Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XXlll – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

COM 0 SANTÍSSIMO SACRAMENTO EXPOSTO

Booz autem genuit Obed ex Ruth[1].

§1

Os bens de que fala a Virgem no cântico do Magnificat. A roda da fortuna e a constante disposição da Providência divina. A história de Rute. A coroa de espigas de Rute e a coroa deflores do Rosário. 0 Rosário, remédio da pobreza. Assunto do ser­mão: Assim como Rute em figura remediou a sua pobreza pela devoção do Sacramento, assim todos os que forem pobres remediarão em realidade as suas pela devoção do Rosário.

A Virgem Maria, Senhora nossa, no seu divino cântico do Magnificat, afir­ma de presente, e profetiza de futuro, que aos pobres enche Deus de bens, e aos ricos deixa vazios: Esurientes implevit bonis, et divites dimisit inanes (Lc. 1, 53). Na roda do hortelão, e nos vasos de barro, que com ela vão dando a mesma volta, não vedes como os vazios descem e os cheios sobem, e logo os vazios se enchem, e os cheios ficam vazios? Pois isto mesmo é o que faz - diz a Senhora - não a roda, que vós chamais da fortuna, mas a constante disposição da Providência Divina: Esurientes implevit: divites dimisit inanes.

Em muitos exemplos dos seus ascendentes nos pudera provar a Virgem Maria a variedade ou providência desta mesma roda; mas em nenhum melhor que na história de Rute que tomei por tema: Booz autem genuit Obed ex Ruth (Mt. 1, 5). Era Rute nora de Noemi - não cuideis que o digo por equívoco - e assim como Noemi disse de si: Egressa sum plena, et vacuam reduxit me Dominus[2] - que é o divites dimisit inanes - assim Rute com os termos e a fortuna trocada, estando pobre e faminta, e verdadeiramente vacua, Deus a encheu de tantos bens, e de tanta abundância e fartura, que com maior verdade se pode chamar plena: Esurientes implevit bonis.

Os bens de que fala neste lugar a Soberana Rainha, como Mãe de misericór­dia, são os bens temporais e da terra, necessários ao sustento da vida humana. E destes, como remédio da pobreza, e fartura dos que padecem fome, determino eu tratar hoje, para que se não queixe, ou cuide o corpo, que só sobre os espirituais, e da alma, tem virtude e poder o Rosário.

Quando a Providência e benignidade divina lança a bênção sobre a terra, e é fértil e abundante a novidade, chama Davi à fertilidade dos campos coroa do ano: Bene­dices coronae anni benignitatis tuae, et campi tui replebuntur ubertate[3]. É a mesma figura com que os poetas elegantemente pintam a primavera coroada de flores, e o verão coroado de espigas. Assim pintou estas duas partes do ano o mais engenhoso de todos os poetas, na descrição do Palácio do Sol. 0 verão coroado de espigas:

Stabat nuda aestas, et spicea serta gerabat:

a primavera coroada de flores:

Verque novum stabat cinctum florente corona[4].

E estas duas coroas, com que o ano se coroa em diferentes meses, temos hoje juntas em o mesmo dia. No Evangelho com Rute coroada de espigas; na festa com o Rosário coroado de flores.

E não é isto mesmo a solenidade da Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento exposto? Sim, é. No dia em que Cristo nasceu em Belém - que quer dizer Casa de Pão - apareceu no céu um sol coroado de espigas; e no dia em que a Virgem Santíssima o concebeu em Nazaré - que quer dizer Florida - apareceu a aurora do mesmo sol coroado de rosas. Tudo isto se viu então dentro naquele mesmo ano, em que a benignidade do céu mais que nunca choveu bênçãos sobre a terra: Benedices coronae anni benignitatis tuae - e tudo - porque tudo era profecia - se vê junto hoje nos dois mistérios santíssimos, em que se encerram tantos mistérios: o Rosário e o Sacramento.

E se agora me perguntais ou esperais ver o fim desta tão natural combinação daquele ano com este dia, digo que não é para o fim geral da correspondência de ambos os mistérios, que por tantos modos temos declarado, e ainda declararemos mais. Mas, como disse ao princípio, para remédio da necessidade dos pobres, e para fartura dos que padecem fome, Rute antes de ser mulher de Booz, recolhendo as espigas que caíam das mãos aos seus segadores, foi a pobre e a faminta, e a mesma Rute, depois de tão altas e tão opulentas bodas, por benefício das mesmas espigas, não só se coroou a si, mas deu coroas a seus descendentes: Booz autem genuit Obed ex Ruth. Obed autem genuit lesse.lesse autem genuit David regem[5].

Comparando, pois, as rosas do Rosário com as espigas de Rute, o que have­mos de ver é: que assim como Rute em figura remediou a sua pobreza pela devoção do Sacramento, assim todos os que forem pobres, remediarão em realidade as suas pela devoção do Rosário. E sendo certo, como nos ensinou a Mãe de Deus, que a misericór­dia do mesmo Deus esurientes implevit bonis, e a sua justiça divites dimisit inanes, não só pertence esta virtude do Rosário aos pobres, senão também aos ricos. Aos pobres, porque são pobres; e aos ricos, porque o podem ser. Não peço atenção para este discur­so, porque sendo dos bens temporais é matéria a que todos sempre estão mui atentos.Ave Maria, etc.

§II

A famosa questão suscitada na corte de el-rei Dario: Qual é a mais poderosa coisa do mundo. 0 poder da verdade e o poder da mentira. 0 império despótico da pobreza. A duríssima e inviolável lei da necessidade. A necessidade e o principado do amor entre gregos e latinos, A fome, e o amor de Jacó a Benjamim.

No palácio de el-rei Dario, enquanto ele dormia, três guardas-mores da pessoa real, que lhe vigiavam o sono, filosofando, ao que parece, sobre o sossego com que descansava aquele grande monarca, sem o desvelar o governo de cento e dezoito reinos, de que era senhor, excitaram entre si aquela famosa questão, que refere Esdras: qual fosse a mais poderosa coisa do mundo? Despertou o rei, e lendo a questão que os mes­mos autores dela lhe tinham posto escrita debaixo dos travesseiros, prometeu grandes prêmios a quem melhor a resolvesse, Um disse que a mais poderosa coisa do mundo é o rei, porque os reis podem quanto querem, e ainda que queiram o que não podem, nin­guém há que lhes resista: tudo executam e conseguem. Outro disse, que mais poderoso é o vinho, porque à força saborosa deste licor se fendem muitas cabeças coroadas, e o pudera provar com a de Noé, da qual fiou Deus o governo e restauração do mundo, e não arcando na maior tempestade, que foi a do dilúvio, o vinho o derrubou. 0 terceiro, finalmente, que era Zorobabel, disse que mais poderosa é a mulher, e o provou com um notável exemplo de certa mulher chamada Apemen, bastando o primeiro de todos, que foi o de Eva. Mas não contente com esta resolução, em que manifestamente venceu as dos companheiros, acrescentou e concluiu que a mais poderosa coisa do mundo é a verdade: Veritas magna, et fortior prae omnibus (3 Esdr. 4, 35).

Esta última sentença aprovou o Rei, esta foi aplaudida de todos com públi­cas aclamações: Et omnes populi clamaverunt, et dixerunt: Magna est veritas, et praevalet (3 Esdr. 4, 41) - e esta segui eu, e tive por certa muitos anos, porque com este grande conceito da verdade na cabeça me nasceram e cresceram nela as cãs em todas as partes da Europa. Porém, depois que passando a este mundo novo, vejo de mais longe o velho, tenho achado por experiência que muitas vezes mais poderosa é a mentira que a verdade. Não se pode isto dizer sem escândalo da razão e horror da mesma natureza, mas não se pode negar. E por quê? Porque a mentira é crida e acreditada, e a verdade não tem fé nem crédito; a mentira escusa os culpados, e a verdade não pode defender os inocentes; a mentira é absolta sobre sua palavra, e a verdade condenada sem ser ouvida; a mentira profana sacrilegamente a religião e o sacerdócio, e à verdade não lhe vale sagrado; enfim, a mentira, que devera ser pisada, traz debaixo dos pés a verdade, e a verdade, de quem se diz que nada sobre tudo, se vê tão soçobrada e afogada da violên­cia, que nem respirar pode. E posto que os juízes sejam retos, ou o queiram parecer, é tal o enredo dos testemunhos falsos, induzidos e subordinados, ou com o dinheiro ou com o ódio, ou com o temor ou com a dependência, ou com a lisonja ou com tudo, que a mentira é a que vence, e a falsidade a que triunfa, Assim que muitas vezes a mentira hoje no mundo é mais poderosa que a verdade, assunto que eu pudera provar com esquisitos e formidáveis exemplos, se não fora outro o meu intento.

