Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XXII, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO XXII

Extollens vocem quaedam mulier de turba, dixit illi. Beatus venter qui te porta­vit, et ubera quae suxisti([1]).

§I

A dobrada vulgaridade das palavras de Marcela. Diferença de Davi a Micol na recepção da Arca do Testamento. A devoção popular e as senhoras da fidalguia portu­guesa. Assunto do sermão: todas as mulheres que rezarem o Rosário, posto que ele seja tão vulgar, e vulgar também a língua em que o rezarem, serão mais bem ouvidas na língua portuguesa que todo o Ofício Eclesiástico na latina.

Beatus venter quite portavit...

Assim exclamou em louvor de Cristo e sua Mãe, levantando a voz em língua vulgar, uma mulher do vulgo: Quaedam mulier de turba (Lc. 11, 27). E é para mim singular maravilha que não tenha bastado esta dobrada vulgaridade, para que despreze as mesmas palavras a altiveza de certos espíritos, que até nas matérias da religião e culto divino se não querem parecer com o vulgo. Altiveza chamei a este abuso, e mais propria­mente lhe devera chamar fraqueza, porque é próprio do sexo mais fraco. Não cabe aqui ode turba, porque é vicio das melhores qualidades, nem o quaedam porque é de muitas, mas o mulier sim, e muito em seu próprio lugar, porque é mais próprio das filhas de Eva que dos filhos de Adão. Vejamos uma e outra coisa em que dois exemplos encontrados no mesmo caso e na mesma casa, mas o forte em um homem e o fraco em uma mulher, posto que ambos igualmente ilustríssimos.

Quando foi tresladada a Arca do Testamento, e levada com soleníssima procissão desde a casa de Obededon para a cidade de Davi, ao som de vários instrumen­tos ia o povo muito festival e alegre, dançando diante da Arca. E que fez então o mesmo Davi? Não esquecido de ser rei, mas lembrado, e reconhecido de que o Deus que adora­va na Arca lhe tinha dado a coroa, despido da púrpura e das insígnias reais, se meteu entre os do povo, e não só dançava como os demais, senão que o fazia, como nota a Escritura, com todas as suas forças: Et David saltabat totis viribus ante Dominum (2 Rs. 6, 14). Chegada, pois, a procissão à cidade, estava em uma janela de palácio Micol, filha de el-rei Saul, e mulher do mesmo Davi: e vendo que ele ia dançando diante da Arca de mistura com o vulgo, como vos parece que ficaria edificada? Pareceu-lhe grande desau­toridade aquela, e indigna da majestade de um rei, e logo então, diz o texto, o desprezou, e se desprezou dele: Despexit eum in corde suo (2 Rs. 6, 16) – e depois lhe estranhou muito a ação com palavras do mesmo sentimento e desprezo, e do baixo conceito em que por ela o tivera: Quam gloriosus fuit hodie Rex Israel, discooperiens se, quasi unus de scurris([2]).

O resto, e conclusão de toda a história, fique entretanto para seu lugar: agora só noto a diferença de Davi a Micol. Davi, como homem religioso e sisudo, não duvidou de festejar e celebrar a Arca de Deus com as mesmas demonstrações do povo, metendo-se entre eles e como qualquer deles, porque entendia que diante de Deus o maior e o menor, todos são iguais, e que nas matérias do obséquio e culto Divino, o exercício mais autorizado é o mais vulgar e humilde. Isto é o que fez ejulgou Davi, como homem, e tão grande homem; porém, Micol, como mulher vã e altiva, tinha metido no pensamento que era desautoridade da pessoa seguir a devoção popular, e que a soberania da dignida­de ou sangue ilustre, se deslustrava e abatia se ainda diante de Deus e nas coisas de seu culto não deixasse o vulgar ao vulgo, e se distinguisse tanto dele nos atos de religião, como no demais. Assim o entendeu, assim o disse, e assim o ostentou a presunção daquela mulher, que por seu pai e por seu marido tantas obrigações devia a Deus. E prouvera ao mesmo Deus que não tivera tantas imitadoras no mundo. Perdoem-me as senhoras da nossa terra, não todas – que as mais são dignas de grande veneração – mas algumas, nas quais não só se tem introduzido o abuso dos trajos, tão alheios da antiga modéstia e compostura, mas é tal a reformação do novo cerimonial da fidalguia, que o serem cristãs, como suas avós, já toca em desautoridade.

O tempora! O mores! Antigamente o maior lustre das igrejas, e a parte mais autorizada dos concursos, eram as senhoras portuguesas, onde vinham adorar a Deus com todo o rosto descoberto. Na igreja se confessavam, na igreja comungavam, na igreja ouviam missa e sermão. Mas, o que então só se permitia à extrema enfermidade, se concede hoje à extrema vaidade. 1-lá de ir o confessor a suas casas – perdoe Deus aos que vão – lá se confes­sam, lá ouvem missa, lá comungam. Vede se é maior desautoridade quererem que vá Deus a suas casas, ou virem-no buscar à sua. Se a igreja pudera lá ir, também haviam de esperar que fosse; mas, porque não pode ir a igreja, querem que vão os sacramentos. O demais, ou o de menos, é para os melhores do vulgo. Com grande providência ordenou o Autor dos mesmos Sacramentos, Cristo, que a matéria deles fosse certa e determinada, porque doutra sorte nem os filhos se haviam de batizar em água, nem as mães comungar debaixo de espécies de pão. Mas estas, e outras fidalguias, fiquem para os pregadores de mais perto, e para aqueles – se há algum – a quem os ares da corte não tiverem pegado o contágio.

Eu, recolhendo-me ao meu Rosário, só me queixo por parte dele, que também tem perdido, se não muito grandes devotas, muitas devotas grandes. Entre as senhoras mais ilustres, mais sábias e de maior idade – em que é mais perigoso o exemplo – se tem introduzido, em lugar do Rosário, a reza do ofício Divino, como nas catedrais, sendo já a estante e o Breviário, uma das alfaias do estrado, como se foram do coro. E sou eu porventura tão apaixonado do Rosário, que por ele haja de reprovar um uso, posto que novo, tão pio, tão qualificado, tão universal de toda a Igreja, e tão próprio da cabeça dela? Não é este o meu intento, nem o meu caso. Eu não falo com o Breviário, senão com as devotas dele, e que pela sua devoção deixam a do Rosário. Se nesta troca e eleição fazem acertadamente, ou se enganam, será a nova e ainda não disputada con­trovérsia, que hoje determino tratar. E porque nem por uma hora, que pode durar o discurso, quero que esteja duvidosa a resolução, a que havemos e ouvis será esta. Que assim como a mulher do Evangelho, sendo ela do vulgo, e vulgar a língua em que fala­va, levantou a voz sobre todos: Extollens vocem quaedam mulier de turba– assim todas as mulheres que rezarem o Rosário, posto que ele seja tão vulgar, e vulgar também a língua em que o rezarem, os seus Padre-nossos e Ave-Marias, serão mais bem ouvidos de Deus na língua portuguesa, que todo o Ofício Eclesiástico na Latina. Bem vejo que o assunto me arrisca a perder a ilustríssima graça das interessadas, mas eu a darei por bem perdida se me ajudardes a alcançar a da Senhora das Senhoras. Ave Maria, etc.

§II

A Arca do Testamento e a Virgem, Senhora nossa. A esterilidade perpétua de Micol. A presunção nas orações. O Ave Rabbi de Judas e o Ave Maria do anjo. A oração do publicano e a do religioso de profissão. A oração de Judite. Razão dos nomes de Rubem e Simeão, filhos de Lia. Os Santos Padres e a profundidade das orações do Rosário. Qual deve ser o Breviário das mulheres.

Quaedam mulier de turba. Comecemos pelo fim da história de Davi e Mi­col, cujo remate deixei reservado para este lugar. A Arca do Testamento, que, metido entre o vulgo, festejava Davi, foi figura da Virgem, Senhora nossa, e no mesmo estado em que a considerou a oradora do nosso Evangelho, porque assim como a Arca levava dentro em si a Deus, assim a Virgem em suas entranhas: Beatus venter qui te portavit. Davi saltando diante da Arca foi figura do Batista, que, visitado da mesma Senhora e do Filho Deus que levava dentro em si, também celebrou e festejou sua vinda a saltos: Exultava in gaudio infans in utero medo([3]). Finalmente, Micol, desprezando a devoção e obséquios de Davi, por serem semelhantes aos do vulgo, é figura das que estimam me­nos o exercício do Rosário por vulgar, e lhe antepõem ou preferem outros, como menos autorizados. Não deixarei, porém, de caminho de referir a pena com que Deus castigou a altiveza deste baixo conceito, a qual foi de perpétua esterilidade, e que Micol jamais tivesse filhos: Igitur Michol non est natus filius usque in diem mortis suae([4]). Vemos em Portugal tantas casas ilustres sem herdeiros, e, se se correr a folha às que puderam ser mães, não sei se se acharão culpadas contra o Rosário. O certo é que, não tendo herdeiro a Rainha de França, Dona Branca, S. Domingos lhe aconselhou que rezasse o Rosário, e logo teve um tal filho, como S. Luís.

