Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XIX – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Com o Santíssimo Sacramento Exposto.

Beatus venter qui te portavit[1]

§ I

Três são os sacramentos que concorrem neste dia, e em todos três está a mesma dignidade e humanidade de Cristo diversamente sacramentada: o Sacramento do Altar, o Sacramento do Evangelho e o Sacramento do Rosário. A definição de sacramento: sinal visível da graça invisível, no Sacramento do Evangelho e no Sacramento do Rosá­rio, Assunto do sermão: combinar e comparar entre si esses três sacramentos.

Encerrado e desencerrado temos hoje a Cristo, Senhor e Redentor nosso, no altar e no Evangelho. Desencerrado no altar, porque naquele trono de majestade o temos exposto a nossos olhos, e encerrado no Evangelho, porque ali se nos representa encerra­

do dentro do sacrário virginal do ventre beatíssimo: Beatus venter qui te portavit (Lc.

11, 27). E basta estes dois Sacramentos para declarar os mistérios e desfazer os encon­tros de toda a presente solenidade? Não bastam. Antes os mesmos dois Sacramentos se ordenam hoje a outro terceiro Sacramento, que é o Rosário santíssimo da Virgem Se­nhora nossa, primeiro e principal argumento de toda a presente ação, e tão grande como dificultoso assunto dela. De maneira que três são os Sacramentos que concorrem neste dia, e em todos três a mesma divindade e humanidade de Cristo diversamente sacramen­tada. O Sacramento do altar, o Sacramento do Evangelho, o Sacramento do Rosário. E porque não faça dúvida nestes dois últimos o nome que lhes dou de Sacramento, não sendo algum dos sete, vede com quanta propriedade lhe quadra a definição de Sacramento!

Sacramentum est visibile signum invisibilis gratiae: o Sacramento em co­mum - com mais declarada definição do que o tinha definido Santo Agostinho, e o definiu depois dele Santo Tomás - é um sinal visível da graça invisível, ou um sinal que se vê, da graça que se não vê. - Daqui se segue, que assim o Sacramento do Evangelho, como o do Rosário, não só tem grande semelhança com qualquer outro Sacramento, senão maior ainda com o maior de todos, que é o Santíssimo Sacramento do altar. Sendo todos os Sacramentos santos, qual é a razão por que o Sacramento do altar se chama santíssimo? A razão é porque os outros Sacramentos, debaixo da matéria visível, só significam a graça santificante, que causam invisivelmente; porém, o Sacramento do altar não só significa a graça santificante que causa, senão também o mesmo Santifica­dor e Autor da graça, que é Cristo, o qual este Sacramento encerra dentro em si oculto e invisível debaixo dos acidentes que vemos. E tudo isto é o que causam e contêm - cada um por seu modo - assim o Sacramento do Evangelho como o Sacramento do Rosário.

Qual é o Sacramento do Evangelho? Beatus venter qui te portavit. É o ven­tre puríssimo da Virgem Maria, enquanto trouxe dentro em si o Verbo Eterno encarna­do. Que este sinal fosse visível, bem o demonstraram as dúvidas ou admirações de S. José. E que além da graça santificante da Senhora, significasse invisivelmente o mesmo Filho de Deus, Cristo, concebido por virtude do Espírito Santo, e trazido em suas entra­nhas, bem o ensinou o anjo ao mesmo S. José, quando depois lhe revelou e declarou o mistério: Quod enim in ea natum est, de Spiritu Sancto est[2]. Eis aqui como o Sacramen­to do Evangelho em tudo é parecido ao Sacramento do altar.

E o Sacramento do Rosário? Também, e pelo mesmo modo. O Rosário que trazeis nas mãos - vede quão puras devem ser- é o sinal visível deste Sacramento. O efeito invisível é a graça santificante que, por meio do mesmo Rosário, alcançam os que digna e devotamente o rezam. E encerra mais alguma coisa dentro em si o mesmo Rosá­rio? Encerra tudo que encerra o Sacramento do altar, e encerra tudo o que encerrou o ventre da Virgem, e ainda encerra mais: porque não só encerra, como o ventre virginal, a Cristo enquanto encarnado, nem só, como o Sacramento do altar, a Cristo enquanto morto, senão ao mesmo Cristo enquanto encarnado, enquanto morto, enquanto ressusci­tado, e em todos os outros mistérios Gozosos, Dolorosos, e Gloriosos do mesmo Cristo.


Assentados, pois, assim estes três Sacramentos, o que falei em dois discur­
sos será combinar e comparar entre si os mesmos Sacramentos. No primeiro compararei
o Sacramento do altar com o Sacramento do ventre virginal, em maior louvor do Sacra­
mento do altar. No segundo compararei o Sacramento do Rosário com o Sacramento do
altar, em maior louvor do Sacramento do Rosário. Como em todos três é interessada a
Senhora, não em parte, mas em tudo, não nos pode faltar com sua graça. Ave Maria, etc.

§II

O Sacramento do Evangelho. A mulher do Evangelho, por cuja boca falou o Espírito Santo, por que não chama bem-aventurada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre que concebeu o Filho de Deus? As três bem-aventuranças com que a Senhora foi chamada e se chamou bem-aventurada. O ventre da Virgem louvado pelos Santos Pa­dres e pela Igreja. O entendimento que só compreende o que compreendeu o ventre da Virgem é o entendimento do Eterno Padre. O ventre de Maria compreende mediatamen­te toda a divindade, porque todo o corpo de Cristo está no ventre de Maria.

Beatus venter qui te portavit.

Com razão reparou nestas palavras o Cardeal Hugo, na púrpura e na pena igualmente eminentíssimo, e pergunta assim: Quare non dixit mulier illa: Beata Mater quae te portavit, potius quam beatus venter? Esta mulher do Evangelho, por cuja boca falou o Espírito Santo, por que não disse bem-aventurada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre? - Isaías, quando profetizou este mistério inaudito, atribuiu a novidade e mara­vilha dele à conceição, e ao parto da Virgem: Ecce virgo concipiet, et pariet filium[3]. O anjo, quando trouxe a embaixada à Senhora, falou pelos mesmos termos: Ecce concipies, et paries[4]. Pois, se esta oradora humilde, que tão alto levantou a voz, queria louvar o Filho pela Mãe, e o ser Mãe consiste em gerar, conceber e parir o Filho, por que cala a conceição e o parto, e o mesmo nome da maternidade, e só louva, apregoa e canoniza por bem-aventurado o ventre que o trouxe em si: Beatus venter qui te portavit? Não fora esta mulher figura da Igreja Católica, como bem notou o Venerável Beda: Ecclesiae catholicae typum gessit - se não falara assim. O que muito e muitas vezes pondera a Igreja no altíssimo mistério da Encarnação do Verbo, é a capacidade imensa do ventre sacratíssimo de Maria. Tão capaz, que coube nele o que não cabe no céu: Quem caeli capere non poterant, tuo gremio contulisti; tão capaz, que coube nele o que não cabe em todo o mundo: Quem totus non capit orbis, in tua se clausit viscera; tão capaz, que coube nele o mesmo Filho de Deus, tão imenso e infinito, como seu próprio Padre: Beata viscera Mariae, quae portaverunt aeterni Patris Filium. Fazer-se Deus homem, foi o maior invento do seu amor; nascer de uma Virgem, foi o maior decoro de sua soberania; caber no ventre de uma mulher, foi o maior portento de sua imensidade: Beatus venter qui te portavit.

Aquela palavra beatus é a que só penetrou o profundo, e encareceu o subli­me, e pode dar o justo peso às outras, Três mulheres chamaram bem-aventurada à Se­nhora neste mesmo mistério, e por ele, A mulher do nosso Evangelho: Beatus venter qui te portavit; Santa Isabel, alumiada com espírito de profecia: Beata quae credidisti[5]; e a mesma Virgem Santíssima no seu Cântico: Beatam me dicent omnes generationes[6]. E sendo uma destas três mulheres a mesma bendita entre todas as mulheres, a que mais encareceu o mistério é a autora do nosso texto. Vede se tenho razão. O que noto nestas três bem-aventuranças, com que a Senhora foi chamada e se chamou bem-aventurada, é que nenhuma delas se parece com a bem-aventurança do céu. Santa Isabel chamou bem­aventurada à Virgem Maria pela fé com que creu o que lhe disse o anjo: Beata quae credidisti e no céu não há fé. A mesma Virgem chama-se bem-aventurada, porque Deus pôs nela os olhos: Quia respexit humilitatem ancillae suae, ecce enim ex hoc beatam me dicent[7]: e a bem-aventurança do céu não consiste em Deus ver o bem-aventurado, senão em o bem-aventurado ver a Deus. Finalmente, a mulher do Evangelho chamou bem-aventurado o ventre da Senhora, porque foi capaz de ter e trazer a Deus dentro em si: Beatus venter qui te portavit: e esta bem-aventurança também se não acha no céu, ainda que no número dos bem-aventurados entre a mesma Mãe de Deus. E por quê? Porque Deus, por sua infinita essência, é incompreensível a todo o entendimento e conhecimento criado. E, posto que o entendimento da Senhora, ilustrado com lume da glória, excessivamente maior que o de todos os bem-aventurados, veja mais em Deus que todos os anjos e santos, não só divididos, mas juntos, contudo, não compreende nem pode compreender a Deus. E daqui se segue, que o ventre da Virgem, no seu gênero, é mais bem-aventurado que o entendimento da mesma Virgem: Beatus venter qui te por­tavit, porque o seu entendimento não compreende a Deus, e o seu ventre sim.

Entre agora a autoridade, e a maior autoridade, sem a qual todo este discurso ficaria duvidoso e vacilante. Santo Epifânio, com apóstrofe ao ventre virginal, exclama assim: O uterum caelo  ampliorem, qui Deum incomprehensibilem in te vere comprehen­sum portasti[8]! Ó ventre puríssimo de Maria, maior e mais capaz que o céu, pois a Deus, que é incompreensível, verdadeiramente o compreendeste e trouxestes dentre em ti! - Note-se muito aquela grande palavra: vere comprehensum. E Santo Atanásio, insigne coluna da fé e doutor da Igreja, falando com a Senhora: Ave gratia plena, splendidum caelum, quae Deum incomprehensum augusto potissimum loco in te ipsa contines: Deus vos salve cheia de graça, novo céu e mais resplandecente, que contendes e abreviais a Deus incompreensível dentro em vós mesma, e, o que é mais, em um lugar tão estreito como o de vosso sacratíssimo ventre. - E S. Metódio, ainda mais antigo que ambos, encarecendo a capacidade imensa do mesmo ventre: Tu incircumscripti circumscriptio, tu cuncta continentis, et comprehendentis comprehensio[9]: Vós sois, ó ventre puríssi­mo, o que só pudestes limitar o que não tem limite; vós sois a compreensão do que tudo compreende. - Finalmente, para que a tão grandes autoridades ajuntemos e ponhamos o selo com outra maior, o mesmo diz, e com a mesma e maior admiração, o Concilio Efesino: Quis vidit, quis audivit unquam tale[10]? Quem viu, ou quem ouviu jamais tal coisa? - Incircumscriptus Deus uterum inhabitat, et quem caeli non capiunt, venter amplexus est Virginis: Deus, que não cabe nos céus, cabe no ventre de uma Virgem; e o que é imenso e incompreensível, o mesmo ventre o abraça e compreende. - E como o ventre virginal de Maria compreendeu a Deus, cuja infinita grandeza não pode compre­ender entendimento algum criado, nem ainda o da mesma Virgem, com razão a oradora do Evangelho, como oráculo do Espírito Santo, e a voz de toda a Igreja Católica, o que louva, o que apregoa, o que canoniza como singularmente bem-aventurado, não é o entendimento, com que a Senhora vê a Deus, senão o ventre, em que o compreendeu e trouxe dentro em si: Beatus venter qui te portavit.

