Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XXl – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Beatus venter qui te portavit[1].

§I

Mãe admirável, o título de que mais se gloria e mais se deve gloriar a Virgem, Senhora nossa. Se o Verbo é Filho de Deus Padre, e o Padre é Pai do Verbo, por que razão o evangelista chama Pai ao Padre e Filho ao Verbo? 0 Rosário, segundo parto da Virgem, Senhora nossa. Os dois pontos do sermão: se a Mãe de Deus foi admirável porque concebeu o Verbo, não foi menos admirável porque concebeu o Rosário; mais admirável foi a Senhora em conceber o Rosário que em conceber o Verbo.

0 título de que mais se gloria e de que mais se deve gloriar a Virgem Maria, Senhora nossa, é o que lhe dá a Igreja, de Mãe admirável: Mater admirabilis. Assim o revelou já a mesma Senhora. E, se examinarmos profundamente os fundamentos deste gloriosíssimo título, que maior admiração, uma vez, que ser uma mulher Mãe e Virgem? Que maior admiração, outra vez, que ser Filho desta mulher o mesmo Filho de Deus? E que maior admiração, outra e mil vezes, que o mesmo Filho, que eternamente é conce­bido e gerado na mente do Pai, seja também concebido temporalmente e gerado no ventre da Mãe? Isto é o que quer dizer beatus venter qui te portavit (Le. 11, 27). E quer dizer mais alguma coisa? Sim, quer, mas não pode. Descrevendo S. João Evangelista a geração eterna do Filho de Deus, é reparo digno de suma observação, que ao Filho três vezes lhe chamou Verbo, e nunca lhe chamou Filho, e ao Padre três vezes lhe chamou Deus, e nunca lhe chamou Padre. Contai bem umas e outras: In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum[2]. Pois, se o Verbo é Filho de Deus Padre, e o Padre é Pai do Verbo, o Verbo por que se não chama Filho, e o Padre por que se não chama Pai? Aqui fica suspensa a admiração no princípio do Evangelho, mas no fim dele ainda se suspende mais: Verbum caro factum est: Fez-se o Verbo homem, -Et vidimus gloriam ejus quasi Unigeniti a Patre: E vimos a sua glória como de Filho Unigênito do Padre (Jo. 1, 14). Pois agora, depois que o Verbo se fez homem, já Deus se chama Pai, e já o Verbo se chama Filho: Unigeniti a Palre? Assim o escreveu e dispôs o evangelista que voou mais alto que todos. De sorte que, antes de o Verbo ser Filho de Maria, nem o Verbo no Evangelho se chama Filho de Deus, nem Deus se chama Pai do Verbo; mas, tanto que Maria foi sua Mãe, logo o Filho se chamou Filho e o Pai se chamou Pai, como se a geração eterna e passiva do Filho esperara pela geração da Mãe para se denominar Filho, ou a geração eterna e ativa do Pai esperara pela correlação da Mãe para se denominar Pai. Isto, porém, nem é nem pode ser. E ninguém houve até hoje que alcançasse o mistério, nem achasse o fundo ao modo tão esquisito desta narração. 0 desvelo dos intérpretes, o estudo dos teólogos e a curiosa especulação dos mais agudos e tenazes engenhos, toda se cansa, toda se seca, toda se suspende, e não tira de quanto cuida ou discorre neste reparo mais que a suma admiração. Mas esta mesma admiração para comigo, se não é todo o mistério, ao menos é grande parte dele, para que assim se conheça com assombro quão altamente quadra à Maternidade da Virgem Maria o gloriosíssimo título de Mãe admirável: admirável em si, admirável no Filho, e, sobre todos os limites da admiração, até no mesmo Pai admi­rável, pois, antes da Mãe de seu Filho ser Mãe, não quis ele que o evangelista lhe chamasse Pai. E já pode ser que essa foi a razão por que a oradora do Evangelho no seu breve panegírico não disse: Bem-aventurado o Pai de tal Filho, senão que todo o louvor do Filho referiu e aplicou à Mãe: Beatus venter qui te portavit.

Isto é o que diz o Evangelho. Mas, com dizer tanto, parece que não diz com o que eu tenho obrigação de dizer. A minha obrigação hoje é pregar do Rosário, que foi o segundo parto da Virgem, Senhora nossa. E, comparando um parto com outro parto, que posso eu dizer? Se posso, digo que, se a Mãe de Deus foi Mãe admirável, porque concebeu o Verbo, não foi menos admirável porque concebeu o Rosário. Isto digo se posso dizer tanto. E se posso dizer mais, digo que mais admirável foi a Senhora em conceber o Rosário que em conceber o Verbo. Para examinar estas duas possibilidades, ou estes dois impossíveis, peçamos à mesma Senhora do Rosário nos alcance a graça. Ave Maria, etc.

§II

Duas coisas estranhas ou duvidosas do assunto; chamar ao Rosário segundo parto da Virgem, e admitir que pode haver outro parto mais admirável que o do Verbo. As provas do Evangelho.

Duas coisas podem parecer estranhas, e, quando menos, duvidosas no as­sunto que propus: uma como muito nova, e outra como totalmente impossível. A pri­meira e muito nova, chamar ao Rosário segundo parto da Virgem, Senhora nossa. A segunda, e totalmente impossível, admitir ou pôr em questão que pode haver outro parto mais admirável que o do Verbo. Mas ambas estas suposições, não só as temos fundadas, senão provadas no nosso Evangelho.

Quando a mulher que levantou a voz disse: Beatus venter qui te portavit, canonizando por bem-aventurada a Mãe que trouxe em suas entranhas a Cristo, com quem falava, respondeu o mesmo Senhor: Quinimmo beati, qui audiunt verbum Dei, et custodiunt illud (U. 11, 28): Antes te digo que mais bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam. - Mais bem-aventurados, diz Cristo, e mais bem-aventurados, quando se fala da Mãe que o concebeu e trouxe dentro em suas entranhas: Beatus venter qui te portavit? Sim, Logo, tomada a maternidade da Virgem Santíssima precisamente, enquanto como Mãe natural, concebeu em suas puríssimas entranhas o Verbo Eterno, bem pode haver outra prerrogativa na mesma Senhora, que seja mais excelente e maior, e por isso, mais admirável. Assim o dizem comumente os Santos Padres, e o concebem e ensinam todos os teólogos sem discrepância. De sorte que aque­la suposição, que parecia impossível, não só se colhe das palavras de Cristo com evi­dência teológica, mas é dogma infalível com certeza de fé.

Quanto à outra suposição de chamar ao Rosário segundo parto da mesma Virgem, que, pela novidade ou estranheza do nome, parecia dificultosa, examinando os mesmos teólogos a razão e fundamento das palavras de Cristo: Quinimmo beati, qui audiunt verbum Dei, resolvem duas coisas: a primeira, que nelas não exclui o Senhor a sua Mãe; a segunda, que antes lhe acrescentou outro segundo e maior louvor, outra segunda e maior excelência, outra segunda e maior bem-aventurança. E qual é? É que não só concebeu a Senhora o Verbo Eterno no ventre, como disse a mulher do Evangelho, senão também na mente; e conceber a Deus na mente foi muito maior felicidade e muito maior bem-aventurança que concebê-lo no ventre: Beatior fuit Maria concipiendo mente, quam ventre - diz Santo Agostinho, e com ele toda a Teologia. De maneira que a Virgem Maria concebeu e pariu o Verbo por dois modos de conceição e de parto, não só diversos, mas um mais excelente que outro: um corporal, no ventre, e outro intelectual, na mente, e este segundo foi o modo com que a mesma Senhora primeiro concebeu e depois saiu à luz com o parto do Rosário. Toda a matéria do Rosário não é outra que o mesmo Verbo Encama­do, não em uma só ação ou mistério, senão em todos os de sua vida, morte e ressurreição. A idéia com que a Virgem os concebeu e compreendeu todos, e os ordenou e dispôs na mente, foi a conceição; e a luz por tantos séculos escondida, com que finalmente os manifestou ao mundo, para tanto bem do mesmo mundo, foi o felicíssimo parto do Rosário.

Tirados, pois, estes dois escrúpulos, e sossegado o reparo ou admiração deles, com as duas suposições certas e literais do nosso mesmo Evangelho, passemos à comparação de um e outro parto, e vejamos em qual deles foi a Senhora mais admirável Mãe, se no parto com que concebeu o Verbo, ou no parto com que concebeu o Rosário.

