Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XVII – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Extollens votem quaedam mulier de turba, dixit illi: Beatus venter qui te portavit[1].

§ I

O louvor da mulher e o louvor da turba. Os louvores da turba não só são turba­dos, mas turbulentos. Os dois modos de rezar o Rosário: com a turba, isto é, juntamente com muitos, e como a mulher, isto é, cada um consigo e por si só. Argumento do discur­so: é mais útil às nossas almas, e mais agradável à Senhora rezar o Rosário cada um retiradamente consigo, ou publicamente com muitos?

Como não há comunidade tão boa em que se não ache algum mau, de que foi o maior escândalo Judas, assim não há comunidade tão má, em que se não ache algum bom, de que é o melhor exemplo esta boa mulher que do meio da turba levantou a voz em louvor de Cristo: Extollens vocem quaedam mulier de turba (U. 11, 27). A mulher louvou o Filho pela Mãe, e a Mãe pelo Filho; porém, a turba nem louvou o Filho nem louvou a Mãe. Assim se dividiram em partes contrárias a mulher e a turba, e assim havia de ser, para que o louvor ficasse inteiro, Antes digo que tanto louvou a turba em não louvar, como a mulher louvando, porque se a turba também louvara, ficava o louvor desautorizado e suspeitoso. Os louvores da turba não só são turbados, mas turbulentos, que tal é o seu juízo. Quereis saber-diz Sêneca­o que é, não só pior, mas péssimo neste mundo? Vede o que segue, e ouvi o que diz a turba, e daí fazei argumento: Argumentum pessimi turba est. Esta é a razão, porque levantando a voz a mulher discreta, não houve uma só língua que a seguisse. Ou foi porque reprovaram o que dizia, ou porque temeram de o aprovar. Se porque o reprovaram, foi erro; se porque temeram, covardia; e tudo isso é ser turba, multidão sem juízo e sem valor.

Mas que tem isto com o meu Rosário? Muito. Porque o Rosário ou se pode rezar com a turba, isto é, juntamente com muitos, ou se pode rezar como a mulher, isto é, cada um consigo e por si só. No caso do Evangelho ninguém houve naquele confuso ajuntamento que seguisse o exemplo e voz da devota oradora, que publicamente a levantou sobre todos em louvor de Cristo e sua Mãe; porém, hoje em todas as quatro partes do mundo vemos tão refutado aquele erro, tão condenada aquela covardia e tão emendada aquela impiedade, que em toda a monarquia de Portugal e suas conquistas, apenas há paróquia, convento, ou qualquer outro menor lugar dedicado ao culto divino, em que todos os dias, em públicas e altas vozes, se não cantem os louvores do mesmo Filho e da mesma Mãe, na devoção do seu Rosário. Assim sucederam àquela turba indevota e ímpia tantas outras turbas ou ajuntamentos cristãos, devo­tos e pios; e àquele silêncio e murmuração infernal tantos outros coros celestiais e divinos, em que, juntamente com a propagação universal da Fé, se repete no mesmo Rosário a confissão dos principais mistérios dela, não encontrados já, e discordes entre si a mulher e a turba, senão concordes na mesma devoção as turbas com a mulher, e a mulher com as turbas.

Contudo, porque a devoção bem entendida e bem intencionada, não só deve pôr os olhos exteriores na glória de Deus, senão os interiores na sua maior glória, ou sobre as palavras: Mulier quaedam de turba - determino hoje distinguir e apartar, não a turba e a mulher, senão o quaedam e a turba. Porei de uma parte o quaedam, que é uma pessoa rezando só, e da outra o turba, que são muitos rezando juntos, e nesta diferença - que parecendo só do modo, pertence muito à substância da oração - disputarei em problema, por uma e outra parte, se é mais útil a nossas almas e mais agradável à Senhora do Rosário, rezá-lo cada um retiradamente consigo, ou publicamente com muitos? A resolução será a que Deus e a mesma Senhora nos inspirarem com sua graça.

Ave Maria, etc.

§ II

O que dizem os doutores a respeito da oração em comum? O encarecimento da oração de muitos nas epístolas de São Paulo. O obséquio da Madalena negado, e o obséquio das Marias acolhido por Cristo ressuscitado. Por que quis e ordenou Cristo que indo orar ao Padre, no Horto, o assistissem e acompanhassem os três mais amados discípulos? Razões do indeferimento da oração de Cristo. Tanto podem com Deus os rogos de muitos, que ainda aos mesmos demônios não nega Cristo o que lhe pedem, quando são muitos os que o rogam.

Mulier quaedam de turba.

A mesma questão que eu propus para disputar hoje, altercou já antigamente, em presença do imperador Constantino, o grande Doutor da Igreja Santo Atanásio: Quid rectius putas particulatim, et dissociatim populum sinaxes facere, an potius ut in locum
unum conveniat, et unam eamdemque
sine dissonantia vocem reddat[2]? E que resolveu Atanásio? Resolveu que a oração de muitos juntamente é a que mais convém aos ho­mens e a que mais agrada a Deus; e assim o afirma, não como conclusão mais provável, senão totalmente certa: Certe id rectius est. Antes dele tinha seguido esta mesma sen­tença Tertuliano, e antes de Tertuliano, Santo Inácio Mártir, e pelo mesmo tempo de Atanásio, S. João Crisóstomo e Santo Ambrósio, e depois destes muitos outros santos e doutores, e, entre todos, o grande lume da Igreja, Santo Tomás, o qual não duvidou dizer que a oração de muitos é impossível que não alcance de Deus tudo o que se pode impe­trar: Multorum preces impossible est, quod non impetrent illud quod est impetrabile[3].

Passando dos doutores às Escrituras Sagradas, e fazendo a comparação ex­pressamente de um a muitos, S. Paulo na Epístola aos Filipenses se encomenda nas suas orações, e diz que sabe de certo que por elas lhe concederá Deus tudo o que mais conveniente for à sua saúde, assim temporal como espiritual: Scio quia hoc mihi proveniet ad salutem, per vestram orationem[4]. E na Epístola segunda aos Coríntios lhes dá as gra­ças, e pede que eles as dêem a Deus pelos grandes perigos de que o tem livrado por suas
orações, acrescentando que por elas o livrará também de outros muitos que ainda o aguardam: Qui de tantis periculis nos eripuit, et eruit: in quem speramus, quoniam et adhuc eripiet, adjuvantibus et vobis in oratione pro nobis[5]. E na Epístola aos Romanos os roga instantissimamente, e protesta que, por amor de Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo, o ajudem diante de Deus com suas orações: Obsecro vos, fratres, per Dominum nostrum Jesum Christum, et per charitatem Sancti Spiritus, ut ajuvetis me in orationibus vestris pro me ad Deum[6]. Estes três textos tão notáveis, quando não houve­ra outros na Escritura Sagrada, bastavam, não só para fé e crédito, mas para um singula­ríssimo encarecimento de quanto valem diante do acatamento divino e quanto importam, não só a quaisquer homens, senão ainda aos maiores santos e às mais altas e firmes colunas da Igreja, as orações de muitos, pois o mesmo vaso da eleição, o mesmo após­tolo do terceiro céu, e o mesmo Paulo, por amor do qual desceu o Filho de Deus segunda vez do céu à terra, não se fiando só das suas orações, as pede tão repetidamente a tantos, e a eles confessa dever quanto tem alcançado e espera alcançar de Deus. Isto só bastava, como digo, para encarecimento de quanto podem com Deus as orações de muitos; mas ainda no mesmo Apóstolo temos outro encarecimento maior.

Pediu S. Paulo a Deus que o livrasse de certas moléstias do demônio, que ainda não está averiguado quais fossem e não só pediu, mas rogou, que é mais, nem só rezou uma vez, senão muitas: Propter quod ter Dominum rogavi[7]; e, contudo, nem as suas petições, nem os seus rogos, nem as suas instâncias alcançaram de Deus o que pretendia. Pois, se Paulo não alcança de Deus por suas orações o que pede, por que espera de o alcançar pelas orações dos romanos, dos coríntios e dos filipenses, que eram uns homens seus discípulos, que ele pouco antes tinha convertido à fé? E se Paulo se fundava na experiência das mercês que tinha alcançado por meio das suas orações, como ele mesmo confessa e lhes agradece, aqui se reforça muito mais a dúvida. É pos­sível que ouve Deus aos discípulos, e não ouve ao Mestre? Defere as orações dos que ontem eram gentios, e não defere as orações do doutor dos gentios? Sim. E por quê? Porque esses mesmos discípulos quando oravam em Roma, em Filipos e em Corinto, oravam muitos juntos; e Paulo, quando fazia aquela sua oração, orava só. E é tanto mais poderosa diante de Deus a oração de muitos que a oração de um só, que ainda que a oração do que ora só seja um S. Paulo, e a oração dos que oram juntos seja dos que ontem eram gentios, e hoje começam a ser cristãos, a oração destes alcançará o que pede, porque são muitos, e a oração de Paulo não, porque é só um. O mesmo S. Paulo o declarou assim aos coríntios, acrescentando ao texto que já referi, que ele era uma só pessoa, mas eles muitas: Ut ex multorum personis, ejus quae in nobis est donations, per muitos gratiae agantur pro nobis[8].