Vindo, pois, ao nosso intento, para proceder com maior clareza é necessário distinguir nele dois casos. As pessoas do gênero em que falamos, ou antepõem e preferem o Ofício Eclesiástico ao Rosário, por estimação e autoridade própria, ou por pura e sincera devoção: por estimação e autoridade própria, tendo aquele exercício por mais nobre e levantado, como de nenhum modo vulgar; ou por pura e sincera devoção, enten­dendo que aquelas preces e orações, como são mais várias e dilatadas, serão também mais gratas e aceitas a Deus. E em qualquer destes casos ou suposições o que digo resolutamente é que sempre deve preferir o Rosário.

Quanto ao primeiro caso – de que me expedirei muito brevemente – é certo e bem que se advirta e saiba que, se na eleição e preferência do Ofício Eclesiástico entra a presunção e autoridade própria, posto que tácita e oculta, não pode ser sem pecado que destrua a mesma oração. No Salmo cento e oito, falando o profeta de Judas, como decla­ra o apóstolo S. Pedro, diz que a sua oração se converteria em pecado: Oratio ejus fiat in peccatum (SI. 108, 7). E que oração de Judas foi esta tão enganosa e tão enganada como ele? Em todo o texto sagrado não lemos outras palavras de Judas, que possam ter nome de oração, senão aquelas com que saudou a Cristo no Horto, dizendo: Ave Rabbi (Mt. 26, 49). Assim como nós, saudando a Virgem Senhora nossa, no Rosário, dizemos:Ave Maria assim Judas, saudando a Cristo, disse: Ave Rabbi. E posto que essas palavras eram santas, e usadas dos outros apóstolos, quando saudavam reverentemente a seu divino Mestre, viciadas, porém, com a oculta tenção de Judas, vinham a ser pecado, e gravíssimo pecado: Oratio ejus fiat in peccatum. Não quero dizer com isto que o pecado da presunção ou jactância, que se mistura com as orações ou eleição delas, seja tão grave como a falsa saudação de Judas; mas quanto Deus se ofenda e desagrade de seme­lhante presunção nas orações, do que o mesmo Cristo ensinou, o entenderemos.

Foram dois homens orar ao Templo, diz Cristo, um deles religioso de profissão, e outro publicano. Este, com grande humildade, sem se atrever a levantar os olhos ao céu, pedia perdão de seus pecados. E o outro, que fazia ou dizia? Deus, gratias ago tibi, guia non sum sicut caeteri hominum (Lc. 18, 1 I ): Senhor, dou-vos muitas graças, porque não sou como os outros homens. Não orava, diz Santo Agostinho, para rogar a Deus, senão para se engrandecer a si e se antepor aos outros:Ascendens orare, noluitDeum rogare, sed se laudare. E isto mesmo é o que fazem as presumidas do seu modo de orar. O outro dizia dentro em si: apud se: – Senhor, dou-vos muitas graças, porque não sou como os outros homens. – E elas, também dentro em si, estão dizendo com a sua presunção: – Senhor, dou-vos muitas graças, porque não sou como as outras mulheres. Elas rezam pelas contas, eu rezo pelo Breviário; elas rezam Padres-nossos e Ave-Manas, eu rezo hinos e salmos; elas, com o vulgo, rezam em linguagem, e eu rezo em latim, e em tão bom latim, e tão bem pronunciado, que melhor puderam dizer que rezam em grego. Mas como saíram das suas orações os dois oradores? O que rogou por seus pecados saiu com perdão deles, e o que se quis estremar dos outros, e levantar-se sobre todos, saiu com um pecado de mais, que foi o da sua presunção e altiveza. Miséria verdadeiramente grande, que sendo a oração o meio de aplacar e conciliar a Deus, se converta em motivo de o desagradar e ofender, e, em vez de diminuir os pecados, os acrescente: Orado ejus fiat in peccatum.

A este pecado, que queira Deus seja um só, ajunta a presunção no nosso caso outros dois erros, um contra a virtude, outro contra a verdade. Os que estimam menos o Rosá­rio fundam este seu conceito em ser uma devoção vulgar em si, vulgar na língua, e vulgar no exercício e uso comum. E este erro é tão contrário à virtude da oração, como a soberba à humildade. Senhora era, e grande senhora, Judite, e o motivo que alegou a Deus para que a ouvisse e ajudasse em uma empresa tão dificultosa, como a que intentava, foi a humildade da sua oração: Nec superbi ab initio placuerunt tibi: sed humilium et mansuetorum semper tibi placuit deprecatio([5]). Quer dizer: que Deus nunca se agradou de orações misturadas com so­berba, e que a oração que só estima e ouve é a dos humildes, e que se acomodam aos demais, e não se querem preferir aos outros, que isso é o que significa humilium et mansuetorum. Também era grande senhora Lia, mulher do patriarca Jacó, e mãe de seis patriarcas: e vede o que disse, e os nomes que pôs ao primeiro e segundo filho, quando Deus lhos deu. Ao primeiro pôs por nome Rubem, dizendo que Deus vira a sua humildade: Vocavit nomen ejus Ruben, dicens: Vidit Dominus humilitatem meam (Gên. 29, 32); e ao segundo pôs por nome Simeão, dizendo que ouvira Deus a sua oração: Quoniam audivit me Dominus, vocavitque nomen ejus Simeon (Gên. 29, 33). E por que diz Lia que primeiro viu Deus, e depois ouviu, e primeiro viu a sua humildade, e depois ouviu a sua oração? Porque para nossas orações chegarem aos ouvidos de Deus, primeiro hão de ser registadas no tribunal de seus olhos. Se os olhos de Deus vêem que levam alguma mistura de altiveza ou soberba, ali param, e não são admitidas nem passam ao tribunal dos seus ouvidos; porém, se vêem, e consta que são humildes, então é que as ouve, e as despacha e concede quanto lhe pedimos. Primeiro vidit humilitatem meam, e depois, audivit me Dominus. Para que vejam as que oram ou rezam com alguma mistura de jactância, ou menos humildade, se pode Deus ouvir suas orações, nem olhar para elas.

Tudo isto se entende, ou devia entender, quando as orações do Rosário, pela vulgaridade da língua e do uso merecessem nome de vulgares; mas este é o segundo erro, que dizia, contra a verdade, porque verdadeiramente não há orações mais latas, mais levantadas, mais sublimes, assim nas palavras como no sentido, que as do Rosário. Da Sagrada Escritura disse discretamente S. Gregório Papa, que é um rio muito plaino e muito alto, tão plaino que o pode vadear uni cordeiro, tão alto que não toma nele pé um elefante: Est fluvius planus et altus, in quo et agnus ambulet, et elephas natet([6]). Tal é a altura chã, e a profundidade altíssima das orações do Rosário: para os cordeiros peque­nos e simples, fáceis de entender, mas para os elefantes grandes e sábios, não só dificul­tosas, mas impossíveis de vadear. O primeiro que se engolfou neste pego, comentando a primeira oração do Rosário, o Padre-nosso, foi Tertuliano; o segundo, S. Cipriano, am­bos em livros particulares, e, depois deles, Santo Agostinho em quatro tratados diver­sos. Tertuliano, Cipriano, e Agostinho, todos três eram elefantes africanos; mas, posto que passaram felizmente o rio, todos nadaram, nenhum chegou a lhe achar fundo. É a oração do Padre-nosso como seu Autor, que até os meninos o conhecem, mas nem os serafins o compreendem. E contentaram-se porventura os que vieram depois, com ler e admirar o que estas tão insignes penas tinham escrito? De nenhum modo. Todos os padres, todos os teólogos, todos os expositores trabalharam depois, e trabalham ainda hoje por descobrir, e descobrindo o que eles não alcançaram. Dos Santos Padres, assim gregos, como latinos, S. Gregório Niceno, S. Cirilo, S. João Crisóstomo, S. Pedro Crisó­logo, Cassiano, Teofilato, Eutímio; dos teólogos, depois de Santo Tomás, os Caetanos, os Albertos Magnos, os Canísios, os Soares, os Belarminos; dos expositores, os Cartu­sianos, os Hugos, os Abulenses, os Maldonados, os Toledos, os dois Cornélios; e, final­mente, todos.. E verdadeiramente sendo esta primeira oração do Rosário o assunto dos maiores homens que tem tido a Igreja de Deus em mil e seiscentos anos, presunção é mais que monstruosa haver mulheres na nossa idade, que como vulgar a deixem para o vulgo, e, para se estremarem e distinguirem dele, troquem o Rosário pelo Breviário.