Suposto, pois, que na nossa experiência, por abuso, seja mais po­de rosa a mentira que a verdade, e na sentença de Zorobabel, por razão, seja mais poderosa a verda­de que todo outro poder, segue-se porventura daqui, que a coisa mais poderosa do mundo, ou bem ou mal governado, seja qualquer delas? Não. Porque ainda há no mundo outra coisa mais poderosa. E qual é? A necessidade. A necessidade, a pobreza, a fome, a falta do necessário para o sustento da vida, é o mais forte, o mais poderoso, o mais absoluto império que despoticamente domina sobre todos os que vivem. Não há coisa tão dificultosa, tão árdua, tão repugnante à natureza, a que a não obrigue, a que a não renda, a que a não sujeite, não por vontade, mas por força e violência, a duríssima e inviolável lei da necessidade, A necessidade é que leva o soldado à guerra, e a escalar as muralhas, onde vendo cair uns a ferro, e voar outros a fogo, avança com tudo, e não desmaia. A necessidade é a que engolfa o marinheiro nas ondas do oceano: elas com os naufrágios à vista, e ele com tal ousadia, que, metido dentro em quatro tábuas, se atreve a pelejar, não só com os ventos e tempestades, mas com todos os elementos. A necessi­dade é a que mete ou precipita o mineiro ao mais profundo das entranhas da terra, e sem temor que as mesmas montanhas, que tem sobre si, caiam e o sepultem, ele lhe vai cavando as raízes e sangrando as veias. Finalmente, com mais ordinário e geral despre­zo da vida e da saúde, quem faz que o lavrador não tema os regelos do inverno, nem o segador as calmas ardentes do estio, nem o pastor os dentes do lobo e do urso, e, em muitas partes, as unhas do leão e do tigre, senão a necessidade? E, posto que uns e outros tantas vezes perecem em tão conhecidos perigos, a mesma necessidade, com implicação manifesta da própria conservação, é a que, para sustentar a vida, os obriga a perder a mesma vida. Até o pobre e atrevido ladrão, que desde o primeiro passo com que salteou os caminhos, começou a caminhar para a forca, se ao pé dela lhe perguntam quem o trouxe a tão miserável estado, responde com o laço na garganta que a necessida­de, E para que ninguém se admire deste grande poder da necessidade sobre todos, a razão é, diz o provérbio, porque todos os outros poderes são sujeitos às leis, e só a necessidade não tem lei: Necessitas caret lege.

Assim como os sábios dos persas e medos deram o principado do poder à verdade, assim os gregos e latinos, mais sábios que eles, sobre a mesma controvérsia, o deram ao amor. Estes disseram: Omnia vincit amor[6], e não houve nação tão dura e bárba­ra, que se não assinasse ou alistasse debaixo desta sentença. Mas, se no mesmo caso con­correr o amor e a necessidade, quem vos parece que há de vencer? Claudiano disse:

Paupertas me saeva premit, blandusque Cupido:

Sed tolerando faines, non tolerandus amo?[7].

Quer dizer que, apertado um homem por uma parte da fome, e por outra do amor, com a fome ser cruel e o amor brando, a fome é tolerável, o amor não. Eu creio que quando este poeta isto escreveu, devia de ter bem comido, e também bebido. Em dizer: Sed toleranda faines, non tolerandus amor, não soube o que disse. Havia de dizer pelo contrário: Sed tolerandus amor, non toleranda faines, porque quando concorrem juntos o amor e a fome, a fome triunfa do amor, e vence o que tudo vence. E se não, ponhamos ambos em campo, e vejamos qual leva a vitória.

Padecia-se grande fome nas terras de Canaã, quando Jacó, para remédio dela, de onze filhos que tinha, mandou os dez ao Egito. Trouxeram pão para alguns dias, mas com obrigação de levarem também o filho undécimo, que era Benjamim, quando fossem buscar mais. Era Benjamim o mimo e amor de Jacó, e não se podem crer os extremos que ele fez, para não apartar de si o filho que unicamente amava. Instavam os irmãos, e a todas as instâncias respondia e satisfazia o pai, até que, finalmente, o apertaram com uma, a que não teve solução nem resposta, e se deu por vencido. E qual foi esta? A da necessidade. Enquanto durou o pão, esteve forte Jacó; mas, tanto que se foi acabando aquele fiador da vida, e lhe disseram os filhos, que eles e seus netos morreriam todos à fome se não levas­sem a Benjamim, cedeu o amor à necessidade, e venceu a necessidade o amor. Assim o disse em próprios termos o mesmo Jacó: Si sic necesse est, facite quod vultis (Gên. 43, 2): Já que assim o pede a necessidade, fazei o que quiserdes. - 0 que quiserdes, diz, e não o que eu quero, porque eu não quisera apartar de mim o único filho, que tanto amo; mas a minha vontade e o meu amor, é força que se deixe vencer da necessidade. É ponderação de S. João Crisóstomo, o qual nos encomenda que reparemos nela: Vide nunc, quomodo ne­cessitas patris amorem vincit: Reparai neste caso, e vede como a necessidade vence o amor do pai. - 0 amor dos pais é o mais forte de todos, e nenhum pai amou mais que Jacó, nem houve filho mais amado que Benjamim. Porém, à vista da necessidade e da fome, aparte-se o pai do filho e o filho do pai, rompam-se os corações de ambos com dor, chore a ausência, suspirem as saudades, renda-se violentado o amor, e a necessidade triunfe: Si sic necesse est, facite quod vultis. Mas, que muito é que ao amor do pai, para dar de comer aos filhos, vencesse a necessidade e fome de Canaã, se na fome de Samaria e de Jerusalém, venceu tanto a necessidade o amor das mães, que chegaram a comer seus próprios filhos[8]?

§III

Os primeiros efeitos ou conseqüências da necessidade; o desprezo da honra e a destruição da virtude, Virgílio e o pórtico do inferno. A fome na tentação do demônio a Cristo. As razões que teve Davi para dizer que na sua pobreza enfraquecera sua virtude.

Estes últimos exemplos poucas vezes vistos, são o que com maior horror da natureza encarecem o poder e violência da necessidade; mas os que cada dia acontecem não são menos feios, menos tristes, nem menos para temer. 0 primeiro efeito ou conseqüência da necessidade, é o desprezo da honra; o segundo, a destruição da virtude. E ponho em segundo lugar a destruição da virtude, porque o muro da virtude é a honra, e derrubado este muro, a virtude, que ele defendia, facilmente se rende. Quem se não enver­gonha dos homens, que vê, facilmente perde o respeito a Deus, que não vê. Os romanos, para a emulação de tal sorte edificaram os templos da Honra e da Virtude, que pelo da virtude se entrava ao da Honra; e o demônio, para a tentação, primeiro bate o da honra para derrubar o da virtude. Por isso, sendo todo o pecado ofensa de Deus e crime de lesa­majestade divina, introduziu o mesmo demônio no mundo que alguns pecados não fossem infames, para que, tirado o temor da desonra, ficasse facilitado o precipício da culpa. Aberta, pois, a primeira brecha no muro da honra, apenas se acha virtude tão constante que, sitiada da necessidade e apertada da fome, pela triste condição somente de ter com que sustentar a vida, não renda a consciência e a alma tão infame partido. Esta é a razão conhecida até dos gentios, porque Virgilio descreveu o pórtico e entrada do inferno, adornado feiamente da­queles monstros horrendos, colocou também entre eles a pobreza e a fome:

Mal-usada faines, et turrais egestas.

À fome chamou malesuada, e à pobreza turrais, porque não há vício nem mal­dade que a fome não persuada, nem torpeza ou infâmia que a necessidade e pobreza não facilite.