§III

Por que o parto do Rosário excede ao do Verbo? No Rosário, e seus mistérios, a Virgem não foi Mãe como as outras mulheres são mães, senão Mãe como o Eterno Padre é Pai. A razão altíssima porque quis Deus que primeiro fosse a Virgem informa­da, não só da substância da Encarnação do Verbo, senão de todas as circunstâncias dela, e que a mesma Senhora, antes de dar seu consentimento, as examinasse e inquiris­se. Os dois partos de Deus, enquanto Pai e enquanto Criador, e os dois partos da Virgem. 0 segundo parto de Maria foi mais admirável que o primeiro e mais admirável que o segundo parto de Deus na criação do Universo.

E, começando pela diferença de Santo Agostinho, ou pela justa preferência com que ele antepõe o parto da mente ao do ventre, não há dúvida que nesta consideração excede conhecidamente o parto do Rosário ao do Verbo, quanto vai da alma ao corpo. E não só porque a conceição do Rosário foi intelectual na mente da Virgem, e a do Verbo corporal no ventre sacratíssimo, mas por que mais? Porque na conceição e parto do Verbo foi a Senhora semelhante às outras mães, e na conceição e parto do Rosário foi semelhante ao Eterno Padre. Quando o anjo disse à Virgem que conceberia em suas entranhas, e pariria um filho ao qual chamaria Jesus: Ecce concipies in utero, et paries Filium: et vocabis nomen ejus Jesum (Lc.1, 31) - foi em prova e confirmação do que o mesmo anjo acabava de dizer, que a Senhora seria bendita entre as mulheres: Benedicta tu in mulieribus (Le. 1, 28). Mas, se esta bênção era tão singular e inaudita, tão infinita­mente superior à de todas as mulheres, que o Filho havia de ser Deus e a mãe Virgem, por que a não encarece o anjo com os excessos da alteza e maravilha que a matéria merecia, e somente diz que seria bendita entre as mulheres: In mulieribus? Porque ainda que aquela conceição e aquele parto foi milagroso, e o maior de todos os milagres, contudo, como foi parto do ventre, posto que virginal: Ecce concipies in utero- sempre a Senhora ficou dentro da esfera das outras mulheres e das outras mães; e assim era necessário, para que fosse mãe natural e verdadeira mãe do Filho de Deus. E este foi o modo com que a Virgem foi mãe no mistério da Encarnação do Verbo. Porém, no Rosá­rio e seus mistérios, não foi mãe como as outras mulheres são mães, senão mãe como o Eterno Padre é pai, porque concebeu o mesmo Verbo encarnado, não no ventre, senão na mente. 0 modo com que o Eterno Padre gera o Verbo, e a razão por que o Verbo é filho e o Espírito Santo não, é porque o Padre concebe na mente, como imagem de sua própria substância. E assim como o Verbo, antes e depois de encarnar, sempre é parto do entendimento do pai, assim, depois de encarnado, concebido no Rosário, é parto do entendimento da Mãe, na Encarnação como parto das outras mãe; no Rosário como parto do mesmo Padre.

Daqui se entenderá a razão e o conselho altíssimo por que o mesmo Padre antes da Encarnação do Verbo a mandou anunciar à Virgem com uma tão solene embai­xada. Assim como Deus formou a Eva do lado de Adão, sem consentimento seu nem ainda sentimento, porque estava dormindo, pelo mesmo modo pudera tirar das puríssi­mas entranhas da Virgem Maria a nova tela da humanidade de que queria vestir a seu filho, e sem fazer agravo, como supremo Senhor, à mesma mãe, a qual quando a deu, se confessou por escrava. Pois, por que o não ordenou assim Deus, mas quis que primeiro fosse a Virgem informada, não só da substância da Encarnação do Verbo, senão de todas as circunstâncias dela, e que a mesma Senhora, antes de dar seu consentimento, as examinasse e inquirisse: Quomodo fies istud [3]? A razão altíssima foi porque quis Deus que a Mãe de seu Filho fosse semelhante a seu próprio Pai. E, assim como a geração e parto do Verbo se concebe na mente do Padre, assim a mãe, antes de o conceber no ventre, o concebesse também na mente. É advertência singular de S. Bernardino sobre as palavras Fiat mihi secundum verbum tuum da mesma Virgem: Quod in aure mea factum estper angelicam salutationem, etin mente mea per fidei conceptionem: fiat mihi, id est, in utero meo, per Divini Verbi incarnationem [4]. De sorte que, antes de se obrar a Encarnação do Verbo no sacrário Virginal do Ventre santíssi­mo, já a mesma Mãe, por modo semelhante ao Pai, o tinha concebido todo no interior da mente: In mente mea per fidei conceptionem, pois, assim como a Virgem, antes da Encarnação do Verbo, concebeu na mente o mesmo Verbo, e havia de encarnar e nascer de suas entranhas, para se parecer com o Padre, assim depois da Encarnação o concebeu também na mente, já encarnado, nascido, morto e ressuscitado, para formar o Rosário.

Oh! entendimento altíssimo, oh! mente soberana de Maria, que bem disse de vossas idéias com dourada eloqüência Crisólogo: Quantus sit Deus, satis ignorat ille, qui hujus Virginis mentem non stupet, animum non miratur [5]. Quer dizer que quem não admira e pasma do entendimento e mente de Maria, não conhece bastantemente a Deus. Conhecê-lo-á como criador do mundo, como só era conhecido antigamente, mas não o conhece como pai do Verbo, Filho igual a si mesmo em tudo, o qual na mente concebe e na mente gera. Porém, quem chegou a conhecer e admirar a mente de Maria, esse conheceu perfeitamente a Deus, não só como criador do mundo, senão como Pai do Verbo, porque assim o Pai, como a Mãe, ambos concebem na mente o mesmo Filho.

E pois falamos em Deus como Criador e como Pai, dois partos reconhece a fé em Deus, um ad intra, enquanto Pai, que é o Verbo, e outro ad extra, enquanto criador, que é o mundo. E a mesma diferença de partos, com verdadeira propriedade, podemos e devemos considerar na Virgem Santíssima. 0 parto ad intra foi o do Verbo encarnado, que concebeu dentro em suas entranhas, e o parto ad extra foi o Rosário, com que, depois de concebido na mente, saiu em seu tempo à luz do mundo. E se este segundo parto, por ser concebido na mente, foi mais admirável que o primeiro, também considero eu, e não duvido dizer que foi mais admirável que o segundo parto de Deus na criação do Universo. E por quê? Porque na criação do Universo Deus foi o artífice, a matéria o nada, e a forma as criaturas, porém, na instituição do Rosário, o artífice foi a Virgem, a forma foi o Rosário, e a matéria Deus. A matéria Deus, tomo a dizer, porque Deus, humanado em todas suas ações e mistérios, são a matéria de que se forma o Rosário. Não se pode dizer aqui: Materiam superabat opus, mas pode-se afirmar do Rosário, o que S. Jerônimo disse da soberana Autora dele: Si formam Dei te appellem, digna existis, porque Deus é a matéria, e o Rosário a forma.

§ IV

Segunda razão ou excelência por que foi mais admirável o parto do Rosário que o do Verbo: na Encarnação concebeu a Virgem o Verbo na terra, no Rosário concebeu-o no céu; na terra, cheia de graça, no céu cheia de glória. Como a Virgem, Senhora nossa, ainda no céu gera a seu Filho. A emulação e imitação da mente de Maria. 0 parto celeste da Virgem na visão do Apocalipse, A heresia dos albigenses e as dores e clamores do parto. 0 primeiro e segundo parto da Virgem em Isaías e S. João.

A segunda razão, ou excelência, por que foi mais admirável o parto do Rosário que o do Verbo, é porque na Encarnação concebeu a Virgem o Verbo na terra, no Rosário concebeu-o no céu. 0 parto do Verbo na Encarnação foi parto de Maria cheia de graça; o parto do mesmo Verbo no Rosário foi parto de Maria cheia de glória. Muito diz esta grande proposição, mas ainda supõe mais do que diz. Supõe que a Virgem, Senhora nossa, ainda no céu gera a seu Filho; mas isto - dirão os doutos e doutíssimos - como pôde ser? Primeiro diremos que pôde, e depois declararemos como. Santo Ildefonso, falando da Encarnação, disse uma sentença que todos os doutores admiram e confessam que não entendem. As palavras são estas: In praeterito munda Deo, in praesenti plena Homine et Deo, in futuro generans Hominem et Deum[6]. No passado, antes da Encarnação, estava Maria pura para Deus: In praeterito munda Deo: no presente da Encarnação esteve cheia do Homem e Deus: In praesenti plena Homine et Deo; e no futuro, depois da Encarnação, está gerando ao mesmo homem e Deus: In futuro generans Hominem et Deum. O mesmo tinha já dito Santo Atanásio, cujas palavras logo citarei. Mas como pode isto ser? Pode ser e é na Mãe, como sempre foi e é, e será no Pai. O Eterno Padre não só gerou ao Eterno Verbo, seu Filho, mas sempre o está gerando. Assim o diz ele mesmo: Filius meus es tu: Ego hodie genui te (SI. 2,7): Vós sois meu Filho, ao qual eu hoje ab aeterno gerei, e sempre e por toda a eternidade estarei gerando. - E isto que faz e fez sem princípio, e fará sem fim a mente do Padre, isto é o que também fez depois da Encarnação e faz hoje, e fará por toda a eternidade a mente da Mãe: In futuro generans Deum et Homine. Agora entram em seu lugar as palavras, também dificultosas e não entendidas, do grande Atanásio, o qual sobre as do anjo: Urtus Altissimi obumbrabit tibi [7], acrescenta assim: Quam virtutem per omnia tempora conceptus eam habuisse confido, et post conceptum etiam retinuisse: nec enim id temporarium in Virgine accidisse opinor, sed per omnia tempora hoc illi datum fuisse, quemadmodum nunc in praesentia, et in aeternum usque, habet haec Urgo[8]. Não se pudera dizer nem mais clara, nem mais ilustremente. E como a mente da Virgem Mãe, com gloriosa emulação e imitação do Pai, depois de concebido e encarnado o Verbo na terra, sempre o está concebendo e gerando no céu, desta continuada geração foi segundo, e novo e mais admirável parto o do Rosário, com que, depois de estar no céu tantos séculos, finalmente saiu à luz[9].