Mas, para que conheçam o seu Breviário qual deve ser, de todos os autores que citei, ouçam o primeiro. Falando Tertuliano do Padre-nosso, diz assim: Quantum substrin­gitur verbis, tantum diffunditur sensibus. Negue enim propria tantum orationis officia com­plexa est, venerationem Dei, aut hominis petitionem: sed omnem pene sermonem Domini,omnem comemorationem discipline, ut re vera in oratione Breviarium totius Evangelii comprehendatur. Para quem reza pelo Breviário parece que não era necessário romancear estas palavras; mas porque me não fio tanto da sua gramática, o que querem dizer em português, é isto: que a oração do Padre-nosso, ainda que breve e estreita em palavras, é muito larga e dilatada em sentidos, porque não só abraça as duas partes da oração, que consistem em venerar a Deus e lhe representar nossas petições, mas compreende junta­mente toda a doutrina que a sabedoria de Deus veio do céu ensinar ao mundo, e é um Breviário de todo o Evangelho: totius Evangelii Breviarium. Querem saber as senhoras, e não senhoras, qual é e deve ser o Breviário das mulheres? O Padre-nosso muito bem rezado, advertindo que o outro Breviário o rezam quando muito uma vez no ano, e este Breviário, no Rosário, quinze vezes cada dia. E se querem parecer doutas, ou doutoras, o mesmo documento têm na Ave-Maria. Sendo menino Santo Tomás, tinha nas mãos um papel em que estava escrita a Ave-Maria; e como lho quisessem tirar das mãos, o menino, com instin­to do céu, o meteu na boca, e o mastigou e o engoliu. Mastiguem bem no Rosário a Ave-Maria, e serão tão doutoras como Santo Tomás.

§ III

Ler e entender. Não será maravilha que, onde os entendimentos se enganam com o espelho, se enganem também como Breviário. A instância que os da terra de Cristo opu­seram às sua letras, e a latinidade das devotas do Breviário. A ciência infusa e a ciência das línguas. Se Davi salmeava sete vezes no dia, que razão teve o mesmo profeta para no Salmo XLVI variar  número e o trocar de sete em cinco? Matéria do Salmo XLVI. Bastam só cinco palavras das orações do Rosário, rezadas com inteligência do que significam, para serem preferidas a todo o Oficio Eclesiástico sem ela. O que diz o apóstolo S. Paulo.

Tudo o que até aqui tenho dito, se entende só de algum desvanecimento feminino, se porventura o houvesse em quem por presunção, autoridade ou jactância antepusesse o Breviário ao Rosário. Mas, porque esta suposição ofende muito a piedade e cristandade portuguesa, e mais naquelas ilustres qualidades em que a devoção é tão pura, sincera e exemplar, passando ao segundo e verdadeiro caso, ponhamos na mais reta e fiel balança de uma parte o Breviário, e da outra o Rosário, e vejamos qual deve ser preferido.

248.                Uma muito importante doutrina de Cristo, Mestre Divino e Senhor nosso, é aquela breve sentença: Qui legit, intelligat (Mt. 24, 15): Quem lê, entenda. – Muitos não entendem o que lêem, e ler sem entender é como se não leram. O título da cruz de Cristo foi escrito nas três línguas principais do mundo, hebraica, grega e latina: Eratscriptum hebraice, graece, et latine (Jo. 19, 20). E por que razão em tantas línguas? Para que todos entendessem o que liam no título da cruz. Se estivesse só escrito em hebraico, entendê-lo-iam os hebreus, mas não o entenderiam os gregos nem os latinos; se só em grego, entendê-lo-iam os gregos, mas não os latinos nem os hebreus; se só em latim, entendê-lo-iam os latinos, mas não os hebreus nem os gregos. Pois, para que todos entendam o que lerem, esteja escrito na língua própria e natural de cada um. Isto supos­to, pergunto agora às nossas matronas portuguesas, se quando lêem o Breviário enten­dem o que lêem, ou não? Pode ser que haja muitas que digam que sim o entendem. E não será maravilha que, onde os entendimentos se enganam com o espelho, se enganem também com o Breviário.

Mas contra esta resposta está muito à flor da terra a instância que os da terra e pátria de Cristo opuseram às suas letras. Quando Cristo começou a pregar, e alegar e interpretar Escrituras, diziam os de Nazaré, que o tinham conhecido desde menino: Quomodo hic litteras scit, cum non didicerit (Jo. 7, 15)? Se este nosso patrício nunca estudou nem aprendeu, como sabe letras? – Com a mesma admiração podemos nós dizer das nossas devotas do Breviário: se elas não estudaram nem aprenderam, e o mais que chegaram a saber é ler por letra redonda, donde lhes veio esta latinidade e estas letras? Cristo, além de outros princípios mais altos, sabia o que falava por ciência infu­sa; mas estas infusões de letras não as costuma Deus comunicar a mulheres: a homens sim. Sara ao princípio chamava-se Sarai, e Abraão chamava-se Abrão. E que fez Deus em ambos? A Sara tirou-lhe uma letra do nome, e a Abraão acrescentou-lhe outra, porque aos homens acrescenta Deus as letras, às mulheres não lhas acrescenta, antes lhas tira. A razão desta diferença é a mesma por que o Espírito Santo infundiu a ciência das línguas aos discípulos de Cristo, e não às discípulas. E por quê? Porque àqueles homens fê-los mestres do mundo, e às mulheres proibiu-lhes que o fossem: Docere autem mulieri non permitto([7]). Mas, dado, e concedido sem controvérsia que, ou por infusão do céu, ou por diligência e estudo próprio haja mulheres que tenham tal prática da língua latina que entendam o Breviário, estas ficam fora da nossa questão, e, louvan­do e venerando a sua ciência, só falamos com as que a não têm.

Suposto, pois, que as que lêem – bem ou mal – o Breviário, não entendem os salmos, nem os hinos, nem as lições do Velho e Novo Testamento, nem as lendas e vidas dos Santos, nem as exposições dos Padres, nem as antífonas, versos, orações, e todas as outras partes de que o Ofício Eclesiástico é composto, quem pode negar nem duvi­dar, que seja melhor conselho, e exercício mais grato a Deus, rezar no Rosário os Padre-Nossos e Ave-Marias na língua vulgar e portuguesa, que todos entendem, e não o Breviário na latina, em que não sabem o que dizem? Se alguém neste mundo era mais interessado e pudera ser mais apaixonado pelo Ofício Eclesiástico, era Davi, por duas grandes razões: a primeira, porque a principal matéria do Ofício Eclesiástico são os salmos do mesmo Davi; a segunda, porque a forma do mesmo Ofício, dividido nas Sete Horas Canônicas, também foi tomada dele, e à sua imita­ção – como confessa Barônio – Septies in die laudem dixi tibi([8]). Por isso também o Saltério de Davi se divide e reparte todo pelos sete dias da semana. E, contudo, o mesmo Davi no Salmo quarenta e seis – como observam Rufino, Hugo Cardeal, Ludolfo e outros – nos exorta a que salmeemos, não sete, senão cinco vezes: Psallite Deo nostro, psallite; psallite regi nostro, psallite, quoniam rex omnis terrae Deus, psallite sapienter([9]). Pois, se Davi salmeava sete vezes no dia, e no Ofício Eclesiástico se repetem os mesmos salmos sete vezes e em sete horas distintas, que razão teve o mesmo profeta para neste salmo variar o número, e o trocar de sete em cinco?