Vamos à Escritura Sagrada, em que no Velho e Novo Testamento desta mes­ma fome e desta mesma pobreza temos dois admiráveis reparos, e ambos em dois des­cendentes da nossa Rute, Davi e o filho de Davi, Cristo. Jejuou Cristo no deserto quarenta dias, e em todo este tempo não o tentou o demônio. No fim do jejum teve o Senhor fome: Postea esurit (Mt. 4, 2) - e no mesmo ponto diz o evangelista, que o demônio se chegou a ele, e o tentou: Et accedens tentater (Mt. 4, 3). Pois, se o tentador, que não só era demônio, senão o maior de todos os demônios, em quarenta dias se não atreveu a chegar a Cristo, antes o temia e fugia dele, e, retirado, estava observando somente a prodigiosa abstinência daquele homem, como agora, e logo no mesmo ponto em que reconheceu que tinha fome, se atreveu a o acometer e tentar? Porque é tão natural efeito da fome o enfraquecer a virtude, que até um santo tão forte, tão constante e tão milagro­so, que pode passar sem comer quarenta dias, entendeu o demônio que, apertado da fome, não poderia resistir à tentação. S. Basílio: Sentiens diabolus, quia ubi faines, ibi imbecillitas, agreditur ad tentandumt[9]. Fez o demônio, diz S. Basílio, este discurso: Onde há fome, há fraqueza; pois agora é o tempo de tentar este homem, posto que tão milagroso, porque, se a fome o tem meio rendido, a tentação o acabará de vencer. Ele bem deve de conhecer que sou eu o demônio; mas um homem com fome, e sem remé­dio, ainda que o comer que se lhe oferece seja dado pelo demônio, há-o de aceitar.

Assim animado o tentador, fez descobertamente o tiro, e o que disse a Cristo foi: Si Filius Dei es, dic ut lapides isti panes fiant[10]. Com muita razão argúi aqui S. Pedro Crisólogo ao demônio, de que quis tentar e não soube: Curais tentare, sed nescis[11]. A primeira coisa que o demônio disse, foi a primeira que havia de calar. Vem cá, demônio ignorante, queres render e derrubar a este mesmo homem a quem tentas, e trazes-lhe à memória o ser Filho de Deus: Si Filius Dei es? Não sabes que o maior brio e o maior empenho de um homem de alto nascimento, para não cometer indignidades nem vilezas, é lembrar-se da nobreza de seus pais, e não querer pôr mancha na sua geração? - Assim é - diz o demônio - mas isso se entende, quando o filho de bons pais tem que comer. Porém, quando está com fome, e se vê apertado da necessidade, nem faz caso de pais, nem se lembra de gerações, nem olha para as manchas da honra, nem para o crédito e reputação da pessoa, a tudo fecha os olhos, contanto que tenha com que sustentar a boca. Assim o cuidou o demônio de Cristo, e se nele se enganou não se enganou em Esaú, nem em Jônatas, nem no Pródigo, e infinitos outros. A regra geral é: Ubi fames, ibi imbecillitas-e assim como à fome se segue a fraqueza, assim à fome de muitos dias, muitas fraquezas.

0 outro descendente, e mais chegado a Rute, foi Davi, E que nos dirá de si aquele valente de Deus, que com as mãos desarmadas espedaçava leões, e com uma pedra derrubava gigantes? Diz, o que ninguém pudera imaginar, porque diz assim: Infir­

mata est in paupertate virtus mea, et ossa mea conturbata sunt (SI. 30, 11): Na minha pobreza enfraqueceu-se a minha virtude, e chegou a fraqueza a tanto, que até os mes­mos ossos me derrocou. - Quem pudera imaginar de Davi duas tais coisas: pobreza e fraqueza? Nem a pobreza diz bem com um rei, nem a fraqueza com um homem tão valente. Mas em tudo falou Davi como quem bem se conhecia como homem, e muito melhor ainda como rei. Só estranhará o nome de pobreza nos reis quem não sabe que os reis são mais pobres que os vassalos. Não é mais pobre quem tem menos, senão quem necessita de mais. E ninguém tem mais necessidade, nem maiores necessidades, que os reis. Necessidade de fabricar armadas, necessidade de fornecer exércitos, necessidade de fortificar praças e presidiar fortalezas, necessidade de salariar ministros nos reinos próprios, necessidade de manter e autorizar embaixadores nos estranhos, necessidade de sustentar com decência, aparato e magnificência real a própria majestade, e mil necessida­des outras públicas e ocultas, das quais pedia o mesmo rei a Deus o livrasse: De necessitatibus meis erue me[12], E, cercada, antes oprimida de tantas e tão forço­sas necessidades, a falsa potência e verdadeira pobreza dos reis, vede a quantas quebras de consciência, e a quantas fraquezas de virtude estará exposta: Infireata est in paupertate virtus mea? Fraqueza nos mesmos tributos e subsídios necessários, tolerando que carreguem sobre os pequenos e miseráveis, e fiquem isentos os grandes; fraqueza nas doações inoficiosas e indevidas, não se pagando no mesmo tempo o que se deve aos legítimos acredores; fraqueza nas chamadas graças, feitas prodigamente aos que a lo­gram de perto, esquecidos os que servem e trabalham ao longe; fraqueza na observância e dissimulação das leis com os poderosos; fraqueza na igualdade da justiça; fraqueza no verdadeiro e desinteressado exame das causas; fraqueza na atenção ao luxo e regalo, para que tudo sobeja; fraqueza no descuido da conservação do que se perde, para que tudo falta; e tantas outras fraquezas de virtude, que ainda nos reis, que parecem timora­tos, mais se podem chorar que dizer.

Isto confessava Davi de si no tempo em que era rei. Mas antes de cingir a coroa, e depois que seu próprio filho lha tirou da cabeça, em que a sua pobreza foi mais manifesta, também não faltaram fraquezas à sua virtude. No tempo em que servia a el-rei Aquis, faltando à fé da hospitalidade, roubava os vassalos do mesmo rei, e para que se não soubesse, matava a todos, o que não podia fazer licitamente, porque a sua autoridade ainda era privada (1 Rs. 27, 8 ss). No tempo em que andava escondido de Saul, porque Nabal Carmelo, lavrador grosso, o não quis socorrer, deliberou e jurou que a ele e a todos os de sua casa havia de tirar a vida, e pôr o fogo a quanto possuía(] Rs. 25, 22). No tempo em que fugia de Absalão, por um presente com que Siba, criado do príncipe Isboset, lhe saiu ao caminho, sem mais informação que a sua, lhe deu todos os bens de seu senhor (2 Rs. 16, 1 ss). E o pior e mais é que, depois de lhe constar da inocência de Isboset, devendo mandar enforcar a Siba como ladrão e falsário, para não emendar de todo o que tinha feito, mandou que o ladrão e o roubado partissem entre si os bens (2 Rs. 19, 27 ss). Não consta das Escrituras a restituição desta injustiça; mas, como notam todos os teólogos e expositores, é certo, que depois a fez Davi, porque doutro modo não se salvaria. Tanta razão e tantas razões teve este herói, por tantas outras qualidades grande, para dizer e confessar que na sua pobreza enfraquecera a sua virtude:

Infirmata est in paupertate virtus mea.

§ IV

Se um homem tão valente como Davi, oprimido da pobreza e apertado da neces­sidade, cai em tantas fraquezas, que fará a fraqueza de uma pobre mulher? 0 que homens e mulheres chamam falta de remédio, não é falta de remédio, senão de fé. 0 Sacramento e o Rosário, remédios da pobreza.