E por que esta razão de diferença não pareça dificultosa, vejamo-la em outro amor e merecimento, que só pode competir com o de S. Paulo. Na manhã da Ressurrei­ção, quando a Madalena, debaixo dos disfarces em que lhe tinha aparecido, reconheceu o seu divino Mestre, quis-se lançar aos pés, onde também ela tinha ressuscitado, e o Senhor lhe impediu este afeto, posto que tão devido dizendo: Noli me tangere, nondum enim ascendi ad Patrem meum (Jo. 20, 17): Não me toques, porque ainda não subi a meu Padre. - As exposições que deram a estas palavras os santos Padres e intérpretes são quase tantas como os mesmos autores, mas todas elas padecem uma manifesta ins­tância, porque dali a poucas horas, vindo a mesma Madalena juntamente com as outras Marias, o mesmo Senhor lhes consentiu que se lançassem a seus sagrados pés e os abraçassem apertadamente: Illae autem accesserunt, et tenuerunt pedes ejus[9]. Pois, se agora permite Cristo, e concede a Madalena e às outras Marias que se lancem a seus pés, e lhos abracem, por que proibiu tão severamente à mesma Madalena que lhos tocasse: Noli me tangere? A razão que o Senhor lhe tinha dado desta proibição: Nondum enim ascendi ad Patrem meum[10] - ainda era e subsistia a mesma, porque Cristo nem tinha subido, nem havia de subir ao Padre, senão dali a quarenta dias. Pois se à Madalena se negou este favor, e por esta causa, por que razão agora; subsistindo a mesma causa, lhe concede o mesmo favor a ela e às demais, tão fácil e tão liberalmente? Porque agora as devotas mulheres eram muitas, e dantes a Madalena, ainda que devotíssima, era uma só. A Madalena quando só, nem era menos amante, nem menos amada de Cristo - como também S. Paulo - mas para o mesmo Cristo conceder o que dele se espera, não importa tanto o amar ou merecer muito, quanto o serem muitos os que o procuram. Por isso a mesma razão que bastou para se negar o favor a uma, depois que, junta com as demais, foram muitas, nem bastou, nem foi razão, nem o Senhor se valeu dela. E isto que à Madalena sucedeu com os seus afetos, é o mesmo que S. Paulo experimentou e confes­sou das suas orações.

Mas o caso que agora ponderarei é sobre todos admirável, e não em outrem, senão no mesmo Cristo. Quando este Senhor se retirou ao Horto, para orara seu eterno Padre, encomendou muito aos três mais amados discípulos, que daquela pouca distância em que se apartava deles, o acompanhassem: Sustinete hic, et vigilate mecum[11]. E por que quis e ordenou Cristo que indo orar ao Padre, o assistissem e acompanhassem estes discípulos? Sem dúvida porque quis o Senhor confirmar com o exemplo o que tinha ensinado com a doutrina, quando nos prometeu que, se dois ou três se unissem a pedir a Deus alguma coisa, seu Padre lha concederia infalivelmente. De maneira que até o mesmo Filho de Deus, para impetrar de seu Pai o que pedia, não quis que fosse a sua oração só sua, senão acompanhada de outras. Com esta prevenção começou o Senhor a orar: Pater mi, si possibile est, transeat a me calix iste (Mt. 26, 39): Se é possível, Pai meu, passe de mim este cálice. - E por que disse: se é possível? Agora nos devemos lembrar do que referimos de Santo Tomás, que é impossível não impetrar de Deus a oração de muitos tudo o que é possível. E como a oração de Cristo, naquele caso, era sua e mais dos discípulos, a quem encomendou o acompanhassem nela, por isso alegou a condição do possível: si possibile est, porque, sendo a sua oração de muitos, não lhe podia o Padre negar tudo o que fosse possível: Multorum preces impossibile est, quod non impetrent illud, quod est impetrabile.

Até aqui bem-fundadas esperanças tinha o Senhor de impetrar o que pedia. Porém, como experimentasse que orando uma, duas e três vezes, o Pai não deferia à sua petição, quantas vezes orou, e não foi ouvido, outras tantas se levantou da oração e veio ver se o acompanhavam e assistiam nela os discípulos, como lhes tinha encarregado. E por quê? Porque inferiu o mesmo Senhor, segundo a verdade da sua promessa que, suposto não deferir o Pai à sua oração, era sinal que o não acompanhavam nela os que tinha escolhido por companheiros. E assim foi, porque sempre os achou não orando, senão dormindo: Invenit eos dormientes (Mt, 26, 43). Reparai agora em duas grandes considerações, uma da parte de Cristo e a outra da parte do Padre. Da parte de Cristo, que achando os discípulos dormindo, os exortou a que vigiassem e orassem com ele: Sic non potuistis una hora vigilare mecum? Vigilate, et orate[12]. Da parte do Padre que, não obstante estas recomendações, e serem os discípulos os que mais obrigados eram e mais amavam a seu Mestre, permitisse, contudo, que todos dormissem e não orassem. Por que razão, pois, faz Cristo tantas diligências para que vigiem e orem os que tinha esco­lhido por companheiros de sua oração, e por que razão o Padre, pelo contrário, lhes infunde um tal letargo: Erant enim oculi eorum gravati[13] - para que não vigiem nem orem? Assim Cristo, como o Padre, ambos obravam direitamente ao fim cada um de seus intentos. Cristo obrou como quem desejava e pedia, e o Padre como quem tinha decretado de não conceder. Cristo, como quem desejava e pedia, procurava que os dis­cípulos orassem juntamente com ele, tendo por certo que, se a sua oração fosse de muitos, não podia o Padre negar o que se pedisse; e, pelo contrário, o Padre, como quem tinha decretado de não conceder, impedia que eles orassem; porque sendo a oração não de muitos, senão de um só, ainda que fosse seu próprio Filho, lhe ficava livre o negar, como com efeito negou.

Parecia-me a mim, que este era o maior encarecimento de quanto pode com Deus a oração de muitos, mas ainda, em certo modo, nos resta por ver outro maior. Tendo Deus concedido tantas licenças ao demônio contra Jó, disse ao mesmo Jó, que já não havia de conceder ao demônio coisa alguma que lhe pedisse, por mais bem-com­postas e eficazes que fossem as palavras com que lho propusesse: Non partam ei, et verbis potentibus, et ad deprecandum compositis.[14] Passemos agora ao Evangelho, e acharemos que pedindo os demônios a Cristo duas coisas, ambas lhes concedeu. Lan­çando-os do corpo de um endemoninhado, rogaram-lhe que os não mandasse para o inferno: Rogabant illum ne imperaret illis ut in abyssum irent[15] - e o Senhor lhes con­cedeu que ficassem embora neste mundo. Rogaram-lhe mais que lhes permitisse entrar em grande multidão de animais imundos que pastavam por aqueles campos: Et roga­bant eum, ut permitteret eis in illos ingredi - e também lho concedeu: Et permisit illis[16]. Pois, se Deus tinha prometido a Jó, que não havia de conceder ao demônio coisa alguma que lhe pedisse, como agora, fazendo-lhe duas petições, lhe concede ambas? Leiamos bem todo o texto e acharemos a razão da diferença. Perguntou Cristo ao demônio, que atormentava este endemoninhado, como se chamava? E ele respondeu: Legio mihi no­men est, quia multi sumus (Mc. 5, 9): Chamo-me Legião, porque não sou um só demônio, mas somos muitos. - E como estes demônios eram muitos, e o de Jó era um só, por isso ao de Jó prometeu o mesmo Senhor que lhe não havia de conceder coisa alguma que lhe pedisse, e a estes concedeu o que pediam. Tanto podem com Deus os rogos de muitos, que ainda aos mesmos demônios não nega Cristo o que lhe pedem: Daemones ipsi, cum Domi­num obsecrant, sua petitione f caudati non sunt, disse excelentemente Santo Antíoco. E se lermos atentamente a conseqüência de ambos os textos, assim de S. Marcos, como de S. Lucas, acharemos que a confiança que os demônios tiveram para esperar que o Senhor lhes havia de conceder o que pediam, foi fundada em serem muitos. S. Marcos: Legio mihi nomen est, quia multi sumus. Et deprecabatur eum[17]. S. Lucas: Intraverant daemonia multa in eum. Et rogabant illum[18]. E se até aos demônios, quando são muitos os que o rogam, lhes concede Deus suas petições, como as não concederá aos devotos do Rosário, que juntos e com tanto exemplo e piedade o rezam nas nossas igrejas?