Já dissemos muitas vezes que o Saltério antigamente era um, e depois foram dois. O antigo, é o Saltério de Davi; o moderno, é o Saltério da Virgem, Senhora nossa, que este foi o primeiro nome que teve o seu Rosário. Saibamos agora qual é a matéria deste Salmo quarenta e seis, em que o profeta fez uma tão grande mudança. A primeira e principal matéria do dito Salmo, é a subida de Cristo ao céu, que foi o complemento dos mistérios do Rosário: Ascendit Deus in jubilo, et Dominus in voce tubae. Psallite Deo nostro, psallite; psallite Regi nostro, psallite([10]); a segunda, foi a fé e cristandade universal, e o reino do mesmo Cristo em todo o mundo: Quoniam rex omnis terrae Deus: psallite sapienter([11]). Na lei antiga, ainda que Deus era Deus e rei de toda a terra por domínio, por fé só era Deus e rei da terra de Judéia e de Jacó: Tu es ipse rex meus et Deus meus, qui mandas salutes Jacob([12]); porém, na lei da graça, em que a fé se pregou a todo o mundo e a todas as nações: Euntes in mundum universum praedicate omni creaturae([13])e depois que Cristo se assentou à destra do Padre, como diz o mesmo Salmo: Deus sedes super sedem sanctam suam([14])então ficou Deus e rei de toda a terra: Quoniam rex omnis terrae Deus. Neste diferente tempo, pois, e neste diferente estado, exorta particularmente Davi a que se salmeie e reze cinco vezes, que é o número em que se dividem as orações do Rosário, segundo a repartição dos seus mistérios. E por que razão? Ele mesmo o diz nas últimas palavras: Psallite sapienter: salmeai saben­do e entendendo o que dizeis. Assim está mais claro no mesmo original hebreu, em que falou o profeta: Psallite in intelligentia: salmeai e rezai com inteligência, porque no Saltério da Virgem, como se reza em vulgar e na língua própria, é muito fácil a inteli­gência do que se diz, e no Saltério de Davi, não, como ele mesmo advertiu, e quis que advertíssemos.

O Salmo cinqüenta e quatro tem por título: In carminibus intellectus David: nos versos de Davi entendimento. – O mesmo título se repete em muitos outros salmos, advertindo-nos Davi em todos que a sua inteligência não é fácil, mas muito dificultosa. E se isto se verifica e experimenta nos que sabem a língua hebréia, em que foram escri­tos, e a grega e latina, em que estão traduzidos, que conceito farão os que só os pronun­ciam, e verdadeiramente não chegam a dizê-los, por ignorância da língua? Logo, muita razão teve Davi, depois que conheceu como profeta os mistérios de Cristo, e que sobre eles se havia de fundar outro saltério diferente do seu, muita razão teve, digo, não para estimar menos o Ofício Eclesiástico, em que o seu Saltério se repete e reparte nas Sete Horas Canônicas, mas para que este se trocasse pelo Saltério da Virgem, cujos salmos, que são as orações de que consta, se repetem e repartem de cinco em cinco, conforme a divisão dos mistérios, sendo todo ou o principal motivo de o preferir a inteligência dele: Psallite in intelligentia.

Eu não quero nem posso negar, que as Sete Horas Canônicas, em que se reparte o Saltério de Davi, sejam muito mais dilatadas, e que por isso dêem mais tempo a Deus que as cinco décadas de orações, em que se reparte o Saltério ou Rosário da Senhora; mas, reduzindo este mesmo número, não a décadas, ou orações inteiras, senão a palavras somente, digo que bastam só cinco palavras das orações do Rosário, rezadas com inteligência do que significam, para serem preferidas a todo o Ofício Eclesiástico sem ela. Ouçamos neste mesmo caso, não a outro autor ou autores, senão ao apóstolo S. Paulo, cujas definições são de fé. No tempo da primitiva Igreja, em que era muito freqüente o dom das línguas, nem todos os que as falavam as entendiam. Assim o notaram e ensinam Santo Agostinho, Santo Tomás, Santo Ambrósio,  S. Crisóstomo, e outros padres, e o declara Caetano com o exemplo da jumenta de Balaão. E como alguns destes, que falavam em línguas estranhas sem as entender, se prezassem de orar nas mesmas línguas, reprovando S. Paulo este abuso, e alegando consigo mesmo, diz assim:In Ecclesia volo quinque verba sensu meo loqui, quam decem milha verborum in lingua, id est, peregrina (1 Cor. 14, 19): Antes quero dizer só cinco palavras no sentido que eu entendo e me entendem, que dez mil no que não entendo. –Notai a diferença incomparável e a desproporção sem medida, com que o apóstolo antepõe cinco palavras na língua que se entende, a dez mil na que se não entende: Quinque verba in sensu meo, quam decem milha in lingua, id est, peregri­na. No Breviário é verdade que rezais ou pronunciais dez mil palavras, mas também é verdade que as não entendeis; logo, melhor é no Rosário, não só rezar cinco décadas ou cinco orações inteiras, mas cinco palavras somente do Padre-nosso e Ave-Maria, porque é na vossa língua, em que entendeis o que dizeis a Deus.

§ IV

As três utilidades da inteligência da língua em quem reza: o maior gosto, o maior fruto e o maior merecimento e agrado de Deus. O sabor de quem fala ou reza é saber o que diz. O preceito de Davi: orar saborosamente. O mel e a cera da oração. O sabor da oração nos Cânticos dos Cânticos. O Breviário, e o livro doce de Ezequiel. Os que não entendem o que rezam, e o maná.

Para que se conheça, pois, quanto importa esta inteligência da língua própria em quem reza, e quanto se perde e impede por falta dela, vejamos as razões de utilidade, que na mesma inteligência se encerram, as quais eu, para maior brevidade e compreen­são, reduzo a três, e são estas: primeira, porque assim se reza com maior gosto; segunda, com maior fruto; terceira, com maior merecimento e agrado de Deus.

Quanto ao gosto, ainda sensivelmente, é sem dúvida porque o sabor de quem fala ou reza é saber o que diz. Por isso o nome de sabedoria se derivou do sabor, e uma e outra coisa é sapere. Tanto assim que S. Basílio, S. Bernardo, Dionísio Cartusiano, e outros graves autores, declarando as palavras de Davi: Psallite sapienter, dizem que aquele sapienter vale o mesmo que sapide: saborosamente. E funda-se esta interpreta­ção no mesmo original hebreu: Psallite in intelligentia, porque só quem ora com inteli­gência do que diz ora com sabor. As palavras de S. Basílio são estas: Si quis ad vim verbi cujusque animo etiam ita afficiatur, quemadmodum gustatu ad qualitatem cujusque cibi, prorsus hic mandato illi satisfacit: Psallite sapienter([15]): Aquele que rezando entende as palavras que pronuncia, e percebe o sabor de cada uma delas, assim como o sentido do gosto o sabor do que come, este tal é somente o que satisfaz ao preceito de Davi: Psallite sapienter, porque ora saborosamente. – Até aqui o grande Basílio.

E que diz S. Bernardo, como doutor sempre melífluo? Cibus in ore, psalmus in corde sapit: mel in cera, devotio in litera est: O comer sabe na boca: o salmo e a oração não têm o sabor na boca, em que se pronunciam as palavras, senão no entendimento com que se diz a Deus o que elas dizem. – Por isso a Davi lhe eram mais doces que um favo de mel: Et dulciora super mel et favum([16]). Considera, pois, S. Bernardo que no favo há mel e cera, e com a diferença desta comparação distingue a oração saborosa da que não tem sabor: Mel in cera, devotio in litera est: assim como o mel está na cera, assim a devoção está na letra. – Se entendeis a letra do que rezais, gostais o mel; se a não entendeis, mastigais a cera. Isto é o que sucede às que rezam o Breviário na língua que não entendem; mastigam a cera sem nenhum sabor, quando puderam gostar o mel, rezando na sua língua.

Ouçam ao mesmo Cristo, o qual também falava com mulher, quando disse: Favus distillans labia tua, sponsa; mel et lac sub lingua tua (Cânt. 4, 11): A vossa boca, esposa minha, é um favo, não seco – que então seria somente cera – mas cheio e redundante de suavíssimo licor, que debaixo da vossa língua é mel e leite. – O leite no nosso caso é aparte de - suavidade que acrescenta às orações do Rosário a meditação dos mistérios de Cristo e da Beatíssima Mãe, que o trouxe em suas entranhas e alimentou a seus peitos: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti. Mas, por que razão esta doçura não diz o Esposo que estava na língua, senão debaixo da língua: sub lingua tua? Porque o sabor da oração não está no que se pronuncia com a língua, senão no sentido e significação do que se pronuncia; não está no que soam as palavras, senão no que se entende debaixo delas: sub lingua tua. E, se fizermos particular reflexão no tua, acharemos uma nova energia, ou discreto equívoco, com que o Esposo quis significar à esposa, que a doçura e suavidade do que se diz, não a pode sentir nem gostar uma mulher orando na língua estranha, senão na sua: sub lingua tua.