E se a força da necessidade e da pobreza, como acrescenta o mesmo Davi, lhe quebrantou, e derrocou até os ossos: Et ossa mea conturbata sunt - se os ossos, que são a parte mais dura e mais forte do corpo, não podem resistir à força da necessidade, sem que ela os quebrante e descomponha, que se pode esperar da carne fraca? Se um homem tão valente como Davi, e tão forte, como significa o seu próprio nome, oprimido da pobreza e apertado da necessidade, cai em tantas e tais fraquezas, que fará a triste mulherzinha, que, confessando as suas com infinitas lágrimas, e desculpando misérias com misérias, junta­mente se acusa a si e a sua pobreza? Que fará - digo outra vez-a triste mulher que, perdida a honra e a consciência, e admoestada do perigo da sua alma, e reconhecida dele, protesta que deseja levantar-se do lodo em que está caída, mas que não tem remédio, porque o peso da necessidade lho não permite? Isto dizem as mães, isto as filhas, e só lhes falta dizer, com Cassiodoro, que a mãe de todas as culpas é a necessidade: Mater criminum necessitas. Também há homens, e não poucos, que indigna e covardemente se valem da mesma des­culpa. Mas esta, que homens e mulheres chamam falta de remédio, não é falta de remédio, senão de fé. Justus meus ex fide vivit[13], diz o Espírito Santo: Tende fé, e não vos faltará com que viver. - Nos mesmos mistérios da fé, em que a Providência divina nos deu os meios para conseguir a vida eterna, nos deixou também os remédios para sustentar o tem­poral. Ouçam agora os pobres e as pobres, os necessitados e as necessitadas, e assim como viram os efeitos da pobreza e da necessidade - que por isso me detive tanto em os ponderar - assim verão a eficácia e facilidade dos remédios, e que não por falta ou dificuldade deles, mas por falta de fé e por sua culpa, padecem a pobreza, a necessidade e a fome, com que se desculpam. E que remédios são estes? Já disse e prometi no princípio, que eram o Sacra­mento e o Rosário. Isto é o que agora havemos de ver, e de novo peço a Deus e à Virgem Santíssima me assistam com sua graça, não tanto para declarar esta verdade tão certa e tão importante, quanto para a persuadir.

§V

0 diviníssimo Sacramento, primeiro remédio da pobreza. 0 milagre relatado pelo Cardeal Barônio. Rute e as espigas que fugiam das mãos dos segadores, A prodi­galidade de Booz e a admirável eficácia do Pão Divino.

0 primeiro remédio, pois, da pobreza, da necessidade e da fome, é o diviníssimo Sacramento, que temos presente, o qual também por isso se expõe aos nossos olhos debaixo de espécies de pão. Para abundantíssima prova desta verdade nos deixou o mesmo Cristo o primeiro exemplo em Rute, avó de Davi, de quem se dignou tomar a mesma carne e sangue com que nos sustenta no Sacramento. Rute quer dizer satiata, a farta. E se lermos o princípio da sua história, antes parece que se havia de chamar a faminta. Era tão pobre Rute que, não tendo com que sustentar a vida, e como dizemos, com que matar a fome, quando os segadores de Booz iam segando a sua seara, ela os seguia detrás, recolhendo as espigas que ficavam, porque era lei de Deus que as pudes­sem tomar para si os pobres. E que espigas eram estas, ou que significavam? Os exposi­tores alegóricos dizem que eram figura do Santíssimo Sacramento. E para que ninguém duvide da exposição, o mesmo Cristo quis ser o expositor, e a declarou milagrosamente. No ano de nossa redenção de quinhentos e treze, durava ainda em algumas partes o uso da primitiva Igreja, em que os cristãos levavam para casa o Santíssimo Sacramento, e o tinham, ou pública ou ocultamente nos seus Oratórios, para se encomendarem a ele e o comungarem. E como um católico, criado de um herege, deixasse assim encerradas as sagradas partículas, indo o herege, ou com má tenção, ou só por curiosidade, a reconhe­cer o que o criado adorava: Invenit - diz o cardeal Barônio - omnes illas species in spicas et aristas triticeas germinasse[14]: Achou, que todas aquelas espécies se tinham convertido em espigas de trigo - com que também o herege se converteu. Ele mesmo deu conta do milagre ao bispo, e foram levadas as milagrosas espigas em procissão como triunfo da fé, com mil vivas e aplausos dos católicos, assombro e confusão dos hereges, que naquele tempo eram os severianos.

Tais foram em figura as espigas que colhia a pobre Rute. Espigas que, não tocadas da foice nem das mãos dos segadores, e tomadas nas suas, representavam maravi­lhosamente o mistério e segredo altíssimo, com que Cristo se deixou no Sacramento. A mesma Rute, se bem se penetra o que disse, o declarou com notável propriedade. Quando ela pediu licença à sua sogra Noemi para ir recolher as espigas, o que disse com frase particular e estranha, foi: Et colligam spicas quae fugerint manus metentium (Rut. 2, 2): E colherei as espigas que fugirem das mãos dos segadores. - De maneira que, sendo a seara a mesma, a messe a mesma e o trigo o mesmo, umas espigas ficaram sujeitas à foice e às mãos dos segadores, e as outras fugiram das suas mãos: quae fugerint manus meten­tium. Vamos agora à propriedade do mistério, que é admirável. Cristo, Senhor nosso, como notou e ponderou S. Paulo, na mesma noite em que se entregou a seus inimigos, instituiu o Santíssimo Sacramento, e, debaixo das espécies de pão, se deu a seus discípulos: In qua nocte trade batur, accepit panem, et gratias agens fregit, et dixit: Accipité, et manducate: Hoc est corpus meum[15]. E com o mesmo reparo e advertência, quando o Senhor disse: Hoc est corpus meum, acrescentou: Quod vobis tradetur: o qual será entregue por vós, declarando que o corpo que lhes dava a comer, encoberto com as espécies de pão, era o mesmo que naquela mesma noite havia de entregar nas mãos de seus inimigos. E por que foi necessária esta declaração feita por S. Paulo a nós, e por Cristo aos discípulos? Para que eles, e nós, soubéssemos que o mesmo corpo natural e visível que o Senhor havia de entregar nas mãos de seus inimigos, esse mesmo, sacra­mentado e invisível, escondendo-o debaixo das espécies de pão, o livrava juntamente de suas mãos. Em suma, que o mesmo Cristo na mesma noite se entregou a seus inimigos e fugiu deles. Entregou-se, quando no Horto, dizendo: Ego sumt[16], se meteu voluntaria­mente nas suas mãos: Et manus injecerunt in Jesum[17] ; e fugiu deles e de suas mãos na Ceia, quando, escondendo-se debaixo das espécies de pão, se pôs em estado de o não poderem ver nem prender. E como o corpo de Cristo sacramentado e sacramentando-se debaixo das espécies de pão, por este modo se escondeu e fugiu das mãos de seus inimigos, estas são as espigas que Rute colheu da seara, dizendo que recolheria somente as que fugissem das mãos dos segadores: quae fugerint manus metentium - sendo propriissimamente os segadores aqueles que no corpo natural do mesmo Cristo, começando pelo abraço de Judas, lhe cortaram a vida.

Provado, pois, que estas primeiras e poucas espigas que recolheu Rute foram figura tão própria e tão expressa do Santíssimo Sacramento, vejamos como a elas se seguiu naturalmente o aumento do pão, e teve logo a pobre e faminta Rute, com que remediar, sem outra diligência, a sua pobreza, e satisfazer abundantemente à fome. Acudiu ela à messe pela manhã - que são as horas em que se recebe o Santíssimo Sacramento - e não eram chegadas as do meio-dia, quando Booz, senhor da seara, veio visitar os seus segadores. E que sucedeu? Viu a modéstia e compostura - como refere Lirano-com que Rute recolhia aquelas poucas espigas, e, movido não só de piedade, mas de respeito e afeição natural, disse aos segadores que de indústria deixassem ficar e cair outras das que já tinham segado e levavam nas mãos, para que ela sem pejo as pudesse colher: De vestris quoque manipulis projicite de industria, ut absque rubore colligat (Rut. 2, 16). Oh! admirável eficácia daque­le divino Pão ainda em sombras! De sorte que, para socorrer abundantemente a pobreza e fartar a fome dos que o buscam, não espera o nosso trabalho nem a nossa indústria, mas, sendo a necessidade própria, a supre com a indústria alheia: Projicite de industria, ut absque rubore colligat. Reparai muito também no absque rubore. Aos outros pobres sustenta-os a Providência divina, mas com aquela dura pensão que traz consigo o pejo natural de chegar a pedir. Mas aos pobres que se valem das migalhas daquela soberana messe, também desta pensão os livra, e lhes dá o pão sem ela: Ut absque rubore colligat. Chegou, enfim, a tarde, não de outro, senão do mesmo dia, bateu Rute, e alimpou das arestas o grão que tinha colhido, e, medido, eram três alqueires daquela terra: Collegit ergo usque ad vesperam, et invenit tres modios[18]. Quem cuidara, o que nem a mesma Rute imaginou, que o pão não semeado havia de crescer tanto em um só dia, que a mesma pobre e faminta, que pela manhã o colhia espiga a espiga, à tarde o medisse aos alqueires. Mas assim cresce e se aumenta o pão da terra a quem se vale do Pão do Céu.

