Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XVI – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

§ I

No famoso milagre do demônio mudo nos deixou escrita o evangelista toda a história do Rosário e seus progressos. O Rosário começou quando o anjo saudou a Virgem, e terminou quando Cristo ensinou o Padre-Nosso. A razão e o mistério porque Cristo, no mesmo tempo em que acabava de lançar os primeiros fundamentos do Rosá­rio, começa a lançar fora o demônio mudo. Os empenhos do demônio contra o Rosário figurados nas palavras de Sara a Abraão.

              

Beatus venter; qui te portavit.[1]

Com razão comparou o seu Evangelho a divina sabedoria de Cristo a um tesou­ro escondido no campo. Uma coisa é a que todos vêem na superfície, outra a que se oculta no interior da terra, e onde menos se imaginam as riquezas, ali estão depositadas e escondidas. Não as descobre quem mais cava: só as achou quem teve maior ventura, e isto é o que me aconteceu - de que dou as graças à Virgem Santíssima - com o presente Evangelho hoje. A ocasião por que foram ditas as palavras que propus, foi aquele famo­so milagre, vulgarmente chamado do demônio mudo; e neste caso, ao parecer tão diver­so, nos deixou escrita o evangelista toda a história do Rosário e seus progressos, e não por alegorias ou metáforas, senão própria e literalmente. Ali temos literalmente a pri­meira origem deste soberano invento; ali a guerra obstinada, que logo lhe intentou fazer o demônio; ali as vitórias que por meio dele alcançamos contra o inferno; e ali, final­mente, o panegírico e louvores que devemos a Cristo e sua bendita Mãe, como autora de tão grande obra: Beatus venter, qui te portavit.

No princípio, pois, deste Evangelho - que é o capítulo onze de S. Lucas - pediram os discípulos a Cristo, Senhor nosso, que os ensinasse a orar: Domine, doce nos orare[2]. E o modo de orar que o divino Mestre lhes ensinou foi a oração do Padre­Nosso: Et ait illis: cum oratis, dicite: Pater, sanctificetur nomen tuum, adveniat regnum tuum, etc.[3] Não é esta a primeira oração que dizemos quando rezamos o Rosário? Sim. Pois esta mesma, e neste mesmo dia em que Cristo a ensinou, foi a segunda e última com que se acabou de aperfeiçoar o Rosário. O Rosário começou na Ave-Maria, quando o Anjo saudou a Virgem, dizendo: Ave gratia plena: Dominus tecum[4]: E quando Cristo ensinou o Padre-Nosso, dizendo: Pater, sanctificetur nomen tuum, adveniat regnum tuum, então acabou de se aperfeiçoar o mesmo Rosário, porque o Rosário não é outra coisa senão um modo de orar composto de Padre-Nossos e Ave-Marias. Lançados, pois, estes dois fundamentos do Rosário, e aperfeiçoada nestas duas orações a matéria a que a Rainha dos Anjos e Mãe do mesmo Cristo depois deu a forma, que é o que sucedeu no mesmo ponto? Caso verdadeiramente maravilhoso e mistério profundíssimo, mas não oculto, senão manifesto. No mesmo ponto em que o evangelista S. Lucas acabou de referir a oração que Cristo ensinara, sem interpor palavra alguma, continua dizendo: Et erat Jesus ejicens daemonium, et illud erat mutum (Lc. 11, 14): que estava Cristo lan­çando de um homem endemoninhado um demônio mudo, o qual demônio se chama mudo, porque tinha emudecido e tolhido a fala ao homem. Pois, quando Cristo acaba de ensinar o Padre-Nosso, quando Cristo acaba de fundar o Rosário, então - e só neste caso e em nenhum outro - então - e no mesmo ponto sem meter tempo em meio - então trata o demônio de emudecer o homem? Sim. Então. E com conseqüência não só misteriosa, senão literal. Porque então se viu o demônio perdido, reconhecendo os poderes da ora­ção e devoção do Rosário. Por isso quando Cristo acaba de nos ensinar a orar, começa ele a se empenhar em nos emudecer; Cristo ensinando-nos a rezar o Rosário, e o demô­nio tolhendo-nos a fala para que o não rezemos.

Por que cuidais, senhores, que há no mundo tantos homens com nome de cris­tãos que não rezam o Rosário? Porque assim como o demônio emudeceu aquele ho­mem, assim os emudece a eles: Mutus est, qui in Dei laudes labia sua aperire nescit - diz aqui Eusébio Emisseno. Todas as nossas orações teme muito e aborrece o demônio, mas nenhuma persegue com tanto ódio como o Rosário. Lede as Histórias Eclesiásticas, e não só vereis quanto o demônio perseguiu sempre o Rosário e o procurou tirar do mundo por meio dos hereges de todo o gênero, antigos e modernos; mas entre os mes­mos católicos achareis estupendos e temerosos exemplos das traças, dos empenhos, das promessas e da aplicação de todo seu saber e poder, com que o demônio tem apartado a muitos deste celestial exercício, A quantos, desesperados pela pobreza, ofereceu e des­cobriu tesouros mas com condição de que não haviam de rezar o Rosário? A quantos, cegos do apetite sensual, prometeu o fim de seus desonestos amores, mas com condição de que as contas do Rosário, que levavam ocultamente consigo, as haviam de lançar fora? A quantos assegurou a vingança de seus inimigos, e que nos perigos da guerra e das batalhas saíram com vida e sem ferida, mas com condição que primeiro se haviam de deixar desarmar daquela mesma insígnia, que é o bálteo da milícia do céu? Há autor grave[5], o qual afirma que para o demônio servir a quem dele se quer valer, o pacto tácito ou expresso de que usa são aquelas palavras de Sara: Ejice ancillam, et filium ejus[6], entendendo por ancila a Virgem na Ave-Maria e por seu Filho a Cristo no Padre­Nosso. Até aos mesmos devotos da Senhora, quando os não pode apartar da sua devo­ção, ao menos procura que deixem o Rosário e o troquem por outras orações, ou mais novas, ou menos vulgares, como muitos fazem. Finalmente - este é o maior ardil e tentação de todas - faz que os que rezam o Rosário o rezem divertidos e sem atenção, que é outro modo de emudecer mais injurioso a Deus, como diz Santo Agostinho, por­que em vez de falarem com Deus, falam com seus vãos pensamentos[7].

E como os empenhos do demônio em emudecer os homens, mais neste gênero de oração que em nenhuma outra, se armam de todas suas artes, de todas suas astúcias e de todos seus poderes: essa é a razão e o mistério, porque Cristo, no mesmo tempo em que acabava de lançar os primeiros fundamentos ao Rosário, não se diz que lançou fora o demônio mudo, senão que o estava lançando: Eratejicens daemonium, et illud erat mutum[8]. Notai a oposição de um erat contra outro erat: Erat ejiciens, et erat mutum. Tanta era a rebeldia, tanta a resistên­cia, tanta a obstinação do demônio, em se não querer render à onipotência de Cristo, e teimar em não desimpedir a língua do homem que tinha emudecido, E se o mesmo Cristo, multipli­cando uns impulsos sobre outros, se deteve tanto em obrar este milagre, não é muito que nós também multipliquemos sermões e discursos, pois impugnamos o mesmo demônio e tratamos de sarar os mesmos mudos. O mudo do Evangelho finalmente falou, com grande admiração dos circunstantes: Locutus est mutus, et admiratae sunt turbae[9], e eu espero que neste sermão se ouvirá também falar o mudo, não só com igual admiração, mas com assombro e pasmo. Aquele mudo falou, mas não refere o evangelista o que disse: este há de falar e dizer o que nunca ouvistes. Ele é o que há de pregar, e não eu. E porque não é capaz de graça, não a peçamos para ele, senão para nós: Ave Maria, etc.

§ II

A eloqüente pregação do mudo. Razões e condições por que Cristo concedeu aos homens o privilégio nunca imaginado de poderem fazer mais do que ele fez: da parte de Cristo, completar os mistérios do Rosário, e da parte, nossa, as orações do mesmo Rosário. O milagre de São Domingos e o milagre de Cristo.

Suspensos vos considero na expectação do novo pregador que haveis de ouvir hoje, e agora acrescente que é o mais sábio, o mais experimentado e o mais eloqüente que nunca ouvistes. Os pontos que há de tratar são três, sobre outras tantas questões, mas não levantadas por ele, senão por outro pregador, também grande, e pelo qual Deus nesta ocasião obrou outro milagre, também do demônio mudo, mas maior que o do mesmo Cristo.

Uma das mais notáveis promessas que Cristo fez aos que o seguiam e lhe haviam de suceder neste mundo, foi que não só haviam de fazer obras tão grandes e tão maravilhosas como as suas, senão ainda maiores: Opera, quae ego fatio, faciet, et ma­jora faciet[10]. Tão generosa e tão confiada como isto é a verdadeira e soberana grande­za. Quem em tudo quer parecer maior não é grande. Assim o prometeu o Senhor e assim se cumpriu, porque, deixando outros exemplos, S. Pedro dava saúde aos enfermos só com a sombra, o que Cristo nunca fez, e convertendo Cristo em três anos só quinhentas almas, S. Pedro em um só sermão converteu cinco mil. Mas o que faz mais admirável esta disposição da providência de Cristo, é a razão dela, que o mesmo Senhor declarou: Majora faciet, quia ego ad Palrem vado (Jo. 14, 12). Farão - diz - maiores obras que as minhas, porque eu vou para o Padre. - Cristo, Redentor nosso, tão poderoso era enquan­to viveu na terra, como depois de subir ao céu e estar assentado à destra do Padre, pois, se havia de conceder este tão grande privilégio aos homens, depois de se ausentar deles e estar no céu, por que lho não concedeu quando vivia neste mundo? A razão, em suma, é porque esta prerrogativa tão singular e relevante, de haverem de fazer os homens maiores obras que as do mesmo Cristo, havia-nos de ser concedida em virtude dos mistérios e orações do Rosário. E estas duas condições, nem da parte de Cristo nem da nossa, se podiam cumprir nem ter efeito, antes de o mesmo Senhor, por meio da Morte e Ressurreição, ir deste mundo ao Padre: Et majora faciet, quia ad Patrem vado.