O mesmo se entende dos homens que rezam o Breviário, se para eles for estranha a língua latina. Ao profeta Ezequiel, que era homem, e grande homem, apare­ceu a mão de um anjo com um livro, mandando-lhe que o comesse: Comede volumen istud (Ezeq. 3, 1): Comeu-o ele, e diz que o achou na boca tão doce como o mel: Come­di, et factum est in ore meo sicut mel dulce (Ezeq. 3, 3). Se o texto parara aqui, e não declarara mais, bastava dizer que o profeta achara doce o livro, para se coligir que estava escrito em língua que ele entendia, porque se a não entendera, não lhe havia de achar sabor. Mas assim o declarou logo o anjo, dizendo: Non enim ad populum ignotae linguae tu mitteris([17]). E como o livro não era de língua estranha, senão sabida, e a própria e vulgar da sua nação, por isso o achou doce como o mel. Soube-lhe ao que sabia, porque entendia o que significava. Tal é o Breviário para os que o entendem. E para os que o não entendem, como será? Parece-me a mim que será como o maná antes de gostado. Quando a primeira vez choveu o maná, começaram a dizer os que não sabiam o que aquilo era: Manhu? Quid est hoc (Êx. 16, 15)? Que é isto ? – Gostado, era maná, não gostado, era manhu. Para os que o entendem e o gostam, é o Breviário um maná do céu, que tem todos os sabores: para os que o não entendem, nem podem gostar, é um perpétuo manhu, porque a quanto lêem estão dizendo: Quid est hoc? Que é isto? – porque não sabem o que quer dizer. Rezem, logo, pelo Rosário, cujas orações entendem e são muito saborosas, que o demais é uma devoção muito sem sabor.

§V

O fruto da oração entendida. A oração dos que rezam em língua estranha sem entender, nada mais é que um pouco de vento. Qual é a razão por que as palavras com que oramos, se não entendemos o que significam, não produzem fruto? Os afetos que nos excitam as palavras do Padre-nosso e da Ave-Maria. O castigo que Deus mandou ao povo de Israel: ler mas não entender as Escrituras.

E se rezar sem entender é orar sem gosto, ainda é pior defeito o segundo, que é orar sem fruto. Não sou eu o que o digo, senão o apóstolo S. Paulo, impugnando e conde­nando – como acima disse – aos que em seu tempo oravam em língua que não entendiam: Si orem lingua, spiritus meus orat, mens autem mea sine fructu est (1 Cor. 14, 14): Se eu orar em língua, que não entendo, o meu espírito é o que ora, e a minha alma fica sem fruto. – Estas palavras não só têm dado ocasião a várias interpretações, mas parece que, entendi­das assim como soam, contêm uma implicação manifesta. O espírito e a alma é a mesma coisa, e, se têm alguma diferença, é que a palavra espírito significa a parte superior da mesma alma. Pois, se quando S. Paulo orasse em língua estranha, confessa que ora o seu espírito: Si orem lingua, spiritus meus orat–como diz que orando deste modo a sua alma fica sem fruto: Mens autem mea sine fructu est? Bem apertada estava a instância, e bem se seguia a implicação, se a palavra espírito significasse neste lugar a parte superior da alma, como quando a Virgem, Senhora nossa, disse: Magnificat anima mea Dominum, et exulta­vit spiritus meus in Deo salutari meo([18]). Porém spiritus neste texto significa o ar da respi­ração, com que a língua faz a voz e forma a palavra, e é o mesmo que halitus. Spiritus hic sermo intelligendus est, diz Primásio, e Comélio, ainda mais propriamente: Spiritus meus, id est, vox mea spiritu vitali et vocali prolata. De sorte que falou aqui S. Paulo como altíssimo filósofo, e eloqüentíssimo orador: como filósofo, porque, segundo a definição de Aristóteles, a voz não é mais que o ar da respiração, movido com a língua: Vox est ictus aeris respiratione attracti; e como eloqüentíssimo orador, porque, para atenuar o pouco que são e valem as palavras, quando quem as pronuncia não entende o sentido delas, nem lhes quis chamar vozes nem palavras, senão um pouco de ar. E assim vem a ser a sentença do apóstolo esta: Se eu oro – ou orasse – em língua que não entendo: Si orem lingua – quem ora no tal caso não é a minha alma, senão um pouco de vento, porque é o ar da minha respiração: Spiritus meus orat; e como a minha alma não é a que ora, por isso fica sem fruto: Mens autem mea sine fructu est. O exemplo com que confirma esta sua doutrina o  apóstolo, é muito como seu: Nunc autem, fratres, si venero ad vos linguis loquens: quid vobis prodero (1 Cor.. 14, 6). Pergunto, meus irmãos – diz Paulo – se eu, usando do dom de línguas que tenho, vos pregar em língua que não entendeis, aproveitar-vos-eis, ou farei algum fruto em vós? –Claro está que não. Pois assim como eu pregando em língua que não entendeis, vos não posso aproveitar a vós, assim também, se orarem língua que eu não entendo, não me posso aproveitar a mim: Mens autem mea sine fructu est.

E qual é a razão por que as palavras com que oramos, se não entendemos o que significam, ainda que fôssemos tão santos como S. Paulo, não produzem fruto? A razão é porque o fruto da oração consiste nos afetos da nossa alma para com Deus e para conosco, e as palavras, cujo sentido não entendemos, não podem excitar nem produzir estes afetos. O mesmo S. Paulo o declarou em outro lugar, como se falasse sinaladamen­te com os que rezam o Breviário: Loquentes vobismetipsis in psalmis, et hymnis, et canticis spiritualibus, cantantes et psallentes in cordibus vestris Domino (Ef. 5, 19): Quando rezais hinos, e salmos, e cânticos – que é o que se faz no Breviário – há de ser de maneira que com as palavras vos faleis a vós mesmos, e com o coração louveis a Deus: com as palavras a vós mesmos: loquentes vibismetipsis; e com o coração a Deus: in cordibus vestri Domino. – Mas quando eu não entendo o que diz o hino, nem o salmo, nem o cântico, como pode esse hino, esse salmo e esse cântico excitar em mimos afetos que significam as suas palavras, se para mim, que somente as pronuncio com a língua, são um mero som formado no ar, sem significação alguma? Ore eu em língua que enten­do – e melhor, se for na própria – e logo o sentido das palavras se fará sentir nos afetos, e a mesma língua, como se fosse de fogo, o pegará ao coração. Não afirmo que isto quisesse dizer Davi, mas querendo, ou não querendo, as tuas palavras o dizem: Conca­luit cor meum intra me; et in meditatione mea exardescet ignis. Locutus sum in lingua mea (SI. 38, 4 s): O meu coração concebeu tal calor dentro em mim, que na minha oração se abrasou em fogo. – E donde lhe vieram ao coração tão ardentes afetos? Locu­tus sum in lingua mea: porque falei na minha língua. – Se isto quis dizer Davi, basta que ele o diga, e se não foi esse o seu pensamento, seja a prova a vossa experiência. Vós, que não entendeis o Breviário, por ser em outra língua, rezai o Rosário na vossa, e vede se há palavra nas suas orações que da língua ao coração não excite ardentíssimos afetos?

Se digo Padre-nosso, esta palavra me excita a amar um Deus que me criou, e de nada me deu o ser que tenho, e a não degenerar de filho de tão soberano Pai. Se digo: que estás no céu – esta palavra me lembra que o céu, e não a terra, é a minha pátria, e que viva na passagem deste mundo como quem há de viver lá eternamente. Se digo: santificado seja o teu nome – esta palavra me ensina a veneração com que devo tomar na boca o nome de Deus, e a verdade com que, sendo necessário, hei de jurar por ele. Se digo: Venha a nós o teu reino– esta palavra, verdadeiramente saudosa, me admoesta do fim, para que fui criado, e que se agora sirvo neste cativeiro entre os homens, é para depois reinar entre os anjos. Se digo: Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu – esta palavra conforma a minha vontade com a divina, para que, querendo o que ele quer, tudo o que se faz ou sucede seja também o que eu quero. Se digo: O pão nosso de cada dia nos dá hoje – nesta palavra me livro de todos os cuidados da vida, e com os seguros tesouros de não desejar supérfluo, sou mais rico que todos os ambiciosos do mundo. Se digo: Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos – com este pequeno cabedal de perdoar o pouco que me devem, pago as infinitas dívidas de quanto devo a Deus, pelo que dele recebi e o tenho ofendido. Se digo: Não nos deixes cair em tentação – nesta palavra reconheço, para a cautela, a própria fraqueza, e me ponho naquelas poderosas mãos, de quem só me pode ter mão para que não caia. Se digo, finalmente: Mas livra-nos de mal – nesta última palavra confesso que muitos dos que tenho por bens, verdadeiramente são males, e que só me pode livrar deles quem só os antevê e conhece.