Vamos agora à Escritura, e ela nos dirá como foi mais admirável este segundo parto: Signum magnum apparuit in caelo: Mulier amicta Sole[10]. Diz S. João, nas revelações do seu Apocalipse, que viu um grande sinal e um grande milagre no céu, o qual era uma mulher vestida do sol, com todo o outro aparato e ornato de luzes, que tantas vezes ouvistes, Vai por diante, e diz que esta mesma mulher, no céu, com grandes dores e clamores, parira um Filho, dominador do mundo: Et in utero ha bens, calamita parturiens et cruciabatur ut pariat. Et peperit filium masculum, qui recturus erat omnes gentes[11]. Esta mulher vestida de sol é a Virgem Maria; o Filho dominador do mundo é Cristo, de que ninguém duvida. Mas se a Senhora concebeu e pariu este Filho na terra, como viu S. João tanto depois, que o havia de parir, e pariu no céu? Porque estes são os dois partos da Virgem Santíssima, de que imos falando. Um parto na terra, que foi concebido em Nazaré e nasceu em Belém, que é o parto do Verbo Encarnado, e outro parto no céu, que lá foi concebido e de lá nascido, que é parto do mesmo Verbo, do qual e dos seus mistérios se compõe o Rosário.

Mas como diz o mesmo Evangelista que neste segundo parto houve dores e clamores, efeitos ambos, ou acidentes tão alheios da Mãe-Virgem como do céu onde estava? Houve dores: Cruciabatur ut pariat; houve clamores: Clamabat parturiens. E notai que as dores foram antecedentes ao parto: Ut pariat; e os clamores foram juntamente com ele: parturiens. Que dores foram logo estas e que clamores no segundo parto da Virgem, Senhora nossa, no céu? Tudo assim como está notado ou dificultado, é ad­mirável prova e confirmação de ser o parto do seu Rosário, Vamos à história eclesiástica, e saibamos qual foi a ocasião por que, e qual o modo com que saiu a mesma Senhora com o seu Rosário ao mundo. A ocasião foi a heresia dos albigenses, os quais ímpia e blasfemamente negavam a pureza virginal da Mãe de Deus. E daqui nasceram as dores, que, sem embargo de estar no céu, atormentavam a Virgem: Cruciabatur ut pariat - assim como se diz do mesmo Deus na ocasião do dilúvio: Tactus dolore cordis intrinsecus[12]. E por que ninguém o duvide, não temos menos testemunha que vinda do mesmo céu. Quanto Santo Ildefonso defendeu a pureza virginal da mesma Senhora, e conven­ceu os hereges, que em seu tempo a negavam, desceu do céu Santa Leocádia, e, saindo da sepultura, lhe disse publicamente na Sé de Toledo: Ildefonse, per te vivit Domina mea, quae caeli culmina tenet: Ildefonso, por vós vive a minha Senhora, que tem o mais alto trono do céu. - De maneira que teve tanta ocasião de dor e lhe doeu tanto à Sobera­na Virgem aquela blasfêmia, como se os que lhe negavam a pureza virginal lhe tiraram a vida. E estas foram dores que deram ocasião e apressaram o parto, como diz o texto: Cruciabatur ut pariat. E os clamores quais foram: Clamabat parturiens? Foram as vozes dos pregadores, diz Alcáçar, que pregaram pelo mundo o mesmo parto: Idonee referuntur clamores ad clamores praedicationis. E assim foi, não no seu, senão no nosso sentido, porque, ensinando e ditando a Senhora o seu Rosário a S. Domingos, ele e os pregadores apostólicos de toda a sua religião, o publicaram e apregoaram pelo mundo, confutando principalmente aquela heresia, e fazendo emudecer as línguas blasfemas dos que a se guiam. Em suma, que as dores, como disposição e motivo, precederam ao parto: Crucia­batur ut pariat; e as vozes e clamores saíram e se ouviram juntamente com ele: Clamabat parturiens - porque então nasceu e se manifestou no mundo o Rosário.

Finalmente, que este segundo parto da Virgem Maria no céu seja mais admirá­vel que o primeiro do Verbo Encarnado na terra, o mesmo texto o diz na primeira palavra: Signum magnum apparuit in caelo. E se não, combinemos este texto com o mais expresso da Encarnação do Verbo. O mais expresso texto da Encarnação do Verbo é o do profeta Isaías: Ecce virgo concipiet, et pariet filium, et vocabitur nomem ejus Emmanuel (Is. 7, 14):Que uma Virgem conceberia e pariria um Filho, o qual seria Deus. - E com que prefação entra o mais eloqüente de todos os profetas a anunciar ao mundo esta nunca vista nem imaginada novidade? Propter hoc dabit Dominus ipse vobis signum: Ecce virgo concipiet: etc.[13] Notai agora a diferença com que um e outro profeta fala em um e outro parto. Ao primeiro parto da Virgem na terra chama-lhe Isaías somente signum: Dabit Dominus ipse vobis signum; ao segundo parto da mesma Virgem no céu chama-lhe S. João signum magnum apparuit in caelo. Signum quer dizer sinal, prodígio, grande, milagre grande. Pois, por que razão o parto com que a Virgem concebeu o Verbo na Encarnação se chame somente milagre, e o parto com que concebeu o mesmo Verbo no Rosário se chama milagre grande: signum magnum? Porque mais admirável foi este segundo parto da Virgem que o primeiro. O parto da Encarnação foi obrado na terra, o do Rosário no céu; o parto da Encarnação formado em nove meses, o do Rosário em doze séculos; o da Encarnação com catorze anos de graça, o do Rosário com mil e duzentos anos de glória; o da Encarnação sem mereci­mento de Cristo, porque a não mereceu nem podia merecer, o do Rosário com todos os merecimentos de sua vida e morte; enfim, na Encarnação concebido o mesmo Cristo menino, no Rosário concebido varão, e em todas as idades.

§V

Terceira excelência que faz o segundo parto da Virgem profetizado por Isaías, e o parto da mulher profetizado por Jeremias. O perfeito círculo da vida de Cristo e o círculo do Rosário. As duas finalidades da Encarnação e os dois fins do Rosário. A nova planta e os novos círculos do Rosário na versão dos Setenta.

E porque nesta última diferença se encerram todos os mistérios do Rosário, justo será que nos detenhamos um pouco na ponderação dela, e seja esta a terceira excelência que faz este segundo parto mais admirável. Outra vez temos encontrado a Isaías, não já com S. João, profeta da lei da graça, mas com Jeremias, profeta também da lei escrita. Isaías, acabando de falar do parto do Verbo Encarnado, logo lhe chama menino: Antequam sciat puer reprobare malum et eligere bonum[14]. E, depois de encarnado, falando do mesmo Verbo já nascido, outra vez lhe torna a chamar menino: Parvulus natus est nobis, et filius datus est nobis[15]. Pelo contrário, o profeta Jeremias dali a muito anos, profetizando da mesma Mãe e do mesmo Filho, diz: Creavit Dominus novum super Cerram: Femina circumdabit virum (Jer. 31, 22): que viria tempo em que Deus criaria uma coisa nova sobre a terra, e uma mulher cercaria um varão. - Que fale este profeta da mesma Virgem Maria e do mesmo Filho Cristo, como dizia, é sentença comum dos santos e doutores, com discrepância de poucos. Mas, se o parto foi o mesmo que tinha profetizado Isaías, que novidade é esta, que Jeremias tanto encarece: Novum creavit Dominus super terram? Isaías profetizou trezentos anos antes de Jeremias, e se a maravilha do parto era a mesma, já não era novidade, pois havia tantos séculos que estava escrita e celebrada. Quanto mais que essa mesma maravilha, profetizada por Isaías, consistia em ser a Mãe Virgem: Ecce Virgo concipiet - e Jeremias não usa do nome da Virgem, senão de mulher: femina. Com que mostra, que não consiste neste milagre a novidade que ele profetiza. Em que consiste logo?