§ III

Qual é a razão ou razões por que têm tanto valor e poder com Deus a oração de muitos? As razões que nos dão S. João Crisóstomo, Santo Atanásio, Tertuliano, Santo Tomás e S. Vicente Ferrer.

Mas, antes que deixemos esta primeira parte do nosso problema e a demos por bastantemente provada, vamos às razões dela. Qual é a razão ou razões por que tem tanto valor e poder com Deus a oração de muitos? Muitas e várias são as que deram os Santos Padres, e todas por suas e por si mesmas dignas de se não passarem em silêncio. S. João Crisóstomo funda esta diferença na mesma qualidade natural da voz e das vo­zes[19]. Ainda que as vozes sejam igualmente intensas, se a voz é uma só ouve-se pouco, se são muitas, ouvem-se muito, e por isso ainda naturalmente ouve Deus mais as vozes e orações de muitos, que a voz de um só: Longe magis eam orationem, quae ex ore multorum valere consentaneum est: plus enim nervorum in ea est, et audientia major. Desta razão, que parece vulgar, passa o mesmo Santo a outra, muito mais alta e encare­cida, e diz assim: Reveretur Deus multitudinem unanimem, et consentientem in precan­do: ut veluti pudore victus, non audeat illis negare. Sabeis por que pode tanto com Deus a oração de muitos? É porque à multidão dos que oram se deve tão grande respeito, que até a mesma Majestade divina a reverencia: Reveretur Deus multitudinem unanimem, et consentientem in precando, E é tal a força desta reverência em Deus, que por isso não ousa nem se atreve a negar coisa alguma, quando são muitos os que lha pedem: tanto assim - notai, ou não noteis a palavra - tanto assim, que quando Deus o não fizera por vontade, o faria por vergonha: Ut veluti pudore victus, non audeat illis negare.

Santo Atanásio, nas palavras que já citamos: particulatim, et dissociatim, diz que a razão é porque a oração que cada um faz em particular vai desacompanhada, e a que faz juntamente com muitos, leva consigo o acompanhamento de todos, Cá nas cor­tes da terra, se o requerente é só, e vai só, acha grandes dificuldades em ser admitido; mas se vai com grande acompanhamento, todass as entradas tem muito francas. E quase este mesmo é o estilo do céu. Se a oração vai acompanhada de muitos, sempre tem as portas abertas; mas se vai só e desacompanhada, não acha a entrada tão fácil. A isto aludia cortesãmente Davi, quando dizia a Deus uma vez: Intret in conspectu tuo oratio mea[20], e outra vez: Intret postula tio mea in conspectu tuo[21]. Como se dissera: a oração, Senhor, que vos faço, é só minha: Oratio mea, e a petição também só minha: Postulatio mea; e, como seja de um só, e não de muitos, o favor particular que espero de vossa piedade e grandeza é que, sem embargo de ir só e desacompanhada, se lhe não negue a entrada a vosso conspecto: Intret oratio mea. lntret postulatio mea in conspectu tuo. E isto é o que chama Santo Atanásio, particulatim, et dissociatim.

Tertuliano, à africana, vai por outro rumo Responde aos gentios, que estra­nhavam aos cristãos orarem juntos nas suas congregações, e diz assim pomposamente: Coimus in coetum et congregationem, ut Deum, quasi manu facta precationibus ambia­mus orantes. Haec vis Deo grata est[22]: Concorremos os cristãos e congregamo-nos a orar todos juntos, como de mão armada, e, deste modo, sitiamos e pomos de cerco a Deus com nossas orações, para que apertado de todas as partes, não tenha, nem lhe fique lugar de resistir a elas, e como obrigado por força, nos conceda quanto lhe pedimos. E sabei que esta mesma, que parece força e violência, é muito aceita e agradável ao nosso Deus: Haec vis Deo grata est.

Santo Tomás, como tão singular no engenho e na doutrina, dá outra razão, também singular: Multi enim minimi, dum congregantur, fiunt magni: Pode tanto com Deus a oração de muitos, porque ainda que cada um dos que oram por si mesmo, e por si só, seja pequeno, quando se ajunta com os demais, faz-se grande. Se não dera esta razão um tão grande teólogo e filósofo, como Santo Tomás, não me admirara tanto, quanto parece dificultosa de se entender. A união de muitos juntamente congregados faz número e multidão, mas não faz grandeza. Como diz logo o Doutor Angélico, que juntos em oração os pequenos, ainda que sejam mínimos, se fazem grandes? Para se fazerem grandes os pequenos, é necessário que cresçam; e como podem crescer, só porque eles se ajuntam aos demais, ou os demais a eles? Entendo que entendeu Santo Tomás, que crescem per juxta positionem. Os homens, os brutos, as árvores crescem, porque têm vida vegetativa; as pedras não têm vida vegetativa, e também crescem: mas como? Dizem os filósofos que per juxta positionem, convertendo cada uma em si, e acrescentando a si o que tem junto de si. E isto mesmo é o que faz a união recíproca dos que oram, quando oram muitos juntos: Multi enim minimi, dum congregantur, fiunt magni.

Em um facho composto de muitas canas, quando arde se vê o mesmo, porque cada uma arde com o seu fogo e com o das outras. E esta é a razão que dá S. Vicente Ferrer, para ser mais forte e mais poderosa a oração de muitos, e levantar ao céu e a Deus mais fervorosa e maior labareda: Ideo congregamur, ut inflammemur, et oratio ascendat ad Deum[23]. Finalmente a grande misericórdia de Deus é uma multidão de misericórdias: Secundum magnam misericordiam suam, et secundum multitudinem mi­serationum tuarum[24]; e para a multidão das misericórdias se render às nossas orações, necessário é que também as orações sejam da multidão, Quanto mais do que do mesmo Deus diz Isaías: Quoniam multus estad ignoscendum[25]. E se Deus, para perdoar e fazer mercês, é muitos ou muito: Quoniam multus est - bem se deixa ver que só os muitos podem ter proporção com o muito, e quanto valerão para com ele as orações e depreca­ções dos muitos.

De tudo isto colhe por conclusão S. Crisóstomo que concorrerem os fiéis à igreja para ali orarem juntos, como se faz no Rosário, não só é o melhor e mais conve­niente modo de orar, senão que o contrário é grande erro: O frigidam excusationem, quam a pluribus reddi audio! Orare domi possumus, Te, homo, decipis, et magno in errore versaris. Escusam-se muitos - diz o Santo - de vir orar à igreja, dizendo que também podem orar em sua casa, e esta escusa é muito fria e muito errada, com que o homem se engana a si mesmo. - E por quê? Nam et si domi quoque detur orandi facul­tas, tamen f ieri non potest, ut domi tam bene ores, quam in ecclesia, ubi clamor felici societate excitatus ad Deum defertur: Porque, ainda que cada um possa orar em sua casa, é certo que nem orará tão bem, nem com tanto merecimento e fruto, porque lhe falta a feliz companhia de muitos juntos, com que as vozes da oração de todos se exci­tam mais altamente e sobem mais prontamente a Deus. - E isto baste quanto à primeira parte da nossa questão.

§ IV

Segunda parte do discurso: O conselho do Doutor de todos os doutores. Cristo orava retirado e só, para que entendamos que o orar só, e não juntamente com muitos, é o modo mais agradável a Deus e o mais conveniente aos homens. O fim por que Jacó se deixou ficar só no deserto. A luta entre Jacó e Deus em forma humana. A oração, batalha de abraços. As audiências públicas e as audiências particulares. Jamais comu­nicou Deus a uma comunidade e congresso de muitos os secretos de sua providência e as revelações de seus decretos.