Ouçamos ao Cardeal Caetano que, mais resumida e mais nervosamente que todos, declarou a energia deste porquê: Mirabilis apparet promissio, sed cessabit admi­ratio libratis subsequentibus conditionibus adjunctis[11]. Se vos parece admirável uma tão grande e extraordinária promesa, ponderai as condições seguintes, que o mesmo Senhor, ajuntou e logo cessará a admiração. E quais são estas condições? A primeira é a morte e glorificação de Cristo, significadas nas palavras: Quia ad Pairem vado. Clau­ditur efficacia mortis ejus, dicendo, vado. per mortem enim ibat ad Pairem; et clauditur etiam glorificatio ejus, dicendo, ad Palrem: transire enim Jesum ex hoc mundo ad Pa­trem, est de statu mortali et humili ad statum immortalitatis, gloriae et regni ire. Hinc et meritum mortis ejus, et tempus glorificationis ejus significatur in causa, quod credentes in ipsum fecerent haec, et majora. De sorte que, para os homens fazerem maiores obras que as de Cristo, a primeira condição que necessariamente havia de preceder, era o merecimento de sua morte e o tempo da sua glorificação, e estas mesmas eram a segun­da e terceira parte dos mistérios do Rosário, que ainda faltavam para complemento dele. Enquanto Cristo vivia neste mundo, não estava ainda cumprida e inteirada mais que a primeira parte dos mistérios do Rosário, que eram os Gozosos: faltavam os Dolorosos, que se cumpriram na morte, e faltavam os Gloriosos, que se cumpriram na Ascensão. E como Cristo havia de conceder este tão extraordinário privilégio aos homens por meio dos mistérios do Rosário, por isso o não podia conceder nesta vida e neste mundo senão depois que morresse e subisse ao Padre: Majora faciet, quia ad Patrem vado.

Esta é a primeira condição da parte de Cristo, que são os mistérios: a segunda qual é? E a outra, da nossa parte, que são as orações do mesmo Rosário. Assim continua e estende a sua razão o mesmo Cristo sobre o mesmo porquê: Quia ad Patrem vado. Et quodcumque petieritis Patrem in nomine meo, hoc faciam[12]: porque eu subo ao Padre, e porque ele vos há de conceder tudo o que em meu nome pedirdes. Excelentemente o já alegado Caetano: Explicatur amplissima facultas impetrandi, non aliquid, sed omne, quod petierint. Ubi diligentius cerne, et nota conjunctionem, et jungentem hanc causae partem praecedenti. Ita quod continentur haec verba sub illa conjunctione causali: quia. Et significatur clare per hoc, quod ut credens in Jesum faciat haec, et majora, concurrunt ut causa non solum quod ego vado ad Patrem, sed quod vos petatis. Quer dizer que debaixo do mesmo guia e do mesmo porquê, ajuntou Cristo a segunda parte da razão, porque os homens haviam de fazer maiores coisas do que ele tinha obrado, e deste medo vem a concluir o Senhor, que a dita razão ou causa se compõe de duas condições, uma da parte do mesmo Cristo, que são os mistérios do Rosário, para cujo complemento foi necessário que ele morresse e subisse ao Padre: Quia vado ad Patrem, e outra da parte nossa, que são as orações do mesmo Rosário, por meio das quais impe­tramos e alcançamos do Padre, debaixo do nome de seu Filho, tudo o que pedimos: Et quodcumque petieritis Patrem in nomine meo, hoc fatiam. De maneira que os mistérios e as orações do Rosário são as duas partes de que se compõem o motivo e razão total por que Cristo concedeu aos homens o privilégio nunca imaginado de poderem fazer o que ele fez: conservando, porém, nisso mesmo a soberania própria e a diferença de Senhor a servos, porque Cristo, como Senhor, obrava mandando, e os homens, como servos, haviam de obrar pedindo: Et cum hoc declaratur etiam modus faciendi, nam ipse fecit imperando, credentibus, autem in eum promittitur, quod facient haec, et majora, supplicando.

Suposto, pois, que aos mistérios e orações do Rosário foi particularmente con­cedida esta tão admirável prerrogativa, em que pessoa, ou em que matéria a podemos ver mais propriamente praticada, que na pessoa do grande patriarca S. Domingos, e no caso de outro demônio também mudo. Na pessoa de S. Domingos, digo, que depois da Virgem Maria foi o primeiro fundador e o maior propagador do Rosário; e no caso de outro demônio mudo, o qual não só procurou de emudecer um homem, mas com efeito tinha posto perpétuo silêncio a muitos, para que não só não rezassem o Rosário, mas o desestimassem e blasfemassem. O milagre que obrou Cristo no demônio mudo foi mui­to grande, mas o que obrou S. Domingos, em cumprimento da sua mesma promessa, foi muito maior. Lá falou o mudo: Loccutus est mutus, mas não falou o demônio: cá falou o mesmo demônio e não só um demônio, mas muitos demônios. Lá não refere o evange­lista o que disse o mudo, sem dúvida porque falando não disse coisa de importância: cá disseram os demônios coisas tão importantes e de tanto peso, que nenhum homem as podia saber nem dizer semelhantes. Lá disse o mudo o que quis: cá disseram os demôni­os obrigados o que não queriam. Lá, saindo o demônio de um, entrou em muitos, que foram os escribas e fariseus que blasfemaram o milagre: cá, antes de saírem de um corpo, muitos homens os lançaram de suas almas. Lá, finalmente, admirados os circuns­tantes, só uma mulher exclamou: Extollens votem quaedam mulier[13]: cá, não só admi­rados, mas atônitos e pasmados todos, foram muitos mil os que com vozes que chega­vam ao céu, louvavam e engrandeciam a virtude e poderes da Mãe de Deus e de todo o coração se convertiam a ele. Mas vamos já ao caso, e ouçamos o novo pregador com a atenção que ele saberá merecer.

§ III

O milagre de S. Domingos em Carcassona. O Rosário, cadeia que ata e abrasa os demônios.

               Pregando em Carcassona, cidade de França, o glorioso S. Domingos, e pre­gando, como sempre costumava, a devoção do Rosário, trouxeram-lhe um endemoni­nhado furiosíssimo, o qual se despedaçava a si mesmo, e, posto que vinha atado com cadeias de ferro, não havia quem o pudesse domar nem ter mão. Mas o santo tinha outra cadeia mais forte e mais poderosa, que era o Rosário. Lançou o seu Rosário ao pescoço do miserável homem, e o demônio com grandes repugnâncias e visagens, em que mos­trava a nova força de que se sentia oprimir, ficou domado. Agora entenderão os doutos uma boa interpretação daquele anjo do Apocalipse, sobre que os expositores antigos e modernos se dividem em tantas opiniões. Diz S. João que viu descer do céu um anjo, o qual trazia na mão uma grande cadeia, e que com ela prendeu e atou àquela antiga serpente que enganou o gênero humano, o qual por um nome se chama demônio, e por outro Satanás: Vidi angelum descendentem de caelo, habentem... catenam magnam in manu sua. Et apprehendit draconem, serpentem antiquum, qui est diabolus, et Satanas,et ligavit eum[14]. As outras palavras que acrescenta o texto, pode ser que nos sirvam e as expliquemos depois; o que só digo de presente é que este anjo descido do céu é o após­tolo da Virgem Maria, S. Domingos, varão por todas suas virtudes angélico, e que a grande cadeia que do mesmo céu trouxe na mão, e com que prendeu a serpente, e atou o demônio, é o Rosário. Das mesmas Crônicas de S. Domingos, que em semelhantes casos são os melhores expositores, o provo.

Em um povo da ilha de Evisa exorcizava um filho do mesmo santo uma mulher endemoninhada, e era o demônio tão protervo, tão rebelde e tão obstinado, que a nenhuns esconjuros nem orações se rendia; rendeu-se porém, finalmente, à invocação do Santíssimo nome de Maria e aos poderes insuperáveis do seu Rosário, mas com uma circunstância muito notável, a qual eu só pondero em prova do que digo. Quando lança­ram o Rosário ao pescoço da aflita mulher, começou a gritar o demônio: "Tirem-me essa cadeia que me abrasa. Tirem-me essa cadeia que me abrasa". Já temos que o Rosá­rio é cadeia que ata o demônio. Mas que seja cadeia que o abrasa, como pode ser? Assim como os anjos quando estão na terra, trazem consigo a sua glória, assim os demônios trazem também consigo seu inferno. Os anjos trazem consigo a sua glória, porque em qualquer parte estão vendo a Deus, e os demônios trazem consigo o seu inferno, porque em qualquer parte estão ardendo naqueles incêndios eternos. Pois, se este demônio esta­va ardendo em fogo, e em tal fogo, qual é o do inferno, como diz que o abrasava a cadeia do Rosário? Pode haver fogo mais penetrante, mais forte e mais abrasador que o do inferno? Sim. E estas novas chamas e labaredas são para os demônios as orações dos cristãos. Assim o confessaram já antigamente os mesmos demônios e o refere Minúcio Felix naquela sua famosa apologia contra os gentios: Haec omnia sciunt plerique ves­trum, ipsos daemones de semetipsis confiteri, quoties a nobis, et meritis verborum et orationum incendiis et corporibus exiguntur. De sorte que mais queimam e mais abra­sam aos demônios as orações do Rosário que o mesmo fogo do inferno. E a razão natu­ral é porque do fogo do inferno vingam-se e aliviam-se com blasfemar de Deus; porém nas orações do Rosário cresce-lhes outro fogo maior, porque ouvem nelas os louvores de Deus. No inferno ouvem dizer: Maldito seja Cristo e sua Mãe; no Rosário ouvem pelo contrário: Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, e este é o fogo sobre fogo e o incêndio sobre incêndio, que intoleravelmente os abrasa. Assim como S. Miguel lançou no inferno aos demônios, dizendo: Quis sicut Deus? - assim S. Gabriel acrescentou e acrescenta cada dia o inferno aos mesmos demônios, dizendo: Ave gratia plena. Estes são pois os fuzis de maior e mais penetrante fogo, de que se forma a cadeia do Rosário, e esta é a cadeia que S. Domingos trouxe do céu, e esta a com que domou o demônio que lhe presentaram, que rompia e desfazia todas as outras.