§ VI

Razão do nome de Rute, afaria, sendo este nome tão contrário à sua pobreza e à sua fome. A contradição aparente das duas profecias de Isaías a respeito do Pão do Céu. Se os ricos e os pobres comem o mesmo Cristo Sacramentado debaixo dos acidentes de pão, por que diz Davi que os ricos comerão e adorarão, e que os pobres comerão e se fartarão? A fome da graça e a fome do pão. A diferença do sustento e a diferença da fome. 0 sermão da Providência e a oração do Padre-nosso. 0 pão natural e o pão da vida eterna.

Com muita razão se chamou esta mulher Rute - que, como já dissemos, quer dizer satiata, a farta- sendo este nome tão contrário à sua pobreza e à sua fome, porque, assim como ela achou a fartura e a abundância na sombra e figura somente daquele divino Pão, assim profetizou Isaías, trezentos anos depois, que a teriam mais certa e mais abundante, na lei da graça, os que recorressem, não só à realidade, mas à realeza do liberalíssimo Autor de todos os bens, que naquela mesma figura se representava. No capítulo trinta diz duas coisas notáveis o profeta Isaías, e tão diferentes e opostas quê, ou ele ou elas, parece, se contradizem. A primeira é que na lei da graça nos daria Deus o pão muito estreito e apertado: Dabit vobis Dominus panem arctum[19]; a segunda, e que logo se segue, que o pão seria abundantíssimo e fertilíssimo: Et ganis frugum terrae erit uberrimus et pinguis[20], Pois, se da mesma mão de Deus nos havia de vir este pão duas vezes prometido, como o primeiro, que se nos promete, é tão estreito e apertado, e o segundo tão largo e abundante? Porque o primeiro pão é o Pão do Céu, que Cristo nos deu para alimento das almas, e o segundo é o pão da terra, que o mesmo Senhor nos dá para remédio e sustento dos corpos. Por isso este segundo se chama nomeadamente pão da terra, e o primeiro não: Et pauis frugum terrae erit uberrimus. Mas, se o pão do Céu é tão largo que toda a liberalidade divina na sua maior largueza não tem mais que dar, se a sua esfera é tão ampla e tão capaz, que compreende e encerra em si toda a imensidade de Deus, como se chama pão estreito e apertado: panem arctum? Por isso mesmo. Por­que como todo Deus - que é o que se come no Sacramento-sendo infinito e imenso, está reduzido àquele breve círculo de Pão e a qualquer parte dele, só ali está Deus estreitado e coarctado, e por isso: panem arctum. Panis arctus est Eucharistia, vel Christus in ea, diz Cornélio. Não é, logo, contradição de uma e outra promessa, senão conseqüência natural e efeito próprio da primeira que, depois de Deus nos prometer a estreiteza do primeiro pão, nos assegura logo a largueza do segundo. Não é maior maravilha estreitar Deus a sua imensidade que alargar a sua liberalidade? Pois esta é a abundância do pão da terra, que Deus nos promete depois que nos deu o Pão do Céu, para que todos os que padecem necessidade, pobreza e fome, recorram a buscar a fartura onde o pão está convertido em Deus, e Deus não mostra aos olhos mais que pão.

Deus no Sacramento dá-se igualmente a pobres e ricos, mas aos pobres com uma grande diferença, porque aos ricos dá-se debaixo dos acidentes de pão somente, porém aos pobres, não se dá debaixo dos acidentes de pão, mas dá-lhes também a substância, senão em si, nos efeitos. Excelentemente conheceu e declarou esta diferença o real profeta no Salmo vinte e um, que todo é de Cristo - e não só o mesmo salmo, senão também esta inteligência dele é de fé - falando o profeta do mesmo Senhor enquanto sacramentado, diz que os ricos o comeram e adoraram: Manducaverunt et adoraverunt omnes pingues terrae (SI. 21, 30); e que os pobres o comerão e se fartarão: Edent pauperes, et saturabuntur (SI. 21, 27). A diferença não pode ser mais clara, nem também a dúvida. Se os ricos e os pobres comem o mesmo Cristo sacramen­tado debaixo dos acidentes de pão, por que diz que os ricos comeram e adoraram, e que os pobres comeram e se fartaram, o que não diz dos ricos? A razão é porque os ricos comem a Cristo no Sacramento com uma fome, e os pobres com duas. Os ricos levam só a fome da graça, e não a fome do pão, porque são ricos; os pobres, não só levam a fome da graça, senão também a fome do pão, porque são pobres; e como a fome da graça, que é espiritual, se satisfaz com a mesma graça, e a fome do pão, que é corporal, se não satisfaz só com a graça, senão também com a fartura, por isso se diz só dos pobres que se fartarão, e não dos ricos: Edent pauperes, et saturabuntur. Não é a explicação minha, senão da agudeza de Santo Agostinho, em outro lugar dos mesmos salmos.

Diz ali o profeta que Deus dá de comer a todos os que têm fome: Qui dat escam esurientibus[21]. E repara muito na generalidade desta proposição Santo Agostinho, porque a Providência Divina, posto que geral para todos, é reta e justa, e segundo esta justiça, sendo o merecimento dos homens tão diferente, também o deve ser o comer com que Deus os sustenta. Assim é, responde o santo, e se quereis saber a diferença do sustento, olhai para a diferença da fome: Si habent aliam famem, habent et aliam escam: quaeramus famem ipsorum, et inveniemus escam ipsorum[22]. Assim como a Providência divina tem diferentes remédios para diferentes necessidades, assim tem diferente pão para diferentes fomes. Reconhecei, pois, a fome de cada um, diz Agostinho, e conhecereis o pão com que Deus a farta. Se a fome é só do céu, farta-a Deus como Pão do céu, que é o Sacramento, por si mesmo; e se a fome é juntamen­te do pão da terra, farta-a Deus também com o pão da terra, que é segundo efeito do mesmo Sacramento: Si habent aliam famem, habent et aliam escam.

Daqui se entenderá uma bem-advertida dificuldade de S. Pedro Crisólogo, fundada sobre dois passos do Evangelho, um da oração do Padre-nosso, e outro do famoso Sermão da Providência. No Sermão da Providência diz Cristo que não tenhamos ou não nos dê cuidado o que havemos de comer: Nolite solliciti esse in crastinum, quid manducetis[23]; e logo na oração do Padre-nosso ensina o mesmo mestre Divino que peçamos a Deus, como Pai, o pão de cada dia: Panem nostrum quotidianum da nobis (Lc. 11, 3). Insta agora elegantemente Crisólogo: Tam bonus, tam pius, tam largus Pater, panem filiis non nisi postulatus indulget[24]? É possível que um Pai tão bom, tão piedoso, tão rico e tão liberal, para dar o pão aos filhos, há de esperar que lho peçam? - Et ubi est illud: Nolite solliciti esse in crastinum, quid manducetis? E onde está agora, ou como concorda com este texto o outro, em que o mesmo Senhor nos manda que não tenhamos cuidado do que havemos de comer? - Mais apertadamente ainda: Hoc petere jubet, quod prohibet cogitare? Basta que nos manda Cristo pedir aquilo mesmo, em que nos proíbe o cuidar? - Sim e não - diz divinamente Crisólogo - porque o pão que nos manda pedir, é o pão sobrenatural do Sacramento: o pão em que nos proíbe o cuidar, é o pão natural, necessário ao sustento humano; e quem alcança o primeiro não tem neces­sidade de cuidar no segundo, porque o tem seguro: Hoc petere jubet, quod prohibet postulare, quatenus caelestis Pater, caelestem Panem, caelestes filii ut postulemus, hortatur: 0 Pai, a quem pedimos, é o Pai celestial, o pão, que pedimos, é o Pão celestial, os filhos, que o pedimos, também devemos ser celestiais, e quem pede e alcança o pão espiritual e do céu, não lhe pode faltar o corporal e da terra.

