Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XXlV – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

                  Iorám autem genuit Oziam[1].

§1

Os mistérios das orações e os mistérios dos números. Quão misteriosas sejam as contas do Rosário, e quanta conta faz Deus dos grandes mistérios que nele se encerram. Na genealogia do Evangelho de S. Mateus, uma das maiores dificuldades de toda a Escri­tura Sagrada: Se Jorão não foi pai, senão terceiro avô de Osias, por que passa S. Mateus em silêncio estas três gerações, e diz absolutamente que Jorão gerou Osias? Qual foi a razão que teve o evangelista para diminuir o número dos ascendentes de Cristo? Quanto importa saber e especular os mistérios dos números nas contas de Deus. Santo Agostinho e a ciência dos números.

Muitas vezes, e por muitos modos, tenho pregado neste dia as excelências do Rosário, assim pela parte mental, no que medita, como pela vocal, no que reza. Mas porque estas mesmas meditações têm o seu número diverso, e as mesmas orações o seu, ambos certos e determinados, assim como declarei os mistérios das orações e os mistérios das meditações, assim hei de declarar hoje os mistérios dos números. Até agora vimos o Rosá­rio sem contas; agora veremos propriamente as contas do Rosário. De quão misteriosas sejam estas contas e estes números e de quanta conta faça Deus dos grandes mistérios que neles se encerram, a maior e mais encarecida prova que pode haver é a que nos dá o Evangelho nas palavras que propus.

 Ioram autem genuit Oziam (Mt. 1, 8): Jorão gerou a Osias. - Esta breve propo­sição de S. Mateus contém uma das maiores dificuldades de toda a Escritura Sagrada. Entre Jorão e Osias, como consta do primeiro e segundo Livro dos Paralipômenos[2]. houve outros três reis, porque Jorão gerou a Ocosias, Ocosias gerou a Joás, Joás gerou a Amasias, e, finalmente, Amasias gerou a Osias. Pois, se entre Jorão e Osias houve três gerações e três reis, e Jorão não foi pai, senão terceiro avô de Osias, por que passa S. Mateus em silêncio estes três reis e estas três gerações, e diz absolutamente que Jorão gerou a Osias? A dúvida não está na palavra gerou, nem em chamar o evangelista pai de Osias a Jorão, sendo tão remoto, porque muito mais remotos eram de todos os filhos de Israel, Abraão e Sara, e, contudo, deles diz Isaías que Abraão e Sara os gerou: Attendite ad Abraham, patrem vestrum, et ad Saram, que peperit vos[3]. No nosso mesmo Evangelho temos outro exemplo mais adequado. Diz o evangelista que Davi gerou a Salomão, e Salomão gerou a Roboão, e Roboão gerou a Abias, e Abias gerou a Asa. E mediando entre Asa e Davi outras três gerações e outros três reis, no terceiro livro dos mesmos Reis diz a Sagrada Escritura que Davi foi pai de Asa: Fecit Asa rectum ante conspectum Domini, sicut David parer ejus[4], Assim, que não está o ponto da dificuldade em dizer S. Mateus que Jorão gerou a Osias. Também não está a dúvida na justiça que o mesmo evangelista teve para riscar do seu Evangelho e do catálogo da geração de Cristo a estes três reis, mas que a outros, porque Jorão se tinha casado com Atália, irmã de el-rei Acab, cuja posteridade, e da ímpia Jezabel, tinha Deus jurado de tirar e apagar do mundo[5], e a posteridade, nos livros de Deus, se estende e computa até a quarta geração, como consta do capítulo vinte do Êxodo, e do capítulo décimo do quarto Livro dos Reis[6]. Pois em que está e consiste esta grande dificul­dade? Está em que, sendo S. Mateus historiador, e historiador Sagrado, e mais em matéria genealógica, e de uma tal geração como a de Cristo, parece que a devia continuar e prosse­guir inteira e rigorosamente, segundo a sucessão de todos os primogenitores, quaisquer que fossem, e muito mais sendo tais, sem excluir a nenhum, Qual foi, logo, a razão que teve S. Mateus para diminuir este número dos ascendentes de Cristo, e não na primeira, nem na terceira parte do seu catálogo, senão na segunda?