§ IV

Primeira pergunta de S. Domingos ao demônio. quantos eram, e qual tinha sido a causa por que entraram naquele homem. Os quinze mil demônios do endemoninhado. Não é maravilha que tanta multidão de demônios coubesse em tão estreita morada. Chegou Deus afazer em defensa da honra do Rosário o que nunca fez, nem faria, para defender a sua. O extraordinário castigo sofrido por Datã e Abiron. O castigo a que submeteu S. Paulo um cristão de Corinto. A devoção do Rosário não admite neutralidades.

               Sossegado, pois o demônio, e reduzido a estado de responder com este pri­meiro império do Rosário, que foi como exórdio do sermão, começou S. Domingos a levantar as questões, e o demônio, ponto por ponto, a responder a elas. Era tal o ruído que dentro do endemoninhado se ouvia de várias línguas, e confusas e espantosas vozes, que bem mostravam não ser um só demônio o que ali residia. Perguntou-lhe, pois, o Santo quantos eram e qual tinha sido a causa por que entraram naquele homem? Estou certo que ninguém espera nem imagina qual podia ser a resposta. Responderam que eles eram quinze mil demônios e que todos, por mandado de Deus, atormentavam aquele mau homem, por ser inimigo capital do Rosário de Maria, e desprezar e desacreditar os sermões em que o pregava Frei Domingos, e com seu exemplo e falsas exortações persuadir o mesmo desprezo a muitos, e impedir com isso sua conversão. Instou o santo e perguntou por que eram quinze mil precisamente, nem mais, nem menos? Responderam que em reverência dos quinze mistérios do Rosário, e em vingança e castigo da grande injúria e afronta de Deus, com que aquele homem os blasfemava, acrescentando os mesmos demônios, que tinham entrado nele muito contra sua vontade e conveniência, por ser um dos maiores ministros do inferno e que mais favorecia suas partes e os ajudava, sendo já muitas as almas que, por seu meio, se tinham condenado. Este foi o primeiro ponto do sermão, atônitos, assombrados e temerosamente compungidos dentro em si mesmos todos os que tais coisas ouviam.

Não é maravilha que tanta multidão de demônios coubesse em tão estreita morada, como a de um corpo humano, porque são espíritos e não ocupam lugar; mas para atormentar um só homem quinze mil demônios? Se os homens foram quinze mil, um demônio sobejava, não só para os maltratar mas para os matar a todos. Não tinha maiores forças naturais o que no exército de Senaqueribe matou em uma noite cento e oitenta e cinco mil homens (4 Rs. 19, 35). A que fim, logo, tanto estrondo, tanto aparato, tantas levas de espíritos infernais? Jó, que bem lhe tinha tomado o pulso aos braços, diz que não há poder no mundo que se lhe possa comparar: Non est super terram potestas quae comparetur ei (Jó 41, 24). Um só demônio era o que teve licença, não absoluta, mas limitada, para provar com ele as forças; e, depois dos estragos que lhe fez nos gados, nos criados, nos filhos, na casa, olhai para o mesmo Jó, e ouvi o que dizia. O corpo, desde o pé até a cabeça, era uma chaga viva, asquerosa, hedionda, e por fora e por dentro, sem entrar nele o demônio, eram tão agudas, tão insuportáveis e tão contínuas, de dia e de noite, as dores que obrigavam ao mesmo exemplar da paciência a chamar pela morte e amaldiçoar a hora em que nascera. Tempo virá - que ainda não está cum­prido - em que se desatem aqueles quatro demônios que S. João viu no Apocalipse: Quibus datum est nocere terrae et mari[15]. E se para revolver todo o globo do mar e da terra, e meter em confusão e ruína tudo quanto nele vive, bastam quatro demônios, que fariam em tão estreito anfiteatro quinze mil leões desatados, que assim lhes chama S. Pedro, mais fero cada um que todas as feras? Se era para vingar a injúria cometida contra os quinze mistérios do Rosário nos quinze Padre-Nossos não bastavam quinze demônios? Se para desafrontar as cento e cinqüenta saudações angélicas, impugnadas e desprezadas nas cento e cinqüenta Ave-Marias, não bastava que eles também fossem cento e cinqüenta?

A nós parecer-nos-á que sim, mas não o julgou nem o sentenciou assim Deus. Quis que nos desagravos do Rosário fosse tão excessivo o número dos ministros de sua justiça, para que na mesma multidão dos executores se manifestasse tanto a grandeza da ofensa como a dignidade do ofendido. Chegou Deus - vede o que digo - chegou Deus a fazer em defensa da honra do Rosário, o que nunca fez nem faria para defender a sua. E atrevo-me a dizer o que não faria, porque o que Cristo faria no maior perigo da sua honra e vida, para a defender, ele mesmo o declarou, e não é tanto. Quando S. Pedro quis defender a Cristo no Horto, mandou-lhe o Senhor que embainhasse a espada, e a razão com que o sossegou foi esta: An putas, quia non possum rogare Patrem meum, et exhibebit mihi modo plusquam duodecim legiones angelorum (Mt. 26, 53)? Não sabes que, se eu me quisesse defender, posso pedir socorro a meu Padre, e ele me mandaria logo mais de doze legiões de anjos? - Reparai neste número, que é muito digno de reparo. Assim como o Senhor disse doze legiões de anjos, assim pudera dizer, doze mil legiões, porque os anjos são inumeráveis; pois, por que disse doze legiões determinada­mente? Porque com este número de espíritos angélicos ficava largamente encarecido o grande empenho que o Padre faria para defender a honra e vida de seu Filho, e o mesmo Filho a sua. A corte de soldados romanos que vieram prender a Cristo constava de mil soldados; e que partido podiam ter, diz S. Crisóstomo, contra doze legiões de anjos mil homens? Quid facerent duodecim legiones angelorum in mille viros? Bastavam sobre todo o encarecimento doze anjos, quanto mais doze legiões. Computai-me agora o nú­mero das doze legiões dos anjos, naquele caso, com o dos quinze mil demônios no nosso. Cada legião romana constava de seis mil seiscentos e sessenta e seis soldados, com que doze legiões de anjos vêm a montar oitenta mil anjos, os quais, repartidos e contrapostos aos mil soldados que vieram prender a Cristo, vêm a caber oitenta anjos para cada homem, E quando, na mais encarecida suposição, tudo o que o Eterno Padre faria para defender a honra e vida de seu Filho, e Cristo para defender a sua, era opor a cada homem oitenta anjos, o que fez o mesmo Padre e o mesmo Filho para defender a honra e estabelecer a conservação do Rosário foi meter dentro em um só homem quinze mil demônios.

As forças e poder natural dos demônios é igual ao dos anjos; mas por que foram neste caso não anjos senão demônios, os que armou e mandou Deus em defensa do Rosário? Porque assim como quis acreditar o Rosário no desagravo de suas injúrias, assim quis atemorizar os homens no castigo de suas ofensas. Quando Datã e Abiron fizeram cisma no povo e se rebelaram contra Moisés pela instituição e publicação do sumo sacerdócio, falou o mesmo Moisés ao povo desta maneira: - Se o castigo com que Deus castigar estes rebeldes for algum dos castigos com que ordinariamente costuma castigar os homens, não me deis crédito: Sin autem novam rem fecerit Dominus, ut aperiens terra os suum deglutiat eos... descenderintque viventes in infernum, scietis, quod blasphemaverint Dominum (Num. 16, 30): Porém, se Deus executar neles um castigo extraordinário e tão prodigioso, que a terra os trague, e desçam vivos ao inferno, então entendereis sem dúvida que blasfemaram a Deus no que disseram. - O mesmo sucedeu no nosso caso. Rebelou-se contra a pregação de S. Domingos aquele herege, disse muitas blasfêmias contra a devoção do Rosário, fez cisma no povo, levou após de si grande parte dele, e esta foi a culpa por que Deus o castigou com um tão extraordiná­rio e temeroso castigo, não o entregando a um só demônio, mas, com prodígio nunca visto, a quinze mil. Tendo cometido um cristão da primitiva Igreja um pecado enorme, consultou S. Paulo a congregação dos coríntios, de onde ele era, sobre o modo com que devia ser castigado exemplarmente para terror dos demais. E qual vos parece que seria o castigo? Não o condenou à morte, como S. Pedro a Ananias e Safira, mas, com a autoridade suprema que tinha de Cristo, julgou que fosse entregue a um demônio, para que vivo o atormentasse: Congregatis vobis, et meo spiritu, cum virtute Domini nostri Jesu, judicavi ti-adere hujusmodi Satanae[16]. E se para atemorizar toda a Igreja com o castigo mais exemplar e tremendo não se achou outro algoz mais cruel, nem se inventou outro tormento mais temeroso que entregar um homem a um demônio, que temor e horror causaria agora este, entregue por sentença do mesmo Cristo a quinze mil demô­nios? A circunstância mais prodigiosa no castigo de Datã e Abiron, foi que a ordem do inferno se trocasse neles e que descessem ao inferno vivos, onde os outros homens não vão senão depois de mortos. E a mesma circunstância de rigor, por outro modo não menos temeroso, executou a justiça divina neste inimigo e perseguidor do Rosário, por­que o não mandou a ele ao inferno, senão que todo o inferno entrasse nele. Que coisa era um homem com quinze mil demônios dentro em si, senão um inferno vivo, não oculto e invisível no centro, senão público e manifesto sobre a face da terra? É provável que no inferno a cada condenado atormenta somente o seu demônio tentador, a quem obedeceu e serviu na vida. Um homem, porém, condenado a que o atormentassem quinze mil demônios, vede que inferno seria o seu! Se os demônios, que não estavam ociosos, repartiram entre si aquele corpo, quais seriam os tormentos que padeceria em cada mí­nima parte? E se todos o atormentavam todo, quem poderá conceber nem imaginar a imensidade de um tormento diabólico e infernal quinze mil vezes reduplicado? Mas assim castiga Deus à vista de todo o mundo um inimigo do Rosário, para que conheçam o seu estado e tremam do seu perigo, os que o não rezam, que são os mudos.