Entrando na segunda, seja o primeiro fundamento dela o conselho do Doutor de todos os doutores, e do Mestre de todos os mestres, Cristo, Senhor e Deus nosso: Tu autem cum oraveris, intra in cubiculum tuum, et clauso ostio, ora Patrem tuum in abs­condito (Mt. 6, 5): Tu, quando quiseres orar, entra no aposento mais retirado de tua casa, e, com a porta cerrada, ora em secreto a teu Padre. - Tu cum oraveris. Tu - diz - e não vós, porque o que ora, há de ser um só, e não muitos. Intra in cubiculum tuum: entra no aposento mais retirado, porque ainda que seja na própria casa, não há de ser em lugar público. Et clauso ostio: e com a porta cerrada, para não ver, nem ser visto de quem o divirta. Finalmente: Ora Patrem tuum in abscondito: ora a Deus em segredo, porque ele ouve mais os corações que as vozes.

Isto é o que Cristo nos ensinou de palavra, e parece que o não podia ensinar por obra, porque desde o dia em que entrou neste mundo não teve casa, e muito menos apartamento retirado nela onde se recolher a orar. Contudo são, não só muitos, mas contínuos os exemplos que o mesmo Senhor nos deixou deste retiro e desta soledade, orando sempre retirado e sempre só.. Os retiros de quem não tem casa são os desertos. Não professava Cristo vida eremítica, mas, contudo, se nas cidades vivia, nos desertos orava: nas cidades tratava com os homens, nos desertos com Deus. Depois de obrar em Cafarnaum infinitos milagres, para que não bastou o dia, senão parte da noite: Egressus - diz S. Marcos - abiit in desertum locum, ibique orabat[26]. Depois de dar de comer com cinco pães aos cinco mil que o seguiam: Dimissa turba - diz S. Mateus - ascendit in montem solus orare[27]. Antes de perguntar aos discípulos qual fosse a opinião que dele tinham os homens: Et factum est- diz S. Lucas -cum solus esset orans[28]. E antes da Transfiguração, diz o mesmo Evangelista: Ascendit in montem, ut oraret[29]. Em suma, que quando não era alguma oração breve, em caso público e forçoso, sempre Cristo orava só, e sempre em lugar secreto e retirado.

Mas isto mesmo, mais interiormente considerado, não carece de dificuldade. Porque assim o retiro do lugar, como a soledade da pessoa, ainda enquanto homem, parece que encontra muito as soberanas perfeições de Cristo. Quando Moisés orava no monte, Josué pelejava na campanha; quando Maria contemplava aos pés de Cristo, Marta minis­trava o que era necessário para a mesa: e por quê? Porque, segundo a limitação da natureza humana, as ações da vida ativa encontram muito as atenções da contemplativa, e porque no mesmo sujeito e no mesmo tempo mui dificultosamente se compadecem e concordam estas duas obras, ou estes dois cuidados juntos; por isso a oração e as armas se dividem entre Josué e Moisés, e a contemplação e ação entre Marta e Maria. Porém, em Cristo não era assim. Tanto podia contemplar no meio dos maiores concursos de Jerusalém, como no retiro dos montes e na soledade dos desertos. E não só podia, mas com efeito assim obrava. Dos nossos anjos da guarda diz o mesmo Cristo que semper vident faciem Patris[30]. Pois, se os anjos sempre estão vendo e contemplando a Deus, e no mesmo tempo assistindo a todas as ações dos homens, quanto mais a alma de Cristo, a qual, posto que era da mesma espécie que as nossas, nos dotes e perfeições excedia com superioridade quase infinita as de todos os espíritos angélicos. Quando pregava, quando obrava os milagres, e quando padecia os trabalhos e os tormentos, sempre e no mesmo tempo contemplava o Senhor e orava juntamente, sem que as ações exteriores impedissem a oração, nem a oração as ações exteriores. Mas, se isto era assim, por que se retirava aos montes e aos desertos, e não só deixava, mas fugia da companhia dos homens, para orar só: Fugit... in montem ipse so­lus[31]? Porque ainda que o seu retiro não era necessário à sua oração, a sua oração e o seu retiro era necessário ao nosso exemplo. Obrava assim, para nos ensinar a obrar assim. Orava, para que orássemos, e retirava-se, para que nos retiremos e orava retirado e só, para que entendamos que o orar só, e não juntamente com muitos, é o mais agradável a Deus e o mais conveniente aos homens.

Nem cuide alguém, que por ser um só o que ora, por isso serão menos poderosas com Deus as suas orações. Se as orações de muitos, por serem muitos, cercam e apertam a Deus, e quase o obrigam por força a que conceda quanto lhe pedem, como dizia Tertuliano: Ut Deum quasi manu (acta precationibus ambiamus orantes: vede quanto mais apertam e mais fortemente prendem ao mesmo Deus as orações de um só. Voltando Jacó para a pátria com tão numerosa família, que se dividia em duas grandes tropas: Cum duabus turmis (Gên. 32, 10), diz o texto sagrado que mandou passar diante todos os que levava consigo, e ele se deixou ficar só no deserto: Traductis omnibus quae ad se pertinebant, mansit so­lus[32]. Dá a razão Oleastro, e diz com a sentença de todos os Padres, que foi para tratar só por só com Deus, e orar sem impedimento: Quia orado requirit locum secretum, et qui orat debet requirere secretiora loca, ubi nemo eum possit impedire[33]. Este foi o fim por que Jacó se deixou ficar só, que é tudo o que até agora temos dito. Mas qual foi o efeito? Qual nunca jamais se viu nem se podia imaginar: Etecce vir luctabatur cum eo (Gên. 32,24). No mesmo ponto - diz o texto - apareceu Deus ali em forma humana, e começou a lutar com Jacó. Pois, por que Jacó se retira de toda a sua família, e se deixa ficar em um deserto para orar sem impedimento, e tratar só por só com Deus, Deus, como se fora provocado a desafio, em vez de lhe lançar os braços por agradecimento da fineza, se põe a lutar com ele? Sim, e por isso mesmo. Porque a oração é uma batalha de abraços, em que o homem por uma parte se abraça com Deus, e por outra luta com ele para o render a que lhe conceda quanto deseja e pede. E neste caso foi Deus o autor ou agressor da luta, sendo ele o que lhe deu o princípio: para mostrar quanto pode com a Majestade divina a oração de um homem, quando se retira de todos e de tudo, para orar sem estorvo e tratar só por só com Deus.

Mas, que foi o que fez Jacó e o que pôde nesta luta? Agora se segue o que nem imaginar se podia. Pôde tanto, que arcando Deus com ele, ele também arcou com Deus: Luctabatur cum eo[34]; pôde tanto, que o não pôde Deus derrubar, nem cansar, nem enfraquecer em uma noite inteira: Usque mane[35]; pôde tanto, que obrigou ao mesmo Deus a que, desenganado de o não poder render, lhe pedisse partido: Dimitte me[36]; pôde tanto, que ele, Jacó, como superior na batalha foi o que pôs a Deus as condições da trégua: Non dimittam te, nisi benedixeris mihi[37]; pôde tanto que, efetivamente, conse­guiu de Deus, e logo e no mesmo lugar, quanto dele pretendeu: Et benedixit ei in eodem loco[38]. Finalmente, pôde tanto que, com vitória e triunfo nunca imaginado, o mesmo Deus se confessou por vencido, e a Jacó por invencível: Si contra Deum fortis fuisti, quanto magis contra homines praevalebis[39]? Que dirão agora os que tanto encarecem a oração de muitos juntos? Tudo isto, que não poderiam conseguir todos os homens do mundo, pôde um homem só, e só, porque soube orar só e retirado dos homens: Traductis omnibus quae ad se pertinebant, mansit solus[40].

E quanto a serem melhor ouvidas as vozes de muitos, a que S. Crisóstomo chamou audientia major, a mesma palavra audiência nos abre as portas à evidente razão e diferença por que a oração de um só é melhor ouvida de Deus. Os príncipes dão dois gêneros de audiência, uma geral e pública, outra particular e secreta. A geral e pública pertence à majestade e à justiça; a particular e secreta à própria da familia­ridade e do favor. A geral e pública é para todos; a particular e secreta é só para os privados e validos, que gozam os privilégios da graça, e são participantes dos arca­nos do príncipe. E tal é a grata e interior audiência em que Deus ouve e se comunica aos que na oração secreta e retirada tratam só por só com ele. Que valido há que não possa mais com o rei em uma hora do gabinete, que todos os vassalos da monarquia, ainda juntos em cortes? José só podia mais com Faraó que todos os conselheiros e ministros do Egito; Daniel só podia mais com Dario que todos os sátrapas dos persas e medos; Amanso, e depois Mardoqueu só, podiam mais com Assuero, que todas as cento e dezessete províncias de que era monarca. E não é menor o poder e valia que tem com a majestade divina todo aquele que a portas cerradas trata só por só com Deus, não no gabinete do mesmo Deus, senão no próprio: Intra in cubiculum tuum, et ora.