 S. Jerônimo, Santo Hilário, Santo Tomás, os insignes comentadores, Jansênio, Salmeirão, Abulense, e comumente os demais, tirando a razão literal das mesmas palavras do texto, dizem que excluiu S. Mateus do seu catálogo, e nomeadamente da segunda parte dele, estes três ascendentes, porque o seu intento era repartir toda a série da geração de Cristo em três terços. E porque o primeiro terço, desde Abraão até Davi, constava de cator­ze primogenitores, e o terceiro terço, desde a transmigração de Babilônia até Cristo, de outros catorze, e, pelo contrário, o segundo terço, desde Davi até a transmigração de Babi­lônia, tinha dezessete, para que também este constasse de catorze, excluiu os três reis que mediaram entre Jorão e Osias. As palavras de S. Mateus são estas: Omnes itaque generationes ab Abraham usque ad David, generationes quatuordecim: et a David usque ad transmigrationem Babylonis, generationes quatuordecim: et a transmigrationem Babylonis, usque ad Christum, generationes quatuordecim[7]. Isto é o que diz expressa­mente o texto de S. Mateus, e esta a razão que dele tiram todos os intérpretes, a qual porém antes aperta do que solta a dificuldade. Pergunto: é boa razão dizer-se que um historiador, e historiador sagrado, para repartir a geração e ascendência de Cristo em três terços iguais, porque em um sobejam três ascendentes, os tire e exclua dela? Se a pena de S. Mateus não fora govemada pelo Espírito Santo, dura razão seria esta; mas govemou-a assim o Espírito Santo, porque atendeu mais ao mistério dos números, que ao número das gerações. Na geração de Melquisedeque calou o mesmo Espírito Santo, na pena de S. Paulo, toda a sua genealogia, e disse que não tinha pai nem mãe: Melchisedech sine patre, sine matre, sine genealogia[8], E por quê? Porque Melquisedeque era figura de Cristo, o qual, assim como no céu não teve mãe, assim na terra não teve pai. Que muito, logo, que S. Mateus, na genealogia do mesmo Cristo, atendesse mais aos mistérios do número que ao número dos ascendentes? 0 número natural dos ascendentes constava da história do Testamento Velho; o número misterioso, e o mistério do mesmo número, segundo a conta e exclusão divina, só podia constar do Testamento Novo. E isto é o que fez o evangelista.

Santo Agostinho, como tão grande mestre, no Livro Segundo de Doctrina Christiana, ensina que muitos mistérios, que estão encerrados na Sagrada Escritura, se não entendem   por ignorância do que significam os números: Numero rum imperitia multa facit non intelligi traslate et mystice posita in Scripturis[9]. E, depois de propor e ponderar um bom exemplo, acrescenta o mesmo santo que este e semelhantes nós só com a ciência dos números se podem desatar: Cujus actions figuratus quidam nodus, nisi hujus numeri cognitione et consideratione non solvitur. Tanto importa saber e especular os mistérios dos números nas contas de Deus. E isto é o que nós faremos hoje. 0 nó que propusemos do Evangelho é tão apertado, como vimos, mas, com o conhecimento dos mistérios dos núme­ros, o soltaremos primeiro nas contas do mesmo Evangelho, e depois nas do Rosário. Sendo, pois, a matéria tão misteriosa, tão alta e tão secreta, recorramos à soberana Invento­ra do mesmo Rosário, para que, assistidos de sua graça, acertemos a dar boa conta dos números e mistérios destas contas: Ave Maria, etc.

§II

0 número inumerável das estrelas. Por que razão reduziu a Senhora a número certo e determinado as contas do Rosário? 0 mistério dos números na genealogia de Cristo. Significação do número catorze partido, inteiro e multiplicado. As quarenta e duas jorna­das dos filhos de Israel do Egito até a Terra de Promissão. As setenta e sete gerações da genealogia de Cristo, no Evangelho de S. Lucas, e o perdão universal dos pecados.