Estou vendo, porém, que o mesmo demônio mudo os anima e consola, e ainda desculpa; e que estão dizendo dentro em si: Eu, posto que não seja devoto do Rosário, não o persigo, nem sou seu inimigo. Enganais-vos. A devoção do Rosário não admite neutralidades: se o rezais, sois amigo, se o não rezais, inimigo. É doutrina e sentença não menos que do mesmo Cristo neste mesmo Evangelho: Qui non est mecum, contra me est (Le. 11, 23): Todo o que não está comigo, é contra mim. -Como pode ser amigo de Cristo, quem não quer meditar seus mistérios? E como pode ser devoto de sua Mãe, quem a não quer saudar muitas vezes? Mas passemos ao segundo ponto.

§ V

Segunda questão de S. Domingos ao demônio: quais os cristãos que se condena­vam, e se havia dominicanos e franciscanos no inferno. A sorte dos nobres, dos ricos e dos poderosos. Entre os quinhentos discípulos que seguiam a Cristo, achamos apenas um nobre para cada cento. Os grandes vão ao inferno porque podem, e os pequenos vão ao céu a mais não poder Cristo, causa exemplar de todos os predestinados, escolheu neste mundo o estado de pobreza, sendo reputado por filho de um oficial, O quanto se enganou no que esperou ou presumiu de nós S. João Batista.

               A segunda questão que levantou S. Domingos, e a outra pergunta que fez aos demônios, foi esta: Quais eram, entre todos os cristãos, os que mais se condenavam? E se dos seus companheiros, e dos de seu irmão Francisco, havia também alguns no infer­no? Quanto à primeira parte responderam a multidão dos demônios na voz de um, que falava por todos, desta maneira: Dos nobres, dos poderosos, dos ricos e regalados, assim homens, como mulheres, temos grande número, porque a soberba, a ambição, a inveja, a vaidade, o luxo, os deleites da carne, e os outros vícios que com estes se acompanham, em que continuam sem arrependimento nem emenda até à morte, e os danos que fazem com seu poder aos pequenos, que raramente ou nunca restituem, os levam quase todos ao inferno. Porém, da gente popular, humilde e dos rústicos do campo em respeito deste grande número, são muito poucos os que se condenam, porque, ainda que não sejam santos, a sua pobreza e o trabalho de suas mãos, com que sustentam a vida e lhes leva todo o cuidado, os livram de muitos pecados e dos mais graves, em que é fácil a penitên­cia. E quanto aos teus companheiros, e de teu irmão Francisco, confessamos que até agora nenhum temos conosco, mas esperamos, por meio de nossas indústrias, que pouco a pouco se irão esquecendo de suas obrigações alguns deles, e virão, como os demais, a nossas mãos. - Com esta clareza falaram os demônios para grande confusão minha e de outros que sobem a este lugar, a quem também tenta e engana o demônio mudo, pois calamos - não sei por que - o que só devêramos dizer e bradar: Vae mihi, quia tacui, quia vir pollutus labiis ego sum[17].

               Em suma, senhores cristãos, que os grandes, os nobres, os ricos, os podero­sos, não entre os gentios, senão entre nós, são os que mais se condenam. Já nos não podemos queixar, como o rico avarento, de que não viesse a este mundo um pregador do inferno, que referisse o que lá se passa, pois Deus mandou nesta ocasião quinze mil pregadores do inferno, em confirmação do que pregava um pregador da terra. Oh! ce­gueira! oh! miséria! oh! frieza e esquecimento da fé! De sorte que as grandezas, as nobrezas, as riquezas, que tanto procuram os que são ou desejam ser poderosos, e o fim por que desejam os mesmos poderes, estes são os meios certos, por onde negociam e solicitam sua condenação, os que neste mundo se têm por maiores e melhores que os demais. Os outros requerem diante deles, e eles são perpétuos requerentes do seu pró­prio inferno; e quanto mais bem despachados, tanto mais mofinos. Tão cegos, porém, com o fumo desta vaidade, e tão saboreados deste enganoso veneno, que não só vivem alegres e contentes na sua miséria, e dão graças à sua fortuna, mas desprezam e têm por vil a dos que eles, com a falsa voz do mundo chamam gente de baixa condição, sendo estes, aqueles verdadeiramente bem-aventurados a quem Cristo prometeu o reino do céu. Isto mesmo, que aqui pregaram os demônios, é o que pregou e ensinou Jesus Cristo. Não chamou bem-aventurados os grandes, senão os pequenos; não os ricos, senão os pobres; não os que riem, senão os que choram; não os abundantes e fartos, senão os famintos; não os que passam a vida em prazeres e delícias, senão os que padecem; não os estimados e adorados, senão os desprezados e perseguidos. Que muito, logo, que dos que em tudo seguem, amam, estimam, professam e idolatram o contrário, esteja cheio o inferno, e sejam muito poucos os que se salvam? Já que não somos cristãos pela fé de Cristo, por que o não seremos ao menos pelos desenganos do demônio?

Ouçamos a S. Paulo, e, se queremos entender bem este ponto, entendamos que fala conosco: Videte vocationem vestram, fratres, quia non multi sapientes secun­dum carnem, non multi potentes, non multi nobiles[18] . Escrevia S. Paulo aos coríntios, cuja república na ciência política, na grandeza, na nobreza, no luxo e fausto dos podero­sos, competia com Roma, e se chamava a Roma da Grécia; e para que esta pompa exterior da fortuna os não enganasse e desvanecesse, como costuma, manda-lhes o Após­tolo que abram os olhos, e que os ponham em quê? Não na contumácia e pouca duração de tudo o que resplandece e parece grande no mundo, senão na sua vocação: Videte vocationem vestram (1 Cor. 1, 26). A vocação dos coríntios era a da fé e do cristianismo, a que Deus os tinha chamado e eles tinham recebido. E nesta vocação, que é o que haviam de advertir e notar? Coisa admirável! Que não chamara Deus a ela, nem a mui­tos sábios segundo a carne, que são os políticos, nem a muitos poderosos, nem a muitos nobres: Quia non multi sapientes secundum carnem, non multi potentes, non multi nobi­les (Ibidem). Gloriem-se agora lá os poderosos e os nobres, e desprezem os que o não são. De todos os homens são muitos os chamados e poucos os escolhidos; dos nobres e poderosos não só são poucos os escolhidos, senão poucos os chamados: Videte vocatio­nem vestram, non multi potentes, non multi nobiles Quereis saber quão poucos são? Cristo, Senhor nosso, como já dissemos, converteu neste mundo quinhentos discípulos, pouco mais: assim o diz e os conta nesta mesma epístola o mesmo S, Paulo: Visus est plus quam quingentis fratribus[19]; e destes quinhentos convertidos, que seguiam a esco­la de Cristo, quantos eram os nobres e poderosos? Coisa mais admirável ainda. Apenas achareis um para cada cento: Um capitão, que era José; um senador, que era Nicode­mos; um fidalgo, que era Lázaro; um régulo, que era o cafarnaíta, e para chegar a encher o número, é necessário que entre também Zaqueu com o seu dinheiro, que ainda naquele tempo não era fidalguia. De maneira, que da nobreza tão desvanecida, de cada cento, um; e da plebe humilde e desprezada, de cada cento, noventa e nove.

E qual é a razão desta diferença? A primeira e mais visível é a que deram os demônios. Porque os grandes e poderosos têm muita matéria e muita liberdade para os vícios: os pequenos e que pouco podem, ou pouca ou nenhuma. Donde se segue que os grandes vão ao inferno porque podem; e os pequenos vão ao céu a mais não poder, porque se eles puderam também haviam de fazer como os demais. Poder fazer mal, e não o fazer, é milagre da graça, que ela faz poucas vezes: Qui potuit transgredi, et non est transgressus: et facere mala, et non fecit. Quis est hic, et laudabimus eum? Fecit enim mirabilia in vita sua[20]. Assim que, os grandes vão ao inferno pelas ações do que podem, e os pequenos ao céu pelas omissões do que não podem. Esta é a razão mais pública. A mais oculta e mais alta é porque esta mesma impotência dos pequenos e populares é efeito da sua predestinação.

Seguia todo o povo a Cristo, e, para impedir estes concursos e aplausos malsofridos de seus êmulos os príncipes dos sacerdotes, mandaram eles bom número de ministros que fossem prender ao Senhor. Foram, mas com sucesso tão encontrado, que ao invés de prenderem, ficaram presos. Tornando pois sem a desejada presa, perguntaram-lhes os pontífices e fariseus: Quare non adduxistis illum? Por que o não prendestes? Responderunt ministri. Nunquam sic locutus est homo (Jo. 7, 45 s): Não o prendemos, porque o ouvimos; e nunca houve homem que falasse como este. - Bendito seja Deus que já houve ministros que perdoassem a um pregador por falar bem! Mas eram ministros inferiores. Ouçamos agora o que instaram e replica­ram os supremos: Nunquid et vos seducti estis? Nunquid ex principibus aliquis credit in eum, aut ex pharisaeis? Sed turba haec, quae non novit legem (Jo. 7, 47 ss): Basta, que também vós vos deixais enganar? Porventura a esse homem seguiu-o algum dos príncipes e dos grandes? Não. Os que o seguem e crêem nele é a gente do povo, baixa e rude. - Logo esse homem não é o Messias. Assim argumentavam e inferiam contra Cristo, como êmulos e inimigos, devendo inferir contra si e desenganar-se, como prudentes. Em semelhante caso de uns, que repudiaram a Cristo, e outros, que abra­çaram a sua fé, diz S. Lucas: Et crediderunt quotquot erant praeordinati ad vitam aeternam (At. 13, 48): E creram nele todos os que eram predestinados para a vida eterna. - Esta é a verdadeira conseqüência que deviam inferir os príncipes e grandes da Sinagoga. Nós, os príncipes e grandes, não aceitamos a doutrina de Cristo, nem o seguirmos, e o povo sim; logo o povo é o predestinado, e nós não.