Consiste em que o parto profetizado por Isaías foi de Cristo enquanto meni­no, e o profetizado por Jeremias foi do mesmo Cristo enquanto varão: Femina circumdabit virum. A pessoa foi a mesma, mas as idades diversas. E por isso também diversos os partos, diversos os tempos e diversas as novidades. A novidade e maravilha de Isaías consistia em ser a Mãe Virgem, e não em ser o parto menino, que isso não é novidade. Porém, a novidade e maravilha de Jeremias consistiu em ser o parto varão, que era coisa nova e inaudita: Novum creavit Dominus super terram: Femina circundabit virum. Cristo na Encarnação precisamente não teve idade, nem dia, nem tempo, porque foi concebido em instante. Mas todos os dias e anos, que depois teve de vida, assim mortal, como imortal e gloriosa, e todas as idades dessa vida, ou vidas, a infância, a puerícia, a adolescência, a juventude e a de perfeito varão, desde Nazaré até Jerusalém, desde o presépio até a cruz, e desde a sepultura até a destra do Padre, todas, e com todas as suas ações e mistérios, as compreendeu e reproduziu a Senhora com mais admirável parto no círculo do seu Rosário, Por isso Jeremias não disse como Isaías: concipiet, senão circundabit, e com tanto maior sentido como energia: Femina circumdabit virum. Toda a vida de Cristo, como bem notou Davi, foi um perfeitíssimo círculo:A summo caelo egressio ejus. Et occursus ejus usque ad summum ejus[16]: saiu do mais alto do céu, viveu na baixeza deste mundo, e tornou ao mesmo lugar do céu donde tinha saído. - O mesmo profeta declara este círculo com a comparação do sol: In sole posuit tabernaculum suum[17]. Assim como o sol sai no Oriente do céu, dá volta ao mundo alumiando, e torna a aparecer no mesmo lugar do Oriente, assim Cristo saiu do céu pela Encarnação, viveu na terra obrando, ensinando, padecendo, alumiando, remindo, e, depois, pela Ascensão, tornou para o mesmo trono do céu, donde saíra, onde também coroou a sua Mãe. E a mesma Mãe, que fez? Assim como o Filho, começando menino e chegando à idade de varão, fez um círculo de toda a sua vida, assim a Senhora fez outro círculo, que foi o do seu Rosário, em que compreendeu toda essa vida e cercou esse mesmo círculo: Girum caeli circuivi sola (Eclo. 24, 8), diz a mesma Senhora: Círculo de céu a céu. - E desta maneira, metendo um círculo dentro de outro círculo, e o círculo da vida do Filho dentro do círculo do Rosário, assim verificou gloriosamente o novo e prodigioso parto da mulher que havia de cercar o varão: Femina circundabit vi rum.

E, posto que esta exposição do texto de Jeremias é tão medida com todas as circunstâncias dele, combinemos, para maior evidência, o mesmo texto com as palavras antecedentes, que, segundo a doutrina de Santo Agostinho e de todos os teólogos, é a prova mais segura e mais certa do sentido das Escrituras. Quando o profeta disse: Quia creavit Dominus novum super terram: Femina circundabit virum, as palavras imediatamente antecedentes, que se atam com aquele quia, são estas: Usquequo deliciis dissolveres, filia vaga[18]? Até quando, ó natureza humana - chama-lhe Deus filha, porque a criou, e porque a ama, e porque a quer trazer a si - até quando, ó natureza humana, há de durar a tua dissolução nas delícias? Até quando hás de seguir os errados caminhos da heresia? - Isto quer dizer filia vaga, como a filha viciosa, que deixa a casa e doutrina do pai, e anda vagabunda por outras. Assim o declarou a mesma filha, temerosa do que lhe podia acontecer, quando disse: Indica mihi ubi pascas in meridie, ne vagari incipiam post greges sodalium tuorum[19]. Pede ao supremo e verdadeiro pastor, lhe mostre onde assiste com a luz clara da fé, por que, vagando descaminhada, não siga os rebanhos dos pastores falsos, que ensinam doutrina herética, e, com nome de companheiros e cris­tãos, são inimigos de Cristo. Isto é o que significa: Ne vagari incipiam post greges sodalium tuorum - como declaram S. Bernardo, Santo Anselmo, Cassiodoro, e todos, e como já muito antes deles o tinha ensinado S. Paulo: Ut non circumferamur omni vento doctrinae[20]. De sorte, que naquele novo invento, com que Deus havia de sair ao mun­do: Novum creavit Dominus super terram - não teve a Providência divina um só fim, se não dois juntamente. 0 primeiro, reformar a dissolução das delícias: Usquequo deliciis dissolveris? O segundo, reduzir à verdade e firmeza da fé os erros da heresia, sempre errada e sempre errante: Filia veja. E estes dois fins - coisa verdadeiramente maravi­lhosa! - estes dois fins, pontualmente os mesmos, foram os que Deus teve na instituição do Rosário de sua Mãe. Assim o refere na bula da canonização de S. Domingos o Papa Gregório Nono, pelas mesmas palavras: Dominico sagittante delicias carnis - eis aqui as delícias -et fulgurante mentes lapideas impiorum, omnis haereticorum secta contremuit - eis aqui as heresias[21]. Logo não só de todas as circunstâncias do texto de Jeremias, que nenhuma discrepa, mas das mesmas palavras antecedentes, e dos fins por que foi concebido nas idéias de Deus e de sua Mãe este novo parto, e, final­mente, dos efeitos maravilhosos que produziu no mundo consta ser ele claramente o do Rosário.

Acrescento, para maior confirmação - como em matéria tão grave e tão nova - a versão dos Setenta Intérpretes, a qual, parecendo totalmente diversa, declara com novas propriedades quanto temos dito sobre o mesmo texto. O seu é este: Creavit te Dominus salutem in plantationem novam, in salute tua circuibunt homines. Quer dizer que para a saúde da alma criará Deus uma planta nova, e que os homens, para consegui­rem essa saúde, hão de fazer círculos. E que planta nova é esta que Deus havia de criar, e que círculos são estes que os homens haviam de fazer? Nem o nome nem a forma do Rosário se pudera pintar ou descrever melhor. A planta nova é a das rosas, que deram o nome ao Rosário: in plantationem novam; e os círculos que haviam de fazer os homens são os círculos que fazem os que rezam o Rosário, quando vão repassando as contas, tornando a acabar onde começaram: in salute circuibunt homines. O primeiro círculo fê-lo a Senhora, quando formou e ensinou o Rosário: Femina circumdabit virum; os outros círculos fazem-nos os homens, porque, para a saúde de suas almas foi o mesmo Rosário instituído: in salute circuibunt homines. E como nestes círculos se abraça e compreende, não só o mistério da Encarnação do Verbo, senão todos os mistérios da vida e idades de Cristo, bem se vê quanto mais admirável foi a Mãe do mesmo Senhor neste segundo e tão numeroso parto. No primeiro concebeu somente o Verbo humana­do: no segundo concebeu-o humanado na Encarnação, peregrino na visitação, nascido no presépio, presentado no Templo, e no mesmo Templo perdido e achado. No segundo, outra vez concebeu-o no Horto suando sangue, no Pretório coberto de açoites e coroado de espinhos, nas ruas de Jerusalém com a cruz aos ombros, e no Calvário crucificado e morto. No segundo, terceira vez concebeu-o no sepulcro ressuscitado, no Monte Olivete subindo ao céu, no céu mandando de lá o Espírito Santo, no vale de Josafá levando em triunfo a sua Mãe, e no trono da Glória coroando-a por Rainha dos Anjos. Enfim, na Encarnação, concebido uma vez, e no Rosário quinze vezes.

§ VI

0 parto do Rosário mais maravilhoso fora de si por três respeitos: para com Deus, para conosco e para com nossos inimigos. A quarta maravilha do segundo parto da Virgem: ser de maior agrado para com Deus que o da Encarnação do Verbo por si só. 0 conceito do juízo e complacência de Deus ante as obras da criação. Divididos, os mistérios da vida de Cristo não cabiam mais na perfeição de cada um; mas juntos, como estão no Rosário, coube o muito na união de todos. A advertência do Eclesiástico. A união das obras da criação e a união dos mistérios de Cristo no Rosário.