Um só entendimento há que compreenda o que compreendeu o ventre de Maria. E qual é? Porventura o de Cristo enquanto homem? Nem esse. Oh! grande gran­deza também incompreensível do sacrário virginal deste segundo Sacramento! Por isso os padres e concílios - se bem advertistes - todos se declaram por exclamações de admiração, de assombro, de pasmo. O entendimento que só compreende o que compre­endeu o ventre de Maria, é o entendimento do Eterno Padre. A maior grandeza da Vir­gem, em seu gênero infinita, é que o Eterno Padre e Maria sejam Pai e Mãe do mesmo Filho. E, assim como a mente do Pai gerando o Eterno Verbo, e comunicando-lhe o ser divino, compreende a todo Deus, assim o ventre da Mãe, gerando temporalmente a Cristo, e dando-lhe o ser humano, compreendeu dentro em si a mesma divindade toda. Mas, se o Pai deu ao Filho o ser divino, e a Mãe o ser humano, diga-se que a mente do Pai compreendeu a divindade, e o ventre da Mãe a humanidade, e a divindade não? Antes por isso mesmo. Que se assim não fora, não fora a Senhora Mãe de Deus. A Virgem Maria não gerou a humanidade de Cristo com subsistência humana, como as outras mães geram os outros homens; mas, com subsistência divina, unida hipostaticamente à mesma humanidade, por meio da qual união o Filho, no instante em que foi concebido, ficou verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e a Mãe, que deu o ser a tal homem, verdadeira Mãe de Deus. Pois, assim como a mente do Pai, gerando o Verbo, compreendeu toda a divindade sua e do Filho, assim o ventre da Mãe, gerando o mesmo Filho, compreendeu toda a divindade, não sua, mas do Verbo.

Declare-nos esta altíssima teologia S, Paulo por termos que a possam enten­der bem, ainda os que não são teólogos. Falando S. Paulo da divindade do Filho de Deus feito homem, diz que toda a enchente da divindade habita o corpo de Cristo: In ipso inhabitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter[11]. Habitar quer dizer estar com per­manência e deste modo esteve desde o instante da Encarnação, e está, e há de estar para sempre a divindade em Cristo, por virtude da união hipostática, que é de sua natureza união indissolúvel, E usou também o apóstolo da palavra habitar, porque como o que habita a casa está todo dentro na casa, e a casa o cerca, e contém todo dentro em si, assim a divindade está toda dentro do corpo de Cristo, e o corpo de Cristo acerca e compreende, não só toda, mas totalmente, que é outro e maior mistério que encerram as mesmas palavras. Para significar que toda a divindade está no corpo de Cristo, bastava dizer: In ipso inhabitat plenitudo divinitatis, porque plenitude quer dizer, toda, Pois, por que não diz o apóstolo só plenitudo, senão omnis plenitudo, que vem a ser como se dissera: - Toda a divindade toda, ou todo o todo da divindade? - Porque, para com­preender a Deus, como definem os teólogos, não só basta conhecer ou conter a todo o Deus, senão todo e totalmente. E isto é o que quis significar o apóstolo, não só dizendo, toda a Divindade, senão todo o Todo dela: omnis plenitudo, para mostrar que o corpo de Cristo contém e abraça dentro em si a divindade, não de qualquer modo, senão compre­ensivamente e por inteira compreensão: toda uma vez enquanto plenitudo, e toda outra vez enquanto omnis, e, por isso, toda e totalmente. Donde se seguem, em última conclu­são do nosso discurso, as duas conseqüências e semelhanças dele. A primeira, que o ventre da Virgem compreendeu toda a divindade, porque, se o corpo de Cristo compre­ende imediatamente toda a divindade, porque toda a divindade está no corpo de Cristo, também o ventre de Maria compreende mediatamente toda a divindade, porque todo o corpo de Cristo está no ventre de Maria. E assim como - que é a segunda conseqüência e paridade - assim como a mente do Padre compreende toda a divindade, porque na mente do Padre está todo Deus em espírito, assim o ventre de Maria compreende toda a divindade, porque no ventre de Maria está todo Deus em corpo. Deus Verbum totum erat in corpore, totum in Deo Patre, disse, como eu o pudera ditar, S. Basilio de Selêucia[12]. E este é o grande mistério com que a voz do nosso texto não chama bem-aventu­rada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre: Beatus venter qui te portavit.

§ III

Segunda parte do sermão: O Sacramento do Altar Grande maravilha é que o Verbo Eterno, ao qual só compreende a mente do Padre, o compreendesse o ventre de uma Virgem, e muito mais se receba e caiba também todo no peito do homem. Diferen­ças e vantagens do Sacramento do Altar sobre o Sacramento do Evangelho. O milagre e prodígio de Cristo no Mistério da Fé. A mesa de Elcana, a mesa de José e a mesa de Cristo. O maior mistério da natureza, a composição do contínuo ou da quantidade, e o mistério sobrenatural do Sacramento.

E se tudo - para que do Sacramento do Evangelho passemos ao Sacramento do Altar - se tudo o que compreende a mente do Padre compreendeu o ventre de Maria, porque teve dentro em si todo o corpo de Cristo: Totum in corpore, totum in Padre - que menos podemos nós dizer do mesmo corpo de Cristo no Santíssimo Sacramento, insti­tuído pelo amor e obrado pela Onipotência, não só para o adorarmos no altar, mas para o recebermos dentro em nós mesmos? Que disse Cristo quando instituiu aquele diviníssimo mistério? Accipite, et comedite: hoc est corpus meum (Mt. 26, 36): Recebei, e comei: este é o meu Corpo. -Todo na mente do Padre, todo no ventre da Virgem, e todo no peito dos que o recebem, e tão inteiramente todo em todos, como todo em cada um: Sic totum omnibus, quod totum singulis. Grande maravilha é que o Verbo Eterno, ao qual só compreende a mente do Padre, o compreendesse o ventre de uma Virgem; mas não é menor, antes igual maravilha, que esse mesmo Verbo, que está todo na mente do Padre e todo no ventre da Virgem, se receba e caiba também todo no peito do homem. Na mente do Padre todo o Verbo gerado, no ventre da Virgem todo o Verbo encarnado, no peito do homem todo o Verbo sacramentado. Mas isso mesmo é ser Verbo, disse excelentemente, declarando e estendendo o seu pensamento, o mesmo S. Basilio: Quemad­

modum Verbum in charta descriptum, totum est in charta et totum in mente gignente, et totum in às, qui illud legunt vel audiunt: ita Deus Verbum, et multo quidem perfectius, totum erat in corpore, totum in Deo Patre, totum in caelo, totum in terra, totum in universa creatura: Que é o Verbo Eterno? É a palavra divina. Pois assim como a mesma palavra está toda na mente de quem a concebe e gera, e toda no papel onde se escreve, e toda naqueles que a lêem ou ouvem, assim o mesmo Verbo Divino está todo na mente do Padre, que o gerou, todo no ventre da Mãe, que o concebeu, todo naqueles acidentes brancos, onde se imprimiu, e todo no peito do homem, que o ouve pela fé e o recebe pelo Sacramento.

A proporção e a paridade não pode ser mais própria, nem mais igual. Mas porque eu prometi de tal maneira comparar o Sacramento do Altar como Sacramento do Evangelho, que seja em maior louvor do Sacramento do Altar, ouçamos agora as diferenças ou vantagens deste segundo Sacramento sobre o primeiro. E não peço licença à Virgem Santíssima para esta vantajosa comparação, pois tudo o que se disser do Santíssimo Sacramento do corpo e sangue de Cristo, é em dobrado louvor da mesma Senhora, da qual Cristo recebeu o mesmo corpo e sangue. Começando, pois, este segundo discurso, por onde acabamos o primeiro, a primeira diferença ou vantagem do Sacramento do Altar sobre o Sacramento do Evangelho, é que no ventre sacratíssimo da Virgem de tal modo esteve todo o corpo de Cristo, que só estava todo em todo, mas não todo, senão parte em cada parte; porém, no Sacramento do Altar não só está todo em todo, e todo em qualquer parte, como muitas vezes ouvistes, mas em qualquer parte está todo e todo totalmente, o que porventura não tendes ouvido.

Nenhum corpo há no mundo, ainda que seja tão grande como a terra e o céu, ou tão pequeno e tão mínimo como um átomo, que esteja todo em todo, e todo em qualquer parte do mesmo todo. E a razão não é outra, senão porque é corpo. Estar todo em todo, e todo em qualquer parte, é propriedade só dos espíritos: e assim está em nós a nossa alma. Toda em todo o corpo, toda em um braço, toda em uma mão, toda em um dedo, e toda na menor parte dele. Com esta semelhança se costuma explicar o modo com que o corpo de Cristo está na hóstia. E posto que seja um dos grandes milagres deste mistério, que sendo corpo esteja ali com propriedades de espírito, ainda a seme­lhança da alma diz muito menos do que na realidade é. A alma, ainda que está toda no braço, toda na mão e toda no dedo, se ao corpo lhe cortarem um dedo, não fica no dedo; se lhe cortarem a mão, ou o braço, não fica na mão nem no braço. Pelo contrário o corpo de Cristo de tal modo está todo na hóstia, que se a hóstia se partir pelo meio, ou em quatro partes, ou em cento, ou em mil, em qualquer parte, ou maior, ou menor, ou míni­ma, está todo o corpo de Cristo. E qual é a razão de tamanha diferença e maravilha? A razão é - como filosofa esquisitamente Teófilo - porque o corpo de Cristo em qualquer parte da hóstia está todo e totalmente, e a alma em qualquer parte do corpo, ainda que está toda, não está totalmente[13]. Mais claro. A alma está toda em qualquer parte do corpo, mas não por modo total, senão parcial, porque, se estivera em qualquer parte por modo total, estivera reduplicada e não uma só vez, senão muitas vezes no mesmo corpo; porém o corpo de Cristo, em qualquer parte da hóstia está todo, não por modo parcial, senão por modo total, e por isso está o mesmo corpo tantas vezes reduplicado na mesma hóstia, quantas são as partes quase infinitas em que ela se pode dividir, e não só nas partes sensíveis, em que só se pode consagrar, mas também, depois de consagrada, até nas partes insensíveis. A alma de tal maneira está toda em qualquer parte do corpo que ou há de estar toda ou não há de estar; o corpo de Cristo de tal maneira está todo em qualquer parte da hóstia, que não pode deixar de estar nem de estar todo. Todo em toda, todo em qualquer parte, e, dividida essa parte em mil partes, em todas todo.

