavam ambos estes dois impérios de Espanha felicissimamente, um para o Oriente, outro para o Ocidente, pacíficos, opulentos, vitoriosos, senhores de dois mundos novos, e, recebendo os riquíssimos tributos de ambos com grandes invejas do velho. Isto enquanto separados e divididos, posto que tão unidos no sangue. Mas, tanto que se abraçaram e uniram, que sucedeu? Ex illo fluere ac retro sublapsa referri spes Danaum[12]. - Dali começaram as perdas e aúnas de ambos, e, se não se dividissem, ao que acudiu S. Francisco Xavier naquele dia, ainda seriam maiores. Eram aqueles dois impérios os que, divididos, sustentavam e defendiam a grandeza de Espanha, e, unidos, não puderam nem podiam. Por que derrubou Sansão o templo dos filisteus? Porque as suas abóbadas estavam rematadas em duas colunas tão juntas, que as pôde ele abraçar ambas, e, com a força dos cabelos mal crescidos, lançar por terra quanto sustentavam.
Diga-o o que melhor entendeu as razões de estado e da guerra, el-rei Davi. Dá graças a Deus de o ensinar a pelejar, e, comparando as outras suas batalhas à luta, diz que, para não cair e estar firme, o plantará o mesmo Deus no terreiro com os pés muito apartados um do outro: Dilataste gressus meos subtus me; et non sunt infirmata vestigia mea[13]. - As bases daquelas colunas, em que se sustenta o corpo do lutador, são os pés, e se os pés estiverem juntos e unidos, facilmente com qualquer impulso vem o peso do corpo à terra. O que importa é estarem divididos e bem apartados um do outro: Dilatasti gressus meos-porque só assim estarão firmes e fortes: Et non sunt infirmata vestigia mea - E assim como juntos os pés não podem dar passo, assim divididos podem obrar o que continua Davi, seguindo a seus inimigos até os vencer, derrubar e meter debaixo dos mesmos pés: Persequar únicos meos, et comprehendam illos; nec poterunt stare: cadent subtus pedes meos[14]. - Augusto pôs limites ao império romano. Incertum meto, an per invidiam[15] - diz Tácito. E ambas as coisas foram: a primeira, porque crescer a grandeza que se não pode sustentar, é enfraquecer; a segunda, porque outros, ou não tivessem, ou não fizessem maior império que o seu, como fizeram Cláudio e Trajano. Mas o grande Constantino, depois de tantas experiências, fundando segunda Roma em Constantinopla, com capitólio, senadores, e todos os outros ornamentos da majestade, entendeu que para sustentar um império tão grande como o romano, não bastava uma só Roma, senão duas Romas, nem uma só cabeça, senão duas cabeças, como depois apareceram divididas nas águias imperiais. E porque não seriam igualmente úteis e necessárias à grandeza de Espanha também duas, posto que uma de leão, outra de serpente? A prudência forte e a fortaleza prudente a fariam invencível, e ambas perpétuas na sua mesma divisão.