Vede, vede, se comunicou Deus jamais a alguma comunidade e congresso de muitos os secretos de sua providência e as revelações de seus decretos, como os fiou sempre de um só, e de um só, excluídos os muitos. Com muitos estava Daniel, e nota ele, que depois que os muitos foram excluídos e ele deixado só, então lhe comu­nicou Deus a famosa revelação das Hebdômadas e de quanto no preciso termo delas havia de suceder: Ego autem relictus solus, vidi visionem grandem hanc[41]. Também S. Paulo caminhava para Damasco acompanhado de muitos, quando Cristo lhe apa­receu a ele só, e a ele só lhe disse o que dele pretendia, em modo que nenhum dos companheiros ouviu a voz, nem viu quem fosse o que falava: Et qui mecum erant, lumen quidem viderunt, votem autem non audierunt ejus qui loquebatur mecum[42]. Assim Abraão, estando só, viu no vale de Mambré os três Anjos que representavam a Trindade. Assim Jacó, estando só, viu no caminho de Mesopotâmia, a escada que chegava da terra ao céu. Assim Moisés, estando só, viu no deserto de Madiã a sarça, que ardia e não se queimava. Assim S. Pedro, estando só, viu no terrado de Jope o mapa de todas as feras que havia de matar e comer. E assim, finalmente, S. João, estando só, viu no seu desterro e ilha de Patmos, os mistérios do Apocalipse, e neles toda a história do futuro até o fim do mundo.

§ V

A razão por que Deus sempre evita a freqüência e ajuntamento de muitos, e só se comunica e manifesta aos que estão sós. S. Bernardino e as três espécies de atenção. A injúria da oração divertida. Que dirão a isto os santos e doutores que tanto vos encare­ciam a oração de muitos juntos? O que nos diz e ensina o texto sagrado acerca da soledade assim de Deus para com os homens, como dos homens para com Deus no trato e comércio da oração?

E se perguntarmos também nesta segunda parte do nosso problema a razão por que Deus sempre evita a freqüência e ajuntamento de muitos, e só se comunica e manifesta aos que estão sós, a razão, em que não há opiniões nem pode haver dúvida, é porque Deus não se comunica familiarmente senão aos que perfeitamente oram, e a alma da perfeita oração é a atenção, a qual se não pode conservar entre muitos. A mul­tidão por isso se chama turba, porque perturba, inquieta, diverte, e a atenção divertida, inquieta e perturbada, como pode ser capaz de Deus, nem de ouvir e receber seus secre­tos? S. Bernardino, falando da oração vocal, divide a atenção em três partes, ou em três atenções: a primeira às palavras, a segunda ao sentido, a terceira ao objeto: Triplex est in orazione attendo procuranda: prima ad verbum, secunda ad sensum, tertia ad objec­tum[43]. Todas estas atenções requer oração, e muito particularmente a nossa do Rosário. Atenção às palavras que na Ave-Maria são angélicas, e no Padre-Nosso divinas; aten­ção ao sentido delas, para que o coração responda com os afetos ao que soa e pronuncia a língua; atenção ao objeto, porque o objeto que se representa em cada década, são os mistérios da Vida, Morte e Ressurreição do Filho de Deus, em que a atenção deve ser mais firme, mais aplicada e mais atenta. Por isso acrescenta o mesmo S. Bernardino: Bona quidem est attentio prima, melhor est secunda, tertio optima reputatur: que a pri­meira atenção é boa, a segunda melhor, e a terceira, em grau superlativo, ótima. - Se todas estas atenções concorrem e se ajuntam na nossa oração, então será ela perfeita e digna de que Deus, muito interior e muito familiarmente, se comunique à alma; mas, se faltar qualquer delas, e, muito mais, se faltarem todas, nem será atenção, nem oração, senão quê? Uma grave injúria que fazemos a Deus, com quem falamos.

Ouvi a S. Bernardo: Magnam injuriam Deo fatio, cum illum precor, ut meam votem audiat, quam ego, qui fundo, non audio: deprecor illum, ut mihi intendat, ego vero nec mihi, nec illi intendo[44]: Quando oro sem a devida atenção faço uma grande injúria a Deus. E por quê? Porque lhe peço que me ouça a mim, quando eu mesmo me não ouço, e porque lhe rogo que atenda ao que digo, quando eu nem ao que digo, nem a mim, nem a ele atendo. - Isto é orar, ou zombar de Deus? Não só é zombar, mas despre­zá-lo, diz Santo Efrém: Cum ad orandum te composueris, noli vaga aut distracta mente esse, ne quando contemnens inveniaris[45]: Quando orais, orai com a devida atenção, e não divertido e distraído em outros pensamentos, por que não sejais compreendido no maior crime de lesa-majestade divina, como desprezador do mesmo Deus: Ne quando contemnens inveniaris. Deus diz que está com os que oram: Ibi sim in medio eorum[46]. Mas vede como argúi Eusébio Emisseno aos que orando, por divertidos e desatentos, nem estão com Deus nem consigo: Quomodo erit Deus in medio tui, si tecum ipse non fueris? Si deest ille, qui poscit, quomodo aderit ille, qui poscitur[47]? Como há de estar Deus convosco, se vós não estais em nós? E se o que roga está ausente, como há de estar presente o que é rogado? - Tão contrária é do que pretende e tanto desfaz o que faz, a desatenção de quem ora. E como a alma, que na oração devia estar toda recolhida e dentro em si, abertas as portas dos sentidos, sai fora e se derrama e distrai com outros cuidados, e a companhia dos homens e ajuntamento de muitos são outras tantas ocasiões de divertimento e distração, e o maior impedimento que tem a atenção dos que oram, por isso Cristo os manda encerrar no retiro mais secreto de sua casa, e ele, que a não tinha, não só ia orar aos montes e aos desertos, mas escolhia para a oração o silêncio mais secreto das noites: Erat pernoctaras in oratione Dei[48] - para que com a soledade do tempo, com a soledade do lugar e com a soledade da pessoa nos ensinasse a orar sós.

Que dirão agora a isto os santos e doutores que tanto nos encareciam a oração de muitos juntos? S. Crisóstomo, que foi o primeiro e o último, e que mais empenhada mostrou sua eloqüência pelo acompanhamento da oração, não retratando aquelas suas razões, mas obrigado das evidências desta, nos aconselha que no tempo e no lugar bus­quemos as comodidades da oração mais quieta, acrescentando que o ermo e a soledade é só o porto quieto e seguro de toda a perturbação: Tam a loco, quam a tempore tranquilli­tatem orandi quaeramus. Tranquillitatis quippe mater eremus est, quietis portus, et omnis perturbationis expultrix[49]. E S. Jerônimo, falando de si mesmo na Epístola a Eustóquio: Sic ubi aspera montium, concava vallium, rupium praerupta cernebam, ibi meae orationis locus[50]: Se em alguma parte via o áspero dos montes, o côncavo dos vales, o talhado dos rochedos, ali me metia e ali era o lugar da minha oração. - De sorte que não só buscava Jerônimo os ermos, os desertos, as soledades, senão no ermo o mais oculto, no deserto o mais escondido, e na soledade o mais só. Isto mesmo dizem S. Dionísio Areopagita, S. Basílio, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, Beda, e todos os padres, entre os quais S. Gregório Nazianzeno, com particular reparo entre as ações e orações de Cristo pondera que, para as ações, buscava os homens, e, para as orações, se retirava deles: Jesus ipse ut actiones multitudini, hominumque frequentiae, ita preces quieti, locisque ab hominum commercio semotis fere tribuebat[51].