Oh! milagre! Oh! prodígio! não sei, se maior da onipotência ou do amor! A maior inclinação do amor é dar ou dar-se todo, e a maior mortificação do mesmo amor é dar somente parte. Ponhamos três mesas à vista, para que se veja a soberania daquela. Assentado à mesa Elcana com toda a sua família, quando veio a repartir a porção que lhe coube do sacrifício que tinha oferecido no Templo, diz o texto sagrado que deu uma parte a Ana, mas desconsolado e triste, porque, amando-a muito, lhe dava uma só parte: Annae autem dedit partem unam tristis, quia Annam diligebat (1 Rs. 1, 5). Assim se entristece e mortifica o amor quando dá parte a quem quisera dar tudo. Mas desta mor­tificação nenhum amor pode livrar, ainda quando o maior amor se ajunta com o maior poder. José era todo-poderoso no Egito, e quando deu o banquete a seus irmãos, depois de reconhecidos, posto que amava mais que a todos a Benjamim, que fez com todo esse amor e com todo esse poder? Nota o mesmo texto sagrado, que na repartição dos pratos, que ele fazia por sua própria mão, a maior parte era a de Benjamim, e tanto maior que excedia a dos outros em cinco partes: Major pars venit Benjamin, ita ut quinque partibus excederet (Gên. 43, 34). De sorte que podendo tudo José, e fazendo seu amor tudo o que podia nesta repartição, o que pôde dar a quem mais amava foi uma parte maior, mas a maioria e excesso dessa maior parte também foram partes: Major pars, quinque partibus. Não assim o divino amor e verdadeira onipotência de Cristo naquela sagrada mesa. Estando a ela o Senhor com seus discípulos, disse-lhes que tomassem o cálix, em que lhes deixava seu sangue, e o repartissem entre si: Accipite, et dividite inter vos[14]. E entre o accipite e o dividite, entre o tomar e repartir o cálix, e o mesmo é do pão depois de consagrado, houve alguma diferença? Muito grande e nunca vista, ainda na Teologia mais estreita, Quando tomaram o pão da mão de Cristo, estava o corpo de Cristo todo em todo: tanto que o repartiram entre si, estava todo em qualquer parte. O pão partia-se em partes, e o que estava debaixo do pão partia-se em todos ou em um só todo, porque todo o corpo de Cristo, e o mesmo, estava na parte que coube a cada um. Nem a parte de João - que era o Benjamim - foi maior parte, nem a dos outros menor, porque o todo estava tão inteiramente nas partes como no todo.

Esta foi a razão e proporção admirável por que na substância e acidentes do Sacramento uniu Cristo inseparavelmente o maior mistério sobrenatural com o maior mistério da natureza. É a composição do contínuo, ou da quantidade, em que toda a Filosofia até hoje mais soube pasmar que definir. Porque sendo próprio da quantidade o ser divisível, ou poder-se dividir, de tal modo se compõe de partes qualquer quantidade que, por mais que se divida em infinito, em nenhuma parte se pode dividir tão pequena que essa mesma parte não seja divisível e se possa dividirem partes. E porque a propriedade da quantidade é poder-se sempre dividir, e a propriedade do amor é querer-se sempre dar todo, por isso mediu e proporcionou o Senhor o todo do seu corpo com as partes da quantidade da hóstia, para que assim como as partes se podem sempre dividir, assim o seu corpo se pudesse sempre multiplicar. A hóstia em qualquer parte sempre divisível em partes, e o corpo debaixo de qualquer parte sempre multiplicável em todo. Tanta é a diferença nesta só consideração com que o Sacramento do Altar, que foi a última obra do amor e onipotência divina, se exalta sobre a primeira, que foi o Sacramento do Evan­gelho. O mesmo corpo de Cristo que está naquela hóstia consagrada é o que esteve no sagrado ventre da Virgem Maria. Mas no ventre da Virgem esteve todo o corpo em todo, e parte em parte; porém na hóstia, não só está todo em todo, e todo em qualquer parte, mas em qualquer parte todo, e totalmente. Todo e totalmente, porque assim como qual­quer parte da hóstia se pode dividir em infinito, assim o mesmo corpo do Senhor, quan­tas forem mais e mais as partes divididas, tanto estará mais e mais todo em todas. E todo, e totalmente, por modo ainda mais sublime e admirável, porque ainda que as partes se não dividam, basta somente serem divisíveis em si, para que em todas, por mais que sejam infinitas, esteja todo.

§ IV

As outras diferenças gloriosas de um e outro Sacramento, e a maior e mais estupen­da de todas as diferenças: no ventre da Virgem esteve o Filho de Deus onde nunca entrou pecado, e no Santíssimo Sacramento, quando entra no peito dos homens, não só está em pecadores, mas muitas vezes entre os mesmos pecados. Cristo, Senhor nosso, rio que saiu do lugar das delícias. O que padece Cristo Sacramentado nas consciências de todos os que o recebem impenitentes? O ventre virginal de Maria, paraíso do paraíso.

Infinito seria também o nosso discurso, se houvéssemos de ponderar uma por uma as outras diferenças gloriosas de um a outro Sacramento. Mas, porque nem a brevidade do tempo permite a ponderação, nem a necessidade da matéria se satisfaz com o silêncio, contentar-me-ei somente com as apontar. No ventre da Virgem entrou Cristo uma só vez, no Sacramento entra em nós todos os dias: Haec quotiescumque feceritis[15], No ventre da Virgem esteve só nove meses: no Sacramento há mil e seiscen­tos anos que está conosco, e há de estar até o fim do mundo: Ecce ego vobiscum sum... usque ad consummationem saeculi.[16] No ventre da Virgem esteve em Nazaré nas mon­tanhas, e poucas horas em Belém: no Sacramento está em todas as partes do mundo, sem exceção de lugar: Ubicumque fuerit corpus[17]. No ventre da Virgem crescia o corpo de Cristo, mas até aquele limite somente em que tão pequeno, ou tão pequenino nasceu: no Sacramento não cresce, nem pode crescer, porque está ali na idade, na grandeza e na estatura de varão perfeito: In mensuram aetatis plenitudinis Christi[18]. No ventre da Virgem estava o Filho na Mãe, mas a Mãe não estava no Filho: no Sacramento o mesmo Cristo está em nós, e nós nele: In me manet, et ego in illo[19]. No ventre da Virgem alimentava-se o Filho dos comeres naturais de que se sustentava a Senhora: no Sacra­mento o mesmo Senhor é o nosso alimento e o nosso sustento: Qui manducat meam carnem, et bibit meum sanguinem[20]. No ventre da Virgem esteve Cristo em carne mortal: no Sacramento, e em nós, está em corpo imortal e glorioso: Hic est panis, qui de caelo descendit[21]. No ventre da Virgem recebeu Cristo de sua Mãe a vida tempo­ral: no Sacramento recebemos nós dele a vida eterna: Qui manducat hunc panem, vivet in aeternum[22].

Em cada uma destas diferenças havia muito que dizer, muito que encarecer, muito que admirar; mas, como ainda não chegamos à maior e mais estupenda de todas, nela só me deterei mais um pouco, E que diferença é esta, digna de tão particular admi­ração e reparo? É que no ventre da Virgem esteve o Filho de Deus onde nunca entrou pecado, e no Santíssimo Sacramento, quando entra no peito dos homens, não só está em pecadores, mas, muitas vezes, entre os mesmos pecados. Só quem compreender as delí­cias sobre-humanas que o segundo Adão gozava no Paraíso sempre inocente do grêmio virginal, poderá de algum modo conjeturar, ou desta diferença as distâncias, ou de tal fineza os extremos. Ponhamo-nos no Paraíso Terreal, e reparemos no que não vi reparar até agora. Depois de dizer a Escritura que Deus tinha plantado por sua mão um Paraíso de delícias, no qual pôs o homem: Plantaverat autem Dominus Deus paradisum voluptatis... in quo posuit hominem (Gên. 2, 8) - diz, que do lugar das delícias saía um rio para regar o Paraíso: Et fluvius egrediabatur de loco voluptatis ad irrigandum paradisum (Gên. 2, 10). Logo, se do lugar das delícias saía um rio para regar o Paraíso, segue­se que o paraíso chamado das delícias, não tinha as delícias - ao menos as maiores - em toda a parte, senão em um só lugar, o qual própria e particularmente se chamava o lugar das delícias: de loco voluptatis. Suposta, pois, esta distinção e diferença tão expressa no texto, saibamos agora que lugar das delícias era este, o qual dava o nome a todo o Paraíso, e do qual saía o rio que o regava. S. Pedro Damião, alegorizando o passo, diz que o lugar das delícias do Paraíso da terra é o ventre puríssimo da Virgem Maria, na qual Deus não só depositou, mas acumulou todas as suas delícias, e o prova com outro texto da boca do mesmo Deus: Locum voluptatis uterum Mariae intelligo, in quo cumulavit omnes delicias deliciarum Dominus, de cujus deliciis Spiritus Sanctus admiratorio sermone in Cantico sic eructat: Quae est ista, quae ascendit de deserto deliciis afflu­ens[23]! O paraíso das delícias do homem era o paraíso de Adão, que pecou; mas as delícias das delícias de Deus, e o lugar delas: de loco voluptatis - era o ventre de Maria, em que nunca houve pecado.

Já temos qual é o lugar das delícias, E o rio que dele saía: Fluvius egredieba­tur de loco voluptatis - qual é? Esta segunda dúvida nos obriga a sair da terra ao céu, e de um paraíso a outro paraíso, e de um ventre sacratíssimo a outro mais alto e mais divino. Ouvi ao mesmo Santo: Fluvius iste est Dominus meus Jesus, qui e duobus locis voluptatis egreditur, ex utero Patris, ex utero Virginis: O rio que saía do lugar das delí­cias é o Filho de Deus e de Maria, Cristo Jesus, Senhor e Redentor nosso, o qual não uma só vez, senão duas, saiu do lugar das suas delícias, no paraíso do céu, quando saiu do seio do Pai: ex utero Patris - no paraíso da terra, quando saiu do ventre da Virgem: ex utero Virginis. De sorte que o Verbo Eterno, quando saiu do seio do Pai, saiu do lugar das suas delícias no céu, e quando entrou no ventre da Virgem, entrou no lugar das suas delícias na terra, e a fineza que fez por nós não esteve no entrar, esteve no sair: Fluvius egrediebatur de loco voluptatis. Como na Virgem Maria não havia nem houve nunca pecado, antes a suma perfeição de todas as virtudes, enquanto Cristo esteve no ventre de sua Mãe, ali tinha e gozava todas as suas delícias; tanto assim que, se não fora por agradar e obedecer a seu Pai, nunca dali saíra, como ele mesmo disse pelo profeta: Tu es, qui extraxisti me de ventre matris meae (SI. 21, 10): Vós, Pai meu, sois o que só me pudestes tirar do ventre de minha Mãe, e me tirastes dele quase por força- que isso quer dizer, extraxisti, ou, como treslada Tertuliano: avulsisti. Assim que o maior sacrifício que Cristo fez a seu Eterno Padre nascendo, foi o mesmo nascer, porque foi sair do centro do seu amor, do seu desejo, do seu descanso, das suas delícias.

Destas delícias, que Cristo gozava no ventre santíssimo de sua Mãe, se vê bem a diferença da fineza com que no Santíssimo Sacramento do altar se sujeita a entrar no peito dos homens. Lá estava a fineza no sair, cá está no entrar. O fim por que Cristo se deixou no Sacramento foi para regar e fecundar nossas almas com os influxos de seu corpo e sangue, como rio nascido da fonte de toda a graça, que é a divindade: Et Fuvius egrediebatur ad irrigandum paradisum (Gên. 2, 10). As almas puras e santas, que não só vivem em fé, mas em perfeita caridade, tão raras na corrupção e abusos da vida, que se costuma, essas são as plantas do paraíso, que ele rega e santifica com tanto fruto como gosto. Mas não pára aí. Inde dividitur in quatuor capita (Gên. 2, 10) acrescenta o mesmo Texto: - e dali se divide, como em cruz, para as quatro partes do mundo - onde sucede àquele sagrado pão o que ao do semeador do Evangelho, que um cai nas pedras, onde se seca, outro nas espinhas, onde se afoga, outro nas estradas, onde o pisam, e pouco em terra boa, onde frutifique. Por isso com grande mistério sai e se divide em cruz, porque sai, como diz S. Paulo, para ser outra vez crucificado e afrontado: Rursum crucifigentes sibimetipsis Filium Dei, et ostentui habentes[24].