Oh! se não fôramos tão da terra, e se tivéramos viva fé, que é o que nos falta, como todo o nosso cuidado, todo o nosso desejo, e toda a nossa fome se havia de empre­gar naquele divino Pão, seguros e sem receio de que o pão da vida eterna nos não faltaria com o da vida temporal, que tão pouco há mister e tão pouco dura! Que pode negar Deus a quem deu seu próprio Filho, dizia S. Paulo; e que pode negar o Filho de Deus, a quem se dá a si mesmo? Dá-nos o corpo, dá-nos o sangue, dá-nos a alma, dá-nos a divindade, e negar-nos-á o pão? Oh! medo e covardia indigna de quem tem fé! Ainda Deus se não tinha dado em manjar, e só tinha revelado este mistério ao mesmo Davi, que tanto tinha fraqueado nas suas pobrezas, quando ele, zombando de todas, disse por nós o que nós não sabemos dizer. E que disse? Dominus pascit me, et nihil mihi decrit[25]. Assim se lê no texto original: Deus é o meu sustento: Dominus pascit me; logo, nenhuma coisa me pode faltar: Nihil mihi deerit. Faltará aos ricos, que põem a sua confiança nos bens inconstantes, que hoje se possuem e amanhã se perdem; mas o pobre, que chega àquele Senhor, que é Senhor de tudo, tudo lhe há de sobejar, como diz o mesmo profeta: Divites egerunt, et esurierunt; inquirentes autem Dominum non minuentur omni bono[26] . Notai a palavra non minuentur, porque os bens que vêm da mão de Deus, não diminuem, mas crescerão. Assim cresceu o punhado de farinha da sareptana, assim cresceram os cinco pães do deserto, e assim cresceu o de Rute, não só como vimos, mas muito mais[27].

§ VII

Quão contrárias foram em Rute as conseqüências e efeitos da sua pobreza e da sua fome. Como Rute conservou a virtude e aumentou a honra pelo mesmo meio com que remediou a fome.

Vistes aquela pobre Rute, que recolhia as espigas que acaso escapavam da foice, e depois as que de indústria deixavam cair os segadores? Pois, esta mesma dentro em poucos dias foi senhora de toda a seara. Era o senhor dela Booz, homem muito poderoso e de grandes riquezas, como diz o texto sagrado: Homo potens, et magnarum opum, nomine Booz (Rut. 2, 1); e de todas estas riquezas veio a ser senhora e herdeira Rute, recebendo-a Booz por mulher, Tudo o que podia dificultar a união deste parentesco concorria entre os dois contraen­tes, porque Booz era muito rico, e Rute extremamente pobre; Booz era hebreu, natural de Belém, e Rute gentia e moabita; Booz era da tribo e sangue real de Judá, e Rute de geração humilde e desprezada. Mas, como Rute nesta comédia ou ato sacramental fazia a figura dos que na sua necessidade, na sua pobreza e na sua fome, se socorrem à mesa franca do Santíssi­mo Sacramento, não só na primeira jornada teve logo o remédio necessário, mas na última e em poucos dias, com tantos aumentos, que chegou a ser opulência.

Os dois efeitos ou conseqüências que fazem a necessidade mais miserável e mais para temer, são, como ao princípio dissemos, que a pobreza e a fome primeiro desprezam a honra, e depois destroem a virtude, perdendo-se no mesmo naufrágio a fama e a consciência, que são os maiores bens desta e da outra vida. Mas vede a facili­dade e felicidade com que Rute salvou a ambos, conservando a virtude e aumentando a honra pelo mesmo meio com que remediou a fome. 0 meio, com que Rute remediou a fome, bem vemos que foi recolher como pobre as espigas misteriosas que fugiam às mãos dos segadores. Continuou assim em todo o tempo da messe: Donec hordea, et triticum in horreis conderentur[28]. E, conhecidos já seus procedimentos, ouvi as pala­

vras que lhe disse Booz, que não podem ser mais próprias do intento que seguimos: Benedicta es a Domino, filia (Rut. 3, 10): Vós, filha, sois abendiçoada de Deus. - E por quê? Quia non es secuta juvenes, pauperes sive divites: Porque não seguistes nem vos arrimastes aos moços da vossa idade, pobres ou ricos - que é o que fazem as que se vêem em pobreza: -Scit enim omnis populus, qui habitat intra portas urbis meae, mulierem te esse virtutis (Rut. 3, 11): E por que sabe todo o povo e toda a cidade que sois mulher de virtude. - Eis aqui quão contrárias foram em Rute as conseqüências e efeitos da sua pobreza e da sua fome. As outras perdem a honra e a virtude, porque buscam o remédio da pobreza e da fome no arrimo dos homens, que é o que não fez Rute: Quia non es secuta juvenes, pauperes sive divites: e Rute conservou a virtude e a honra, a consciência e a fama, sendo famosa por sua virtude: Scit enim omnis populus, mulierem te esse virtutis; porque, pobre e faminta, só se valeu do pão que podia comer em graça, e com bênção de Deus, e em figura recorreu mais altamente ao pão, em que Deus tem depositado todas as suas graças e todas as suas bênçãos: Benedicta es a Domino, filia.

§ VIII

0 caso referido pelo bispo Monopolitano: as duas irmãs coroadas de rosas. 0 que diz a Senhora no Eclesiástico: Passai-vos a meu patrocínio e sereis providos de minhas gerações. Grande pensão e grande desgraça desta nossa terra que não possa um homem melhorar de capa nem uma mulher de manto sem que o pague a sua honra!

Já temos a Rute coroada de espigas, porque na sua pobreza e na sua fome recorreu e se acolheu às sombras do Sacramento. Vejamos agora coroadas de rosas as que na mesma, ou maior necessidade, se valeram da devoção do Rosário. A prova não

há de ser tirada de semelhanças ou metáforas, que podem ter diferente interpretação, mas da experiência manifesta, pública e vista com os olhos. Refere o caso o Bispo Monopolitano, escritor de grande autoridade, e foi desta maneira. Enviuvou - diz ele - uma mulher, mais ilustre que nobre, e no dia em que enterrou a seu marido, sepultou juntamente com ele todo o remédio da sua casa, a qual, por carecer de bens patrimoni­ais, só se sustentava na sua vida, e com sua presença e indústria. Deixou por sua morte duas filhas, tão ricas dos dotes e graças da natureza, quão pobres dos bens da fortuna; e por estes dois motivos - que juntos são mais perigosos - havia muitas pessoas podero­sas que tratavam e esperavam de conquistar sua honestidade. Trabalhavam as pobres donzelas sobre a sua almofada todo o dia e grande parte da noite, e o que ganhavam era tão pouco, que apenas bastava para o pão da boca, e de nenhum modo chegava a lhes dar com que se vestir. Bem se deixa ver qual seria neste aperto a aflição e pena de uma mãe, e mãe que nascera com obrigações de honrada. Via a necessidade extrema que padeciam suas filhas; via o pouco que montava o trabalho de suas mãos; via que cada dia iam crescendo em idade, e não tinha com que lhes dar estado; via que os ardis do demônio são mui sutis, e as violências dos homens muito porfiadas; via que a maior firmeza de uma mulher nunca é segura, e que a pobreza e necessidade, quando não haja outras tentações, ela por si é a maior tentação. Lá diz a Escritura Sagrada que a pobreza, quan­do acomete, é como um salteador armado: Veniet tibi quasi viator egestas, et pauperies quasi vir armatus[29]. E que constância há tão varonil, não digo já de mulher, que com o punhal nos peitos se atreva a resistir, e se não renda?

No meio desta perplexidade e aflição, que faria a pobre mãe? Determinou descer­se um pouco dos brios com que nascera, e esquecer-se do sangue ou vaidade de seus avós - que muitas vezes é necessário este esquecimento para que os homens e mulheres não deixem de si muito diferentes memórias - e resolveu-se a pôr suas filhas em casa de alguma senhora, a quem servissem e procurassem ganhar a vontade, e debaixo de cuja sombra vivessem hones­tamente, e esperassem depois de alguns anos, o estado de vida que permitia sua pouca fortuna. Não tinha bem consentido neste pensamento, quando subitamente, como voando, se sentiu arrebatar a outro mais alto, o qual lhe estava dizendo ao coração estas palavras: - Se queres, que tuas filhas sirvam a uma senhora, que senhora há, nem pode haver no mundo, de cujo poder e de cuja piedade possas fiar melhor o seu remédio, que daquela que é Senhora do Céu e da terra, dos homens e dos anjos?-Não disse mais este segundo pensamento. E, conforman­do-se com ele a prudente mãe, pede dois mantos emprestados para as filhas, leva-as consigo à Igreja na tarde do mesmo dia, põem-nas junto a si diante do altar da Virgem Senhora nossa do Rosário, e com lágrimas disse assim: - Senhora, Deus me fez Mãe destas duas criaturas, que aqui estão a vossos santíssimos pés. E como eu não tenho com que lhes acudir, conforme as obrigações de mãe, desde esta hora me despido deste nome, e não quero que tenham mais os de filhas minhas, senão o de criadas e escravas vossas. De hoje por diante, Senhora, será todo o seu cuidado servir-vos, venerar-vos, e procurar fazer vossa vontade em tudo; e o seu sustento e remédio correrá também, Senhora, por conta de vossa providência e piedade. Isto disse a mãe; e as filhas, com grande afeto e humildade, fizeram de si o mesmo oferecimento à Senho­ra, que daquela hora por diante tomaram por sua.