Mas porque a autoridade da Sagrada Escritura, como divina, excede sem comparação a de todos os santos e doutores, vejamos o que nos diz e ensina o mesmo texto sagrado acerca desta soledade, assim de Deus para com os homens como dos homens para com Deus, no trato e comércio da oração, sempre só por só. No capítulo terceiro dos Cânticos, declarando a soledade do lugar, nota o retiro do deserto: Quae est ista, quae ascendit per desertum, sicut virgula fumi... et thuris[52]? No capítulo dezoito da Sapiência, declarando a soledade no tempo, nota o silêncio da meia-noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et nox in suo curso medium iter haberet, omnipotens sermo tuus... a regalibus sedibus... prosilivit[53]. No capítulo terceiro dos Trenos, declarando a soledade da pessoa, nota a quietação elevada e elevação quieta do solitário: Sedebit solitarius et tacebit, quia levavit se super se[54]. Só no lugar, só no tempo, só na pessoa, e sempre só por só o homem com Deus. Finalmente, o mesmo Deus querendo-se comu­nicar muito e interior e familiarmente com uma alma, diz que a retirará e apartará con­sigo, e a levará a uma soledade, para lá lhe falar ao coração: Ecce ego lactabo eam, et ducam eam in solitudinem, et loquar ad cor ejus[55]. E, sendo Moisés vice-Deus na terra, quando Faraó lhe pediu que fizesse oração, para que cessasse a praga dos trovões e tempestade que destruía todo o Egito, respondeu que, depois que saísse da cidade, então oraria a Deus, e cessaria aquele castigo: Cum egressus fuero de urbe, extendam palmas meas ad Dominum, et cessabunt tonitrua, et grando non erit[56]. E por que não orou Moisés logo e na cidade, senão depois que saiu dela? Porque sendo vice-Deus, como dizia, não teve confiança para esperar que o mesmo Deus, que lhe dera as suas vezes, ouviria a sua oração, senão quando orasse só. Tanto importa ainda aos mais validos de Deus a soledade do lugar e da pessoa quando lhe hão de fazer oração.

De tudo o dito se colhe por última conclusão com S. Lourenço Justiniano, que a oração de um só é mais eficaz e mais segura que a oração de muitos juntos; porque, se a freqüência e companhia de muitos lhe acrescenta o valor, a mesma companhia e fre­qüência lhe diminui a atenção: Minus vanis cogitationibus stimulatur qui orat, ubi non est hominum frequentia, quandiu namque animus permixtus est turbis, non vacat soli Deo[57].

§ VI

Qual destas partes deve seguir o devoto do Rosário? Será melhor rezar em públi­co ou rezar só? Aos homens diz o autor que rezem ou na igreja ou em sua casa, onde experimentarem maior devoção; porém, às mulheres diz que rezem em sua casa, e de nenhum modo fora dela. A grande conveniência e decência desta distinção. Para a mulher, edifício sem alicerces, o maior apetite é andar e sair. Onde falou Eva com a serpente? Se Eva se contivera dentro no Paraíso, e não quisera ver mais mundo, ela se livrara dos encontros em que viu e ouviu o que lhe não convinha.

Temos disputado o nosso problema por uma e outra parte. E como cada uma delas se defende, e tem por si grandes textos, muitos doutores e eficazes razões, ambas são prováveis. O que agora resta, como no princípio propus, é fazer juízo de uma e outra, e resolver qual se deve seguir na reza do Rosário, como mais proveitosa a nossas almas, e mais aceita a Deus e a sua Santíssima Mãe. Não falo nos casos de necessidade, porque então devemos orar em qualquer tempo, em qualquer lugar e em qualquer estado que nos acharmos. Moisés orou na campanha, Jó orou no muladar, Ezequias orou na cama, S. Paulo orou no cárcere, Daniel orou no lago dos leões, Jonas orou no ventre da baleia, o Bom Ladrão orou na cruz, e todos estes oraram, ou sós ou entre muitos, conforme o caso o permitia. Havendo pois de orar, não por necessidade, senão por eleição, e havendo de ser a oração, não outra, senão a do Rosário, de que particularmente tratamos, sendo muito pro­vável o modo de orar só, e também muito provável o modo de orar juntamente com muitos, o que se pergunta agora por última conclusão é: qual destas partes deve seguir o devoto do Rosário? Será melhor rezar em público e juntamente com muitos na igreja, ou rezar só e retirado em sua casa? Respondo com distinção. Aos homens digo que rezem ou na igreja ou em sua casa, onde experimentarem maior devoção e onde tiverem maior comodidade. Às mulheres porém absolutamente digo que cada uma deve rezar em sua casa, e de nenhum modo fora dela: os homens sejam embora muitos, a mulher sempre uma só. E isto é o que diz o nosso texto: Mulier? Quaedam: A mulher? Uma. E onde houver turba, não com ela, mas separada dela: Mulier quaedam de turba.

O fundamento desta distinção não é de grande louvor para as mulheres, mas de grande conveniência e decência, sim. Por quê? Porque muitas vezes quando a mulher sai a rezar o Rosário, ou, como se diz vulgarmente, o terço, mais sai a sair que a rezar. Quando Deus criou o homem e a mulher, foi com grande diferença, ainda nos termos com que o refere a Escritura. Do homem diz que o formou Deus: da mulher, que a edifi­cou: Aedificavit... tostam... in mulierem[58]. Não quis o Autor da natureza que a mulher se contasse entre os bens móveis. O edifício não se move do lugar onde o puse­ram; e assim deve ser a mulher: tão amiga de estar em casa, como se a casa e a mulher foram a mesma coisa. Mas a sua inclinação correspondeu tão pouco ao mistério ou documento com que fora criada, que, como se viu edifício sem alicerces, o maior apetite da mulher é andar e sair. Na mesma criação de Eva, e no mesmo momento em que foi criada, temos o exemplo. Formou Deus a Eva da costa de Adão, e depois de formada não diz o texto sagrado que o Senhor lha mostrou ou que lha entregou, senão quê? Coisa verdadeiramente digna de grande admiração e reparo. Diz que a trouxe Deus a Adão: Aedificavit... tostam, quam tulerat de Adam, in mulierem: et adduxit eam ad Adam[59]. Se a trouxe, sinal é que estava noutro lugar, e não ali. Pois se ali tirou Deus a costa a Adão, e ali formou a Eva, por que não estava Eva ali, senão em outra parte, onde Deus a foi buscar e a trouxe? Porque a primeira coisa que fez Eva, no mesmo instante em que teve ser, foi, não parar no mesmo lugar um só momento, senão sair e andar. Para não sair dali tinha Eva as duas mais fortes razões que se podem imaginar, porque ali estava Deus, que acabava de a criar, e ali estava o esposo, de cujo lado fora criada. Mas é tal a inclinação, e tão impaciente na mulher o apetite de sair e andar, que por sair e andar deixou Eva o esposo, e por sair e andar deixou a Deus. Ó quantas vezes, por este mesmo apetite, vemos deixado a Deus, e os esposos pior que deixados?

Mas ainda Eva depois de trazida não aquietou. Perdeu-se Eva a si, a seu marido, e a seus filhos, e a todo o mundo, porque falou com a serpente e a ouviu. Mas como podia Eva falar com a serpente? Esta dúvida excitou Ruperto Abade, tão bem fundada, como sutilmente argüida. Dentro da cerca do Paraíso Terreal, que depois de­fendeu o querubim com a espada de fogo, não podiam entrar as serpentes, porque se as serpentes entrassem, também entrariam os lobos, os tigres, e todos os outros animais, o que era contra a dignidade, limpeza e asseio do mesmo Paraíso, plantado pelas mãos de Deus, como um céu na terra. Quanto mais que ao mesmo Adão, tinha Deus mandado que o guardasse, e naquele tempo não havia de quem o guardar, senão dos mesmos animais, os quais também se não se pode dizer que furtivamente entrassem no Paraíso, porque eram obedientes ao homem. Pois, se a serpente não entrou nem podia entrar no Paraíso, como lhe falou Eva, e onde? Excelentemente o mesmo Ruperto: Libera nobis relinquitur facultas asserendi, quod non serpens in paradiso fuerit, sed mulher corpore, et oculis vaga, dum incontinenter deambulat, forte prospectans qualis extra paradisum mundus haberetur, locus datus est, et occasio, unde serpentes tentaret[60]: Sabeis - diz Ruperto - por que teve ocasião Eva de falar com a serpente, e onde lhe falou? Não foi dentro no Paraíso, senão fora. Dentro não, porque a serpente não podia entrar lá; mas fora da cerca do Paraíso sim, porque a mulher, tão vagabunda nos olhos como nos passos, teve apetite de ver qual era o mundo cá por fora, e este foi o lugar em que se encontrou com a serpente, e a serpente a tentou e fez cair: Dum incontinenterdeambulat, prospec­tans qualis extra paradisum mundus haberetur. Se Eva se contivera dentro do Paraíso que Deus lhe tinha dado por morada, e não quisera ver mais mundo, ela se livrara dos encontros em que viu e ouviu o que lhe não convinha; mas, porque quis sair e andar por fora, por amor do mundo, que fora melhor não ver, não só perdeu o mesmo mundo, senão também o Paraíso, e a si e a nós. E isto é o que sucede cada dia às filhas de Eva.

§ VII

Muitas vezes começa com boa tenção o que acaba em tentação. O que sucedeu à filha de Jacó em Salém, cidade dos siquemitas. Uma mulher que sai a ver mulheres, também sai a ser vista de homens. As devoções e as devassidões no Livro dos Provérbios. O que diz Oleastro da limitação da lei do Templo somente aos homens.