Isto é o que padece Cristo sacramentado - posto que glorioso e impassível - nas consciências de todos os que o recebem, ou totalmente impenitentes em pecados manifestos, ou com falsa contrição e fingido ou corado arrependimento, que são os que mais ordinariamente se enganam ou querem enganar a si mesmos, mas não enganam a Deus. E nestas almas sem alma - como a de Judas - não duvidaram a dizer Santo Anselmo, S. Pascásio, S. Cipriano e Santo Agostinho que padece mais Cristo no Sacra­mento do que padeceu na cruz. Magis peccant - diz Santo Agostinho - qui tradunt Christum peccatoribus membris, quam qui tradiderunt eum crucifixoribus Judaeis. E a razão é porque os judeus crucificaram a Cristo em um madeiro inocente, e os que o recebem em pecado crucificam-no em si mesmos, como notou o apóstolo: Cruciflgentes sibimetipsis Filium Dei. Aquela cruz, porque era cruz sem pecado, era muito mais leve para Cristo; mas esta, junta com os pecados dos que o crucificam em si mesmos, é muito mais pesada, muito mais cruel, muito mais insuportável. Assim o ponderou o mesmo Cristo na mesma hora em que deu os primeiros passos para a cruz: Ecce appropinquavit hora, et Filius hominis tradetur in manus peccatorum (Mt. 26,45): É chegada a hora em que serei entregue nas mãos dos pecadores. - Dos pecadores, disse, e não dos algozes nem dos tiranos, porque maior horror lhe fazia nas mãos dos que o crucificaram a cir­cunstância dos pecados que a tolerância dos tormentos. Deixo as injúrias e blasfêmias, com que a fé do diviníssimo Sacramento é negada dos hereges; nem falo nas violências e desacatos atrozes das mãos ímpias e sacrílegas com que aquele Sancta Sanctorum da Divindade tem sido tantas vezes profanado, porque, para prova da vantagem que busca­mos, basta a diferença de dizer com pecados ou sem pecado. Assim, como uma alma em pecado é o inferno do inferno, assim o ventre virginal, onde nunca houve pecado, era o paraíso do paraíso. Logo, não só foi maior fineza sujeitar-se Cristo no Sacramento a entrar no peito dos pecadores, mas essa só foi a fineza, porque encerrar-se no ventre da Mãe sempre santíssima, não foi fineza, senão delícia. No Sacramento do altar, adorado, mas ofendido; no Sacramento do ventre da Mãe, ele e o mesmo ventre sempre beatifica­do: Beatus venter qui te portavit.

§ V

Terceira parte do sermão, O Sacramento do Rosário e o Sacramento do Altar, Semelhança entre um e outro sacramento. A presença de Cristo na Eucaristia e na parte mental do Rosário: A sentença de Salomão sobre o curso do sol, figura dos mistérios da vida de Cristo. O curso do sol divino e os devotos do Rosário. Os signos do Zodíaco nos mistérios do Rosário.

Comparado com tanta vantagem o Sacramento do Altar com o Sacramento do Evangelho, resta comparar o Sacramento do Rosário com o Sacramento do Altar, comparação em que a vantagem parece dificultosa. Mas, como é obra em que o Filho de Deus pôs a matéria, e a Mãe de Deus deu a forma, não será impossível. Comecemos pela semelhança, que é o fundamento da comparação, e acabaremos pelas diferenças, donde se poderá coligir a vantagem. É muito parecido o Sacramento do Rosário com o Sacramento do Altar, ambos santíssimos. Em quê? Não em outra proporção - porque não havemos de mudar a idéia - senão na mesma que ponderamos entre o Sacramento do Altar e o Sacramento do Evangelho. Se naquele sagrado mistério está todo Cristo em toda a hóstia, e todo em qualquer parte, no Rosário passa o mesmo, e não invisível, senão visivelmente, O Rosário, como todos sabem, consta de duas partes: uma mental e outra vocal; na mental, que são os mistérios, em qualquer parte está todo Cristo; na vocal, que são as orações, em qualquer parte está todo o Rosário.

Estar todo Cristo em qualquer parte do Rosário mental, é coisa tão manifesta que a vêem os olhos. O que medita o Rosário na parte mental são os mistérios da Vida, Morte, e Ressurreição de Cristo; e nenhum mistério há de todos quinze em que Cristo não esteja todo: todo na substância, posto que dividido e diverso nos acidentes. Dividi em partes os tempos, os lugares e os mesmos períodos da vida de Cristo, e não me dareis parte alguma em que não esteja todo. Todo no mistério da Encarnação - e só ele todo, porque desde o primeiro instante foi inteiro e perfeito homem, o que não acontece aos demais -; todo na Visitação, santificando o Batista; todo no Presépio, aclamado de an­jos e adorado de reis, posto que nascido entre animais; todo uma vez no Templo, presen­tado a Deus nos braços de Simeão, e todo outra vez, depois de perdido, achado entre os doutores. E porque nesta vida, ainda que seja do mesmo Deus, não há gostos sem pesa­res, se destes mistérios, que foram os Gozosos, passarmos aos Dolorosos, todo no Horto suando sangue, todo no Pretório atado à coluna, todo coroado de espinhos, todo com a cruz às costas, e todo pregado e morto nela. Estes são os dois acidentes de que se com­põe toda a vida humana, que por isso S. Paulo os dividiu somente em gozosos e doloro­sos: Gaudere cum gaudentibus, flere cum flentibus[25]. Mas, porque o mesmo Cristo com sua morte nos mereceu outra segunda vida, que é a imortal, também esta tem outros aciden­tes, que são os Gloriosos, de que se compõe a terceira parte do Rosário, e em todos e qualquer parte deles temos igualmente a Cristo todo. Todo ressuscitado, todo subindo ao céu, todo mandando de lá o Espírito Santo, todo recebendo em triunfo a sua gloriosíssima Mãe, e todo com toda a Santíssima Trindade coroando-a em trono de suprema majestade por Rainha do céu e da terra e Senhora universal de homens e anjos.

Ouçamos agora a Salomão que, no curso e círculo que faz o sol, reconheceu todos estes mistérios e sua variedade, como nós também fazemos na volta que imos dando ao círculo do Rosário: Oritur sol et occidit, et ad locum suum revertitur; ibique renascens, gyrat per meridiem (Ecl. 1, 5 s): Nasce o sol no oriente e morre no ocidente; mas, depois de morto e estar debaixo da terra, torna outra vez a renascer e continuar seu curso, - E que sol é este senão aquele primeiro planeta, fonte de toda a luz: Quae illuminat omnem hominem venientem in hunc mundum[26] - o qual, debaixo dos acidentes do sol que vemos, consagrou, como em um sacramento natural, o curso, os movimentos e os mistérios de sua primeira e segunda vida, já nascido, já morto, já ressuscitado, que são as três partes ou terços de que se compõe o Rosário: Oritur sol, a primeira; et occidit, a segunda; et ad locum suum revertitur, ibique renascens, a terceira[27]. Não é pensamento meu, senão comento e aplicação de Olimpiodoro: Christus velut sol ortus est in nativitate, occidit in morte, rursus ortus, et velut renatus est in resurrectione[28]. Nos mistérios da Encarnação e nascimento esteve Cristo como sol coberto de nuvens, porque a nuvem da humanidade encobria os raios da divindade; nos mistérios da Paixão e da Cruz esteve como sol eclipsado com as sombras funestas da morte e total escurida­de da sepultura; nos mistérios da Ressurreição e da subida ao céu esteve como sol claro e resplandecente no meio-dia, desfeitas totalmente as nuvens, e sumidas e aniquiladas as sombras; mas, o Rosário e seus devotos - como a milagrosa flor do heliotrópio - que fazem? Vão seguindo sempre e acompanhando ao divino Sol em todos estes passos, e revestidos sempre - que é mais - dos mesmos acidentes. Nos Gozosos gozando-se, nos Dolorosos doendo-se, nos Gloriosos gloriando-se, e semelhantes em tudo a quem em todos se lhes deu todo.

Duvidam aqui e disputam os padres e expositores, se fala Salomão neste texto do círculo que faz o sol cada dia saindo e tornando ao Oriente, ou do curso que faz cada ano dentro dos trópicos, visitando e detendo-se em todos os signos do zodíaco. Os dois Gregórios, Taumaturgo e Niceno, entendem o lugar do círculo de cada dia; S. Jerônimo e Teofilato, do curso de cada ano, e uma e outra sentença têm por si grandes matemáticos. Outros autores, porém, conciliam e abraçam ambos estes sentidos do tex­to, entendendo-se de um e outro curso do sol. E o mesmo fazem melhor, e com mais certeza que todos, os devotos do Rosário. Os devotos do Rosário? Pois como? Que tem que ver o Rosário com o sol, ou no círculo de cada dia, ou no curso de cada ano? Muito, e por modo muito admirável. Não dissemos que debaixo dos acidentes deste sol natural e visível representou e sacramentou Cristo todo o curso, movimentos e mistérios de sua vida mortal e gloriosa? Sim. Pois, assim como o zodíaco do sol natural se compõe de doze signos, assim o Sol divino tem outro zodíaco mais alto e mais dilatado, que se compõe e reparte em quinze sigilos, que são os quinze mistérios do Rosário. E assim como o sol corre e visita o seu zodíaco nos doze meses do ano, assim Cristo correu e aperfeiçoou o seu dando luz e calor ao mundo, não menos que em espaço de cinqüenta e oito anos, que tantos se contaram desde o dia de sua Encarnação, que foi o primeiro mistério, até o dia da Coroação de sua gloriosa Mãe, que foi o último. E os devotos do Rosário, com maravilha que se não vê no céu, conciliam, como dizia, todo este curso do divino Sol, e todos os passos e espaços deste tão dilatado zodíaco dentro do círculo natural de um só dia, porque o círculo do Rosário, que cada dia rezam, os inclui, abraça e compreende a todos. E basta isto? Não basta. Porque ainda lhe falta a maior proprieda­de, que é estar Cristo neste seu zodíaco, não só todo em todos os signos, que são todos os quinze mistérios, senão todo em qualquer parte de cada um.

Os signos do zodíaco no nosso entendimento são umas apreensões de figu­ras várias, que só consideramos mentalmente; e no céu são certo ajuntamento de estre­las, de que se compõem os mesmos signos, e por isso se chamam constelações. E as estrelas, que são? São uns espelhos do sol, em que o sol, não em parte, senão todo, nem outro senão o mesmo, de tal sorte se divide e multiplica, que em toda a constelação está todo, e em qualquer parte ou estrela dela todo, e todo em cada uma alumia, e todo em cada uma influi, obrando diferentes efeitos no mundo, segundo a diversa natureza de suas próprias qualidades. Tais são no zodíaco do Rosário os mistérios de que se compõe. Considera-os mentalmente o nosso entendimento, apreendendo e representando ao mesmo Cristo em diversos tempos, lugares, idades e ações, como em diferentes figuras, tão várias como são as de sua infância, paixão e glória; e não só está Cristo todo em todos os mistérios, senão todo em cada um, e todo em cada parte dele, e todo alumiando, e todo influindo, porque, segundo os diversos motivos de gosto, de dor e de glória, primeiro, com os raios de sua luz, alumia os entendimentos, e depois, com a eficácia de suas influências, move e afeiçoa as vontades. Assim o sol todo em todo, e todo em qualquer parte no seu zodíaco; assim Cristo todo em todo, e todo em qualquer parte no Sacramen­to do Altar; e assim todo em todo, e todo em qualquer parte no Sacramento do Rosário.