Peregrinando Lot com Abraão, tomaram assento na tema de Cancã, onde ambos se fizeram grandemente poderosos nas riquezas daquele tempo. E porque entre os pastores de um e outro começava a haver discórdias, posto que Lot e quanto possuía estava sempre unido e sujeito a Abraão, entendeu ele que, para lograrem o que já tinham, e crescerem pacificamente, convinha e era necessário que se dividissem, e assim se fez. Abraão era tio, como e]-rei Filipe II, Lot era sobrinho, como el-rei D. Sebastião, e se aquele prudentíssimo rei imitara este exemplo, e se contentara e tivera por melhor o tio que as herdades do sobrinho estivessem divididas das suas, não só não ficariam elas diminuídas na grandeza, mas muito mais seguras na divisão, e mais acrescentadas no prêmio. É caso notável, e muito digno de se notar, o como Deus logo e de contado premiou em Abraão o prudente, generoso e justo desinteresse, com que quis que ele e Lot estivessem divididos: Dixitque Dominus ad Abram, postquam divisus est ab eo Loth: Leva oculos tuos, et vide a loco, in quo nunc es, ad aquilonem et meridiem, ad orientem et occidentem. Omnem terrain, quam. conspicis, tibi dabo, et semini tuo usque in sempiternum (Gên. 13,14 s): Tanto que Lot esteve dividido de Abraão, disse Deus ao mesmo Abraão: Desse lugar em que agora estás, olha para as quatro partes do mundo, desde o Oriente até o Ocidente, e desde o Setentrião até o Meio-Dia, e tudo quanto alcançares com a vista te darei a ti e a teus descendentes para sempre. - Parece que, depois de se dividir Lot da união e sujeição de Abraão: Postquam divisus est Loth - ficaria diminuída a grandeza do tio; mas foi tanto pelo contrário, que por aquela pequena parte de tetra em que pastavam as ovelhas lhe deu Deus a de todas as quatro partes do mundo, sem outra medida ou limite que a dos próprios olhos: Leva oculos tuos, et vide. -Assim o fez Deus, e assim entendia o mesmo Abraão que havia de ser, quando fez a divisão: Sciebat patriarcha cedentem minoribus assecuturum majora-diz S. João Crisóstomo.
Nem S. Francisco Xavier pretendeu, desejou, e deu princípio naquele seu dia a outros menores efeitos, senão a esta mesma felicidade, com igual amor a ambas as partes. E se ambas se deixaram governar, e contentaram com o que tinha feito um tão interior intérprete da divina providência, considerem os políticos, com todas as virtudes ou advertências do seu abecedário juntas em conselho, de quantas invasões e diversões se pudera livrar Espanha, e de quantas dores mui sensíveis dentro e fora de casa, se as armadas que guardavam cem léguas de costa, e os presídios e exércitos que de uma e outra fronteira defendiam em roda perto de duzentas, e tanto sangue católico e espanhol derramado lastimosamente em vinte e sete anos de guerra, a fizessem contra os inimigos da fé, ou de ambas as coroas. Mas o passado não tem remédio, e só pode servir de espelho para o futuro.
§ VIII
Quanto importa aos reis e príncipes cristãos a devoção e patrocínio de um santo, que não só está no céu, como os demais, mas anda entre nós neste mundo, peregrino em todas as partes dele. Os conselhos de Aquitofel e os conselhos de Xavier Os meios naturais, e não divinos, com que Deus, aprovando o conselho de Xavier, levou as almas dos chinas ao empíreo.
De todo este discurso tão sincero, como o ânimo com que se escreve, devem colher todos os príncipes cristãos quanto lhes importa a devoção e patrocínio de um santo, que não só está no céu como os demais, mas anda entre nós neste mundo peregrino em todas as partes dele. Primeiramente devem encomendar a S. Francisco Xavier, desde o berço, a infância de seus filhos, para que se criem e cresçam debaixo da sua direção e doutrina, o que ele, como tão cuidadoso e vigilante pedagogo daquela idade, fará com tanto maior zelo, quanto neles é mais necessária ao governo de seus estados. Igualmente, e não em segundo lugar, devem pôr debaixo da proteção do mesmo santo, não só os mesmos estados, reinos e monarquias, senão as próprias pessoas, encomendando-lhe todas suas ações e resoluções com firmíssima confiança, que tudo o que obrarem ou resolverem, pelas inspirações do seu conselho, será o mais acertado, o mais grato e o mais favorecido de Deus.