Até agora temos visto o parto do Rosário mais maravilhoso em si por três respeitos: agora o veremos mais maravilhoso fora de si por outros três. Mais maravilhoso até agora em si, por ser mental, e não corpóreo, por ser no céu, e não na terra, por ser não de um só mistério ou idade de Cristo, senão de todos seus mistérios e idades. Agora o veremos mais maravilhoso também fora de si, e como? Para com Deus, para conosco e para com nossos inimigos: para com Deus, pelo maior agrado; para conosco, pela maior eficácia; para com nossos inimigos, pelo maior poder.

Quanto ao maior agrado de Deus, parece que por compreender o Rosário todos os mistérios de Cristo, nem por isso lhe podem agradar mais todos juntos que o da Encarnação do Verbo por si só, porque onde o valor e preço é infinito, tanto encerra em si um só mistério, como todos, e, posto que em todos cresça o número, não cresce a razão de agradar mais. Contudo, digo que esta mesma razão de estarem juntos no Rosá­rio todos os mistérios de Cristo, é uma tal circunstância, que ainda onde não cabe mais, acrescenta muito. E esta é a quarta maravilha do segundo parto da Virgem, que o faz mais admirável que o primeiro. Vede se se prova bem.

Criou Deus esta grande e formosa máquina do universo em seis dias, e a cada obra que ia saindo de suas poderosas mãos, ou da voz de sua divina sabedoria, diz a Escritura Sagrada que olhava o Senhor para ela, e que via que era boa: Vidit Deus quod esset bonum[22]. Com estas repetidas ações e aprovações do Supremo Artífice foi cres­cendo a fábrica cada dia mais vistosa, mais ornada e mais povoada de variedade de criaturas, até que acabada já e posta em sua perfeição no último dia, diz o mesmo texto que olhando Deus para todas as coisas que fizera, todas lhe pareceram muito boas: Vidit Deus cuncta quae fecerat, et erant valde bona (Gên. 1, 31). Neste valde reparou muito Santo Agostinho, e depois dele todos. E com muita razão. As coisas que Deus viu no dia último eram as mesma que tinha feito e visto em cada um dos outros dias. Pois, se então lhe parecem somente boas: Vidit Deus quod esset bonum - como agora não só lhe parecem boas, se não muito boas: valde bona? Este valde, e este muito, donde lhe veio? Porventura acrescen­tou-lhe Deus no último dia alguma perfeição ou esmalte que dantes não tivessem? Não. A luz do primeiro dia era a mesma, sem aumento de outra qualidade; o firmamento do segundo dia tinha a mesma sutileza, e o mar a mesma grandeza e vastidão; as plantas do terceiro, nem estavam mais verdes, nem mais floridas, nem mais carregadas de frutos; o sol, a lua e as estrelas do quarto não resplandeciam agora mais; os peixes e as aves do quinto, nem esta­vam armados de mais prateadas escamas, nem vestidas de mais pintadas penas; finalmente, os animais terrestres nem tinham recebido novas formas, nem maiores forças, nem mais engenhosas habilidades. Pois, se todas estas criaturas eram as mesmas, e com a mesma bondade que dantes, por que razão nos olhos de Deus, que se não cegam nem enga­nam, dantes só pareciam boas e agora muito boas: Valde bona? Se não tinham nada de mais, donde lhe acresceu este muito?

É que dantes foram vistas cada uma por si: agora estavam todas juntas. 0 mesmo Santo Agostinho: Cum de singulis ageret, dicebat tantum: Vidit Deus quia bo­num est: cum autem de omnibus diceretur, parum fuit dicere bona, nisi adderetur: Et

valde[23]: Quando Deus olhava para cada uma das suas obras por si, somente a louvava por boa; mas quando as viu todas juntas, não lhe chamou só boas, senão muito boas - porque lhe daria menor aprovação do que mereciam se ao louvor de boas não acrescen­tasse o de muito. E se perguntarmos ao grande doutor donde lhe veio este muito, se não tinham recebido nada de mais, responde que da união: Tanta est vis et potentia integritatis et unitatis, ut quae bona sunt, tunc multum etiam placeant cum in universum ali­quod conveniunt, atque concurrunt: Porque é tal a força e virtude da união, que as mesmas coisas, que divididas são boas, se se ajuntam e unem entre si, para compor algum todo, esse todo, sem acrescer maior bondade às partes, fica muito melhor que cada uma delas. - Por isso, quando divididas, só boas: Vidit quod esset bonum - mas, quando juntas, muito boas: Et erant valde bona. Tal é o todo do Rosário, composto dos mistérios de Cristo comparado com cada um deles. Cada um dos mistérios, que são as partes de que se compõe este todo, é tão divina e infinitamente perfeita, que não admite maior perfeição; mas foi tal o artifício da Virgem, Senhora nossa, nesta maravilhosa fábrica, que onde não cabia o mais soube introduzir o muito. Divididos os mesmos mistérios, não cabia o mais na perfeição de cada um; mas, juntos e unidos entre si, como estão no Rosário, coube o muito na união de todos. Cada um por si: Vidit Deus quod esset bonum; todos juntos, ainda nos olhos de Deus: Erant valde bona.

Santo Tomás, declarando teologicamente este ver e aprovar de Deus: Vidit Deus quod esset bonum - diz que significa a complacência divina em cada uma das suas obras, segundo a perfeição delas. E assim como esta complacência e agrado de Deus é proporcionado à perfeição de cada uma de suas criaturas, ao mesmo modo, mas em grau infinitamente superior, se agrada de cada um dos mistérios e soberanas ações de seu Filho. Isto quis significar no mistério da Transfiguração a voz do Padre, dizendo: Hic est Filius meus dilectus, in quo mihi bene complacui[24]. Mas, se na vista de um só mistério de Cristo, diz a complacência divinabene complacui, segue-se que na vista e representação de todos juntos, não só há de dizer bene, mas valde bene: E esta é a complacência e agrado - ou se chame maior, ou muito - com que Deus aceita da nossa memória e afeto a meditação dos mesmos mistérios, quando juntos no Rosário lhos oferecemos. E para que um privilégio tão sublime deste mesmo oferecimento não ficasse duvidoso na conjectura do nosso dis­curso somente, o mesmo Deus se dignou de o declarar assim, e nos exorta a que lhe faça­mos este obséquio no Rosário, não só com a declaração de bom, como em cada uma das obras da criação, mas de bom e muito bom, como na união de todas. É texto milagroso.

No capítulo trinta e nove do Eclesiástico, diz assim o Espírito Santo: Obaudite me divini fructus: et quasi rosa plantata super rivos aquarum fructificate. Quasi Libanus odorem suavitatis habete. Florete flores quasi lilium; et date odorem, et fron­dete in gratiam; et collaudate canticum, et benedicite Dominum in operibus suis. Date nomini ejus magnificentiam, et confitemini illi in voce labiorum vestrorum, et in canticis labiorum, et citharis; et sic dicetis in confessione: Opera Domini universa bona

valde[25]. 0 texto é dilatado, mas não se podia dizer tudo em poucas palavras. Em suma, exorta Deus aos homens à devoção do Rosário com o mesmo nome de rosa: Quasi rosa plantata super rivos aquarum fructificate. E não só exorta, mas manda por obediência: Obaudite me. Logo, passando aos mistérios que o Rosário compreende e medita, sendo a rosa uma só flor, diz que eles hão de ser muitos, igualando na variedade e no cheiro os de todo o monte Líbano, famoso pelos jardins de Salomão: Quasi Libanus odorem suavitatis habete. E para que se não duvidasse que estes mistérios são de Cristo, o qual entre as flores tomou o nome de lírio: Ego flos campi et lilium convallium[26] , declara que a graça e fragrância deste lírio, é a que hão de exalar as rosas: Florete flores quasililium, et date odorem, et frondete in gratiam. Finalmente, porque o Rosário não só consta de mistérios meditados, mas de orações pronunciadas com a boca, duas vezes faz menção delas: uma vez: Collaudate canticum, et benedicite Dominum; e outra vez:Confitemini illi in voce labiorum vestrorum. E de tudo isto que conclusão tira ou nos

manda tirar o texto? Com razão lhe chamei milagroso, porque é admirável ao intento: Sic dicetis in confessione: opera Domini universa bona valde: Haveis de confessar e dizer a Deus - como se diz dele, quando viu juntamente tudo o que tinha criado - que

todas as suas obras, não só são boas, senão muito boas: Universa bona valde.