§ VI

Presença de Cristo na parte vocal do Rosário. Qual é a razão por que a Hóstia e o Cálix não compõem dois sacramentos, senão um só? Os dois sonhos de el-rei Faraó e as duas orações de que se compõe o Rosário. Como pode ser que o Padre-nosso e a Ave-Maria sejam a mesma oração, e o Rosário, nestas duas orações, também um só e o mesmo? A oração do centurião romano e a oração dos que por ele intercederam.

E se na parte mental do Rosário, que são os mistérios, em qualquer parte está todo Cristo, vejamos agora como na parte vocal, que são as orações, também em qual­quer parte está todo o Rosário. Primeiramente, assim como no Sacramento do Altar, da Hóstia, em que está o corpo, e do Cálix, em que está o sangue de Cristo, se compõe um só Sacramento, assim no Rosário vocal, da oração do Padre-nosso, em que oramos a Deus, e da oração da Ave-Maria, em que invocamos a sua Santíssima Mãe, se compõe um só Rosário, e pela mesma razão. Qual é a razão por que a Hóstia e o Cálix, não .compõem dois sacramentos, senão um só? Porque ainda que nos acidentes, e no que mostram, são diversos, na substância e no que significam, são o mesmo. Quando el-rei Faraó do Egito teve em sonhos aquelas duas visões tão sabidas, uma das vacas, primeiro grossas e depois macilentas, outra das espigas, primeiro gradas e depois falidas, chama­do José para interpretar estas visões ou sonhos, que verdadeiramente foram proféticos, respondeu que o sonho do rei era um só: Somnium regi s unum est (Gên. 41, 25). Mas, se os sonhos tinham sido dois, e as coisas ou figuras que o rei vira em cada um deles eram tão diversas, como diz José que eram um só sonho? Porque ainda que eram dois nos acidentes, era um só na substância, ainda que eram dois no que se vira, era um só no que significavam. Do mesmo modo no Sacramento, e também no Rosário. No Sacramento o que se vê na Hóstia e no Cálix, são acidentes e sinais diversos: mas, o que esses aciden­tes cobrem e esses sinais significam são o mesmo corpo e sangue de Cristo na Hóstia, e o mesmo sangue e corpo de Cristo no Cálix; e, por isso não dois, senão um só e o mesmo Sacramento. No Rosário o que ouvimos em uma oração é o Padre-nosso, o que ouvimos na outra é a Ave-Maria, e, tomadas pelo que soam, são duas orações diferentes, mas, entendidas pelo que significam, são uma só e a mesma. E assim como na Hóstia ex vi verborum está o corpo e não está o sangue, e no Cálix ex vi verborum está o sangue e não está o corpo, mas, o sangue leva consigo o corpo, e o corpo o sangue, assim na primeira oração do Rosário ex vi verborum está o Padre-nosso, e na segunda ex vi verbo rum está a Ave-Maria, mas, o Padre-nosso também leva consigo a Ave-Maria, e a Ave-Maria o Padre-nosso.

Se assim é, bem dito está. Mas parece que não é assim, e com evidência. No Padre-nosso não há uma palavra que se pareça com a Ave-Maria, na Ave-Maria não há uma palavra que se pareça com o Padre-nosso; logo, como pode ser que o Padre-nosso e a Ave-Maria sejam a mesma oração, e o Rosário nestas duas orações também um só e o mesmo? Respondo que sim. Não ex vi verborum, ou por força das palavras, como já disse, mas por força e por razão do que nelas se pede. O orar propriamente é pedir. E quando o que se pede é o mesmo, ainda que as palavras sejam diversas, a oração é a mesma. No Padre-nosso fazemos sete petições a Deus; na Ave-Maria, se bem advertis, não pedimos à Senhora coisa alguma em particular, senão somente em comum, que rogue por nós: Ora pro nobis peccatoribus: e como a Senhora não pode pedir ou querer para nós outra coisa nem melhor, nem mais necessária, nem mais conveniente, nem mais útil, senão o mesmo que Cristo nos ensinou que pedíssemos a Deus, o que só vimos a pedir na Ave-Maria é, que a Mãe do mesmo Deus interceda com seu Filho para que nos conceda o mesmo que nós lhe pedimos. Logo, o mesmo que se pede no Padre-nosso é também o que se pede na Ave-Maria, com que uma e outra oração vêm a ser a mesma, e nem a intercessão que se acrescenta na Ave-Maria, nem as diversas palavras de que ela consta bastam para que a oração seja diferente, porque quando quem pede e quem intercede procuram e solicitam a mesma coisa, posto que o façam por diferentes termos, sempre a petição é a mesma.

Não pode haver melhor prova nem exemplo mais próprio desta verdade, que o sucesso do centurião. Como o centurião fosse gentio e romano, e não hebreu como Cristo, para alcançar dele a saúde do moço, que alguns querem fosse seu filho, tomou por intercessores os sacerdotes da cidade em que vivia e outros seus amigos, também hebreus, confiando que pelo parentesco nacional que tinham com o Senhor, o obrigariam mais facilmente a lhe conceder o que tanto desejava. E esta é a mesma razão por que nós na Ave-Maria, para que a Senhora interceda eficaz e poderosamente por nós diante de Deus, o fundamos também no parentesco tão estreito que tem com ele, dizendo: Santa Maria, Mãe de Deus, roga por nós. - Mas, ouçamos as palavras com que o centurião orou a Cristo, e com que os intercessores fizeram a mesma petição. O centurião disse: Domine, non sum dignus, ut intres sub tectum meum: sed tantum dic verbo, et sanabitur puer meus (Mt. 8, 8): Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha casa; mas, basta que, deste mesmo lugar, com uma só palavra vossa, deis saúde ao meu enfermo. - E os intercessores, que disseram? At illi cum venissent ad Jesum, rogabant eum sollicite, dicentes ei, Quia dignus est ut hoc illi praestes: diligit enim gentem nostram, et synagogam ipse aedificavi tnobis (Le. 7,4 s). Rogaram ao Senhor com grande instância concedesse ao centurião o que lhe pedia, alegando que era muito digno daquele favor, porquanto, sendo romano, amava muito a gente hebréia, e, sendo gentio, lhes tinha edificado uma sinagoga, que era o mesmo que uma igreja. - Pode haver palavras mais diversas em tudo que estas dos intercessores e aquelas do centurião? Não pode. E contudo a petição do centurião e a dos que por ele intercediam era a mesma petição, porque ele para si e os outros para ele, todos pediam a mesma coisa. A petição dos filhos do Zebedeu e a da mãe não era a mesma? A mesma era, porque assim lho disse Cristo a eles: Nescitis quid petatis[29], Pois isso é o que nós fazemos sem diferença, tanto no Padre-nosso como na Ave-Maria. No Padre-nosso pedimos como filhos dizendo: Pater noster; na Ave­maria intercede a Senhora como Mãe, e por isso lhe dizemos: Mater Dei, ora pro nobis; mas, assim nós, como a soberana Intercessora, todos fazemos uma só oração e a mesma, porque nós pedimos à Senhora que peça, e a Senhora pede a Deus o que nós pedimos. E, finalmente, desta oração dividida em duas partes se compõe um só e o mesmo Rosário, como da Hóstia e do Cálix no altar se compõe um só e o mesmo Sacramento.

§ VII

Última propriedade da semelhança. Davi e a oração de cada dia, Distinção entre Verbum e Sermo. De qualquer parte que tomemos o Padre-nosso, e entrarmos nele como um artificioso labirinto da idéia e mão divina, acharemos que todas as sete petições se contêm em cada uma, e cada uma em todas sete. As sete petições do Padre-nosso e os sete preceitos da segunda tábua da lei. A milagrosa virtude de toda a Ave-Maria e de cada uma de suas partes. Os milagrosos resplendores da humilde donzela de Hungria. Os maravilhosos efeitos das partes mínimas da Ave-Maria nas vidas de Tomás de Kempis, de Santa Benvenuta, de Santa Gertrudes, etc. A Urgem sacramentada nas palavras da Ave-Maria. O pensamento notável do rico avarento. As relíquias da Virgem no Sacramento do Altar.

Só resta, para última propriedade da semelhança, que assim a oração do Padre­nosso como a Ave-Maria, esteja também cada uma toda em toda, e toda em qualquer parte, o que não parece dificultoso de persuadir, sendo uma e outra oração palavras divinas. Porque, se as palavras da consagração, por serem de Cristo, têm virtude para fazer que seu corpo esteja todo em todo, e todo em qualquer parte, as outras palavras divinas, por que não terão igual eficácia para obrar em si mesmas a mesma maravilha? Davi, falando da oração de cada dia, qual é a do Rosário: In quacumque die invocavero te, ecce cognovi quoniam Deus meus es[30] - diz assim: In Deo laudabo verbuni, in Domino laudabo sermonem[31]. Quer dizer: que em Deus tanto louva a palavra como as palavras, tanto as poucas como as muitas, tanto as simples como as compostas; porque essa é a diferença de verbum a sermo. É verdade que na língua grega, em que S. João escreveu o seu Evangelho, a mesma palavra com que disse: In principio erat Verbum[32], igualmente significa verbum e sermo, e assim o interpretou o maior teólogo da Igreja Grega, S. Gregório Nazianzeno, dizendo:

Editus ex illo Sermo, qui temporis expers

Effigiem in sese Patris exprimit undique,

Et illi par est natura[33].

Porém, os teólogos latinos, posto que não neguem nem possam negar esta proprie­dade, atribuem com maior distinção o Verbum ao Filho de Deus antes da Encarnação, e o Sermo ao mesmo Filho depois de encarnado, porque Sermo rigorosamente diz compo­sição, a qual não houve senão depois da Encarnação, no composto inefável de Cristo. Suposta, pois, esta distinção de verbum a sermo, por que diz Davi falando da oração de cada dia, que tanto louva a Deus pela palavra como pelas palavras, tanto pelas poucas como pelas muitas, tanto pelas simples como pelas compostas: In Deo laudabo verbum, in Domino laudabo sermonem? Porque nas orações compostas por Deus, tanto se con­tém nas muitas palavras como nas poucas, tanto em todas como em algumas, tanto em toda a oração como em qualquer parte dela.