Esta teologia não será muito agradável aos ouvidos costumados às lisonjas alheias, e também à própria; mas é o mero espírito do Evangelho, e a suma de toda a doutrina de Cristo. Não porque sempre e necessariamente haja de ser assim, mas porque as mais vezes, e pelo comum da Providência Divina, é efeito e sinal da predestinação fazer Deus pequenos e de humilde condição, e não grandes e poderosos, aos que quer salvar. E se quereis ver com os olhos a razão fundamental e divina desta providência, olhai para a vida de Cristo. Cristo é a causa exemplar de todos os predestinados: Quos praescivit et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui[21]. E qual foi o estado que Cristo escolheu neste mundo? O de pobre, o de humilde, o da condição ínfima e plebéia, querendo o Filho de Deus ser reputado por filho de um oficial: Fabri filius (Mt, 13, 55), e ajudando a ganhar o pão com o trabalho de suas mãos e o suor do seu rosto. Logo o que veste a samarra no monte, o que rompe a terra com o arado no campo, o que maneja a serra, ou outro instrumento mecânico no povoado, esta gente humilde e popular, são os que Deus comumente predestinou para no céu lhe trocar a fortuna. Vede-o nas ações ou afetos deste mesmo Evangelho. Houve quem admirou, houve quem louvou, houve quem blasfemou o milagre: mas quais foram uns e outros? Os que blasfemaram, foram só os grandes e poderosos, os escribas e fariseus; os que admiraram e louvaram, todos foram do povo. Os que admiraram, do povo: Admiratae sunt turbae; os que louvaram, ou a que louvou, do povo: Extollens vocem quaedam mulier de turba.

Oh! quanto se enganou no que esperou ou presumiu de nós S. João Batista! Não estranheis a palavra. Os profetas eram profetas e pregadores juntamente: como profetas diziam o que havia de ser, como pregadores diziam o que era bom que fosse, e no sucesso disto se podiam enganar. Assim se enganou conosco o Batista. Cuidou que tanto que os homens vissem ao Deus feito pequeno não havia de haver quem quisesse ser grande, e que haviam de contender a quem havia de ser menor que todos, assim como hoje contendem a qual há de ser maior: Omnis vallis implebitur: et omnis mons et collis humiliabitur[22]. Tanto que Deus aparecer no mundo, tão pequeno como um cor­deiro, como eu o hei de mostrar com o dedo, os montes e os outeiros se hão de abater e derrubar por si mesmos, e encher os vales, e não há de haver altos e baixos na terra: tudo há de ser igual. E que montes e outeiros são estes? Os montes são os da primeira nobreza e do primeiro poder; os outeiros são os da segunda. E, posto que na Cristandade temos exemplos de alguns que voluntariamente se abateram, os demais estão tão fora disso e os mesmos vales também, que os vales aspiram a ser outeiros, os outeiros a ser montes, os montes a ser Olimpos e exceder as nuvens. Mas nem por isso estão mais perto do céu, senão muito mais longe. O Batista disse: Omnis mons et collis, falando de todos, e por isso se enganou nas suas esperanças.

§ VI

Terceira e última questão de S. Domingos ao demônio: que dissesse publicamen­te se tudo o que ele pregava da devoção do Rosário era verdade, e qual era no céu o santo a quem eles mais temiam e a quem os homens mais se deviam encomendar. Ma­ria, Mãe de Deus, a maior inimiga do demônio, Por que não diz Deus que porá inimiza­des entre a serpente e o homem, senão entre a serpente e a mulher? Resposta de Salomão ao pedido de sua mãe, Bersabé. Os rogos de Maria para com Deus são impérios, as petições são decretos, as execuções obediência. O que dizem da devoção a Maria os Padres gregos e latinos. A Arca de Noé e a excelência de Maria.

A terceira e última questão que excitou S, Domingos foi perguntar e mandar aos demônios, que dissessem publicamente se tudo o que ele pregava da devoção do Rosário era verdade, e qual era no céu o santo a quem eles mais temessem e a quem os homens mais se deviam encomendar, glorificar, amar e honrar. Ouvindo esta pergunta, todos os quinze mil demônios levantaram tais clamores e fizeram tais alaridos, que muitos dos circunstantes, assombrados, caíram em terra de pavor e espanto. Mas não foi esta só a demonstração da sua grande repugnância e sentimento. Lançam-se aos pés do santo, e rogam-lhe que se contente de que lhes descubram aquelas coisas à parte, e só a ele em segredo, mas de nenhum modo em público e em presença de tanta multidão de gente. Venceu, porém, esta grande resistência a oração de S. Domingos, e, por império da mesma Mãe de Deus, foram constrangidos os demônios a responder e confessar a verdade publicamente e em altas vozes, que fossem ouvidas de todos.

               Primeiramente, raivando e mordendo muitas vezes a língua do endemoninha­ do, disseram que a maior e mais poderosa inimiga que tinham no céu, era Maria, a Mãe de Deus, que de lá os lançara. Ela é - dizem - a que, como luz, desfaz as trevas de nossos enganos; ela a que destrói e converte em nada todas as nossas máquinas e inten­tos, e se não fora pela proteção, vigilância e domínio com que reprime nossa potência e desbarata nossas traças, já tivéramos destruído a Cristandade e enganado e pervertido a maior parte dos Estados da Igreja. Vale mais um suspiro, um aceno, e qualquer signifi­cação da sua vontade diante do trono de Deus, que as orações e petições de todas as hierarquias dos anjos, e todos os santos juntos. E como somos forçados, muito a nosso pesar, a vos descobrir este segredo, sabei, cristãos, que nenhum dos que perseveram fielmente na devoção e serviço desta Senhora, se condena porque, ou antes da morte lhe alcança verdadeira contribuição e arrependimento de seus pecados, ou ainda depois de mortos, e quando já os temos em nossas mãos, podendo mais a sua valia que o nosso direito, os livra, por vários modos, de irem ao inferno. Assim que tudo o que vos prega e ensina frei Domingos é verdade; e pela experiência que já temos, vos seja notório a todos que nenhum devoto do Rosário, que continuar e perseverar firmemente nesta devoção da Mãe de Deus, se condenará.

               Isto é o que disse a uma voz toda aquela multidão de demônios, os quais, posto que sejam pais da mentira, e não mereçam crédito, quando, porém, falam manda­dos e obrigados por Deus - como neste caso - não dizem o que voluntária e maliciosa­mente fingiriam, senão o que certa e verdadeiramente é, como instrumentos, posto que forçados, da verdade divina. Quanto mais que tudo o que aqui afirmaram ou pregaram os demônios é conforme a Sagrada Escritura e doutrina dos Santos. Disseram que a maior inimiga que tinham é a Virgem Maria, e esta verdade é parte da mesma sentença que ouviram da boca de Deus, quando por boca da serpente enganaram os primeiros homens: Inimicitias ponam inter te et mulierem (Gên. 3, 15): Porei inimizades entre ti e a mulher. - Para a sentença ser mais rigorosa, e a execução dela mais temida, parece que não havia de dizer entre ti e a mulher, senão entre ti e o homem. Por que não diz logo Deus, que porá as inimizades entre a serpente e o homem, senão entre a serpente e a mulher: Inter te et mulierem? Porque esta mulher era, e havia de ser, Maria; e Maria, a Mãe de Deus, é a maior e mais poderosa inimiga que têm e temem os demônios, como eles mesmo confessam. Se a mulher de que falava, fora outra, então diria Deus: Porei as inimizades entre ti e o homem-porque os homens são os que matam as serpentes, e as mulheres fogem delas. Mas esta mulher mais que homem, era tão diferente das outras, e havia de ser tão temida das serpentes e dos demônios como na segunda parte da senten­ça lhe notificou o mesmo Deus: Tu insidiaberis calcaneo ejus. Ipsa conteret caput tuum[23], Será tão grande o medo que terá desta mulher, que jamais te atreverás contra ela de rosto a rosto. Isso quer dizer: Insidiaberis calcaneo ejus. À traição e por cilada abrirás, quan­do muito, contra ela a boca, como fazes pelas dos hereges, mas nunca a poderás morder. Tuas serão as traições, mas suas as vitórias; tu maquinarás na cabeça astuta como ser­pente mas ela te meterá a cabeça debaixo dos pés: Ipsa conteret caput tuum. Vede se falaram verdade, e verdade canônica, os demônios?

               Disseram mais, que basta qualquer significação da vontade de Maria para que Deus faça prontamente quanto ela quer, Não fora Deus seu Filho, se assim o não fizera. Por isso a pôs como Rainha do céu, da terra, e do inferno à sua mão direita: Astitit Regina a dextris tuis[24], Entrou em palácio Bersabé, mãe de el-rei Salomão, e diz o texto sagrado que descendo-se o rei do seu trono, a saiu a receber com grande reverência, e lhe mandou pôr outro trono à mão direita, em que se assentasse: Surrexit rex in occursum ejus, adoravitque eam: positusque est thronus matri regis, quae sedit ad dexteram ejus (3 Rs. 2, 19). Toda esta, nem mais nem menos, é a história da Mãe de Deus no majestoso recebimento com que entrou no céu e no trono e supremo lugar que lá tem à mão direita de seu Filho, E como Bersabé dissesse a Salomão que tinha uma petição que lhe fazer, que responderia o sapientíssimo rei? Pete, mater mea: neque enim fas est, ut avertam faciem tuam (3 Rs. 2, 20): Pedi, mãe minha, porque não é lícito que eu vos negue coisa alguma que me pedirdes. - Não é lícito, disse o rei mais sábio e maior jurisconsulto do mundo, porque negar um filho a sua mãe o que lhe pedisse seria contra a lei natural, da qual não estão isentas as maiores majestades. E, depois que Deus teve Mãe, tem também lugar esta regra em Deus? Também, diz S. Gregório Nicomediense, falando com a mesma Senhora: Tuam enim gloriam Creator existimans esse propriam, et tanquam Filius ea exultans, quasi solvens debitum implet petitiones[25], Não se isenta a suprema soberania do Criador de pagar este tributo de obséquio à sua Mãe, antes se preza e gloria tanto de fazer quanto lhe pede como Filho, que não despacha as suas petições como graça, senão como dívida: Quasi solvens debitum implet petitiones. Alta e verdadeiramente dito: quando Deus despacha as petições dos outros Santos, é graça, porque faz o que pode, porque quer, quando despacha as de sua Mãe é justiça, porque faz o que não pode deixar de querer, porque paga o que deve. E daqui infere o mesmo santo que os rogos de Maria para com Deus são impérios, as petições são decretos, as execuções obediências: Nihil tuae resistit potentiae, nihil repugnat tuis viribus, omnia cedunt tuo jussui, omnia tuo obediunt imperio, omnia tuae potestati serviunt. Isto é o que dizem os santos, e isto o que confessaram os demônios.