Não é fácil dar boa conta, nem ainda contar o que não tem conto. A Abraão, primeiro tronco desta mesma genealogia, disse Deus, falando dela: Numera stellas, si potes (Gên. 15, 5): Conta as estrelas, se podes. - Se podes, disse, porque nem Abraão, nem algum outro homem as pode contar. Os astrólogos, com Ptolomeu, chegaram a contar mil e vinte duas estrelas; mas as que eles não contam, são em tanto número, que só Deus as conta e conhece. Assim o cantou Davi, como exceção própria da Sabedoria divina: Qui numerat multitudinem stellarum: et omnibus eis nonima vocat[10]. E logo acrescenta: Magnus Dominus noster, et magna virtus ejus; et sapientiae ejus non est numerus[11] -porque só quem tem sabedoria sem­número pode contar o número das estrelas. 0 mesmo digo do número dos mistérios que a  matéria do Rosário encerra em si, verdadeiramente inumerável. S. João viu a Senhora coroada de estrelas, e contou que eram doze: Et in capite ejus corona stellarum duodecim[12]. Pôde-as contar, porque eram as que sobre a cabeça da Virgem se mostravam por fora; mas, se vira as que a coroam por dentro, nas idéias do seu Rosário, não lhes havia de achar número. As estrelas, que dão matéria à coroa do Rosário, são os mistérios de Cristo e sua Mãe, e ninguém pode duvidar serem inumeráveis, pois Jesus e Maria são a principal descendência de Abraão, da qual disse Deus, quando lhe mostrou as estrelas: Sic erit semen tuum[13].

Sendo, pois, inumerável o número das estrelas, que na coroa do Rosário, com um círculo infinito, se compreendem, por que razão as reduziu a Senhora, assim vocal como mentalmente, ao número certo e determinado com que as contamos nas nossas con­tas? Por duas razões. A primeira, para que, reduzidas e determinadas a certos números, as pudesse compreender a curta capacidade do nosso entendimento. A segunda, e própria do meu assunto, para que, conhecidos os mistérios dos mesmos números, entendêssemos quão necessária e importante é a todos os que fomos criados para o céu a devoção do Rosário. Vamos ao Evangelho, e nos mistérios dos seus números veremos como todos em comum nos ensinam esta mesma verdade.

0 número das gerações que se contêm neste Evangelho, por isso chamado Liber generationis Jesu Christi (Mt. 1, 1), como já notou e ponderou S. Mateus, foram três vezes catorze. Teve esta descendência, como todas as coisas humanas, o seu aumento, o seu estado e a sua declinação. 0 aumento foi de Abraão até Davi antes de o povo de Israel ser reino; o estado, sendo já reino, foi desde Davi até a transmigração de Babilônia; a declinação, depois que deixou de ser reino, foi desde a transmigração de Babilônia até Cristo. E é coisa verdadei­ramente admirável e misteriosa, que no aumento fossem catorze as gerações, no estado cator­ze, e na declinação também catorze. Mas com que mistério, ou mistérios? Agora o veremos.

 Estes catorze, ou se podem considerar partidos, ou inteiros, ou multiplicados, e em qualquer consideração significa o mesmo número a nossa bem-aventurança por meio de Cris­to. Três vezes catorze partidos fazem seis vezes sete. E o número de seis e de sete, que signifi­ca? 0 de seis, diz S. Jerônimo, significa os trabalhos desta vida, porque em seis dias fabricou Deus o mundo; o de sete significa o descanso da outra, porque ao sétimo dia descansou Deus: Requievit die septimo (Gên. 2, 2). - Ita ab initio mundi diebus cotiditis - diz o Santo – ut omnes labores et molestiae septimo numero conquiescant[14]. De maneira que Cristo, Senhor nosso, como Deus que era antes de ser homem, ordenou que a sua geração temporal se repar­tisse por estes intervalos de seis e de sete, até chegar ao mesmo Cristo, porque ele e a sua lei, é só aquela em que se acha o descanso de todos os trabalhos: Vente ad me omnes qui laboratis, et invenietis requiem anima bus vestris[15]. Nem obsta serem os dias do trabalho seis, e o do descanso um só, porque os dias do trabalho são dias do tempo, que duram poucas horas, e o dia do descanso é o dia da eternidade, que assim como não tem noite, não há de ter fim. Este é o felicíssimo sete, em que se desatam os catorze partidos.