Todos os expositores, e a mesma Sagrada Bíblia à margem, nota que estas são as mesmas palavras, que se dizem de Deus depois da criação do mundo, quando olhou e viu juntas todas as coisas que tinha criado. Pois, se agora fala tão claramente do Rosário - como também têm advertido alguns autores[27] - por que diz que no Rosário havemos de fazer o mesmo conceito do juízo e complacência de Deus, qual foi o que ele teve nas obras da criação? Porque assim como Deus nas obras da criação teve maior complacência, e se agradou mais de todas juntas que de cada uma por si, sem haver nelas de novo mais que a união, assim na criação do Rosário, obra de sua Santíssima Mãe, ainda que cada um dos mistérios seja perfeitíssimo em si, antes infinitamente perfeito, unidos, porém, e juntos diante dos olhos divinos, a mesma união, que não pode dar mais a cada um, acrescentou muito a todos. Cada um pela sua própria bondade infinitamente bom, mas todos juntos, porque juntos, não só bons, mas muito bons: Universa bona valde. Julgue agora, ou a rigorosa censura, ou quando menos a devoção e a piedade se foi mais admirável Mãe a Virgem neste segundo parto, em que uniu todos os mistérios do Verbo Encamado, ou na Encarnação do primeiro. Lá disse em boa filosofia Sêneca que aquela só merece o nome de perfeita formosura, que sendo cada uma das partes, de que se compõe, admirável, o todo lhe tira a admiração: Cujus universa facies admirationem singulis partibus ademit. Admi­rável foi aquele primeiro mistério e admirável cada um dos que a ele se seguiram em toda a vida de Cristo; mas a união de todos estes mistérios juntos, sem acrescentar nada a cada um, foi tão multiplicadamente admirável no mesmo todo, que deles se compôs, que se não tirou a admiração a cada uma das partes, ao menos por multiplicada as venceu. E isto basta - quando não sobeje - para que, também nesta circunstância, a Autora deste soberano invento e a Mãe deste novo parto fosse nele mais admirável.

§ VII

Quinta diferença ou prerrogativa dos mistérios do Rosário: a maior eficácia dos mistérios de Cristo unidos no Rosário. 0 Rosário e o ramalhete de mirra da Esposa dos Cantares. 0 Rosário, aljava das setas de Deus. Razão por que a Esposa comparou a Cristo à mirra, não desunida e solta, senão atada. Se a mirra eram gotas, como se podia fazer de gotas um feixe?

Desta união dos mistérios de Cristo no Rosário se segue a quinta diferença ou prerrogativa, que é a de sua maior eficácia, com que obra em nós os excelentes efeitos para que foi instituído. Vulgar é já na experiência aquele antigo axioma da filo­sofia, que a virtude das mesmas causas, posto que iguais, unida, obra mais fortemente. Tão fogo é uma faísca como um incêndio; mas uma faísca não pode queimar uma pedra, um incêndio abrasa cidades inteiras, e no fim há de abrasar todo o mundo. 0 mesmo sucede por nossa dureza aos mistérios de Cristo, ou separados cada um por si, ou juntos, como no Rosário.

É prova singular desta eficácia um texto célebre dos Cantares, muitas vezes ponderado, mas posso dizer confiadamente que nunca até agora bastantemente entendi­do. Fasciculus myrrhae dilectus meus mihi; inter ubera mea commorabitur (Cânt. 1, 12): 0 meu amado - diz a alma santa - é um ramalhete, ou um feixezinho de mirra, o qual eu sempre hei de trazer entre os meus peitos. - Este amado é aquele que só o deve ser, Cristo, Senhor e único bem nosso. Compara-se à mirra, preservativa da corrupção da morte, porque a imortalidade, que perdemos pelo primeiro Adão, pelo segundo a recu­peramos. Mas por que não compara a esposa o seu amado simplesmente à mirra, senão a um ramalhete ou feixezinho dela? 0 ramalhete compõe-se de muitas flores, e o feixe de muitos lenhos atados: e nesse atado consiste a energia da comparação, como expri­mem os dois originais, hebraico e grego, dizendo: alligamentum myrrhae. Pois, se Cris­to é um só, que atou a esposa nele, ou de que compôs este seu atado? Não há dúvida que dos mistérios do mesmo Cristo, o qual neles, sendo um, se considera como muitos. Cristo encarnado, Cristo nascido, Cristo morto, Cristo ressuscitado, e assim dos outros mistérios. E a razão por que os atou e ajuntou a esposa, é porque a mirra - diz Orígenes - ainda que dividida, tem o mesmo cheiro e virtude, unida obra mais fortemente e com maior eficácia: Non diffusam, neque ut libet dispersam, sed colligatam et constrictam, quo scilicet odor suus densior reddatur, et vehementior[28]. Assim também cada mistério de Cristo, ou Cristo em cada mistério tem a mesma e igual virtude; mas unida essa virtude, e unidos esses mistérios, como estão no Rosário, não sendo maior a virtude de cada um divididos, é muito a força de todos juntos para render e penetrar corações.

0 mesmo Cristo diz por Isaías que ele é a seta escolhida que Deus meteu na sua aljava: Posuit me sicut sagittam electam: in pharetra sua abscondit me[29]. De ma­neira que não é Cristo o que nos atira as setas, mas ele é a seta com que Deus nos atira. Pois, na aljava de Deus não há mais que uma seta escolhida? Uma só, mas tantas vezes multiplicada e de tantos modos armada, quantos são os mistérios da vida, da morte e da ressurreição do mesmo Cristo. Nos mistérios Gozosos, armada de brandura, nos Dolo­rosos armada de temor, nos Gloriosos armada de esperança. Quando, pois, considera­mos cada um destes mistérios divididos, atira-nos Deus seta a seta, e por isso lhe resistimos; mas se bem e verdadeiramente os considerarmos juntos, como estão no Ro­sário, então não há coração que resista, porque descarrega Deus nele toda a aljava:

Sagittas meas complebo in eis[30].

E se buscarmos a razão desta eficácia, os três Padres de Teodoreto a deram, excitando e respondendo à mesma questão da mirra, não desunida, mas junta: Quid est quod dilectum suum sponsa, non myrrham, sed fasciculum myrrhae nominat nisi quod dum sancta mens. Christi vitam ex omni parte considerat, contra omnia vitia ex ejus imitatione repugnantes virtutes congregat: A razão por que a esposa comparou a Cristo à mirra, não desunida e solta, senão atada, foi porque considerando a alma, a vida e mistérios de Cristo, não divididos e por partes, senão todos juntos, nenhuma virtude há que não possa achar neles para imitar, senão todas e em grau perfeitíssimo, para impug­nar e vencer todos os vícios contra nós. Assim o definiu o triunvirato dos Padres Gre­gos, com tão lato como sólido fundamento. E qual é? A Teologia o ensina. Porque ainda que Cristo desde o instante de sua conceição teve todas as virtudes infusas em grau perfeitíssimo e heróico, não teve, contudo, o exercício e atos de todas em todos os passos e mistérios de sua vida, senão aquelas que eram convenientes e proporcionadas aos mesmos mistérios. Logo, para que a nossa imitação tivesse em Cristo um exemplar comum e adequado, ou um exemplo universal de todas as virtudes e seus atos, não bastava um só mistério, ou cada um deles somente, senão todos juntos. Isto é: Dum Christi vitam ex omni parte considerat, contra omnia vitia ex ejus imitation repugnan­tes virtutes congregat. Notem-se muito as palavras: Christi vitam ex omni parte. Não bastava considerar a vida de Cristo em uma só parte, ou em um só mistério, senão em todas as partes, e em todos os mistérios: ex omni parte e por isso a Esposa os ajuntou todos no seu Rosário.

E digo no seu Rosário, porque isso quer dizer: Fasciculus myrrhae dilectus meus mihi, inter ubera mea commorabiturt[31]. Bem sei que o não disseram os mais diligentes expositores deste texto, devendo reparar muito em uma grande dificuldade dele. A mirra, como diz Plínio e os outros autores da História Natural, são umas gotas odoríferas, as quais na Arábia, ou espontaneamente sua, ou, picada, lança de si a árvore do mesmo nome. Por isso os Setenta Intérpretes em lugar de fasciculus myrrhae, verte­ram, alligamentum guttae. Mas, se a mirra eram gotas, como se podia fazer de gotas este feixezinho ou este atado: alligamentum? As gotas porventura podem-se atar? Parece que não. E se acaso podem, de que modo? Eu o direi. As gotas, depois de congeladas e sólidas, quais aquelas eram, podem-se atar enfiando-se, como se enfiam as contas do Rosário. Este é pois o modo com que a esposa dizia que havia de atar as gotas da mirra: alligamentum myrrhae; e assim como as mulheres católicas lançam o Rosário ao pesco­ço e o trazem entre os peitos, assim dizia ela que havia de fazer: Inter ubera mea commorabitur.