De Aquitofel diz a Escritura Sagrada que eram tão certos e tão acertados os seus conselhos, como se consultassem a Deus os que o consultavam a ele: Consilium Achitophel, quod dabat in diebus illis, quasi si quis consuleret Deum (2 Rs. 16, 23). - E eu me atrevo a dizer que os conselhos de Xavier são tais, não como se os homens consultassem a Deus, mas como se Deus consultasse a Xavier. E para que ninguém tenha este dito por demasiado encarecimento, ouça um caso público, e que cada dia é mais provado e manifesto, com que acabo. Quando Xavier, com tão grande ou imensa resolução intentou a conversão não menos que do vastíssimo império da China, todos os práticos das severíssimas leis com que não admitiam entrar lá estrangeiro algum, lhe persuadiam que, no dia em que fosse conhecido o seu disfarce, enquanto o não condenavam à morte, o meteriam carregado de ferros em uma estreitíssima prisão. E que responderia Xavier? Discorria desta maneira: -Primeiro que tudo hei de pregar aos mesmos presos e ministros de justiça a fé do verdadeiro Deus, com que segurarei o morrer por ela Logo comunicarei aos presos muitas coisas admiráveis e novas, principalmente das ciências matemáticas, a que eles não guardarão segredo, e, divulgadas, como gente tão curiosa, será o cárcere a minha primeira escola E assim como a chuva, caindo no cume do telhado, de telha em telha está brevemente na ma, assim as minhas novidades, subindo da rua e gente vulgar, passarão aos nobres, dos nobres aos grandes, e dos grandes chegarão facilmente ao imperador, que me poderá chamar à sua presença. E do modo com que as palavras de Jonas, quando chegarem ao rei, posto que tão mau como Sardanapalo, o converteram primeiro a ele, e por ele a toda Nínive, por que não poderá suceder o mesmo na China?-Este foi o discurso daquele Xavier a quem Deus não quis conceder que entrasse na China Mas quê? Se lhe negou a entrada, tomou-lhe o conselho. Prega-se hoje na China pública e livremente a fé e lei de Cristo, com templos, altares, sacrifícios de seu Santíssimo Corpo, sacerdotes, religiosos e bispos. Alcançou-se primeiro esta licença dos imperadores chinas, e depois dos imperadores tártaros. E por que meios? Não do Evangelho descoberto, mas escondido debaixo das ciências matemáticas, com que lá penetram os sucessores de Xavier, religiosos da Companhia, famosos astrônomos e astrólogos, e, vencendo as suas demonstrações com evidência às dos que lá professavam as mesmas artes, estes são os que têm as mais francas e familiares entradas nos encantados palácios do supremo senhor, aonde ele, por grande favor, de dentro das cortinas do seu trono mostra um dedo. Assim que estes foram os meios naturais, e não divinos, com que Deus, aprovando o discurso de Xavier, e como seguindo o seu conselho, pelo céu da lua, pelo céu do sol e pelo céu das estrelas levou as almas dos chinas ao Empíreo.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
[1] Este é para mim um vaso escolhido para levar o meu nome diante das gentes e dos reis (At. 9, 15).
[2] Cumpro na minha carne o que resta a padecer a Jesus Cristo (Col. 1, 24).
[3] Diante das gentes e dos reis (At. 9, 15).
[4] O que era governador da província por el-rei Aretas fazia que estivessem guardas naquela cidade, para me prender; mas numa alcofa me desceram por uma janela, e assim escapei das suas mãos (2 Cor. 11, 32 s.).
[5] Para o César tens apelado? Ao César irás (At. 25, 12).
[6] Virgilius.
[7] Eu sou o que vos gerei pelo Evangelho (1 Cor. 4,15).
[8] Se eles se não senhorearem de mim, então serei eu imaculado, e serei purificado do delito máximo (SI. 18,14).
[9] Pela manhã entregava à morte todos os pecadores da terra (SI. 100, 8).
[10] Corne!. lib. 3 Histor.
[11] Ametade da letra X é a letra V; os antigos, aliás, costumavam escrever com estes sinais X e V os números denário e quinário.
[12] Desde esse dia começou a desmoronar-se a esperança dos gregos (Virg. Aeneid. liv. II, 169).
[13] Alargaste os meus passos debaixo de mim, e não se enfraqueceram os meus pés (SI. 17, 37).
[14] Perseguirei os meus inimigos, e apanhá-los-ei; e eles não poderão ter-se em pé, e cairão debaixo de meus pés (ibid. 38 s.).
[15] Inquietado pelo medo ou pela inveja (Tácito).