 Tomados, porém, inteiros, como os tomou ou somou o evangelista, também descobrem por outro modo, não outro, senão o mesmo mistério. 0 número catorzeno é crítico, e nas enfermidades agudas o mais perigoso, em que, para bem ou para mal, faz termo. Assim sucedeu ao corpo da República Hebréia, nos três estados do seu governo, primeiro governada por juízes, depois por reis, e ultimamente por sacerdotes. No pri­meiro catorzeno, que se terminou em Davi, ficou a república coroada, mas enfer­ma; no segundo catorzeno, que se terminou na transmigração de Babilônia, ficou cativa, mas não de todo morta; porém, no terceiro catorzeno, que se terminou em Jesus, que quer dizer Salvador, então conseguiu a mesma república, como cativa, a perfeita liberdade, e, como enferma, a inteira saúde, que é a da salvação: Ergo congrue ad naturam hominis, decima quarta quaque generatione una Republica aegrotante ac deficiente, optima per Christum subrogara est, quae triplicis praecedentis defectus, et infirmitates sanaret-diz,depois de Maldonado, Comélio[16].

E, se esta foi a significação do número catorze, ou partido ou inteiro, não é menos misteriosa, nem com diferente mistério, a do mesmo número multiplicado. Multiplicado três vezes o número de catorze gerações, faz quarenta e duas. E que nos quer significar o Evange­lho, em que viesse Cristo ao mundo por quarenta e duas gerações, como por outros tantos degraus? Orígenes, a quem segue S. Jerônimo, declarou o mistério com grande propriedade: Intuere mysterii rationem. Constat numerus descensionis Christi per quadraginta duos patres secundum carnem, veluti per quadraginta duas mansiones descendentes usque ad nos: et per totidem mansiones ascensus filiorum Israel usque ad haereditatis promissae principium[17]: Quando os filhos de Israel partiram do Egito, fizeram quarenta e duas jornadas até a Terra de Promissão. E é muito de notar, que assim a Terra de Promissão como a geração de Cristo, uma e outra foram prometidas por Deus ao mesmo Abraão. Pois, assim como os filhos de Israel chegaram à Terra de Promissão com quarenta e duas jornadas, assim Cristo veio ao mundo cerrando-se nele quarenta e duas gerações, para que entendêsse­mos na dilação de um e outro caminho, e na proporção de um e outro número, que só por meio de Cristo podíamos chegar à verdadeira Terra de Promissão, que é a pátria do céu.

Bem sei que S. Lucas, descrevendo a mesma genealogia - a qual não deduz de Abraão até Cristo, senão de Cristo até Adão, e até Deus - variou este número, e não põe quarenta e duas gerações, senão setenta e sete. Mas esta variedade de número não muda nem encontra o mistério, antes o confirma e declara mais. A razão é porque o número setenta e sete, como notaram S. Cipriano e S. Gregório, significa o perdão universal dos pecados, sem o qual se não pode ir ao céu[18]. Funda-se esta significação na resposta de Cristo a S. Pedro, quando lhe perguntou, se perdoaria os pecados até sete vezes, e o Senhor lhe respondeu que não só sete, senão setenta vezes sete: Non dico tibi usque septies: sed usque septuagies septies (Mt.18, 22). E, pois, estamos em sermão de contas e números, se alguém me perguntar curio­samente que proporção tem o número setenta e sete com os pecados e perdão universal deles, Santo Agostinho, a descobriu sutilissimamente[19]. 0 pecado é transgressão da lei; a lei consis­te no número dez, porque os preceitos são dez: logo, a transgressão da lei consiste no número onze, porque o número onze é o que passa além dos dez. E porque o mesmo número onze, sete vezes multiplicado, faz setenta e sete, por isso Cristo significou o perdão universal dos peca­dos com o mesmo número: Usque septuagies septies. Sendo, pois, certo que ninguém pode entrar na Terra de Promissão do céu sem o perdão universal dos pecados, significado no número da genealogia de S. Lucas, essa é a razão por que no número da genealogia de S. Mateus, com admirável correspondência, se significam as jornadas da Terra de Promissão, porque só por meio de Cristo podemos chegar à Pátria bem-aventurada. Em suma, que, toma­do o mesmo número de três vezes catorze, ou partido, ou inteiro, ou multiplicado, partido significa o descanso, inteiro significa a salvação, multiplicado, significa a Pátria, e sempre, e de todos os modos, a glória e bem-aventurança do céu, para que fomos criados.