               Só uma coisa das que disseram, parece dificultosa, e é afirmarem com tanta asseveração, que nenhum devoto da Virgem Maria, se persevera na sua devoção, se condena. Se nos quereriam os demônios enganar com esta grande confiança? É certo e certíssimo, segundo o insaciável desejo que têm de nossa perdição, que assim o fariam, se pudessem; mas como falavam obrigados e constrangidos por Deus, disseram, muito a seu pesar, o que não puderam negar. Ouçamos, purificado pela boca dos santos, o mes­mo que as venenosas dos demônios vomitaram forçadas. Santo Anselmo, tão devoto da Senhora como alumiado do céu, diz esta sentença notável, mas recebida e aprovada de todos os teólogos: Sicut, o Beatissima Virgo, omnis a te aversus et despectus, necesse est ut intereat, ita omnis ad te conversus et a te respectus, impossibile est ut pereat.Quer dizer: Assim como todo aquele que se aparta de vós, ó Beatíssima Virgem, e por isso se faz indigno de vossa proteção e amparo, necessariamente se condena; assim todo aquele que se converte a vós, e se faz digno de que ponhais nele os olhos de vossa misericórdia e piedade, impossível é que se perca. - O mesmo dizem, falando pelos mesmos termos de salvação e condenação, entre os Padres gregos, S. Germano, S. Efrém, S. Epifânio, e entre os latinos, S. Pedro Damião, S. Boaventura, S. Bernardo, o qual declara o medo destes dois impossíveis, com uma, não só comparação, mas figura da mesma Se­nhora, tão elegante como evidente: Arca Noe significavit excellentiam Mariae. Illam Noe, ut diluvium evaderet, fabricavit: istam Christus, ut humanum genus redimeret, praepara­vit. Per illam octo tantum animae salvantur: per istam omnes ad aeternam vitam vocantu[26], Na arca de Noé foi significada a excelência de Maria - diz S. Bernardo -. Aquela fabricada por Noé, esta por Cristo: aquela para se salvarem então os poucos que conser­varam a vida natural, esta para se salvarem depois todos os que alcançaram a vida eterna. - Notai agora a propriedade da semelhança, que não pode ser maior, nem mais adequada. - No dilúvio de Noé todos os que estiveram dentro na arca se salvaram, e todos os que ficaram fora, se perderam: e com tal necessidade de se salvar ou perder no meio de dois impossíveis, que nem os de fora podiam deixar de se perder, nem os de dentro podiam deixar de se salvar, porque para que uns não pudessem entrar, nem outros sair, tinha Deus por si mesmo fechado a arca. Do mesmo modo nesta tempestade universal da vida e do mundo, em que todos flutuamos e tantos naufragam. Os que estão dentro na arca, isto é, debaixo da proteção de Maria, todos se salvam; os que estão fora dela todos se perdem, e uma ou outra coisa tão infalivelmente, debaixo desta suposição - a qual depende de nós - que os que se perdem: necessariamente se perdem: Necesse est, ut intereat- e os que se salvam, impossível é que se não salvem: Impossibile est, ut pereat.

               Mas quais e quantos foram os que se salvaram na arca? Bendita seja e infini­tamente bendita a misericórdia de Deus e de sua Mãe! Homines et jumenta salvabis, Domine, quemadmodum multiplicasti misericordiam tuam[27]. Os que se salvaram na arca, ou eram homens racionais, como Noé e sua família, em que são significados os justos, que vivem conforme a razão e obedecem e servem a Deus, ou eram os animais brutos de todas as espécies, uns feros, outros venenosos, outros de rapina, em que são significados os pecadores em todo o gênero de vícios, que vivem sem freio de razão, levados só do ímpeto dos apetites. E todos estes se salvaram na arca, porque debaixo da proteção de Maria - se foram tão venturosos ou tão diligentes que a souberam procurar - não só os justos senão também os pecadores, por mais e maiores pecadores que sejam, todos se salvam. Isto é o que confessaram e pregaram os demônios. E se acrescentaram confirmando a doutrina de S. Domingos, que entre todos os devotos da Senhora, os que rezam o seu Rosário são os que gozam esta soberana prerrogativa, com especial assis­tência do céu e respeito à mesma devoção. Na mesma arca, e no mesmo dilúvio temos conta por conta as do Rosário. O dilúvio, diz o texto sagrado que durou cento e cinqüen­ta dias: Obtinuerunt aquae terram centum quinquaginta diebus[28] e a arca, diz o mesmo texto que nadou por cima dos mais altos montes quinze côvados: Quindecim cubitis altior fuit agua super montes, quos operuerat: porro arca ferebatur super aquas[29] . De sorte que a providência da salvação e os números do Rosário se ajustaram de tal forma, que o dilúvio durou cento e cinqüenta dias, e as águas cresceram sobre os montes quinze côvados, para que a arca não tocasse em algum deles, e se perdesse, e todos os que iam nela se salvassem. E deste modo pereceram todos, e só os que estavam na arca se salva­ram: Cuncta, in quibus spiraculum vitae est in terra, mortua sunt. Remansit autem solus Noe, et qui cum eo erant in arca[30].

§ VII

São Domingos, o Hércules dos católicos. Saem os demônios da boca de endemo­ninhado em figura de carvões acesos.

               Depois que os demônios falaram e satisfizeram a todas as perguntas, e pregaram aqueles três grandes desenganos a todo o concurso dos ouvintes, que no princípio eram mais de dois mil, e sempre foi crescendo, chega-se S, Domingos ao herege endemoninhado, manda-lhe imperialmente que o siga em virtude do santo Rosário. Parece-me que estou vendo, não fabulosa, mas verdadeiramente a história de Hércules, quando tirou por força do inferno, e trouxe atado após si o cão Cérbero de três cabeças. O Hércules dos católicos era Domingos; o cão Cérbero, o herege, propriamente trifauce, que por três bocas e com três línguas, todas blasfemas, ladra­va contra o santo, contra a Santíssima Virgem, e contra a devoção do seu Rosário. E, assim como se diz de Hércules: Cerberum traxit triplici catena, assim levava o santo preso após si aquele cão infernal, e a cadeia era o Rosário, que são três cadeias em uma, ou uma cadeia de três ramais: triplici catena. Posto o endemoninhado no meio do auditório, diz o Santo e pede a todos que, para que Deus livre aquele miserável homem da multidão de demônios que o atormentavam, se ponham todos de joelhos, e em alta voz rezem o Rosário. Oh! prodígio! Oh! caso inaudito! Oh! Maravilha própria, não só da onipotência, mas da sabedoria divina, com que tudo dispõe e exe­cuta eficaz e ordenadamente! Tanto que se rezou a primeira Ave-Maria, em figura de carvões acesos saíram da boca do endemoninhado cem demônios. Rezou-se a segun­da, e saíram outros cento, outros cento à terceira, outros cento à quarta; e, saindo desta maneira cento a cento a cada Ave-Maria, no ponto em que se acabaram de rezar as cento e cinqüenta Ave-Marias das quinze décadas, ficou totalmente livre o homem dos quinze mil demônios, e não só livre no corpo, senão da alma, já desenganado, já convertido, já alumiado e reconhecido de seus erros, já devoto, e devotíssimo - como todos os que se acharam presentes ao milagre - da puríssima e poderosíssima Mãe de Deus, e do seu Rosário. Oh! benditíssimo Filho de Maria, quanto honrastes e honrais a vossa Santíssima Mãe, e com quantos excessos de glória quisestes se cumprisse nesta ação a verdade daquela vossa grande promessa: Majora faciet[31]? Vós detives­tes-vos, e gastastes tempo em lançar um só demônio: Erat Jesus ejiciens daemo­nium[32]: e o nome de vossa Mãe, no mesmo momento em que pronunciava, lançava cem demônios, dez vezes pronunciado, mil, cento e cinqüenta vezes pronunciado, quinze mil. E se o Rosário se pronunciara no inferno, ainda que sejam tantos milha­res os demônios que o habitam, cedo ficaria despovoado.

§ VIII

Porque são invisíveis, por isso mesmo devemos temer os demônios muito mais. A proposição do apóstolo S. Paulo. Que faremos, estando sitiados de tantos e tão podero­sos inimigos? Por que se compara a Senhora ao plátano plantado no meio das estra­das? Razões por que o demônio não tentou a Cristo nem o buscou nos primeiros ou últimos verdores da adolescência, e não o tentou em Nazaré, ou em outra cidade vizi­nha, senão no deserto.

Tenho dito o que basta para a admiração. E que posso dizer de novo para a doutrina? A primeira coisa que digo é o que tantas vezes dizia e pregava S. Paulo. Como os demônios são espíritos invisíveis, e não os vemos, parece que não acabamos de per­suadir que há demônios, e que perpetuamente andamos cercados deles, sendo assim que, porque são invisíveis, por isso mesmo os devemos temer muito mais. Se um solda­do tivesse arte de se fazer invisível, entrar, sair e obrar o que quisesse, sem ser visto, este se devera temer mais que os grandes exércitos; e os demônios, pelo contrário, não são um só contra muitos homens, senão muitos contra cada um, e todos invisíveis. Isto é o que sobretudo ponderava S. Paulo: Quoniam non est nobis colluctatio adversus carnem et sanguinem; sed adversus principes et potestates, adversus mundi rectores tenebra­rum harum, contra spiritualia nequitiae, in caelestibus[33]. Três coisas nota o Apóstolo nestas palavras, todas muito para temer. A primeira, que lutamos com quem não tem corpo, e por isso com partido muito desigual, porque eles têm por onde nos pegar, e nós não: Non est nobis colluctatio adversus carnem et sanguinem. A segunda, que nós pele­jamos às escuras, e eles com luz, porque eles vêem-nos a nós, e vêem-nos por fora e por dentro, e nós não os vemos a eles: Adversus mundi rectores tenebrarum ha rum. A ter­ceira, que nós temos os pés na terra, e eles não têm pés, senão asas velocíssimas, com que voam pelo ar, o qual ocupam desde a terra até o céu: Contra spiritualia nequitiae, in caelestibus. E se perguntarmos a razão por que aquela parte dos demônios, que não estão presos e aferrolhados no inferno, e permitiu Deus que ficassem cá em cima para nos tentarem, o sítio que ocupam é todo o elemento do ar, quanto se estende desde a terra até o céu, a razão é - diz S. Bernardo - porque deste modo nos quiseram cercar e sitiar totalmente, assim da parte donde só nos podem vir e entrar os socorros, que é o céu, como da parte donde nós os podemos procurar com nossas orações, que é a terra: In acre esse delectantur, ut dona Dei ad nos descendere, vel nostras orationes ad Deum ferri impediant.