Não quero dizer com isto que quando saem as que saem, seja sempre com má tenção; mas é certo que muitas vezes começa com boa tenção o que acaba em tentação. Peregrinando Jacó com toda a sua família, fez assento em um lugar-que então se chamou Socot, e depois Citópolis - e ali, diz a História, que Diria, filha do mesmo Jacó, saiu um dia de casa para ver as mulheres daquela terra: Egressa est autem Dina, ut videret mulieres regionis illius (Gên. 34, 1). Esta foi a tenção com que saiu da casa de seu pai aquela donzela; e qual foi o sucesso? O sucesso foi que Siquém, príncipe da mesma terra, vendo a Diria e agradando-se dela, a tomou ou roubou por força, e Simeão e Levi, irmãos de Dina, vendo-se afrontados, tiveram traça com que matar por traição ao mesmo príncipe Siquém e a todos os siquemitas; e se Deus com especial providência não guardara a Jacó, também ele pereceria e acabaria ali com todos seus doze filhos, de que nasceram as doze tribos de Israel. Pois, se a tenção com que Diria saiu da casa de seu pai, não foi mais que de ver as mulheres daquela terra: Egressa est, ut videret mulieres regionis illius- como veio a parar esta honesta tenção em tamanhas desgraças, a que só por milagre do céu se não seguiram outras maiores? Porque uma mulher que sai a ver mulheres, também sai a ser vista de homens. E se no ver não há perigo nem indecência, no ser vista periga a honra, periga a pessoa, periga a família, e periga talvez toda a república, e não só uma, senão muitas, como neste caso. A tenção de Diria em querer somente ver mulheres, podia ser inocente; mas no risco e ocasião de ser vista de homens, também foi culpada, porque, como gravemente disse Tertuliano: Ejusdem libidinis est videre et videri[61]. Por isso S. Jerônimo, com o exemplo da mesma Dina, exortava à virgem Eustóquio a nunca sair de casa: Cave, ne domum exeas, et velis videre mulieres regionis alienae: Dina egressa corrumpitur. Até o poeta gentio, notando discretamente semelhantes saídas, disse que saíam Penélopes e tor­navam Helenas: Penelope venit, abit Helene[62]. E isto é o que sucedeu à filha de Jacó, que saiu Dina e tornou Indiana.

Nem se evitam estes inconvenientes com irem sobredourados com o nome de devoção, porque muitas vezes as que se chamam devoções são verdadeiramente devas­sidões. As contas do Rosário também podem ter seus descontos, e as rosas suas espi­nhas, e assim sucede, quando o rezar é somente pretexto de sair, de ver e de falar, e do que se não pode falar nem ver. Não falo por boca do vulgo malicioso e maldizente, porque o que digo não é murmuração nem malícia sua, senão provérbio de Salomão expresso. Descreve ele uma mulher inquieta e vã, da qual diz, primeiro que tudo, que é tão amiga de sair, ou tão impaciente de não sair, que não pode ter os pés dentro em casa: Quietis impatiens, nec valens in domo consistere pedibus suis[63]. Enfim, saiu de casa esta mulher, e que fez ou que disse? O que verdadeiramente era, posto que parecia outra coisa. Parecia devoção, e era - como dizia - devassidão. Encontrou-se com quem a trazia inquieta, e tão fora de si como de casa, e o que lhe disse foram estas formais palavras: Victimas pro salute devovi, hodie reddidi vota mea. Idcirco egressa sum in occursum tuum, desiderans te videre[64]: Fui hoje à igreja a oferecer sacrifício, e dar cumprimento a um voto que tinha feito a Deus; por isso saí a me encontrar convosco, tendo grandes saudades e desejo de vos ver. - Notai muito aquele por isso: idcirco. De maneira que o pretexto de sair à igreja era dar cumprimento ao voto, e o verdadeiro fim e intento era ver a quem buscava. O voto era pretexto de ir à igreja: Victimas pro salute devovi, hodie reddidi vota mea; e o devoto, e o desejo de o ver, era a verdadeira causa de sair de casa: Idcirco egressa sum in occursum tuum, desiderans te videre.

Oh! quantas vezes sucede isso mesmo na nossa terra, sendo o Rosário o pretexto das hipocrisias, e o terço o terceiro destes sacrilégios! E porque não parece que falo de longe, em que as conjecturas são incertas, quero fechar este discurso com o parecer e sentença de um grande autor; não de outra nação, senão português, nem de outra profissão, senão dos pregadores do Rosário, nem de outro convento, senão do de Lisboa, nem de outra igreja, senão da antiquíssima e famosa de S. Domingos, onde o terço do Rosário se reza todos os dias com tão particulares concursos, e donde esta tão louvável devoção se propagou por todo o reino e reinos de Portugal. O autor é Frei Jerônimo de Azambuja, mais conhecido no mundo pelo nome de Oleastro, tão, pio, como douto e doutíssimo comenta­dor do Pentateuco. E para que se veja o fundamento da sua sentença, no capítulo trinta e quatro do Êxodo mandava Deus que três vezes no ano fossem todos ao Templo - que naquele tempo era um só - e aparecessem em sua presença. Mas, nota a mesma lei que este preceito falava só com as pessoas do gênero masculino: Tribus temporibus anni apparebit omne masculinum tuum in conspectu omnipotentes Domini Dei lsrael[65]. Repara pois nesta limitação Oleastro, e dando a razão por que a lei obrigava os do gênero masculino, e não do feminino, os homens e não as mulheres, diz assim: Femininum genus docet non hinc finde discurrere, etiam pietatis et religionis praetextu. Amat hoc genus exire, amat hinc finde discorrere: sed quia a vias suis saepius arcentur, causam religionis etpietatis mentiuntur. Ut ergo licentiosum genus teneret in officio, occasiones vagarsdi praecludit: Quer dizer o douto, religioso e experimentado comentador, que na limitação desta lei quis Deus ensinar a todos aqueles a quem pertence, que as mulheres não devem sair de casa, ainda com pretexto de piedade e religião, porque a gente deste gênero - diz ele como testemunha ocular - é muito amiga de sair e de andar por fora, e porque talvez lho proíbem os que têm o mando da casa, fingem devoções falsas e mentirosas: Causam religionis etpietatis men­tiuntur. Assim que desobrigou Deus as mulheres desta lei do Templo, para lhes tirar a ocasião, não de orar, mas de sair, estimando mais o seu recolhimento que as suas romarias.

§ VIII

Na manhã da Ressurreição, por que não foi também a Senhora com as outras Ma­rias ao sepulcro? A solidão na conversão das mulheres no Testamento Novo. Conclusão.

E para que saibamos sem dúvida que este recolhimento é o que mais aprova e o que mais lhe agrada à mesma Senhora do Rosário, ponhamo-nos entre os Mistérios Dolorosos e Gloriosos, e vejamos o que então fez ou não fez a mais qualificada piedade. Na manhã da Ressurreição foram as Marias com grande devoção e diligência ao sepul­cro, para ungir o Sagrado Corpo. Agora pergunto: E foi também com as outras Marias a Virgem Maria, Senhora nossa? Não. Pois, por que não foi também a Senhora? Era me­nos devota? Amava menos a Cristo? Considerava com menor dor os tormentos de sua paixão e as ausências da sua morte? Claro está que o amor de Salomé, de Jacó e da Madalena, em comparação dos ardentíssimos afetos da Virgem, eram tibiezas. Pois, por que não foi também a Senhora com as outras Marias? Porque teve por melhor e mais decente o seu recolhimento, e porque sabia que era mais agradável ao próprio Filho o contemplar seus mistérios entre quatro paredes que i-lo buscar ao sepulcro. As Marias no sepulcro tiveram grandes visões de anjos: e se é melhor devoção a de não ir onde só se vêem anjos, quanto mais onde não são anjos os que se vêem?