Oh! Virgem Santíssima do Rosário, que apressadas são as vossas misericór­dias, e que seguro tem o remédio da sua pobreza todos os que devotamente recorrem aos tesouros de vossa piedade! No mesmo lugar do Eclesiástico, em que a Senhora se com­para à rosa de Jericó: Quasi plantatio rosae in Jericho[30] - exorta a todos, os que quise­rem ser seus devotos, se passem a seu patrocínio: Transite ad me, omnes qui concupis­citis me[31]. E que podem esperar deste soberano patrocínio os que a ele se passarem? A mesma Senhora o promete e declara, dizendo que de tudo o que houverem mister, serão providos e cheios abundantemente: Transite ad me, etc. et a generationibus meis implemini, Reparai muito nas palavras a generationibus roeis, Parece que havia de dizer a Senhora: Passai-vos a meu patrocínio, e sereis providos dos meus tesouros. - E não diz: dos meus tesouros, senão: das minhas gerações, como se falara no nosso caso, e dissera: As vossas gerações, porque são fundadas nas inconstâncias do mundo e nas variedades da que lá se chama fortuna, muitas vezes de ilustres e ricas caem em pobreza e miséria; porém, as minhas, cujos bens são eternos e firmes, não padecem esses defeitos; pelo que, se quereis remédio, passai-vos a mim, e achá-lo-eis seguro, e maior que vossos mesmos desejos. - Assim lhes sucedeu às duas irmãs. Tomaram para casa cheias so­mente então de grande confiança na Mãe de Deus; continuaram o trabalho de suas mãos, tirando dele todos os dias uma hora, a qual gastavam em rezar o Rosário com grande devoção, e desde o mesmo dia foram crescendo ou nascendo os bens naquela casa, com tal abundância, sem saberem, as que dantes eram tão pobres, donde lhes vinham, que não só se sustentavam com muita largueza, nem só tiveram com que se vestir e ornar, conforme a sua antiga qualidade, mas com o lustre e autoridade do seu novo estado, como criadas de tão grande Senhora e damas de tão soberana Rainha.

Com estes vestidos começaram a sair de casa, e vir à igreja, e quando o povo, que conhecia sua passada pobreza, visse esta novidade, já vedes o que se diria. Ninguém havia que duvidasse serem aquelas galas preço da honestidade das duas irmãs, e só se punha em dúvida quem haveria na cidade de tão grande cabedal e prodigalidade, que gastasse com elas tanto. Enfim, dizia-se lá o que cá se ouve cada dia. Grande pensão por certo, e grande desgraça desta nossa terra, que não possa um homem melhorar de capa, nem uma mulher de manto, sem que o pague a sua honra! Fizestes um vestido de melhor estofa que o de vosso vizinho? Pois há-vos de custar mais que o vosso dinheiro. Se sois homem, logo sois ladrão; se sois mulher, logo sois má mulher. Onde furtaria aquilo fulano? Quem daria aquilo a fulana? E não lho daria Deus? Não o ganharia com o seu trabalho? Por força lho havia de dar o diabo? Verdadeiramente vos está o diabo em grande obrigação, pois à força quereis que seja mais liberal que Deus. Oh! malditas e infernais línguas! Vendo-se assim afrontadas as duas donzelas, socorreram-se outra vez à mesma Senhora, e representaram-lhe a afronta em que viviam. Quão largamente reme­diastes, Senhora, na nossa pobreza, bem o dizem estes vestidos; mas se eles nos haviam de tirar a honra, melhor nos estava o nosso antigo encerramento, e melhor nos cobriam os nossos remendos. Se com despir as galas, se remediara esta mancha, de boa vontade as trocáramos outra vez pelos trajos da nossa pobreza. Mas a fama uma vez perdida nas línguas dos homens, é mal que não tem remédio, e dor de que jamais teremos consolação. Só nos fica o alívio de a havermos perdido em vosso serviço, e por benefícios e mercês vossas. Sobre estas palavras acrescentaram muitas lágrimas, e tornaram ao seu lavor e ao seu Rosário, que a prosperidade, em que se viam, nem as fez ociosas, nem menos devotas.

Amanheceu nesta ocasião o dia oitavo de dezembro, e como era a primeira e mais estimada festa da sua Rainha, não puderam deixar de assistir as damas, e com a gala mais luzida. Entraram pela igreja diante da mãe as duas irmãs, e como era maior o concurso da gente, também foi maior que nunca a murmuração. Não se olhava para outra parte, nem se falava em outra coisa por toda a igreja. Elas, porém, postas de joelhos diante da imagem da Senhora calavam e oravam, bem alheia a sua inocência e a sua afronta de que pudesse emudecer as línguas de seus caluniadores. Mas a Mãe de Deus, que tão liberalmente as proveu do sustento, atrevera-me eu a jurar da sua bondade, que não havia de consentir que fosse com perda da honra nem descrédito da virtude. Começou a se entoar o Evangelho, quando subitamente apareceram no ar duas formosas coroas de rosas. A novidade das rosas, por ser no maior rigor do inverno, e o estarem as coroas no ar, suspensas por si mesmas, provava com evidência serem mandadas do céu. Admirados todos de tão prodi­giosa maravilha, e não sabendo o que Deus quisesse significar com ela, começaram a descer as coroas pouco a pouco, e aqui se dobrou a admiração e o alvoroço, na dúvida e expectação do lugar onde iriam parar. Chegaram enfim aonde vinham encaminhadas, e as mãos dos anjos, de que invisivelmente eram movidas, as puseram - onde vos parece? - sobre as cabeças das duas irmãs. Oh! pasmo! Oh! assombro, não tanto do milagre público e manifesto, quanto da soberana e fiel providência da Virgem Santíssima, e dos poderes do seu Rosário! Com este testemunho do céu, tão evidente, se trocaram em um momento os enganados juízos de toda aquela multidão errada e temerária. As murmurações se conver­teram em louvores, as calúnias em aplausos, os escândalos em venerações. Todos davam as graças a Deus, todos o parabém à mãe, todos chamavam santas as filhas. Tão honradas e estimadas as que pouco antes eram a fábula e desprezo de toda a cidade, que no mesmo ponto, e sem sair da igreja, os dois mais nobres e bem-herdados mancebos dela, as pediram por mulheres, e se tiveram por mui venturosos de tão honrada sorte, Assim se renovou e dobrou neste caso a mudança da fortuna de Rute: ela coroada de espigas, em profecia do Sacramento, e elas coroadas de rosas, pela devoção do Rosário. E por este meio tão extraordinário e tão próprio da Mãe do Onipotente, as que eram tão pobres ficaram ricas, as que se sujeitavam a servir ficaram senhoras, e as que estavam desesperadas de conseguir um mediano estado, alcançaram o mais nobre e o mais rico de toda a sua pátria.

§ IX

0 que diz e promete a Senhora do Rosário a todos os seus devotos: Queres ho­nestidade? Queres honra? Queres vida? Pois tudo te darão as minhas flores. Como haveis de empregar os sobejos? 0 caso referido pelo Beato Alano de Rupe. 0 glorioso fim com que as duas coroas de espigas e de rosas, não tanto se competiram e emularam, quanto enlaçaram e teceram no mesmo triunfo.