§III

Os números de que consta o Rosário: um, três, cinco, dez, quinze, cinqüenta, e cento e cinqüenta.

Isto é o que nos diz e significa o Evangelho em comum no mistério dos seus números, tão exatamente contados e repartidos. Segue-se agora ver como o Rosário nos significa e promete o mesmo nos mistérios das suas contas. E para que seja com maior distinção e clareza, discorreremos em particular por todos e cada um dos números, de que elas se compõem. Os números das contas do Rosário são: um, três, cinco, dez, quinze, cinqüenta, e cento e cinqüenta, em que se resume todo. Reduzindo, pois, todos estes núme­ros a três pontos ou questões, na primeira veremos por que é o Rosário um, e se divide em três partes, ou em três terços? Na segunda, por que são os mistérios quinze, e os Padre­nossos quinze, e se repartem de cinco em cinco? Na terceira, por que são cento e cinqüenta as Ave-Marias, e se dividem em três vezes cinqüenta, e cada cinqüenta de dez em dez? Esta é toda a fábrica e artifício do Rosário que todos meditam, todos rezam e todos trazem nas mãos, e nem todos a entendem. Mas agora, com nova graça da mesma Senhora, que assim repartiu estas contas, as entenderão todos.

§ IV

Primeira questão: por que, sendo o Rosário um, se divide em três partes ou três terços? A unidade e Trindade de Deus e a unidade e trindade do Rosário. Por que Deus prometeu tantos bens temporais aos observadores da lei escrita, e não lhes prometeu tam­bém os do céu e eternos? Diferença com que o céu se mostrou antigamente a Jacó, e, depois, a S. João no Apocalipse. A visão de Jacó e a porta do céu.

 0 primeiro ponto, ou questão, era: por que, sendo o Rosário um, se divide em três partes, ou, como vulgarmente dizemos, em três terços? Respondo que, consistindo a bem-aventurança do céu na visão ou vista clara de Deus, o qual é um em essência, e trino em pessoas, para que o meio fosse proporcionado ao fim, pedia a conveniência e a razão, que o Rosário, o qual nos encaminha e leva à mesma vista de Deus, fosse também um e trino. Uma das coisas mais notáveis na Escritura Sagrada, como bem advertiu S. João Crisóstomo com outros padres, é que em todo o Pentateuco, em que se contém alei escrita, senão prometa o céu aos que a guardarem. Prêmios temporais, como abundância de frutos, riquezas, larga vida, propagação e posteridade de filhos e netos, vitória contra os inimigos, e outros deste gênero, sim, mas todos da terra. Pois se Deus promete tantos bens temporais e da terra aos obser­vadores daquela lei, porque lhes não prometeu também os do céu e eternos? A primeira razão, e geral, foi porque aquela lei, ainda que dada por Deus, não tinha virtude para levar os homens ao céu, e por isso os bons e melhores dela, iam todos ao limbo. Assim o ensina S. Paulo, e com ele todos os teólogos. Mas a segunda razão, e mais alta, é porque na mesma lei só estava promulgada a fé da Unidade de Deus, como constado mesmo Pentateuco, no capítulo sexto do Deuteronômio: Audi Israel: Dominus Deus noster, Dominus unos est. Diliges Dominam Deum tuum ex toto corde tuo, etc[20]. E porque a abertura das portas do céu estava reservada para a fé da SantíssimaTrindade, não era justo que o céu se prometesse, senão na lei da graça, na qual desde o Batismo, ainda antes de poder falar, professamos que Deus não só é um, mas um e trino.