Nesta forma explicava eu a dificuldade deste texto vulgar, não sem receio da novidade, quando fui achar que o pensamento não era novo, nem meu, senão do grande S. Gregório Niceno, na homilia terceira sobre os Cânticos: Fraternus meus estalligamentum guttae, quod e collo suspendo supra pectus[32] 0 meu amado é um atado ou ajuntamento de gotas de mirra, o qual, pendente do pescoço, trago sobre o peito. -Pode haver explicação mais natural, mais própria e mais expressa? Não pode. E o exemplo e exemplos aconfitmam muito mais. Também o bálsa­moe o alambre, são gotas suadas das árvores, e assim como de um e outro se fazem Rosário, assim fez o seu a esposa das gotas da mirra. Mas, se este era o seu Rosário, como diz a mesma esposa que este mesmo Rosário é o seu amado: Fasciculus myrrhae, alligamentum guttae, dilectus meus mihi? Só isto faltava à sua elegância para fechar com chave de ouro o conceito. 0 seu amado é Cristo, e diz, que o seu Rosário é o seu mesmo amado, porque o Rosário, e toda a matéria do Rosário, não é outra senão o mesmo Cristo. Cristo multiplicado nos seus misté­rios, e os mistérios de Cristo ordenados no Rosário,

§ VIII

Última excelência ou maravilha com que a Virgem, Senhora nossa, foi mais ad­mirável no parto do Rosário que no da Encarnação: o mistério da Encarnação sendo um só, não podia ter divisão nem ordem: porém os mistérios de Cristo, multiplicados no Rosário, têm mais força e poder contra nossos inimigos. O jardim das Rosas nos Cân­ticos de Salomão. As semelhanças do jardim dos Cantares com o exército do Rosário. A admiração dos espíritos angélicos ante a força dos mistérios do Rosário. Os três inimi­gos do homem: o mundo, figurados nos cinqüenta soldados de el-rei Ocosias, a carne e o demônio, e os três terços do Rosário.

Daqui se segue a última excelência ou maravilha com que a Virgem, Senhora nossa, foi mais admirável no parto do Rosário que no da Encarnação do Verbo. E por quê? Porque o mistério da Encarnação, sendo um só, não podia ter divisão nem ordem; porém, os mistérios do mesmo Cristo, multiplicados no Rosário, como nele estão repartidos e ordenados, esta mesma disposição e ordem, os arma de maiores forças, e de maior e mais invencível poder contra nossos inimigos. Ainda estamos nos Cânticos de Salomão, onde a principal esposa é a Virgem Maria, a qual, falando do mesmo amado - que para todas é Cristo - diz assim: Dilectus meus descendit in hortum suum ad areolam aromatum, ut pascatur in hortis, et lilia colligat (Cânt. 6, 11): 0 meu amado desceu ao seu jardim dos aromas, para nos jardins se recrear ou apascentar do cheiro, e colher rosas. - Rosas quer dizer a palavra lilia, como noutra parte provamos largamente. Mas, se o amado desceu a um só jardim: Descendit in hortum suum - como diz a Senhora que foi a colher rosas nos jardins: Ut pascatur in hortis, et lilia colligat? Eram um jardim, e muitos jardins? Sim, diz S. Gregório, de quem é o reparo. E dão a razão literal, Símaco e Pagnino, tresladando areolas, et lineas sulcorum, porque o mesmo jardim por suas linhas estava repartido em diversas quadras, e cada uma delas em outras menores, com proporcionada correspondên­cia e ordem. Assim havia de ser, pois era o jardim das rosas, segundo o desenho e arte, com que a Senhora traçou o seu Rosário, com tantas repartições e divisões, todas tão medidas e ajustadas. E por isso o amado em um só jardim, qual é o Rosário, achou, sem implicação, muitos jardins em que passear e se recrear, e de todos colher rosas: Descendit in hortum suam, ut pascatur in hortis, et lilia colligat.

Viu, pois, Cristo estes jardins de rosas reduzidos a um só jardim do Rosário, podendo-se então dizer do mesmo Senhor com muita propriedade: Cunctaque miratur, quibus est mirabilis ipse[33]- porque no jardim, enquanto um, se via inteiramente a si mesmo, e nos jardins, enquanto muitos, se via também dividido em todos seus mistérios. Louvou a idéia e a obra, e da mesma idéia e da mesma obra formou os louvores da soberana Autora dela, e os declarou com dois nomes e comparações notáveis: a primei­ra, de formosa, como a cidade de Jerusalém: Decora sicut Ierusalem; a segunda, de terrível, como um exército bem-ordenado: Terribilis ut castrorum acies ordinata (Cânt. 6, 3). A comparação de um jardim com uma cidade, e tal como Jerusalém, posto que Salomão, cuja é, a entendesse melhor, não tem dificultosa aplicação. Os corredores ou passeios do jardim, são as ruas; as quadras muradas de murtas, os palácios; os acipres­tes, as torres ou pirâmides; os vazios com as fontes no meio, os pátios; a repartição das aréolas, os aposentos, e os moradores, as flores. Tudo isto para a vista da paz, que isso quer dizer Jerusalém: Visio pacis. Mas para a campanha e para a guerra, que semelhança tem um jardim com um exército? 0 jardim do Rosário, de que se falava, muita. Não só porque é jardim de rosas, que são flores armadas, como disse Boécio: Armat spina rosam, mas pela divisão, proporção, disposição e ordem de que é composto. A força de um exército, como ensina Vegécio, e consta da experiência, não consiste tanto na mul­tidão dos soldados, quanto na boa repartição das armas e dos combatentes, e na disposi­ção e ordem de todo aquele corpo militar e guerreiro, o qual desordenado, desunido e roto, é facilmente vencido; porém, composto, ordenado e unido, é forte impenetrável e invencível. Tal é a forma regular e perfeita de um Rosário, repartido primeiro em três terços, cada terço em cinco esquadrões, cada esquadrão em suas fileiras, cada fileira em uma decúria com seu cabo, e tudo junto com tal disposição, e tal ordem, e proporção de números, que a não pode haver nem imaginar-se maior. E porque esta distinção e ordem a não pode haver em um só mistério, qual é o da Encarnação, por isso foi mais admirável a Virgem no parto do seu Rosário que no da Encarnação do Verbo. Não sou eu o que o digo, senão os que viram e notaram a diferença, e, como mais admirável, a admiraram.

Viram os anjos caminhar a Virgem, Senhora nossa, ou marchar com este seu exército do Rosário, e, admirados, diziam entre si: Quae est isca quae progreditur quasi aurora consurgens, pulchra ut luna, electra ut sol, terribilis ut castrorum acies ordinata[34]? Estas últimas palavras são as mesmas do Esposo, repetidas pelos anjos. E que falem da Virgem Maria enquanto Senhora do Rosário, eles mesmos o dizem, distinguindo a divisão e repartição dos Terços, e a diferença dos mistérios por sua própria ordem. Por isso comparam a Senhora primeiro à aurora, depois à lua, e ultimamente ao sol. Nos primeiros mistérios, e Gozosos, foi a Virgem como aurora, da qual nasceu o verdadeiro sol, Cristo; nos segundos, e Dolorosos, foi como Lua, cheia das dores e eclipses da sua Paixão; nos terceiros, e Gloriosos, foi como o sol, porque nos resplendores da mesma glória venceu a de todos os bem-aventurados. Mas em todas, a consideração destes mistérios, que é o que admiram os anjos, quando perguntam admi­rados: Que est ista? Notai agora, e notai muito, porque o reparo é digno de toda a ponderação. Não admiram o princípio dos mesmos mistérios, senão o progresso deles: por isso dizem: Quae est ista quae progreditur? E qual foi o princípio, e quais os pro­gressos de todos estes mistérios? 0 princípio foi o primeiro mistério, em que a Senhora, como aurora, concebeu e saiu à luz com o Verbo; os progressos foram todos os outros mistérios da vida, morte, e ressurreição do mesmo Cristo, dos quais, e não só do primei­ro, se compôs, distinguiu, e ordenou o Rosário. E estes progressos, assim distintos e ordenados, são os que os anjos admiram na Virgem Maria, quando dizem admirados: Quae est ista quae progreditur?- porque entenderam que mais admirável foi a Senhora no parto, em que saiu à luz com o Rosário, que no do mesmo Verbo.