               Que faremos nós, logo, estando assim sitiados de tantos e tão poderosos ini­migos? Defender-nos só, é pouco. O que devemos fazer é fortificar-nos e armar-nos de tal sorte, que não só os demônios desesperem a vitória, mas que nos temam e fujam de nós; e isto só o podemos conseguir, pondo-nos à sombra da torre de Davi, de que pendem milhares de escudos, que é a Virgem Maria, e só dentro do recinto do seu Rosário. Quasi platanus exaltata sum juxta aquam in plateis[34], diz a mesma Senhora falando de si, Compara-se ao plátano alto, fresco, copado e sombrio, não plantado só para ameni­dade e delícia dentro dos jardins, senão fora e no meio das estradas ou ruas largas: in plateis. Esta distinção das ruas largas às estreitas, é da alma santa, quando buscava o Esposo: Per vicos, et plateas quaeram illum[35]; e a significação de umas e outras é do mesmo Esposo, Cristo: Arcta via est, quae ducit ad vitam: lata, quae ducit ad perditio­nem[36]. As ruas largas são aquelas por onde os maus caminham ao inferno, e as estreitas, por onde os bons vão ao céu. E porque as ruas e estradas largas são os lugares onde os demônios principalmente nos tentam, onde nos fazem a maior guerra, e por onde nos levam à perdição, esse é o motivo e o mistério por que a Virgem Maria assiste e se levanta como plátano nas mesmas estradas, para ali nos defender dos demônios e os pôr em fugida. Pois, como plátano para nos defender e como plátano para pôr em fugida os demônios? Sim. Que essas são as virtudes e propriedades do plátano: Platanus quot habet folia, tot habet scuta: O plátano - diz Hugo - tantos escudos tem, quantas folhas - porque esta é a forma que a natureza deu às folhas do plátano, podendo-se dizer daquela árvore, ou castelo verde, o que se diz da Torre de Davi: Mille clypei pendent ex ea[37] - e por isso figura da Virgem Santíssima, enquanto nos defende dos demônios. E enquanto os faz fugir, também plátano, porque, como diz Piério: Platani folia arcent vespertiliones: as mesmas folhas do plátano têm virtude de afugentar os morcegos, fi­lhos das trevas e inimigos da luz, e por isso feios e funestos, símbolos dos mesmos demônios, dos quais afirma por experiência S. Bernardino, que com tal extremo temem a Rainha dos Anjos e fogem de sua presença, que a nenhum lugar onde esta Senhora assista, se atrevem eles a chegar, nem de muito longe: Doemones ne de magno spatio audent illi appropinquare.

               A prova da Escritura nos dará o príncipe dos mesmos demônios, e só ele a poderá inventar, quanto é encarecida. Cristo, Senhor nosso, até a idade de trinta anos assis­tiu sempre com sua Santíssima Mãe, obedecendo-a e servindo-a, e, depois da morte de S. José sustentando-a, como bom Filho, com o trabalho de suas mãos e suor de seu rosto. Houve, enfim, de sair o divino Sol a alumiar o mundo, e para começar pelo primeiro e mais necessário documento, ensinando-nos com seu exemplo a vencer o demônio e suas tenta­ções, diz o texto sagrado que se retirou a um deserto para ali ser tentado: Ductus est Jesus in desertum, ut tentaretur a diabolo[38]. Parece que nem da parte de Cristo para o exemplo, nem da parte do demônio para a tentação, se havia ela de guardar para tão tarde. A idade mais sujeita e ainda inclinada às tentações, e a menos forte e mais bisonha para as resistên­cias é muito antes dos trinta anos. Pois, por que não tentou o demônio a Cristo, nem Cristo o buscou ou desafiou para ser tentado nos primeiros ou últimos verdores da adolescência, idade que nos outros homens é a mais ardente, a menos desenganada, e a mais aparelhada e pronta para ser vencida? Respondem douta e devotamente graves autores que naquela idade, e em todos os anos seguintes, até aos trinta, assistia sempre o Senhor e morava com sua Santíssima Mãe, e debaixo da sua sujeição e obediência, como consta dos evangelistas, e por isso o demônio em todo este tempo não teve ousadia para o tentar nem esperança de o vencer, porque onde assiste ou é assistida Maria, não só não se atrevem a chegar os demônios, mas fogem daí muito longe: De longo spatio non audent appropinquare. De muito longe, digo com S. Bernardino, e o provo do mesmo texto. Se o demônio se não atreveu a acometer a Cristo enquanto estava em casa de sua Mãe, por que o não acometeu fora dela, na cidade de Nazaré, ou em outra vizinha, nem Cristo o buscou para ser tentado senão no deserto de além do Jordão, em tantas léguas de distância? Porque conhecia o Senhor o grande medo que os demônios têm ao sagrado fortíssimo de Maria, e quanto fogem, não só à presença, senão a qualquer vizinhança daquela soberana Majestade, para eles tremenda. Prevendo, pois, que assim como o demônio em tantos anos se não atreveu a o tentar em sua casa, também agora não teria ousadia para o acometer, ainda em lugar apartado e distante, se não fosse muito longe dela; por isso se retirou àquele deserto, onde, desacompanhado de sua Mãe e muito longe de sua presença, desse ânimo e confiança ao demônio de o acometer, e lá pudesse ser tentado como queria: Ductus est in desertum, ut tentaretur a diabolo (Mt. 4, 1).

               Ainda não está ponderado o maior encarecimento do caso. Tenta, finalmente, o demônio a Cristo, e as palavras por onde começou a primeira e segunda tentação foram: Si Filius Dei es (Mt. 4, 3): Se és Filho de Deus. - Não só do jejum de quarenta dias – porque também Moisés e Elias tinham jejuado outros quarenta-mas de todas as outras circunstân­cias sobre-humanas que Cristo tinha obrado no deserto, julgou o demônio que aquele ho­mem era mais homem, e não podia ser menos que o Filho de Deus prometido nas Escritu­ras. A este princípio atribuem muitos a notícia que o demônio teve da divindade de Cristo; mas o certo e infalível fundamento foi a voz do Eterno Padre, quando disse sobre o Jordão: Hic est Filius meus dilectus[39], que o demônio muito bem ouviu. Pois se o demônio tenta a Cristo uma, duas e três vezes, quando o reconhece Filho de Deus, como se não atreve a o tentar nem uma só vez debaixo da sujeição de sua Mãe, e em sua casa, quando só o consi­derava homem? Esta mesma pergunta, ou admiração, é o maior encarecimento que se pode dizer nem imaginar de quanto o demônio respeita, foge e teme, não só a pessoa e presença daquela mulher, a que foi sentenciado que lhe pisaria a cabeça, mas a assistência somente e proteção dos que vivem à sombra da mesma Senhora, e ela tem debaixo de sua sujeição e amparo. De sorte que o mesmo Cristo, considerado só como homem, não se atreve o demônio a o tentar, porque o vê acompanhado e assistido de Maria; e, depois que o reco­nhece por Filho de Deus, porque o vê só e desacompanhado dela, não teme de o acometer, nem receia de o tentar uma e muitas vezes, como se fora mais formidável ao demônio a companhia e assistência só daquela prodigiosa mulher, que a união e presença da mesma divindade! Basta, demônio, que ao Filho de Deus, conhecido por tal, esperas tu e presumes vencer; e ao Filho de Maria, supondo só que é homem, enquanto está com ela, não te atreves atentar? Mas permitiu Deus que tu o entendesses assim, para que nós entendamos que, debaixo da sua proteção e amparo, nunca tu nem todo o inferno nos poderá ofender. Infinitas são as coisas que se puderam dizer, e altíssimos os pensamentos que sobre este grande paralelo se puderam levantar; mas para mim, sem nenhuma outra consideração, basta só a simples verdade e certeza do sucedido. E qual é? É certo que enquanto Cristo esteve com sua Mãe, não o tentou o demônio, e é certo que depois que se apartou dela, logo o tentou.

§ IX

As três jerarquias dos demônios: os matutinos, os meridianos e os vesperti­nos, aos quais contrapôs a Senhora os três terços do seu Rosário. A divisão dos demônios no parafraste caldeu. O que argúem os demônios contra o que fez Deus pelos homens. Conclusão.

O que, pois, devemos fazer para nos defender do demônio e suas tentações, ou para que ele e elas fujam de nós e nos temam, é, como dizia, recolhermo-nos à sombra da Torre de Davi, a Virgem Senhora nossa, e dentro do recinto do seu Rosário, porque assim fortificados, nenhum demônio haverá nas três jerarquias do inferno, nem todos juntos, que, se chegarem a nos tentar, nos possam vencer. Disse nas três jerarqui­as, porque esta é a forma em que se repartem, como em três terços, todos os demônios, e dividem entre si o dia natural, para que em nenhuma hora dele cesse a bateria com que nos combatem. Os primeiros chamam-se demônios matutinos, e a estes pertencem as horas da madrugada e da manhã; os segundos chamam-se demônios meridianos, e a estes pertencem as horas do meio-dia e de todo ele; os terceiros chamam-se demônios vespertinos, e a estes pertencem as horas da tarde e o resto da noite. Vede agora a singular energia e propriedade com que a estes três terços do inferno contrapôs a Senho­ra os três terços do seu Rosário, dividindo na mesma forma o dia, e respondendo horas a horas. Aos demônios vespertinos respondem os mistérios da Encarnação, que foi obrada na última hora da tarde; aos demônios meridianos respondem os mistérios da Paixão, que foi obrada nas horas do meio-dia; e aos demônios matutinos respondem os misté­rios da Ressurreição, que foi obrada na primeira hora da manhã. E para que nos não falte a prova da Escritura, com as mesmas três diferenças de demônios no mesmo dia, ouça­mos o parafraste caldeu sobre aquelas palavras dos Cânticos: Donec aspiret dies, et inclinentur umbrae[40].