Daqui se entenderá uma grande diferença com que o céu se mostrou antiga­mente a Jacó, e depois a S. João no seu Apocalipse. Jacó viu em sonhos aquela escada que chegava da terra ao céu; mas ainda que viu a escada, não viu a porta. É verdade que depois, acordando, disse:Non est hic aliud nisi domus Dei, et porta caeli[21] -argüindo por discurso que, onde estava a escada, ali devia de estar a porta; porém, a porta não se lhe mostrou na visão, da qual somente diz o texto: Vidit scalam stantem super terram, et cacumen illius tangens caelum[22]. Pelo contrário, a S. João mostrou-lhe Deus também o céu, mas todo aberto em portas: Ab oriente portae tres, etab aquilone portae tres, et ab austro portae tres, et ab occasu portae tres (Apc. 21, 13): Para o Oriente três portas, para o Ocidente três portas, para o Setentrião três portas, para o Meio-dia três portas. - Pois, se a Jacó, quando se lhe mostra o céu, não se lhe mostra nenhuma só porta, a S. João por que se lhe mostra com tantas portas, não só para uma parte do mundo, senão para todas? Porque Jacó era do tempo em que geralmente só se conhecia a Unidade de Deus; e no tempo de S. João já se cria em todo o mundo, não só a Unidade, senão também a Trindade: e porque naquele tempo estava o céu fechado, e neste tempo está aberto a todos, por isso no tempo em que Deus só se conhecia como Um, nem uma só porta do céu se mostrou a Jacó, e no tempo em que se conhece como Um e Trino, se mostra a S. João com tantas portas, No número das mesmas portas está declarado o mistério. Três portas para o Oriente, três para o Ocidente, três para o Setentrião, três para o Meio-dia, e sempre três, e somente três para todas as partes donde se descobre o céu: por quê? Porque no número de três estava significado o mistério da Trindade, sem o qual se não entra no céu. Ideo tres portae, nam in fide Trinitatis recipiuntur electi ad gloriam caelestem, diz Lirano. 0 mesmo diz, e com maior expressão, S. Bernardo; mas eu quis citar antes a Lirano, cujo testemunho, como interessado por nascimento e por fé em uma e outra Lei, é mais sem suspeita[23].

326, Mas tomemos a Jacó, para mais apertar a ponderação. - Basta, Senhor, que mos­trais a Jacó a escada do céu e não lhe mostrais aporta? Mostrai-lhe a escada, e não lhe mandais que suba? Mostrai-lhe a escada, e não lhe mostrais nela um homem, senão somente anjos: Angelos ascendentes et descendentes[24]? Mais ainda. 0 que Deus prometeu naquela ocasião a Jacó foi que lhe daria toda aquela terra em que dormia, que era a terra de Canaã: Terram, in qua dormis, tibi dabo et semini tuo[25]. E como diz esta promessa com a visão? Na visão mostra-lhe Deus o céu, e na promessa dá-lhe aterra? Sim, porque enquanto Deus era conhecido só como Um, e não como Trino, só podia dar os bens da terra, e não os do céu, ainda que os homens fossem tão santos como Jacó. Por isso na escada só apareceram anjos, e no céu não aparecia porta, porque só no mistério da Trindade se abrirão as portas do céu aos homens. No Evange­lho temos manifesto todo o mistério, e com todas as suas circunstâncias. Se alguma hora se manifestou a Santíssima Trindade, não só à fé, senão ainda aos sentidos, foi no batismo de Cristo, em que se ouviu a voz do Padre, e se viu o Espírito Santo em figura de pomba. De sorte que na voz se manifestou o Padre, em Cristo o Filho, e na pomba o Espírito Santo. E que sucedeu então? Aperti sunt caeli (Mt, 3, 16): Abriram-se os céus - porque ainda que só Deus pode abrir as portas do céu, não as abre conhecido só como um, senão como trino.

§V

A segunda trindade de Cristo e a terceira trindade do Rosário. Muito mais representa o mesmo Cristo a Trindade de Deus na composição do Rosário, que nas três substâncias diversas de que é composto, A porta estreita do céu aberta e dividida em três portas no Rosário da Senhora. As portas da justiça e a porta do céu.

Com grande razão, logo, e com grande proporção o Rosário, sendo um, se divide em três partes, ou em três terços, para que, na unidade e trindade destes mesmos números, nos signifique e declare o mistério com que ele, meditando a Cristo, ou Cristo meditado nele, não doutro modo, mas como um e trino, nos abre as portas do céu. Cristo, Senhor nosso, quando, para nos levar ao céu, desceu à terra, não só nos ensinou o altíssimo mistério da Unidade e Trindade Divina, mas o trouxe e representou em si mesmo, como excelentemente notou S. Bernardo, por estas palavras: Sicut in illa singulari Divinitate Trintas est in personis, Unitas in substantia, sic in isto speciali commixtione Trinitas est in substantia, et in persona Unitas[26]: Assim como em Deus há Unidade na substância e trindade nas Pessoas, assim em Cristo há unidade na Pessoa e trindade nas substâncias. E de que modo? Verbum enim, anima, et caro, in unam convenere personam: Porque no composto inefável de Cristo, a divindade, a alma e o corpo, que são as partes de que se compõe, são três substâncias diversas, e a Pessoa, em que todas subsistem e estão suposita­das, que é a Pessoa do Verbo, é uma só e a mesma. E desta maneira o mesmo Cristo, sendo um, é trino, e, sendo trino, é um: Et haec tria unum, et hoc unum tria. - Esta segunda trindade, pois -conclui o santo - foi a obra mais admirável de Deus, e amais singular, não só entre todas as suas obras, senão sobre todas: Summa illa Trinitas hanc nobis exhibuit Trinitatem, opus mirabile, opus singulare inter omnia, et super omnia opera sua.