Vede-o na oração do Padre-nosso, composta de sete petições, nas quais to­das sete se contêm em cada uma e cada uma contém todas sete. Seja exemplo a primeira. Na primeira petição: Sanctificetur nomen tuum[34], pedimos a Deus, como entendem Santo Agostinho, S. Jerônimo, S. Crisóstomo, S. Cipriano, e todos os Padres, que seja Deus santificado em nós. E se Deus é santificado em mim, já o reino de Deus veio a mim: Adveniat regnum tuum[35], porque regnum Dei intra vos est[36]; se Deus é santificado em mim, já eu faço a vontade de Deus na terra como no céu: Qui facit voluntatem Patris mei, qui in caelis est[37]; se Deus é santificado em mim, já lhe posso pedir o pão nosso como meu, porque é pão dos filhos: Panis filiorum, non mittendus canibus[38]; se Deus é santi­ficado em mim, eu perdôo e Deus me perdoa: Dimittite, et dimittemini[39]; se Deus é santificado em mim, a tentação não me vence a mim, senão eu a ela: Sed faciet etiam cum tentatione proventum[40]; finalmente, se Deus é santificado em mim, nenhum mal me pode acontecer, porque de todo estou livre: Non accedet ad te malum[41]. E se dermos agora outra voltado fim do Padre-nosso para o princípio, o mesmo corre por outro modo. Se estou livre de todo o mal, não posso cair em tentação; se não posso cair em tentação, não posso deixar de perdoar e ser perdoado; se perdôo e sou perdoado, não se me pode negar o pão do céu; se converto em substância o pão do céu, assim como a vontade de Deus se faz no céu, assim a faço eu na terra; se faço a vontade de Deus na terra, já o reino de Deus me pertence a mim, e se a mim me pertence o reino de Deus, também Deus está santificado em mim: Sanctificetur nomen tuum[42]. De sorte que, de qualquer parte que tomemos o Padre-nosso e entrarmos nele como em um artificioso labirinto da idéia e mão divina, acharemos que todas as sete petições se contêm em cada uma, e cada uma em todas sete: todo em todo e todo em qualquer parte.

Dos sete preceitos da segunda tábua, notou e ensinou S. Paulo que todos se contêm em um só e um só em todos: Nam: Non adulterabis: Non occides: Non furabe­ris: Non falsum testimonium dices: Non concupisces: et si quod est aliud mandatum, in hoc verbo instauratur: Diliges proximum tuum sicut teipsum[43]. E a razão é porque a mesma lei que manda em sete preceitos não matar, não adulterar, não roubar, etc., man­da também em um só preceito que cada um ame a seu próximo como a si mesmo. E quem guardar este só preceito não pode deixar de guardar todos sete, porque ele se inclui em todos e todos nele, e por isso não é oitavo preceito, senão os mesmos sete encerrados em um só. Do mesmo modo as sete petições ao Padre-nosso. Todas pede quem pede uma, se a pede com verdadeiro afeto; e quem assim pede e alcança uma, pede e alcança todas, porque de tal sorte se inclui cada uma em todas e todas em cada uma, que não pode estar a oração toda em toda, sem que igualmente esteja em qualquer parte.

A mesma maravilha encerra também em si a Ave-Maria. E porque a Virgem Senhora nossa tomou por sua conta provar este ponto, são as provas tão milagrosas como suas. Quão milagrosa seja a virtude de toda a Ave-Maria, ou da Ave-Maria toda, não tem necessidade de repetição, pois todos sabem as muitas e grandiosas mercês que a soberana Rainha dos anjos tem feito, ainda àqueles devotos seus tãos escassos, que uma só Ave-Maria lhe rezavam todos os dias. Mas, que essa virtude da Ave-Maria toda esteja toda em qualquer parte da mesma Ave-Maria, porque parece coisa mais dificulto­sa por isso é a que está mais provada. Havia em Hungria - diz S. Pedro Celestino - uma donzela muito devota da Virgem, Senhora nossa, mas tão rude e de tão fraca memória, que nunca pôde aprender mais que as primeiras três cláusulas da Ave-Maria: Ave-Ma­ria, cheia de graça, o Senhor é contigo. - Isto só repetia muitas vezes, porém com tal espírito de devoção e com tamanha luz do céu, que as palavras se lhe convertiam em resplendores, de que todos lhe viam cercado e alumiado o rosto em qualquer lugar onde rezava. Admirado de tão manifesto milagre o bispo, e desejoso de que a santa donzela se adiantasse em maior perfeição, fez grandes diligências para que ao menos aprendesse toda a Ave-Maria; e assim se conseguiu com grande trabalho. Mas, qual foi o sucesso? Caso prodigioso! Tanto que rezou toda a Ave-Maria, nunca mais lhe resplandeceu o rosto. Pois, se aquela só parte da Ave-Maria era causa de tão milagrosos resplendores, a Ave-Maria toda por que não causava ou maiores ou ao menos os mesmos efeitos? Por­ventura na mesma Ave-Maria tem maior virtude a parte que o todo? Não. Antes quis mostrar Deus que se é grande virtude a que tem no todo, não é menor a que tem em qualquer parte. O bispo imaginou que se aquela devota rezasse toda a Ave-Maria rece­beria maiores favores do céu do que rezando numa parte somente; e este pensamento quis emendar Deus e sua Santíssima Mãe, fazendo cessar o milagre, para que entendes­se ele e todos, que na Ave-Maria, como no divino Sacramento, não só está o todo em todo, senão todo em qualquer parte: Tantum esse sub fragmento, quantum toto tegitur. Assim o mostrou o efeito, porque, tornando a mandar o bispo que rezasse a devota como dantes rezava, tornou a resplandecer como dantes resplandecia.

Não parou aqui a Senhora na prova e confirmação desta maravilhosa verda­de, e quis que soubéssemos, com a mesma evidência, que não há parte alguma na Ave­Maria, ou grande, ou pequena, ou menor ou mínima, em que a Ave-Maria não esteja toda. Mas, como faremos nós esta demonstração? Vamos partindo a mesma Ave-Maria sempre em partes menores, e comecemos pelo meio ou ametade dela. O venerável To­más de Kempis, acometido fortemente pelo demônio, que o queria afogar, valeu-se da Ave-Maria, dizendo: Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo. Benta és tu entre as mulheres, e bento é o fruto do teu ventre. - Mas, o demônio era tão rebelde, que não só resistiu à primeira e segunda cláusula, senão também às duas seguintes. Só faltava da última o nome de Jesus; e quando Tomás chegou a o pronunciar, aqui perdeu de todo as forças o inimigo, e, fugindo, desapareceu. Isto obrou meia Ave-Maria. Vamos à outra parte menor: Santa Benevenuta rogava sempre à Virgem Maria, de quem era devotíssima, lhe quisesse mostrar seu bendito Filho, não depois deste desterro, como todos pedi­mos, mas enquanto gemia e suspirava nele. Um dia depois em que mais cresceram estes afetos, veio pedir um menino à Santa que lhe ensinasse a rezar a Ave-Maria. Era ele de estranha beleza, e como fossem rezando ambos: - Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo. Benta és tu entre as mulheres - quando chegaram àquelas palavras: - Bento é o fruto do teu ventre. Eu sou esse - disse o Menino. - E, abraçando a santa, a deixou cheia de tanta consolação e saudades, quais merecia tal visita. Mas, ainda esta parte da Ave-Maria foi grande. Partamos mais. Santa Gertrudes, estando muito enferma, não podia rezar o Rosário, e só pronunciava as primeiras palavras da Ave-Maria: - Ave­Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo. - O demais supria com lágrimas, as quais, porém, enxugou e pagou mui bem aos mesmos olhos o soberano objeto delas. Apare­ceu-lhe a Rainha dos Anjos com toda a majestade que tem no céu, vestida de glória, e a bordadura das roupas toda era recamada daquelas mesmas palavras, que só podia rezar, para que Gertrudes as lesse mais ricamente gravadas que nas estrelas, e para que enten­desse que na estimação da Mãe de Deus não tinha menos valor aquela pequena parte da Ave-Maria que toda. E esta parte tão pequena poder-se-á ainda partir? Ainda. Entrou na Ordem de Cister um velho, o qual tinha estudado tão pouco em sua vida que não sabia o Padre-nosso nem a Ave-Maria. Ensinaram-no na Religião, mas, em todo o ano de novi­ciado somente chegou a saber dizer: - Ave-Maria, cheia de graça - sem poder jamais passar adiante. Estes eram os seus salmos, quando os monges estavam no coro, e, quan­do não estavam, também, porque tendo tão pouca memória para aprender, era tanta a memória que tinha na Virgem Santíssima, que em todo o tempo e lugar se não esquecia de a saudar e louvar com o que sabia e podia, que não era pouco, pois era tudo. Morreu, enfim, o bom velho, e para eterna memória de quão aceita tinha sido à Senhora aquela pequena parte da Ave-Maria, nasceu da sua sepultura uma árvore, em cujas folhas esta­va escrito com letras de ouro: Ave-Maria, cheia de graça. - Já aqui parece que pudéra­mos parar, mas como aquelas folhas se podiam partir, partamo-las nós também, e che­guemos até à última e mínima parte da Ave-Maria, que é Ave-Maria somente. Havia uma devota mulher, devota, mas ilusa, como muitas vezes acontece. Transfigurava-se o demônio em anjo de luz, aparecia-lhe em diferentes visões, e revelava-lhe altíssimos, com que ela tanto se tinha por mais santa, quanto ele a levava mais perdida. Pediu-lhe uma vez, tendo-o por verdadeiro anjo, que lhe quisesse mostrar uma imagem da Vir­gem, Senhora nossa, que a representasse ao vivo, porque nenhuma das que via satisfaziam ao conceito que tinha de sua extremada formosura. Fê-lo assim o demônio, como tão grande pintor. E que sucedeu? Vendo a simples mulher a imagem, que era formosíssima, prostra-se de joelhos diante dela, começa a saudar a Senhora com a Ave-Maria, e, tanto que pronunciou estas duas palavras somente, no mesmo ponto a imagem se desfez em fumo, o anjo se converteu em um demônio feiíssimo, as visões e revelações mostraram que eram engano, e a mulher, sobretudo, se conheceu a si mesma, e deu as graças Mãe de misericórdia. Tanto pode só aquela parte mínima de uma Ave-Maria!

Assim que não há parte, ou maior ou menor da Ave-Maria, em que, para favor dos que a rezam, não esteja toda, Donde eu, venho a inferir, que assim como Cristo, partindo-se deste mundo, nos deixou seu corpo no Sacramento, assim a Senhora, subindo ao céu, se deixou como sacramentada conosco na Ave-Maria; e por isso toda a sua assistência em toda, e toda em qualquer parte. Sentença é muito comum dos teólo­gos, que no Santíssimo Sacramento do altar se adoram relíquias da Virgem Maria, e que estas são aquelas mesmas partes de carne e sangue que o Filho de Deus encarnado recebeu de suas puríssimas entranhas e as conservou sempre em honra e reverência sua. E assim como aquelas relíquias estão todas em todo, e todas em qualquer parte do Sa­cramento, assim estas - que o são do seu amor - estão todas em toda a Ave-Maria, e todas em qualquer parte dela com o mesmo privilégio indivisível, que é próprio das relíquias, cujas almas estão no céu. Pensamento notável foi o do rico avarento, em pedir que Lázaro o socorresse só com um dedo ou com a parte extrema dele: Ut intingat extremum digiti sui in aquam[44], Muitos dizem que até nisto se mostrou avarento; mas não foi avareza, senão veneração e respeito e um reconhecimento certo do privilégio que Lázaro já gozava como santo. Os santos depois da morte tanta virtude têm em seus

corpos todos e inteiros, como em qualquer parte deles; e como o avarento viu a Lázaro no seio de Abraão entre os santos, entendeu que tanto o podia socorrer todo Lázaro 'como qualquer parte dele, e por isso pediu só a parte mínima de um dedo. É o que disse em semelhante caso Teodoreto, dando a razão por que muitas cidades repartiram entre si o corpo de um mártir e o tomaram por padroeiro, entendendo - como na verdade era - que tanta virtude tinha o santo em qualquer parte ou relíquia de seu corpo, por mínimo que fosse, como em todo: Quia tenues, ac tantillae reliquiae toti, nullasque in partes dissecto parem habent virtutem[45]. E se esta prerrogativa tão maravilhosa se experimen­ta nas relíquias dos santos, quanto mais nas da Santa dos Santos!