As palavras da Ave-Maria não são menos excelentes que os afetos a que nos excitam. Se digo: Ave-Maria – nesta palavra saúdo aquela Senhora, que o é de toda a saúde, e sem cujo patrocínio ninguém alcançou a eterna. Se digo: Cheia de Graça – nesta palavra me persuado que a graça foi a sua maior felicidade, e que todas as felicidades sem graça são a suma miséria. Se digo: O Senhor é contigo – esta palavra me anima a estar sempre com Deus por amor e obediência, e jamais, por nenhum caso, me apartar dele. Se digo: Benta és tu entre as mulheres – esta palavra me traz à memória a maldição de Eva, e a de quantos por causa de suas filhas têm sido malditos. Se digo: Bento é o fruto do teu ventre Jesus – esta palavra me avisa que, assim como aquele fruto bendito foi o Salvador, assim o de todas as minhas obras deve ser a salvação. Se digo: Santa Maria, Mãe de Deus – esta palavra, fiado em sua benignidade, me prostra a seus soberanos pés para perpétuo escravo de tal Senhora e filho de tal Mãe. Se digo: Roga por nós pecadores – esta palavra me prega que o que sobretudo devo procurar com maior ânsia e com maior contrição, é o perdão dos pecados. E se, finalmente, digo: Agora, e na hora da nossa morte – esta palavra acaba de me desenganar que despreze e não faça caso de quanto acaba com a vida, e que a minha vida seja tal como quisera ter vivido na morte, e que esta pode ser nesta mesma hora. Estes são parte dos afetos a que nos excitam as orações e palavras do Rosário, por serem rezadas e entendidas na nossa língua vulgar, para que vejam as devotas do Breviário, se são tantos e tão proveitosos os que dele tiram em latim, como estes em português.

Oh! queira Deus, que isto que parece devoção, não seja castigo! Quis Deus castigar severamente os filhos de Israel, e o castigo que fulminou contra eles, foi que lendo as Escrituras não as entendessem. Denunciou ao povo esta sentença de Deus o profeta Isaías, e para lha dar bem a entender, foi com este exemplo. Se mostrarem um livro fechado a um homem que sabe ler, e lhe perguntarem o que diz aquele livro, res­ponderá que não sabe, porque está fechado. E se mostrarem o mesmo livro aberto a outro homem que não saiba ler, perguntado do mesmo modo que diz o livro, responderá que não sabe, porque não aprendeu letras. Pois, desta mesma sorte – diz o profeta – te castigará Deus, ó povo cego, porque, ou lendo ou não lendo as Escrituras, não entende­rás o que dizem: Et erit vobis visio omnium sicut verba libri signati, quem cum dederint scienti litteras, dicent: Lege istum: et respondebit: Non possum, signatus est enfim. Et dabitur liber nescienti litteras, diceturque ei: Lege; et respondebit: Nescio litteras([19]). Em suma, que o castigo que Deus mandou àquele povo, foi que, ou abrissem ou não abrissem o livro das Escrituras, ou o lessem ou o não lessem, não o entenderiam. E tal é o Breviário para quem o não entende. Se não entendeis o que diz, ou o leiais ou não leiais, ou rezeis ou não rezeis, tanto importa o vosso Breviário fechado como aberto. Deixai agora o Rosário por esse livro.

§ VI

O maior agrado de Deus: Assim como Deus se agrada muito da oração que é oração, assim se não pode agradar da que o não é. O pedir entendendo e o pedir não entendendo. Como pede Davi a Deus que entenda as suas palavras? As orações que não chegam à notícia de Deus. As vozes das aves e as vozes dos homens. Por que me hei de contentar de louvar a Deus como um rouxinol, se o posso louvar como um anjo? Até nos instrumentos inanimados é necessário haver significação e inteligência. Por que não diz Davi que louvemos instrumen­tos a Deus, senão que louvem a Deus os homens com os instrumentos?

E para que vejais o pouco que Deus se agrada de semelhantes leituras, lidas mas não entendidas–que era o terceiro defeito–considerai que, assim como Deus se agrada muito da oração que é oração, assim se não pode agradar da que o não é. Não sou eu o que lhe nego este atributo, senão o mesmo Mestre Divino da oração, Cristo, Senhor nosso, em umas notá­veis palavras: Quaecumque orantes petitis, credite guia accipietis (Mc. I I , 24): Tudo o que pedirdes a Deus orando, crede que o recebereis. – Orar, é pedir a Deus: pois, como distingue Cristo o pedir orando do pedir não orando? Porque o pedir orando ou não orando, são duas coisas tão distintas, como pedir entendendo ou não entendendo o que peço. Por isso S. João Damasceno, a quem seguem todos os teólogos, definiu a oração: Ascensio mentis in Deum([20]): o orar é levantar a mente a Deus – e diz a mente, porque esta é na alma a parte intelectual, e com que entendemos. Se entendo o que peço, o meu pedir é orar, e se não entendo o que peço, nem o meu pedir é orar nem o meu orar é pedir. Como pode logo Deus agradar-se de umas vozes vãs e sem alma, que só têm nome de orações e não são oração?

Direis que, ainda que não entendais o que dizeis, Deus, com quem falais, o entende; que menos entendem as suas vozes as aves, e, contudo, louvam a Deus com seu canto; que até o som dos instrumentos mortos e sem sentido, lhe é tão aceito e agradá­vel, como bem significou Davi com aquele seu laudate tão inculcado e repetido: Lauda-te eum in sono tubae; laudate eum in psalterio et cithara. Laudate eum in tympano et choro; laudate eum in chordis et organo. Laudate eum in cymbalis benesonantibus; laudate eum in cymbalis jubilationis([21]). Logo injustamente se desaprovam as vozes humanas e racionais, por não serem entendidas de quem as pronuncia, se até as sensiti­vas e insensíveis louvam e glorificam a Deus. Respondo em geral, que tão fora estão todas estas réplicas, ou contraditas, de provar o contrário do que vou dizendo, que antes são novas razões que mais o confirmam. E assim as irei desfazendo por uma parte, e por outra estabelecendo esta mesma proposição em que estamos.

Primeiramente, dizer que Deus entende o que vós rezais, quando vós o não entendeis, é falso. Ouvi ao mesmo Davi, que acabastes de alegar: Verba mea auribus percipe, Domine; intellige clamorem meum (SI. 5, 2): Percebei, Senhor – diz Davi – as minhas palavras, e entendei os meus clamores. – Por certo, que se outrem fizera esta petição, não só pareceria escusada, mas muito indiscreta. Deus tudo percebe, tudo en­tende, e não pode deixar de o entender, ainda que nós queiramos e lho roguemos. Pois, como pede Davi a Deus neste salmo que entenda as suas palavras? Porque assim este salmo, como os demais, não o fez Davi só para si, senão geralmente para todos os que o haviam de rezar, e entre eles havia de haver alguns, cujas palavras Deus não havia de entender, posto que fossem as mesmas. E quem são estes, cujas palavras Deus não havia de entender? São aqueles que as dizem sem eles entender o que significam. A razão é manifesta, e fundada na mesma excelência do entendimento divino, porque Deus não entende nem pode entender as coisas senão como elas são. E como as palavras são significativas dos conceitos, e eu, quando pronuncio as palavras que não entendo, não faço conceito do que elas significam, como pode Deus entender o que lhe digo, se eu lho não digo? Dizei e bradai a Deus quanto quiserdes, que ele nem há de entender as vossas palavras, nem os vossos clamores, porque quanto vós dizeis e bradais, também vós o não entendeis. Entendei primeiro o que lhe quereis dizer, e então entenderá ele o que vós lhe disserdes. Notai finalmente o que notou agudamente Astério, neste mesmo ver­so de Davi, advertindo que não disse: sermonem meum, senão: verba mea – porque palavras desatadas não fazem oração nem têm sentido. E tais são todas as do Breviário, para quem as não entende, que neste caso não é só o que reza, senão também Deus.