Que dirá agora, ou que escusa pode ter a fé daquela mãe e daquelas filhas que, debaixo do falso e infernal pretexto de não terem com que sustentara vida, entregam a hones­tidade, infamam a honra, e não só perdem a alma, mas corrompem e desbaratam a mesma vida, e primeiro são cadáveres seus e asquerosos da torpeza, que a terra os acabe de consumir na infame sepultura. Dize, criatura vil, mais irracional que os brutos: aquele Deus - como pondera Davi - que sustenta os corvos e os filhos dos corvos, aquele Deus, que sustenta as serpentes, e as filhas das serpentes, não te sustentará também a ti e às tuas filhas? Se és tão cruel mãe para elas, e tão indigna da piedade deste nome, por que as não ensinas a recorrer à Mãe de Deus? Por que, retiradas dos olhos do mundo, as não sujeitas a servir a esta poderosís­sima Senhora, invocando-a todos os dias no seu Rosário? Parece-te que pode faltar o sustento à boca, que tantas vezes pronuncias o docíssimo nome de Maria? Ouve o que diz e promete a mesma Senhora a todos os devotos do seu Rosário: Flores mei fructus honoris et honestatis[32].Queres honestidade? Queres honra? Queres vida? Pois tudo isso te darão as minhas flores: Flores mei fructus honoris et honestatis. Não se pudera pintar nem fingir uma cláusula que tão adequadamente fechasse tudo o que temos dito: Flores mei: as minhas flores. - As flores da Virgem Santíssima, não há dúvida que são as rosas do seu Rosário, e por isso muito diferentes das outras. As outras rosas são flores que não dão fruto; porém as rosas do Rosário, não só dão fruto, mas são frutos: flores mei fructus, E que frutos? Frutos que sustentam a vida, e frutos que conservam a honra e a honestidade: Fructus honoris et honestatis. Vede como responde este epílogo, e satisfaz a tudo o que a pouca fé toma por escusa. A vossa pobreza, a vossa necessi­dade, a vossa fome, por que empenha a honestidade e perde a honra? Dizeis que para ter com que sustentar a vida. Pois, tudo isso diz a Senhora que tendes nas flores do seu Rosário: Flores mei fructus honoris et honestatis: As flores do meu Rosário são frutos, porque sustentam a vida, e são frutos de honra e de honestidade, porque não sustentam a vida à custa da honestida­de e da honra, senão conservando a honestidade, e conservando e aumentando a honra, tão abundante e tão ilustremente como acabamos de ver.

Seguros, pois, os temores da pobreza e os apertos da necessidade e da fome, com os reféns e penhores de uma experiência tão prodigiosa, manifesta aos olhos de todos, e mais seguros ainda com a palavra e promessa da mesma Mãe de Deus, já suponho que não haverá fé tão apoucada e tão incrédula, que na mais rigorosa e apertada pobreza, pros­trada humildemente aos pés da Virgem Santíssima, e invocando com o Rosário nas mãos a sua piedade, se não fie de seus poderes. E porque é certo e infalível que no tal caso, por mais perigoso e desesperado que pareça, não só vos não há de faltar o socorro, mas crescer e sobejar o remédio com grande largueza e abundância, quero acabar este discurso, que foi do remédio das faltas, com um novo documento, de como haveis de empregar os sobejos. Um homem, que tinha sido muito rico, veio a cair em tal miséria, que pedia esmola pelas portas. Pediu-a uma vez ao Beato Alano de Rupe, famoso pregador do Rosário, E como lhe respondesse com S. Pedro: Argentum et aurum non est mihi: quod autem habeo, hoc tibi do[33]: disse-lhe o santo que rezasse o Rosário todos os dias, e que a Virgem, Senhora nossa, o socorreria. Fê-lo assim, e a Senhora desempenhou a palavra do seu pregador com tanta largueza, que o que pouco antes pedia esmola, se viu quase de repente com tanta abundân­cia de bens que, despendendo em esmolas o que lhe sobejava, ele era o remédio de todos os pobres daquela terra. Este é o segundo conselho, com que acabo, no qual também nos não falta o exemplo da nossa Rute. Diz o texto sagrado que no mesmo dia em que Rute se aplicou a remediar a sua fome, pelo modo que só lhe era lícito, com a confiança em Deus, teve de comer tão abundantemente, que do que lhe sobejou pôde sustentar a sua sogra Noemi, que era tão pobre como ela. Notai as palavras da Escritura, que são dignas de toda a ponderação: Insuper protulit, et dedit ei de reliquiis cibi sui, quo saturata fuerat[34]. Aqui se começou a cumprir a profecia do nome de Rute, que quer dizer saturata. Fartou-se, digamo-lo assim, pois que assim o diz a Escritura: Quo saturata fuerat - para que não entendêssemos que, para levar de comer a sua sogra e remediar a sua pobreza, tirara ou defraudara alguma parte do que lhe pedia a própria fome, mas para que saibamos que no mesmo dia lhe fez Deus o prato com tanta largueza que, satisfeita a mais não querer a própria fome, pôde remediar a pobreza alheia.

E este foi, finalmente, o glorioso fim, com que as duas coroas de espigas e de rosas, não tanto se competiram e emularam, quanto se enlaçaram e teceram no mesmo triunfo: o Sacramento, em Rute, coroada de espigas, e o Rosário, nas duas irmãs, coroadas de rosas. Pois, a estas, por serem devotas do Rosário, remediada primeiro a sua pobreza, e conservada a honestidade e a honra, as dotou a soberana Rainha, sua Senhora, com os dois mais nobres e mais ricos casamentos daquela terra, assim como a Rute, figura das que recorrem à mesa, que temos exposta, do Santíssimo Sacramento, remediada tam­bém a sua pobreza, e conservada a honra e a virtude, a levantou o mesmo Senhor à nobreza e opulência das bodas e geração de Booz: Booz autem genuit Obed ex Ruth.

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[1] E Booz gerou de Rute a Obed (MÁ. 1, 5).

[2] Eu saí daqui cheia, e o Senhor me faz voltar vazia (Ri. 1, 21).

[3] Bendirás a coroa do ano da tua bondade, e os teus campos se encherão de abundância (SI. 64, 12).

[4]       0 estio desnudo, com guirlandas de espigas.

A primavera de pé, coroada de flores.

(Ovidius, Metam. lib. 2).

[5] E Booz gerou de Rute a Obed, e Obed gerou a Jessé, e Jessé gerou ao rei Davi (Mt. 1, 5).

[6] A tudo vence o amor.

[7] Claudianus, de Pauper amante.

[8] 4 Rs. 6, 25 ss; Las. 2, 20.

[9] D. Basilius in hunc locum.

[10] Se és Filho de Deus, dize que estas pedras se convertas es pães (MI 4, 3).

[11] Chrysol. Serin. de Tentat.II.

[12] Livra-me das minhas aflições (SI, 24, 17).

[13] 0 meu justo vive da fé (Hebr. 10, 38).

[14] Baronius, anno 513.

[15] Na noite em que foi entregue, tomou o pão, e dando graças, o partiu, e disse: Este é o meu corpo (1 Cor. 11, 23 s).

[16] Eu sou (Jo. 18, 5).

[17] E lançaram mão de Jesus (Mt. 26, 50).

[18] Esteve apanhando no campo até à tarde, e achou três alqueires (Rut. 2,17).

[19] E o Senhor vos dará um pão apertado (Is. 30, 20).

[20] E o pão dos frutos da terra será abundantíssimo e pingue (Is. 30, 23).

[21] Que dá sustento aos famintos (SI. 145, 7).

[22] August. in eodem Psalm.

[23] Não andeis inquietos pelo dia de amanhã, que comereis (Mt. 6, 34. 25).

[24] Chrysol. Serm. 67.

[25] A Vulgata traz: Dominus regi! me: o Senhor me governa (SI. 22, 1).

[26] Os ricos necessitaram e tiveram fome, mas os que buscam ao Senhor não serão privados de bem algum (SI. 33, I1).

[27]  3 Rs. 17, 14. 16 - Jo. 6, 11 e segs.

[28] Até que as cevadas e os trigos se recolheram nos celeiros (Rut. 2, 23).

[29] E virá sobre ti a indigência como um caminheiro, e a pobreza como um homem armado (Prov. 6,11).

[30] Como as plantas das rosas de Jericó (Eclo. 24, 18).

[31] Vinde a mim todos os que me desejais (Eclo. 24, 26).

[32] As minhas flores dão frutos de honra e de honestidade (Eclo. 24, 23).

[33] Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou (At. 3, 6).

[34] E além disso tirou para fora, e lhe deu dos sobejos da comida de que ela se tinha fartado (Rui. 2,18).