Nem obsta que as relíquias, que a Senhora tem no Sacramento sejam da mesma carne e sangue de Cristo, e as que nos deixou na Ave-Maria sejam somente palavras, porque também as do Padre-nosso são palavras, e o mesmo Cristo, falando delas, as equipara não menos que à sua carne e sangue no Sacramento. Assim como Cristo diz da sua carne e sangue: In me manet, et ego in illo[46], assim diz das suas palavras: Si manseritis in me, et verba mea in vobis manserint[47]. E que palavras são estas? São as palavras do Padre-Nosso, diz Santo Agostinho, e o provo das que logo se seguem, com que o mesmo Senhor concluiu a sua sentença: Si manseritis in me, et verba mea in vobis manserint, quodcumque volueritis petetis, et fiet vobis (Jo. 15, 7): Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras, que vos ensinei na oração do Padre-nosso, estiverem em vós, tudo quanto quiserdes e pedirdes por elas vos será concedido. -Ad verba ejus pertinet oratio, quam nos docuit - diz o santo -ab hujus verbis, et sensibus non recedamus in petitionibus nostri, et quidquid petimus, fiet nobis[48]. E se as palavras do Padre-Nosso e Ave-Maria - que são as partes de que se compõe o Rosário vocal - são tão parecidas à carne e sangue de Cristo no Sacramento, e às relíquias da mesma carne e sangue, que a Senhora tem no mesmo Sacramento, que muito é que na prerroga­tiva de estarem todas em todas, e todas em qualquer parte, se pareça também o Sacra­mento do Rosário com o Sacramento do Altar?

§ VIII

Vantagens do Rosário sobre o Sacramento. A notável diferença com que Cristo nesta vida aceitava a mesa dos homens, e agora, no Sacramento, nos admite à sua. No Sacramento está Cristo como há de vir, como juiz; no Rosário está como veio, como médico. Muito mais damos a Cristo no Rosário do que ele nos pediu no Sacramento. De que maneira nos vê Cristo no Sacramento, e de que maneira o vemos nós nos mistérios do Rosário? O Sacramento é o Mistério da Fé, e o Rosário é a fé, a confissão e o louvor de todos os mistérios que a fé professa e ensina. Outras vantagens do Rosário sobre o Sacramento. Hermano Spruit e o velho soldado do Hospital de Anvers. Conclusão: louvemos e chamemos bem-aventurada a Virgem Maria no Sacramento do Evangelho, no Sacramento do Altar e no Sacramento do Rosário.

Até aqui as semelhanças, Para declarar as vantagens, seria necessário outro mais largo discurso. Mas pois não temos lugar de discorrer nelas, como convinha, cor­ramos por elas. Supondo pois - como todos devem entender - que as vantagens só podem ser em respeito de nós e das nossas conveniências, primeiramente Cristo no Sacramento mors est malis, vita bonis: é morte para os maus e vida para os bons; - porém, no Rosário, para os bons, para os maus, para todos é vida, Os bons pela devoção do Rosário se fazem santos, e os maus, por grandes pecadores que sejam, rezando e meditando o Rosário se convertem e se emendam e ficam justos. Digam-nos os ladrões, os homicidas, os adúlteros, os blasfemos, os sacrílegos, e até os hereges sem-número, reduzidos à fé e reconciliados à graça por meio do Rosário. Notável diferença é a com que Cristo nesta vida aceitava a mesa dos homens, e agora nos admite à sua. Pergunta­ram uma vez os escribas e fariseus aos discípulos de Cristo, por que razão seu Mestre professando tanta santidade, comia com publicanos e pecadores? E respondeu o Senhor aquela divina e discretíssima sentença: Non est opus valentibus medicus, sed male habentibus (Mt. 9, 12): Dizei-lhes que os enfermos são os que hão mister o médico, e não os sãos, - O Sacramento também se chama pharmacum immortalitatis: medicamento da imortalidade; mas é medicamento que, se imortaliza os sãos, mata os enfermos. Pois, se Cristo antes de sacramentado os sarava, como agora no Sacramento, e com o mesmo Sacramento, os mata? A razão desta diferença, e da que tem o Sacramento com o Rosá­rio, deu S. Paulo naquelas palavras: Judicium sibi manducar et bibit[49]. No Sacramento está Cristo como há de vir, no Rosário está como veio; no Sacramento está como juiz, no Rosário está como Médico. Por isso no Sacramento, como juiz, dá vida aos bons e morte aos maus; e no Rosário, como médico, livra da morte aos maus, e conserva a vida aos bons. Este foi o altíssimo conselho com que todos os mistérios, de que a Virgem Senhora nossa compôs o seu Rosário, foram da primeira vinda de seu Filho, e nenhum da segunda. Os mistérios do Rosário só compreendem o que Cristo obrou, desde que saiu do céu e do seio do Padre, até que se assentou à sua destra. E que faz o mesmo Senhor à destra do Padre, donde há de vir a julgar, enquanto não vem? Purgationem peccatorum faciens, sedet ad deveram majestatis in excelsis[50], diz S. Paulo. Tudo o

que faz Cristo à destra do Padre aplicando a eficácia de seus merecimentos e mistérios - que são os que se contêm neste extrato de rosas - é purgar como protomédico divino a todos os pecadores e purificá-los de seus vícios, por mais enormes que sejam. Ah! Judas, que se depois de haver vendido a seu Mestre te lançaras aos pés da cruz, dizendo: dimitte nobis, como é certo que o benigníssimo Redentor, o qual, pelos mesmos que o pregaram nela, disse: Pater, dimitte illis[51], te perdoaria também a ti? E se, não tendo rosto para aparecer em sua presença, recorreras à de sua Mãe, dizendo: Ora pro nobis peccatoribus, igualmente não há dúvida que alcançarias perdão, e te restituirias à sua graça. E se isto obrariam uma só cláusula do Padre-nosso e outra da Ave-Maria no maior pecador, que fará em todos os outros o Rosário inteiro?

A esta vantagem de conveniências - que já lhe não chamo só nossas - se acrescenta a segunda, não menos certa. E qual é? Que muito mais damos a Cristo no Rosário do que ele nos pediu no Sacramento. Quando Cristo se despediu de nós, e nos deixou no Sacramento a si mesmo, o que somente nos pediu foi a memória: Haec quo­tiescumque feceritis, in mei memoriam facietis[52], Grande coisa deve de ser a memória do homem, pois, empenhando-se todo Deus na dádiva, só nos pediu a memória por desempenho. Dimas pediu a Cristo a memória e deu-lhe o Paraíso; Cristo pediu-nos a nós a memória e damos-lhe o Rosário; mas, é muito maior memória a que lhe damos que a que nos pediu. E se não, saibamos que memória foi a que Cristo nos pediu e desejou de nós no Sacramento. S. Paulo o disse expressamente: Hoc facite in meam commemoratio­nem. Quotiescumque enim manducabitis panem hune, et calicem bibetis, mortem Do­mini anuntiabitis[53]. De sorte que a memória que Cristo desejou de nós no Sacramento foi só a memória de sua morte. E a memória que lhe damos no Rosário qual é? É a  

memória da morte e mais da vida, e não só memória da morte e da vida, senão da vida, da morte e da ressurreição e glória do mesmo Cristo. Logo, muito maior memória é a que damos a Cristo no Rosário, do que ele nos pediu no Sacramento. No Sacramento pediu-nos a memória de um só mistério, no Rosário damos-lhe a de todos. Tanto vai de memória a memória; mas, ainda não está ponderada. Posto que a morte de Cristo fosse mistério de um só dia, era merecedora de que nos lembrássemos dele, não só todos os dias, senão todas as horas. E é coisa digna de grande admiração, que nos não pedisse o Senhor esta memória de sua morte para todos os dias, senão para aquele somente em que comungássemos: Haec quotiescumque feceritis, in mei memoriam facietis- disse o mesmo Cristo. E S. Paulo: Quotiescumque manducabitis panem hunc, et calicem bibe­tis, mortem Domini annuntiabitis. Pois, se Cristo tanto desejava a nossa memória, por que a limitou somente aos dias em que comungássemos? Seria por que supôs que havíamos de comungar todos os dias, como faziam os cristãos da primitiva Igreja? Assim parece. Mas, depois que a ingratidão e esquecimento dos homens foi tal, que chegou a mesma Igreja a lhe pôr preceito de comungar uma vez no ano, como ficaria o Sacramento, se o não socorresse o Rosário? Bem parece socorro de sua Mãe. No Rosá­rio tem Cristo a satisfação da memória com que desejou ser lembrado, e no Rosário o reparo do esquecimento com que, fiando-se de nós, se expôs a ser esquecido. E desta maneira não só igualou a memória do Rosário, mas excedeu o memorial do mesmo Cristo, pois, sendo o Sacramento memorial seu de um só dia, e um só mistério, o Rosá­rio é memória de todos os seus mistérios e de todos os seus dias. Deixo, porque imos correndo, a vantagem de o Sacramento nos pedir só a memória, e o Rosário lhe dar a memória e mais o entendimento: a memória na apreensão dos mistérios, e o entendi­mento na meditação deles.

Daqui, porém, se segue outra grande vantagem, ou maravilha, e é que, estando Cristo no Sacramento encoberto e invisível, tivesse poder e arte o Rosário para romper aquelas paredes dos acidentes, e o descobrir e fazer visível. Assim, o via a esposa, posto que detrás das mesmas paredes, quando disse: En ipse stat post parietem nostrum, respiciens per fenestras[54]. Cristo no Sacramento vê-nos a nós, ainda que nós o não vejamos a ele; mas, de que modo nos vê? Segundo a mais filosófica teologia, não nos vê com os olhos do corpo, porque o corpo sacratíssimo está ali por modo espiritual e indivisível, em que as ações, que requerem extensão, não podem ter exercício. Mas, a divindade e a alma do mesmo Senhor têm naquelas mesmas paredes abertas três janelas, pelas quais nos vêem muito melhor que com os olhos. Uma é a ciência divina, com que tudo é presente e manifesto a Deus; outra é a ciência beatífica, com que Cristo, enquanto homem, vendo a Deus, vê nele tudo; a terceira é a ciência infusa, que pelas próprias espécies, sem dependência de outras, vê também quanto quer ver. E estas são as janelas pelas quais diz a esposa que, estando detrás da parede, a via o divino e humano Esposo: En ipse stat post parietem nostrum, respici­ens per fenestras. Desta maneira nos vê Cristo no Sacramento, sem ser visto de nós, ou nós o vermos com os olhos do corpo, os quais, ainda que fossem de lince, não podiam penetrar aquelas paredes. Mas, o poder e arte do Rosário é tal que nas mes­mas paredes abriu, não três, senão três vezes cinco janelas, pelas quais, por mais que Cristo no Sacramento esteja invisível, o vemos; e estas são, diz S. Bernardo, a oração mental e vocal, com que meditando oramos, e orando o louvamos: Quod si pro con­sideratione divinae dignationis, libet animum laxare in vocem laudis, et gratiarum actionem, puto me amplissimam stanti post parietem Sponso januam aperire[55]. Por

este modo, pois, as meditações e orações do Rosário, segundo o número dos seus mistérios, abrem nas paredes do Sacramento outras tantas janelas, pelas quais vemos a Cristo e o louvamos, não só enquanto morto, senão enquanto vivo, morto e imortal, e em todas as idades e estados da mesma vida, morte e imortalidade, em que os olhos da Virgem Maria o não viram, nem os do mesmo Cristo o puderam, ou se puderam ver juntamente e no mesmo tempo. Pelos mistérios Gozosos vemos o Cristo encarna­do, peregrino, nascido, presentado, perdido e achado no Templo. Pelos mistérios Do­lorosos, vemo-lo suando sangue, coberto de açoites, coroado de espinhos, com a cruz aos ombros, e pregado nela. Pelos mistérios Gloriosos vemo-lo ressuscitado, subindo ao céu, mandando o Espírito Santo, acompanhando o triunfo de sua Mãe e pondo-lhe a coroa. E tudo isto, que a mesma Senhora e o mesmo Cristo obraram em tantos anos e não puderam ver em menos tempo, vemos nós no breve espaço em que se reza o Rosário, com os olhos das suas meditações e com as vozes das suas orações o agrade­cemos e louvamos. E se Cristo, como amante tão ansioso, não só nos deseja ver, senão também ser visto de nós - como não podia deixar de ser visto de quem dizia: En ipse stat post parietem nostrum[56] - esta satisfação do seu desejo, que impediam as paredes do Sacramento, lhe deu também nele o Rosário, rompendo e penetrando as mesmas paredes.