E parou aqui a admiração dos espíritos angélicos? Não, porque ainda restavam os efeitos e poderes do mesmo Rosário, como exército bem-ordenado, formidável e terrível contra os inimigos. Os inimigos da nossa alma, que também se puderam chamar do corpo, são três: o mundo, a carne, o demônio. E vede como os três terços do Rosário neste exército bem-ordenado se ordenam forte e poderosamente contra eles. Foram estes três inimigos figurados nos três capitães, cada um de cinqüenta soldados, que o pérfido rei Ocosias mandou armados contra o profeta Elias, sobre dois dos quais ele fez descer fogo do céu, que os abrasou, e a todos os seus, dizendo: Si homo Dei sum, descendat ignis de caelo, et devoret te, et quinquaginta tuos (4 Rs. 1, 10): Se sou homem de Deus, como tu me chamas, desça fogo do Céu, que te abrase a ti e aos teus cinqüenta. - Contra estes três inimigos, pois, igualando número a número, ordenou a Senhora os três terços do seu Rosário, composto também de cinqüenta, como outros tantos raios, não só para abrasar dois deles como o homem de Deus, senão todos três, como Mãe de Deus. Os mistérios Gozosos são ordenados contra o mundo, porque a humildade de Nazaré, a aspereza das montanhas, o desampa­ro de Belém, a pobreza das ofertas no Templo, e o cuidado ansioso pelo Menino Deus perdido, que outra coisa contrariam e confundem senão as soberbas, as vaidades, o luxo e pompas do mundo, com perpétuo descuido de perder a Deus, nem dor de o ter perdido? Os mistérios Dolorosos são ordenados contra a carne, porque os suores de sangue no Horto, os açoites contados a milhares no pretório, a púrpura vil e coroa de espinhos, o peso da cruz, os cravos, o fel e a morte nela, que outra coisa contrariam e abominam, senão os gostos, os regalos, as delícias e intemperanças da carne, inimiga da mortificação dos sentidos, e total­mente esquecida da penitência? Finalmente, os mistérios Gloriosos são ordenados contra o demônio, porque a ressurreição e ascensão do Filho de Deus, o trono que tem à destra do Padre, e assunção e coroação de sua Mãe sobre todas as hierarquias, que outra coisa contra­riam, e estão fulminando desde o céu, senão o demônio, que caiu por um só pecado, e as tentações de pecar, com que nos incita e engana a que, por um momento de apetite, perca­mos também, como ele, a eternidade da glória? Assim é terrível e formidável ao mundo, carne e demônio o exército do Rosário, e assim distinguiu e ordenou a Soberana autora dele todos os mistérios da divindade e humanidade de seu Filho, repartidos e opostos de frente a frente, contra o poder sempre forte e armado dos três inimigos comuns. E porque esta repartição e ordem, como tenho dito, não cabia em um só mistério, qual foi o da Encarnação, por isso, ajuízo dos mesmos anjos, foi mais admirável o parto do Rosário, concebido na mente da Virgem, que o do mesmo Verbo Eterno, concebido em seu sacratíssimo ventre:Beatus venter qui te portavit.

§ IX

Se a ordem e disposição do Rosário para os anjos é admirável, para nós seja terrível. Todos os gostos vêm a parar em penas, e só depois das penas se seguem as glórias.

Tenho concluído, se me não engano, e feito provável o que parecia impossí­vel, e claro e manifesto, o que se representava dificultoso no meu argumento. Dele quisera, por fim, que não tirássemos só admirações, senão doutrina e exemplo. Se a ordem e disposição do Rosário para os anjos é admirável, para nós seja terrível: Terribilis ut castrorum acies ordinata[35]. Com tal ordem dispôs a Mãe de Deus os três terços deste seu exército do Rosário, que na vanguarda pôs os Gozosos, na batalha os Doloro­sos, e na retaguarda os Gloriosos, para que entendamos que todos os gostos vêm a parar em penas, e que só depois das penas se seguem as glórias. Oh! que terrível ordem e que temerosa consideração! Se os gostos puríssimos e santíssimos do Filho de Deus e de sua Mãe, vêm a parar nesta vida em penas e dores, e se a glória, que era própria do Filho e tão merecida da Mãe, a não alcançam na outra vida, senão depois de tantas dores e tormentos, que será, ou que esperança podem ter os que tanto fogem das penas, e com tanta ânsia buscam só os gostos falsos e glórias vãs deste mundo?

Virgem Santíssima, Mãe sempre admirável, uma vez Mãe admirável no par­to do Verbo, quinze vezes Mãe admirável no parto do Rosário, e Mãe admirável sem conto nas maravilhas que obrais, e mercês que fazeis aos que nele, e com ele vos vene­ram e servem, alumiai, Mãe admirável, a admirável cegueira, desfazei o admirável en­gano, espertai o admirável descuido e esquecimento da salvação, e ressuscitai a fé mor­ta, em que vivemos. Sendo tantos os títulos, pelos quais o nome de Mãe admirável vos é devido, ainda vos hei de alegar outro mais admirável. Se sois Mãe admirável por Mãe de Deus, muito mais admirável Mãe sois, porque, sendo Mãe de Deus, vos não dedig­nais de ser Mãe de pecadores. Não sejam pois parte nossos pecados, ó Mãe mais que admirável, para que aparteis deles vossos misericordiosos olhos. Alcançai-nos para os passados perdão, para os presentes arrependimento, e para os futuros preservação e cautela, de tal modo que, perseverando na graça de vosso Filho, vos mereçamos ver com ele eternamente no Céu, onde o louvemos, e vos louvemos sem fim na perpétua admiração da sua e vossa glória. Amém.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc. 11, 27).

[2] No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus (Jo. l, 1 s).

[3]  Como se fará isto (Le. 1, 34)?

[4] Bernardinus in eum locum, Tom. 3. Serei. 6. art. 3, cap. 3.

[5] Chrysol. Serm 140.

[6] Ildefonsus, de Wrginit., cap. 10.

[7] A virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra (Lc. 1, 35).

[8] Athanas. Sermon. de Deipara.

[9] Adde Episcop. Almeriensem, qui secutus eosdem PP et Ambros.: Postquam, inquit, Verbum genuit in carne Maria, non cessavit gignere mente, et quasi repetite cum faetum educere, acervumque efiecit geminatis vicibus productionis, quod granam in utero generavit.

[10] Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol (Apc. 12, 1).

[11] E estando prenhada, clamava com dores de parto, e sofria tormentos por parir. E pariu um filho varão, que havia de reger todas as gentes (Apc. 12, 2.5).

[12] Tocado interiormente de dor (Gên. 6, 6).

[13] Pois, por isso o mesmo Senhor vos dará este sinal: Eis que uma virgem conceberá, etc. (Is. 7, 14).

[14] Antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem (Is. 7, 16).

[15] Um pequenino se acha nascido para nós, e um filho nos foi dado a nós (Is. 9, 6).

[16] A sua saída é desde uma extremidade do céu, e corre até a outra extremidade dele (SI. 18, 7).

[17] No sol pôs o seu tabernáculo (SI. 18, 6).

[18] Até quando te debilitarão as delícias, filha vagabunda (Jer. 31, 22).

[19] Aponta-me onde é que tu apascentas o teu gado pelo meio-dia, para que não entre eu a andar feita uma vagabunda atrás dos rebanhos de teus companheiros (Cânt. 1, 6).

[20] Nem nos deixemos levar em roda de todo o vento de doutrina (Ef. 4, 14).

[21] Combatendo Domingos as delícias da carne, e, ferindo como um raio a mente insensível dos ímpios, fez estremecer toda a seita dos hereges

[22] E viu Deus que isto era bom (Gên. 1, 25).

[23] August. in Quaestionibus sup. Genes.

[24] Este é aquele meu querido Filho, em quem tenho posto toda a minha complacência (Mt. 17, 5).

[25]  Ouvi-me vós, que sois uma prosápia divina, e, como rosal plantado sobre as correntes das águas, frutificai. Difundi um cheiro suave como o Líbano. Dai viçosas flores como o lírio, e exalai fragrante cheiro, e lançai graciosos ramos, e entoai cantos de louvor, e bendizei o Senhor nas suas obras. Proclamai a magnificência do seu nome, e glorificai-o com a voz dos vossos lábios e com os cânticos da vossa boca, e ao som de cítaras, e direis assim em seu louvor: Todas as obras do Senhor são muito

boas (Eclo. 39, 17-2 1),

[26] Eu sou a flor do campo, a açucena dos vales (Cânt. 2,10).

[27] Apud Cornelium ibi.

[28] Origenes in comment. hujus loci.

[29] Origenes in comment. hujus loci.

[30] Empregarei neles todas as minhas setas (Dt. 32, 23).

[31] 0 meu amado é para mim como um ramalhete de mirra; ele morará entre os meus peitos (Cânt. 1, 12).

[32] Greg. Nissen. Homil. 3.

[33] Admira tudo o que o torna admirável. Ovidius in Narcis. Het. lib. 111, 424.

[34] Quem é esta que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, escolhida como o sol, terrível como um exército bem-ordenado posto em campo (Cânt. 6, 9)?

[35] Terrível como um exército bem ordenado, posto em campo (Cânt. 6, 9).