Mas, sendo tão admirável esta segunda trindade que Deus fez na Encarnação do Verbo, ainda é mais admirável a terceira trindade, que a Mãe do mesmo Deus fez no seu Rosário. E por quê? Porque, repartindo o mesmo Rosário em três terços, e ao mesmo Cristo, de quem ele se compõe, em três estados, um da vida, e mistérios gozosos, outro da morte, e mistérios dolorosos, e o terceiro da ressurreição, e mistérios Gloriosos, muito melhor representa o mesmo Cristo a Trindade de Deus nesta nova composição do Rosário, que nas três substâncias diversas de que é composto. A razão e diferença é manifesta. Porque a perfeição da Trindade Divina consiste em que, sendo um só Deus, e três Pessoas, todo Deus está na Pessoa do Padre, todo Deus na do Filho, e todo Deus na do Espírito Santo, o que se não acha nas três substâncias, ou partes, de que Cristo é composto. Porque, ainda que na divindade, na alma e no corpo, tomadas juntamente todas estas três partes, está todo Cristo, em cada uma delas não está todo. No corpo não está todo Cristo, na alma não está todo Cristo, nem na mesma divindade todo Cristo. Porém, nas partes de que se compõe o Rosário, ou juntas, ou divididas, em todas e em cada uma delas, está todo. Todo Cristo nos mistérios Gozosos, todo Cristo nos Dolorosos, e todo Cristo nos Gloriosos, assim como todo Deus no Padre, todo no Filho e todo no Espírito Santo. Finalmente, assim como Cristo no Rosário é um e trino em si mesmo, assim é um e trino no mesmo Rosário, enquanto porta, e portas, por onde entramos à bem-aventurança do céu.

Cristo, Senhor nosso, diz que ele é a porta, pela qual todos os que entram se salvam, e ninguém se pode salvar senão entrando por ela: Ego sum ostium. Per me si quis introierit, salvabitur[27]. E porque o mesmo Senhor diz que a porta do céu é estreita, a Senhora a abriu e dividiu no seu Rosário em três portas, como as que viu S. João no Céu; uma de gosto, nos primeiros mistérios, outra de compaixão, nos segundos, e a terceira de glória, nos últimos, para que todos -conforme são diversos os afetos dos homens - entrem sem horror por elas. Por estas portas suspirava Davi, quando dizia: Aperite mihi portas justitiae; ingressus in eas confitebor Domino (SI, 117, 19): Abri-me as portas da justiça, para que, entrando por elas, louve eternamente a Deus. - E que portas são estas? 0 mesmo profeta o declara logo: Haec porta Domini, justi intrabunt in eam (SI. 117,20): Estas portas são uma só porta, pela qual entram os justos - que é Cristo, de quem vai falando. Pois, se são muitas portas: Aperite mihi portas - como são uma só porta: Haec porta Domini? Porque o mesmo Cristo é uma porta e é muitas portas, as quais se chamam portas justitiae, portas da justiça, porque toda a justiça que têm os justos para entrar no Céu é fundada nos merecimentos de Cristo: Haec porta Domini, justi intrabunt in eam. Ouça­mos ao Abade Ansberto: Cum prius plurali numero portas sibi aperiri postulat, deinde numero singulari unam portam se vidisse testatur, quia quis quis per illas ingreditur, per unam, quae principalis, et singularis est omnium, imo quae in omnibus una, et singularis est, ingreditur. Notai e pesai bem estas últimas palavras: In omnibus una, et singularis. Porque ainda que as portas do céu, para qualquer parte do mundo, como as viu S. João, sejam três, em todas essas três portas não há mais que uma porta, que é Cristo: In omnibus una, et singularis. Assim também no Rosário. Dividido Cristo em três partes e em três portas, mas em todas três um só Cristo: um e trino em si mesmo, e um e trino enquanto porta do Céu. E assim como Cristo é um e trino no Rosário, assim o Rosário é um e trino em Cristo: e por isso, sendo um, dividido em três partes e em três terços.