Finalmente, o Sacramento é o mistério da fé: e o Rosário é a fé, a confissão e o louvor de todos os mistérios que ela professa e ensina. No Sacramento, posto que se parta a hóstia, sempre está Cristo como pão inteiro: no Rosário está como pão partido, e, por isso, ainda que no Sacramento se coma, no Rosário se gosta e se digere. O Sacra­mento chama-se Eucaristia, que quer dizer ação de graças, mas, essas graças no mesmo Sacramento estão mudas e em silêncio: no Rosário não só as ouvem Deus e os anjos, senão também os homens, porque se cantam e publicam a vozes. O Sacramento, como diz Jeremias, é escudo do coração: scutum cordis (Lam. 3, 65) - mas escudo que não podemos trazer conosco: o Rosário trazemo-lo nas mãos, no peito, no cinto, e basta que o tragamos conosco materialmente, para que nos defenda dos demônios, das feras, das balas, dos raios, como muitas vezes se tem visto. O Sacramento não se pode comungar senão nos lugares sagrados, onde se consagra: o Rosário pode-se tomar na boca e medi­tar no coração, na igreja e fora dela, na casa e no campo, no mar e na terra, e em todo lugar, por menos santo e profano que seja. O Sacramento tem horas determinadas e certas em que só o podem receber os fiéis: o Rosário pode-se rezar e meditar pela manhã e à tarde, antes e depois de comer, de dia e de noite, e não há interdito, ou cessatio a divinis, que proíba seu exercício e nos prive dele. O Sacramento só se pode comungar uma vez em um dia: o Rosário pode-se multiplicar, repetir e rezar tantas vezes cada dia, como se verá neste exemplo, com que quero acabar.

Visitando os hospitais de Anvers um religioso de nossa Companhia, por nome Hermano Spruit, achou entre os incuráveis um soldado velho e ético, ao qual, depois de o ouvir de confissão, ou lhe deu em penitência ou lhe aconselhou que rezasse o Rosário. Ouvido o nome de Rosário, não o entendeu o soldado, porque era daqueles que, tirados do arado para as armas, sempre são rústicos. Instruído, porém, do que con­tinha esta devoção da Virgem Maria, se lhe afeiçoou com tal extremo, que disse ao confessor que se desde menino tivera aquela notícia, nenhum dia de sua larga vida havia de ter passado em que não rezasse o Rosário. E que fez? Como aqueles a quem se lhes põe o sol antes de acabar a jornada, apressam e multiplicam os passos, assim ele se resolveu a rezar quantos mais Rosários lhe fosse possível, enquanto lhe durasse a vida. Mas não parou aqui; antes a esta boa resolução acrescentou outra maior, acompanhada de uma nova esperança que, como desconfiado dos remédios humanos, ninguém podia ter dele. Esperou que se a Virgem, Senhora nossa, naquela sua debilidade lhe conservas­se os alentos necessários, em espaço de dois anos podia rezar tantos Rosários, que igua­lassem todos os dias de sua vida, em que os desejava ter rezado e não soubera: Com este notável pensamento perguntou a um aritmético quantos dias faziam sessenta anos, que eram os que tinha de idade? E sendo-lhe respondido que vinte e um mil e novecentos dias, perguntou mais quantos Rosários havia de rezar cada dia para igualar este número em espaço de dois anos? Respondeu o aritmético com a mesma certeza, que pontual­mente se repartiam em trinta Rosários cada dia. Que mancebo há tão forte e tão robusto que não desmaiasse ouvindo tais números? Mas o velho e, sobre velho, incuravelmente enfermo, arrimado da poderosa mão a quem servia, sem largar das suas o Rosário, re­zando de dia e de noite, nenhum dia houve em que faltasse, nem às contas de cada Rosário, nem à conta de todos trinta. Chegou enfim - caso verdadeiramente admirável e de grande consolação para todos os devotos - chegou enfim o fim dos dois anos, e chegaram os Rosários ao número de vinte e um mil e novecentos; e tanto que se ajustou a conta dos Rosários com a conta dos dias, que aconteceu? Sem rezar mais uma Ave­Maria, nem viver mais um momento, no mesmo dia acabou os seus dias o venturoso soldado, e no mesmo dia foi receber o prêmio de seus milhares de Rosários nas eterni­dades da glória, onde mil anos são um dia.

Assim alcançou da Mãe de Deus os dois prazos que esperou de sua benigni­dade, assim lhe davam forças para rezar os mesmos Rosários, que rezava, e assim soube recuperar o que tinha perdido, e viver o que não tinha vivido em toda a vida. E quem haverá à vista deste exemplo, que por ocupação, ou por descuido, ou por total esqueci­mento de Deus e de si, não reze o Rosário uma vez cada dia, ou, quando menos, uma parte dele? Não permita Deus tal frieza de fé e de piedade em alma alguma cristã, que não poderá ser senão precita. Ninguém haja, pois, que não freqüente este terceiro Sacra­mento do Rosário em todos os dias de sua vida, para que se não arrependa de o não ter rezado na hora da morte. E nós, acabando este largo discurso por onde o começamos, louvemos e chamemos bem-aventurada à Virgem Maria por todos os três Sacramentos, em que o dividimos: Bem-aventurada no Sacramento do Evangelho, pois trouxe encer­rado em suas entranhas o Verbo Eterno; bem-aventurada no Sacramento do Altar, pois lhe deu a carne e sangue, matéria de que é composto; e bem-aventurada no Sacramento do Rosário, pois o instituiu com tal forma, que ele é a reformação do mundo. Levantando, pois, a voz, com a que excitou o Espírito Santo entre as turbas, digamos uma, duas vezes e três vezes: Beatus venter, beatus venter, beatus venter qui te portavit.

FINIS

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc. 11, 27).

[2] Porque o que nela se gerou é obra do Espírito Santo (Mt. 1, 20).

[3] Eis que uma virgem conceberá, e parirá um filho (Is. 7, 14).

[4] Eis conceberás, e parirás (Le. 1, 31).

[5] Bem-aventurada tu que creste (Lc. 1, 45).

[6] Todas as gerações me chamarão bem-aventurada (Le. 1, 48).

[7] Por ele ter posto os olhos na baixeza de sua escrava, porque eis de hoje em diante me chamarão bem-aventurada (Lc. 1, 48).

[8] D. Epiphanius, de laud. Virg.

[9] D. Method. orat. ad Hipani. Domini

[10] Conci!. Ephes. cap. 7.

[11] Nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col. 2, 9).

[12] Basilius Seleucas, de Annuntiat.

[13] Theophilus Reinaudus, in Candelabro Euchar, cap. 8, § 16.

[14] Tomai-o, e distribuí-o entre vós (Lc. 22, 17).

[15] Todas as vezes que fizerdes isto (Eccles. in Canon).

[16] Estai certos de que eu estou convosco... até a consumação dos séculos (Mt. 28, 20).

[17] Onde quer que estiver o corpo (Le. 17, 37).

[18] Segundo a medida da idade completa de Cristo (Ef. 4, 13).

[19] Fica em mim, e eu nele (Jo. 6, 57).

[20] O que come a minha carne e bebe o meu sangue (Jo. 6, 57).

[21] Aqui está o pão que desceu do céu (Jo. 6, 59).

[22] O que come deste pão viverá eternamente (Jo. 6, 59).

[23] P. Damian. Serin. de Annuntiat.

[24] Crucificam de novo ao Filho de Deus em si mesmos, e o expõem ao ludibrio (Hebr. 6, 6).

[25] Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram (Rom. 12, 15).

[26] Que alumia a todo o homem que vem a este mundo (Jo. 1, 9).

[27] O sol nasce, e se põe e torna ao lugar donde partiu, e aí renasce (Ecl. 1, 5 s).

[28] Olimpiodorus in Commentar.

[29] Não sabeis o que pedis (Mt. 20, 22).

[30] Em qualquer dia que eu te invocar, eis que conheço que tu és o meu Deus (SI. 55, 10).

[31] Em Deus louvarei a palavra; no Senhor louvarei a promessa (SI. 55, 11).

[32] No princípio era o Verbo (Jo. 1, 1).

[33] Nazianz. Carm. 2, in Arcanis.

[34] Santificado seja o teu nome (Mt. 6, 9).

[35] Venha a nós o teu reino (Mt. 6, 10).

[36] O reino de Deus está dentro de vós (Le. 17, 21).

[37] O que faz a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt. 7, 21).

[38] Pão dos filhos, que não deve ser dado aos cães (Eccles. in Miss. Sacram.).

[39] Perdoai, e sereis perdoados (Lc. 6, 37).

[40] Antes fará que tireis ainda vantagem da mesma tentação (1 Cor. 10, 13).

[41] Não se chegará a ti mal (SI. 90, 10).

[42] Santificado seja o teu nome (Mt. 6, 9).

[43] Porque estes mandamentos de Deus: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, não cobiçarás, e, se há algum outro mandamento, todos eles vêm a resumir-se nesta palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo (Rom. 13, 9).

[44] Para que molhe em água a ponta do seu dedo (Lc. 16, 24).

[45] Theodoret. lib. 8, de Martyribus.

[46] Esse fica em mim, e eu nele (Jo. 6, 57).

[47] Se vós permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós (Jo. 15, 7).

[48] August. in Joan. ibi.

[49] Come e bebe para si a condenação (1 Cor. 11, 29).

[50] Havendo feito a purificação dos pecados, está sentado à direita da majestade nas alturas (Hebr. 1, 3).

[51] Pai, perdoai-lhes (Lc. 23, 34).

[52] Eccles. in Canon Missae.

[53] Fazei isto em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálix anunciareis a morte do Senhor (1 Cor. 11, 25 s).

[54] Ei-lo aí está, posto por detrás da nossa parede, olhando pelas janelas (Cânt. 2, 9).

[55] D. Bernard. ibi.

[56] Ei-Io aí está, posto por detrás de nossa parede (Cânt. 2, 9).