Em conclusão: A mulher? Só. Mulier? Quaedam. Só e apartada da multidão e dos concursos: de turba. Assim o faz o mesmo Cristo, quando quer converter mulhe­res. Primeiro aparta a multidão e as turbas, e, quando ficam separadas e sós, então as converte. Levaram a Cristo aquela mulher criminosa para que a condenasse, e o Senhor, que a não quis condenar, senão absolvê-la e reduzi-la de pecadora a santa, que fez? Pôs­se a escrever na terra os pecados dos acusadores, e depois que todos se foram: Remansit solus Jesus, et mulier in medio stans - diz o Evangelista[66]. Ficou Cristo só, e a mulher só com Cristo; e, agora que estava só, lhe falou o Senhor, e não só lhe perdoou os pecados passados, mas, com suas divinas palavras, lhe deu alentos para não cometer outros: Vade, et jam amplius noli peccare[67]. Chegando Cristo ao poço de Sicar, fatiga­do do caminho, a horas do meio-dia, despediu de si a todos os apóstolos, e mandou-os que fossem buscar de comer à cidade. Para ir buscar de comer bastava um. E por que mandou o Senhor todos? Porque havia de vir ali a Samaritana, a quem o Divino Mestre havia de converter e revelar grandes mistérios. E posto que a multidão dos apóstolos era de homens santos, bastava ser multidão para estorvar, e que somente estando só pois só podia uma mulher ter confiança para perguntar, liberdade para ouvir; e capacidade e sossego para entender. Por Isso a Madalena em sua casa se retirou até de uma irmã tão santa como Marta; e se recolheu, também só aos pés de Cristo, E por isso, antes de Cristo vir ao mundo, lemos da famosa Judite, que no alto do seu palácio fez um aposen­to secreto, em que dentro da própria casa, e longe das inquietações dela, se retirava com Deus e consigo: In superioribus domus suae fecit sibi secretum cubiculum[68].

Isto é o que nos prega o Evangelho nas palavras mulier quaedam. E se esta unidade e solidão de uma e só, foi necessária às que não eram santas, para que o fossem, e, depois de serem santas, para se conservarem na perfeição e pureza da vida, nenhuma mulher haverá em qualquer estado da sua, que o não tenha por errado, se seguir o modo ou apetite de querer orar entre muitos. Finalmente, para que todos entendam e se persuadam que a devoção e oração do Rosário, de si mesmo e por si mesmo as obriga a este retiro, saibam que assim nasceu e começou o Rosário, e que assim se deve con­tinuar. O princípio e o nascimento do Rosário foi o mistério da Encarnação. E como nasceu e começou por este mistério, senão no retiro e soledade da mesma Senhora dele? Sola in penetralibus, sola sitie convite, sola sine teste, diz Santo Ambrósio. Assim começou o Rosário na bendita entre todas as mulheres, e assim deve continuarem todas e em cada uma: Mulier quaedam.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Uma mulher, levantando a voz do meio do povo, lhe disse: Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que foste criado (Lc. 11, 27).

[2] Athanas. in Apologet. ad Constant.

[3] D. Thomas, 2. 2. q. 83.

[4] Porque sei que isto se me converterá em salvação, pela vossa oração (Flp. 1, 19).

[5] O qual nos livrou de tão grandes perigos, e livra ainda; em quem esperamos que ainda igualmente nos livrará, se vós nos ajudardes também, orando por nós (2 Cor. 1, 10 s).

[6] Rogo-vos, pois, ó irmãos, por nosso Senhor, Jesus Cristo, e pelo amor do Espírito Santo, que me ajudeis com as vossas orações por mim a Deus (Rom. 15, 30).

[7] Por cuja causa roguei ao Senhor três vezes (2 Cor. 12, 8).

[8] Para que, pelo dom que se nos tem concedido, em atenção de muitas pessoas, por intervenção de muitos sejam dadas graças por nós outros (2 Cor. 1, 11).

[9] E elas se chegaram a ele, e se abraçaram com os seus pés (Mt. 28, 9).

[10] Porque ainda não subi a meu Pai (Jo. 20, 17).

[11] Demorai-vos aqui, e vigiai comigo (Mt. 26, 38).

[12] Visto isso, não pudestes uma hora vigiar comigo? Vigiai e orai (Mt. 26, 40 s).

[13] Porque estavam carregados os olhos deles (Mt. 26, 43).

[14] Não lhe terei respeito a ele, nem às suas palavras eficazes e compostas para rogar (Jó 41, 3).

[15] E estes lhe pediram que não os mandasse ir para o abismo (Le. 8, 31).

[16] E lhe rogavam que lhes permitisse entrar neles. E Jesus lho permitiu (Lc. 8, 32).

[17] Legião é o meu nome, porque somos muitos. E pedia-lhe instantemente (Mc. 5, 9 s).

[18] Eram em grande número os demônios que tinham entrado nele. E estes lhe pediram (Lc. 8. 30 s).

[19] Chrysost.. homil. 3. De incomprehensib. Dei naturae.

[20] Entre à tua presença a minha oração (SI. 87, 3).

[21] Entre a minha petição até ao teu acatamento (SI. 118, 170).

[22] Tertull. de Oratione Dominica, et in Apologet.

[23] S. Vincent. Ferrer, Sermon. in 5 Domin. post Trinitat.

[24] Segundo a tua grande misericórdia, e segundo as muitas mostras da tua clemência (Si. 50, 3).

[25] Porque ele é de muita bondade para perdoar (Is. 55, 7).

[26] Saiu, e foi a um lugar deserto, e fazia ali oração (Mc. I, 35).

[27] E logo que despediu a turba, subiu só a um monte a orar (Mt. 14, 23).

[28] E aconteceu que estando só, orando (Le. 9, 18).

[29] Subiu a um monte a orar (Le. 9, 28).

[30] Incessantemente estão vendo a face do Pai (Mt. 18, 10).

[31] Retirou-se para o monte ele só (Jo. 6, 15).

[32] E, passado tudo o que lhe pertencia, ficou só (Gên. 32, 23 s).

[33] Porque a oração requer um lugar secreto, e quem ora deve procurar os lugares mais escondidos, para que ninguém o distraia.

[34] Lutava com ele (Gên. 32, 24).

[35] Até pela manhã (Gên. 32, 24).

[36] Larga-me (Ibid. 26).

[37] Não te largarei se me não abençoares (Ibid. 26).

[38] E abençoou-o no mesmo lugar (Ibid. 29).

[39] Se contra Deus foste forte, quanto mais o serás contra os homens (Ibid. 28).

[40] Passado tudo o que lhe pertencia, ficou só (Gên. 32, 23 s).

[41] Tendo eu pois ficado sozinho, vi esta grande visão (Dan. 10, 8).

[42] E os que estavam comigo viram sim a luz, mas não ouviram a voz daquele que falava comigo (At. 22, 9).

[43] Bernard. de oration. et attent.

[44] Bernard. meditat, cap. 8.

[45] S. Ephrem, in illud Attende tibi, cap. 10.

[46] Aí estou eu no meio deles (Mt. 18, 20).

[47] Emissenus in eumdem locum.

[48] Passou toda a noite em oração a Deus (Lc. 6, 12).

[49] Chrysost. homil. 51, in Mat. 14.

[50] Hieron. in Epistol. ad Eustoch

[51] Nazianz. Orat. ad Maxim.

[52] Quem é esta, que sobe pelo deserto como uma varinha de fumo... e de incenso (Cânt. 3, 6)?

[53] Quando tudo repousava em profundo silêncio, e a noite estava no meio do seu curso, a tua palavra onipotente baixando do teu trono real, saltou para a terra (Sab. 18, 14 s).

[54] Assentar-se-á solitário, e ficará em silêncio, porque levou este jugo sobre si (Lam. 3, 28). - A Vulgata traz: quia levavit super se.

[55] Eis aqui estou eu que a atrairei docemente a mim, e a levarei à soledade, e lhe falarei ao coração (Os. 2, 14).

[56] Depois que eu tiver saído da cidade, estenderei as minhas palmas para o Senhor, e cessarão os trovões, e não choverá mais pedra (Êx. 9, 29).

[57] Laurent. Justinian. de Orat, c. 5 et 6.

[58] E da costela formou a mulher (Gên. 2, 22).

[59] E da costela que tinha tirado de Adão formou a mulher, e a trouxe a Adão (Gên. 2, 22).

[60] Rupert. Lib. 3 in Genes., cap. 29.

[61] Há tanto perigo de pecado em ver como em ser visto.

[62] Martialis.

[63] Não lhe sofrendo o coração estar queda, nem podendo ter os pés dentro em casa (Prov. 7, 11).

[64] Pela tua saúde ofereci vítimas, hoje dei cumprimento aos meus votos. Por isso te saí ao encontro, desejando ver-te (Prov. 7, 14 s).

[65] Tudo o que do gênero masculino é teu, será presentado três vezes no ano diante do onipotente Senhor, Deus de Israel (Êx. 34, 23).

[66] E ficou só Jesus, e a mulher, que estava no meio em pé (Jo. 8, 9).

[67] Vai, e não peques mais (Jo. 8, 11).

[68] No andar superior da casa tinha feito para si um quarto retirado (Jdt. 8, 5).