E porque esta filosofia por muito delgada não pareça menos sólida, ouvi a S. Paulo escrevendo aos filipenses: In omni oratione, et obsecratione, cum gratiarum ac­tione petitiones vestrae innotescant apud Deum (Flp. 4, 6): Quando orais, seja de tal modo, que em toda a vossa oração e em todos os atos dela, cheguem as vossas petições à notícia de Deus. – À notícia de Deus? Innotescant apud Deum? E pode haver orações que não cheguem à notícia de Deus, que tudo conhece, tudo entende, tudo sabe, e nada se lhe esconde? Sim, diz o maior letrado de todos os apóstolos, ou assim o supõe. E, posto que os intérpretes, declarando estas mesmas palavras, apontam vários modos em que nas orações humanas se verifica o não chegarem à notícia de Deus, nenhum é mais próprio e rigoroso que o do nosso caso, quando quem faz oração a Deus não entende o que lhe diz. Logo, mal fundada é a vossa réplica, em dizer que se vós não entendeis oque rezais, basta que Deus o entenda. Acomodai-vos, pois, a trocar o Breviário pelo Rosário, e em lugar dos três noturnos, que são muito escuros, rezai os três terços, que são muito claros, e em lugar das sete Horas Canônicas, as sete petições do Padre-nosso.

A outra réplica era que, se as vozes das aves, que elas não entendem, louvam a Deus, quanto mais as racionais e humanas? Também esta suposição é falsa, porque as vozes, que o homem pronuncia e não entende, rigorosamente não são humanas, posto que o pareçam. Por isso Caetano comparou às do animal de Balaão as dos coríntios, que S. Paulo repreende porque oravam em língua que não entendiam. As vozes que a natu­reza deu aos animais, todas têm suas significações, porque de um modo declaram a fome, doutro modo a ira, doutro modo a dor, e assim das outras paixões, apetites ou instintos, ainda que irracionais e brutos. E se estas significações do seu mugir, balar, rinchar, uivar e bramir se acham nos animais sem razão, não é grande afronta dos que têm uso dela, falarem sem entender o que dizem? O exemplo do canto das aves, posto que tenha mais harmonia, não é menos ignominioso. Por que me hei de contentar de louvar a Deus como um rouxinol, se o posso louvar como um anjo? Por que me hei de contentar de lhe dar a alvorada como um canário ou pintassilgo, se o posso fazer como um serafim? Ainda posso voar mais alto rezando o Rosário. Se digo Ave-Maria, falo como S. Gabriel; se digo Padre-nosso, falo como Cristo. E por que a censura desta réplica não seja só minha, ouvi a de S. Boaventura: Qui sola voce precatur sine mentis applicatione, nesciens quid dicat, quis non videt hunc psittaco similem esse? Aquele que ora, ou cuida que ora, sem entender nem saber o que diz, quem não vê que é seme­lhante ao papagaio? – Só quem tiver o juízo tão verde como eles não verá a verdade desta semelhança, e muito mais a deformidade dela.

Só resta a réplica dos instrumentos, a qual, para melhor vos confutar, vos concedo. Nem vós entendeis o que dizeis, nem eles o que soam, e é muito honrada consolação que tomeis o Breviário nas mãos para louvar a Deus como as harpas, como os órgãos e como os sinos. Mas destes mesmos instrumentos insensíveis forma um va­lentíssimo argumento o tantas vezes alegado S. Paulo: Quae sine anima sunt vocem dantia, sive tibia, sive cithara; nisi distinctionem sonituum dederint, quomodo scitur id quod canitur, aut quod citharizatur([22])? Os instrumentos, que não têm alma e têm voz, se não distinguirem os sons, como se há de entender o que significam? De sorte que até nos instrumentos inanimados são necessárias três coisas: o som, a significação do que soam, e a inteligência do que significam, porque, se faltar esta significação e esta inteligência, os instrumentos por si sós de nada servem. Põe o exemplo o mesmo apóstolo na trombe­ta: Etenim si incertam vocem det tuba, quis parabit se ad bellum([23])? A trombeta toca a marchar, a fazer alto, a acometer, a retirar, e a todos os outros movimentos militares, mas estas distinções e inteligências não as faz a trombeta, senão o trombeta. O homem que a governa é o que a anima, porque a voz do instrumento é voz sem alma: Sine anima sunt vocem dantia – e como a alma da voz é a significação e a inteligência, ainda nos instrumentos, com que se alegava, bem se prova delas e com eles quão pouco vai o som das vozes em quem ora, se lhe faltar a inteligência do que significam.

Nem o texto ou textos de Davi citados persuadem o contrário, antes decla­ram e confirmam mais esta mesma verdade. Nenhum daqueles textos – coisa muito digna de se notar – diz que os instrumentos louvem a Deus, senão que os homens lou­vem a Deus com eles: Laudate eum in sono tubae; laudate eum in psalterio et cithara: Não diz que louvem a Deus as trombetas, os saltérios e as cítaras, senão que os homens o louvem com as cítaras, com os saltérios e com as trombetas. Laudate eum in tympano et choro; laudate eum in chordis et organo: Não diz que louvem a Deus os atabales, as cordas e os órgãos, senão que os homens o louvem com os órgãos, com as cordas e com os atabales. Laudate eum in cymbalis benesonantibus; laudate eum in cymbalis jubila­tionis: Não diz que louvem a Deus os sinos bem-soantes, nem os repiques alegres, senão que os homens o louvem com o som dos sinos e dos repiques. E por que não diz Davi que louvem os instrumentos a Deus, senão que louvem a Deus os homens com os instru­mentos? Porque nos instrumentos estão as vozes, nos homens está a inteligência, e os louvores de Deus não se compõem só das vozes sem inteligência, que estão nos instru­mentos, senão da inteligência junta com as vozes, que está nos homens.

§ VII

As religiosas e o Breviário Romano. Razões que a Igreja tem e teve desde seu princípio para no Ofício Eclesiástico não usar das línguas vulgares, senão da latina. Rezar o Breviário ainda que se não entenda, sempre é bom; rezar, porém, o mesmo Breviário entendendo-o é muito melhor. O preceito e a devoção. As razões da própria Senhora do Rosário. Naamã Siro, e o remédio fácil e vulgar do Jordão.

De tudo o que até aqui temos disputado e discorrido, parece que já fica resoluta e fora de controvérsia a nossa questão, dentro dos temias em que a propusemos: não entre o Breviário e o Rosário, absolutamente e para todos, mas em respeito daquelas pessoas somente, a quem falta a notícia e prática da língua latina, bastante a entender o Ofício Eclesiástico. E para que o devoto femíneo sexo conheça quão reta e desinteressada é atenção, com que tenho advogado pela justiça desta causa, e não pareça que dissimulo e passo em silêncio o argumento e exemplo, que mais favorece a sua parte, quero acabar pondo em campo por ela, vestidas de diferentes hábitos e insígnias, todas as religiosas de todas as nações católicas, as quais também geralmente não sabem mais que a sua língua, e, contudo, usam do Breviário Romano, e rezam o Ofício Eclesiástico na língua latina. Logo, se por preceito da Igreja universal e pelos estatutos particulares das suas religiões, são obrigadas às mesmas Horas Canônicas na mesma língua latina, que não entendem–e não se pode dizer que este uso não seja muito santo, ou contenha alguma imperfeição – segue-se que o mesmo podem fazer, e tão louvavelmente como elas, todas as que não são regulares. A conseqüência parece forçosa, mas respondo que nem se segue nem seria tão louvável.

As muitas razões que a Igreja Católica tem e teve desde seu princípio para no Ofício Eclesiástico, como também nas Escrituras Divinas, na Missa e nas formas dos Sacramentos não usar das línguas vulgares, senão da latina, se reduzem principalmente a duas: a primeira, pela majestade das coisas Sagradas e culto divino, que nos ouvidos e entendimentos dos rudes podia perder parte da reverência e estimação, e ficar exposto a muitas interpretações, não só indignas, mas erradas([24]). A segunda, porque sendo a Igreja Católica uma só, também convinha que a língua de que usasse em todas as partes do mundo fosse assim mesmo uma, e essa a mais comum e universal, qual é a latina. E, posto que no Ofício Eclesiástico tenham obrigação de a saber os homens, a quem é mais fácil, e não as mulheres, contudo, para que em todos os coros públicos se guardasse a mesma uniformidade, foi mais conveniente que também elas rezassem na mesma língua. De nenhum modo, porém, se segue que seria igualmente louvável este uso nas que não são regulares, porque esta é a diferença que há entre as coisas que se fazem por obrigação e preceito, em que o legislador atende ao bem comum, ou por eleição própria e livre, em que cada um deve atender ao bem e conveniência particular. E desta mesma diferença se conclui que nunca as que não são regulares, rezando o mesmo Ofício, igualariam o merecimento das regulares, porque nestas supre a obrigação e obediência o que naquelas perde a própria vontade e eleição, quando é melhoro que deixam que o que escolhem.