Omni tempore, quo populus domus Israel tenebat manibus sutis artem patrum suorum, fugiebant nocentes spiritus tenebricosiores, et vespertini, et matutini daemo­nes de medio eorum, Quer dizer: Em todo o tempo em que o povo fiel da casa de Israel trazia nas mãos a arte de seus pais, fugiam dele todos os maus espíritos. E que maus espíritos eram estes? Tenebricosiores, et vespertini, et matutini daemones. Eram os de­mônios vespertinos, os demônios matutinos e os demônios meridianos. E para que nin­guém duvide qual era o poder de que temiam e a virtude que os fazia fugir, continua assim o mesmo parafraste: Eo quod majestas Domini residebat in domo sanctuarii,quae aedificata, est in monte Moriah, et omnes daemones, et nocentes spiritus fugie­bant ab odore incensi aromatum. E a razão - diz - era porque a Arca do Testamento residia na casa do santuário, edificada no monte Mória, e todos os maus espíritos e demônios fugiam do cheiro do incenso aromático, que se oferecia e queimava diante dela. Todos sabem que a Arca do Testamento significa a Virgem, Senhora nossa, e também sabem que o incenso significa a oração, e os aromas de que era composta, os mistérios que a acompanham: logo, toda aquela representação no Templo antigo, que também significava a Igreja, era uma figura profética, ou uma profecia em figuras, de que a mesma Senhora, por meio da devoção e orações do seu Rosário, havia de atemo­rizar, dissipar e pôr em fugida os demônios, para que se não atrevam a tentar a seus devotos, ou quando os tentem, os não possam vencer. Aos quais devotos só digo e aconselho que, repartindo o dia na mesma forma em que os demônios o têm repartido, e aplicando os mistérios às mesmas horas em que foram obrados, os da Encarnação os meditam à noite, os da Paixão ao meio-dia, e os da Ressurreição pela manhã. Assim o fazia com o mesmo espírito e nas mesmas horas Davi: Vespere, et mane, et meridie enarrabo, et annuntiabo, et exaudiet vocem meam (SI. 54, 18): Eu orarei, e Deus me ouvirá, à tarde, pela manhã e ao meio-dia: vespere, contra os demônios vespertinos; mane, contra os matutinos; et meridie, contra os demônios meridianos.

               Repartindo nesta forma o Rosário, não só triunfaremos dos mesmos demônios, mas confundiremos os baldões e blasfêmias com que eles caluniam a Deus, lançando­lhe em rosto o fazer-se homem, pela má paga que lhe dão os homens. Este é o sentido daquele verso, tão encarecido e repetido do Profeta: Quod exprobraverunt inimici tui, Domine, quod exprobraverunt commutationem christi tui[41]. Como se disseram os de­mônios - discorre S. Cipriano: - Porque nós, ó Deus, não aprovamos o decreto de vos fazerdes homem, nos lançastes no inferno; mas agora mostra bem a experiência quanto mais acertado foi nosso parecer. E senão, olhai para as comutações do vosso Cristo e vede o que ele deu e o que recebe, o que fez e como lhe pagam. E para que esta diferença seja mais manifesta, comparai os poucos que o servem a ele, e os muitos que nos servem a nós, dizem os demônios. Ele padeceu pobrezas, injúrias, afrontas, bofetadas, açoites, e a mesma morte pelos homens; nós nenhuma coisa padecemos por eles. Ele fez-lhes infinitos benefícios; nós fazemos-lhes todo o mal que podemos. Ele promete-lhes logo, e de contado, o céu para a alma, e, para depois da ressurreição, também lhes assegura a glória do corpo; nós assim para a alma como para o corpo, o que lhes prometemos e asseguramos é o fogo e tormentos eternos, e, contudo, a sua doutrina é desprezada e a nossa abraçada e seguida. Ele, crido, mas não amado; nós não amados, mas obedeci­dos. Ele servido de poucos, e como forçados; nós livre e voluntariamente de quase todos. Ele, enfim, tão mal pago e tão desigualmente correspondido, que o seu amor se paga com desamor, as suas finezas com ofensas, os seus benefícios com ingratidões; e nós, triunfando e zombando de quanto fez pelos homens, os quais antes querem o infer­no conosco que o céu com ele. Isto é o que dizem os demônios. E conclui S. Cipriano o seu discurso perguntando-nos a nós, os cristãos, que é o que respondemos a isto? Quid ad haec respondebimus, fratres charissimi?

              

Não há dúvida que muitos são obrigados a confessar, que, posto que os demô­nios no que argúem contra Deus, mentem ímpia e blasfemamente, no que dizem de nossas ingratidões e da má paga que damos ao amor, aos benefícios, ao sangue e morte de Cristo, falam muita verdade, com grande confusão da fé, e afronta do nome cristão. Desta, porém, nos desafrontam gloriosamente e os desmentem com infinitos euges to­dos os devotos do Rosário, em todo o mundo, porque tudo o que meditam em seus mistérios e tudo o que repetem em suas orações são reconhecimentos, admirações, lou­vores e graças pelo que o Filho de Deus feito homem nos amou em sua Encarnação, pelo que padeceu por nós em sua Paixão, e pelo que nos promete e assegura em sua Ressur­reição, pagando-lhe desta maneira nossos entendimentos, nossos corações e nossas lín­guas, não o que devem, mas contudo o que podem. Confundam-se pois e emudeçam as calúnias e blasfêmias do demônio. E, assim como a oradora do Evangelho pelo demônio mudo que falou, levantou a voz, assim nós pelos demônios, que tão insolentemente falam, emudecidos, ajuntemos as nossas vozes com a sua, e digamos ao Filho de Deus, em perpétuo louvor seu e da benditíssima Mãe de quem nasceu homem: Beatus venter, qui te portavit.

FINIS

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc. 11, 27).

[2] Senhor, ensina-nos a orar (Le. 11, 1).

[3] E Jesus lhes disse: Quando orardes dizei: Pai, santificado seja o teu nome,venha a nós o teu reino (Lc. 11, 2).

[4] Deus te salve, cheia de graça: o Senhor é contigo (Le. 1, 28).

[5] Auctor Sincoplediae.

[6] Lança fora a escrava e a seu filho (Gal. 4, 30).

[7] August. de orando Deo.

[8] Estava lançando um demônio, e ele era mudo (Le. 11, 14).

[9] Falou o mudo, e se admiraram as gentes (Le. 11,14).

[10] Fará também as obras que eu faço, e fará outras ainda maiores (Jo. 14, 12).

[11] Caietanus in hunc locum.

[12] Porque eu vou para o Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu vo-lo farei (Jo. 14, 12 s).

[13] Uma mulher, levantando a voz (Le. 11, 27).

[14] Vi descer do céu um anjo, que tinha... uma grande cadeia na sua mão. E ele tomou o dragão, a serpente antiga, que é o diabo, e  Satanás, e o amarrou (Apc. 20, 1 s).

[15] Aos quais fora dado o poder de fazer mal à terra e ao mar (Apc. 7, 2).

[16] Congregados vós e o meu espírito, com o poder de nosso Senhor Jesus, julguei entregar o tal a Satanás (I Cor. 5, 3 ss).

[17] Ai de mim, porque me calei, porque eu sou um homem de lábios impuros (Is. 6, 5).

[18] Vede, irmãos, a vossa vocação, porque chamados não foram muitos sábios segundo a carne, não muitos poderosos, não muitos nobres (1 Cor. 1, 26).

[19] Foi visto por mais de quinhentos irmãos (1 Cor. 15, 6).

[20] Pôde transgredira lei de Deus, e não a transgrediu, pôde fazer o mal, e não o fez (Eclo. 31, 10). Quem é este, e nós o louvaremos? Porque fez coisas maravilhosas em sua vida (Eclo. 31, 9).

[21] Os que ele conheceu na sua presciência, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho (Rom. 8, 29).

[22] Todo o vale será cheio, e todo o monte e colina será arrasado (Lc. 3, 5).

[23] Tu armarás traições ao seu calcanhar. Ela te pisará a cabeça (Gên. 3, 15).

[24] Apresentou-se a rainha à tua destra (SI. 44, 10).

[25] Greg. Nicomed. Orat. de oblat. Virg. Deiparae.

[26] Div. Bernard. in Psalmo Qui habitat, citat. a Salmerone, tom. 6, tract. 28.

[27] Tu, Senhor, salvarás os homens e as bestas, segundo tens multiplicado a tua misericórdia (SI. 35, 7 s).

[28] E as águas tiveram a terra coberta cento e cinqüenta dias (Gên. 7, 24).

[29] Elevou-se ainda a água por cima dos montes quinze côvados: a arca, porém, era levada sobre as águas (Gên. 7, 20. 18).

[30] Tudo o que tem vida e respira sobre a terra, tudo morreu. Ficaram somente Noé e os que estavam com ele na arca (Gên. 7, 22 s).

[31] Fará outras ainda maiores (Jo. 14, 12).

[32] Estava Jesus lançando um demônio (Lc. 11, 14).

[33] Porque nós não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades, contra os governadores desta terra, contra os espíritos de malícia espalhados por esses ares (Ef. 6,12).

[34] Elevei-me como o plátano nas praças junto da água (Eclo. 24, 19).

[35] Buscá-lo-ei pelas ruas e praças públicas (Cânt. 3, 2).

[36] Estreito é o caminho que guia para a vida, e espaçoso o caminho que guia para a perdição (MI 7, 13 s).

[37] Dela estão pendentes mil escudos (Cânt. 4, 4).

[38] Foi levado Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo (MI 4, 1).

[39] Este é o meu Filho amado (Mt. 3, 17).

[40] Até que sopre o dia e declinem as sombras (Cânt, 4, 6).

[41] Com que nos têm insultado, Senhor, os teus inimigos, com que nos têm insultado em recompensa do teu cristo (SI. 88, 52).