É doutrina de S. Paulo que sempre se deve escolher o melhor: Aemulamini charis­mata meliora([25]). E não era necessário para isso a sua autoridade, porque assim o ensina a prudência e ditame natural da razão. Quando a escolha é entre o mal e o bem, há-sede escolher o bem, e deixar-se o mal; mas quando é entre o bom e o melhor – como a nossa – há-se de escolher o melhor, e deixar-se o bom. Esta verdade, ditada pela natureza e canonizada pela fé, é a que eu pretendi persuadir em todo este discurso. Rezar o Breviário, ainda que se não entenda, sempre é bom, porque é ato de religião e culto divino, e modo geral de honrar, venerar e louvar a Deus. Rezar, porém, o mesmo Breviário entendendo-o, é melhor e muito melhor, porque, além deste culto geral, logra as vantagens do sabor, do fruto e dos afetos particulares, que estão encerrados na inteligência das palavras, a que Santo Tomás, e todos os teólogos, assim escolásticos como ascéticos, chamam pasto espiritual da alma, do qual em próprios termos dizia Davi: Sicut adipe et pinguedine anima mea, et labiis exultationis laudabit os meus([26]). E como entre o bom e melhor do Breviário, rezado com inteligência ou sem ela, há tão grande diferença, que fará uma mulher que o não entende, para conseguir o melhor? Aqui se vêem os grandes privilégios da religião. Se é religiosa, não pode deixar o Breviário, nem o deve trocar; mas se não é religiosa, deve-o deixar e trocá-lo pelo Rosário. E por quê? Porque na religiosa o que por si é somente bom, por virtude da obediência sobe a ser o melhor; e na que não é religiosa, que obra por própria eleição, e não por obediência, o que é somente bom, não pode passar a ser melhor, senão trocando-se. E a troca deve ser do Breviário em Rosário, porque é trocar, o que não entende pelo que entende, como tão largamente deixamos provado.

Por fim, pode haver alguma devota tão devota que reze ou queira rezar uma e outra coisa, o Breviário e mais o Rosário. Mas também não aprovo esta concordata, porque seria abarcar muito e apertar pouco. É o impropério que o profeta Ageu lançava em rosto aos que de grande seara colhem pouco grão: Seminastis multum, et intulistis parum([27]). Um só mistério de Cristo, e uma só cláusula do Padre-nosso basta para meditar toda a vida, quanto mais o Rosário inteiro. Em nossos dias houve dois varões santos, um secular, outro religioso, nesta América: um, que gastou três anos em dizer a cada respiração: Fiat voluntas tua; e outro, que eu conheci e tratei, o qual desde a meia-noite até o sair do sol, tinha seis horas de oração de joelhos, meditando em uma só chaga de Cristo crucificado([28]).

E se o meu pouco espírito não tem bastado para mostrar bem este melhor, e persuadir esta troca, espero por fim que baste a autoridade da mesma Senhora do Rosário, e que não haverá devoção alguma tão pertinaz ou juízo tão teimoso que se atreva a resistir à força de suas divinas palavras. O segundo pregador depois do patriarca S. Domingos, escolhido pela mesma Virgem Santíssima para restaurador da devoção do seu Rosário, que, como todas as coisas boas, com o tempo se ia esfriando e diminuindo, foi o Beato Alano, tão filho do mesmo santo patriarca no espírito, como imitador do zelo. Apareceu-lhe, pois, a Soberana Rainha dos Anjos, e, encarregando-lhe que para remédio e reformação do mundo tomasse de novo a pregar e pro­mulgar o Rosário, as razões que acrescentou por sua boca sacratíssima, para que ele em seu nome as inculcasse a todos, foram estas: Siquidem hoc genus orandi promptum ac facile, est mihi gratissimum, ad impetrandam divinam misericordiam accommodatissimum, populis salutare, et contra quae vis adversa praesens auxilium: Porque este gênero de orar pronto e fácil, é para mim – diz a Senhora – o mais agradável de todos, para alcançar a misericórdia Divina o mais acomodado, e para os povos o mais útil e saudável, porque nele tem o mais eficaz remédio e socorro contra todas as adversidades. –Todas estas prerrogativas da devoção do Rosário, e pronunciadas por tão divino Oráculo, a fazem digna de suma estimação. Mas a que no nosso caso se deve ponderar e venerar sobre todas, é dizer a mesma Senhora do Rosá­rio, que este modo de orar, por ser pronto e fácil, lhe é, não só agradável, mas em grau super­lativo gratíssimo: Siquidem hoc genus orandi promptum et facile, est mihi gratissimum. Que quer dizer promptum et facile, senão ordinário, vulgar e de grande facilidade, sem máquina de rubricas para o ordenar e acertar, nem outra língua mais que a própria para o entender? Isto é o que nota e preza a Senhora das Senhoras no seu Rosário, para que se emendem do seu juízo e da sua eleição as que por ordinário e vulgar, trocam este gênero de orar por outro. Não sejam como Naamã Siro, que sobrelevado da sua qualidade e grandeza, desprezou o remédio do Jordão por fácil e vulgar a todos. E se querem agradar à Rainha do Céu, como afetam às da terra, conformem-se com o modo de orar que lhe é gratíssimo: repetindo muitas vezes em vulgar:Ave Maria, cheia de graça, como a oradora do Evangelho lhe disse também em vulgar: Beatus venter qui te portavit.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

[1] Uma mulher, levantando a voz do meio do povo, lhe disse: Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que foste criado (Lc. I I, 27).

[2] Que glória teve hoje um rei de Israel, despindo-se como faria um chocarreiro (2 Rs. 6, 20)!

[3] O menino deu saltos de prazer no meu ventre (Lc. I , 44).

[4] Por esta razão Micol não teve filhos até ao dia da sua morte (2 Rs. 6, 23).

[5] Nem desde o princípio te agradaram os soberbos, mas sempre te agradou a súplica dos humildes e dos mansos (Jdt.. 9, 16).

[6] D. Gregor. praef. in Lib. Moral. cap. 4.

[7] Pois eu não permito à mulher que ensine (1 Tim. 2, 12).

[8] Sete vezes no dia te disse louvor (SI. 118, 164).

[9] Cantai salmos ao nosso Deus, cantai salmos; cantai salmos ao nosso Rei, cantai salmos, porque Deus é o rei de toda a terra; cantai salmos sabiamente (SI. 46, 7 s).

[10] Subiu Deus com júbilo, e o Senhor com voz de trombeta. Cantai salmos ao nosso Deus, cantai salmos; cantai salmos ao nosso rei, cantai salmos (SI. 46, 6 s).

[11] Porque Deus é o rei de toda a terra; cantai salmos sabiamente (SI. 46, 7).

[12] Tu mesmo és o meu rei e o meu Deus, que dispões as salvações de Jacó (SI. 43, 5).

[13] Ide por todo o mundo, pregai a toda a criatura (Mc. 16, 15).

[14] Deus está sentado sobre o seu santo trono (SI. 46, 9).

[15]Basilius in Regulis brevior. Respons. 276.

[16] Mais doces que o mel e o favo (SI. 18, 11 — SI. 118, 103).

[17] Porque tu não és enviado a nenhum povo de língua desconhecida (Ex. 3, 5).

[18] A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou por extremo em Deus meu salvador (Lc. 1, 46).

[19] E será para vós a visão de todos eles como as palavras de um livro selado que, quando o derem ao que sabe ler, lhe dirão: Lê esse livro. E ele responderá: Não posso porque está selado. E dar-se-á o livro ao que não sabe ler, e se lhe dirá: Lê. E ele responderá: Não sei ler (Is. 29, 11 s).

[20] (20) D. Damascenus, lib. 3, de Fide, cap. 24.

[21] Louvai-o ao som da trombeta, louvai-o com saltério e cítara. Louvai-o com adufe e flauta, louvai-o com cordas e órgãos. Louvai-o com címbalos sonoros, louvai-o com címbalos de júbilo (SI. 150, 3 ss).

[22] As coisas inanimadas, que fazem consonância, como a frauta ou a cítara, se não fizerem diferença de sons, como se distinguirá o que se canta à frauta ou o que se toca na cítara (1 Cor. 14, 7)?

[23] (23) Porque, se a trombeta der um som confuso, quem se preparará para a batalha (1 Cor. 14, 8)?

[24] Bellarm. lib. 2. de Verbo Dei, cap. ult. Soar. de Relig. tom.. 2, lib. 2, cap. 5.

[25] Aspirai aos melhores dons (1 Cor. 12, 31).

[26] Como de banha e de gordura seja farta a minha alma, e com lábios de júbilo te louvará a minha boca (SI. 62, 6).

[27] Vós semeastes muito, e recolhestes pouco (Ag. 1, 6).

[28] Gregório Lopes, secular em México. João Adriano, religioso da Companhia na Bahia.