§ VI

Segunda questão: por que os mistérios que meditamos e os Padre-nossos que reza­mos no Rosário são determinadamente quinze, e estes quinze também divididos de cinco em cinco? 0 mistério e significação do número quinze no Eclesiastes. Ação de graças do profeta Davi. Proporção do número quinze com a bem-aventurança do céu.

0 segundo ponto, ou questão, eram: porque os mistérios que meditamos, e os Padre­nossos que rezamos no Rosário são determinadamente quinze, e estes quinze também divididos de cinco em cinco? Respondo que o mistério e significação deste número quinze, assim inteiro, como dividido, é o mesmo que prometemos e imos seguindo; porque também neste número nos promete Deus, e a Soberana Autora do Rosário, abem-aventurança do céu. No capítulo onze do Eclesiastes diz assim Salomão profundamente: Da partem septem, necnon et octo, quia ignoras quid futuram sit mali super terram (Ecl. 11, 2): Homem, que não sabes os males que de futuro estão aparelhados a ti e ao mundo, dá a Deus os sete, e mais os oito. -Enigma temos, e não fácil. S. Jerônimo, Santo Agostinho, e os mais Padres, comumente dizem que estes sete e oito se hão de tomar juntos, com que fazem o número de quinze. E não era necessária tanta ciência como a sua: menos aritmética bastava para esta soma. Mas que proporção ou que virtude tem o sete e o oito, ou o número quinze, composto destas duas partes, para livrar ao homem dos males futuros, e o levar aos bens eternos, que é o fim que aqui se promete, como bem declara S. Gregório: Ut per haec ad bona alterna veniamus[28]? As exposições deste texto são quase tantas como os autores. Mas, calculada a proporção do número quinze com abem-aventurança do céu, que nele se promete, e não declarando o texto que quinze há de ser este, ou que coisas sejam as que havemos de dar ou oferecer a Deus dentro no mesmo número de quinze, eu digo que são os quinze mistérios do Rosário. A razão que tenho para assim o dizer, creio que é bem-fundada, porque, se em cada um destes quinze mistérios nos mereceu Cristo, Senhor nosso, não só uma, senão infinitas vezes a mesma bem-aventurança, que muito é que a prometa uma vez aos que quinze vezes cada dia lhes agradecem com a memória, e lhos oferecem com a oração?     

Davi, querendo agradecer e pagar a Deus a glória que lhe tinha preparada no Céu, não achou outro preço proporcionado e equivalente, senão oferecer a Deus na oração o mesmo sangue, com que ele no-la comprou: Quid retribuam Domino, pro omnibus quaeretribuit mihi? Calicem salutaris accipiam, et nomen Domini invocabo[29]. Notai o retribuit e o quid retribuam. De sorte que neste caso havia duas retribuições: uma da parte de Deus, com que Deus havia de premiar a Davi, e outra da parte de Davi, com que Davi havia de pagar a Deus. E não achou Davi, alumiado pelo mesmo Deus, outro preço mais proporcio­nado e equivalente em paga da glória, que certamente havia de receber - que por isso diz retribuir, como se já a tivera recebido - não achou, digo, outro preço mais proporcionado, que oferecer a Deus, na oração, o mesmo sangue com que Deus tinha comprado a mesma glória que lhe havia de dar. Calicem salutaris accipiam: eis aí o preço do mesmo sangue; Et nomen Domini invocabo: eis aí o oferecimento dele na oração. Lançai agora o discurso por quantas coisas se podem imaginar, e vede se há na terra, nem no céu, alguma que se possa dar ou oferecer a Deus, mais proporcionada à bem-aventurança que nos promete pelo que lhe dermos em número de quinze, senão os quinze mistérios do Rosário? Tudo o demais que dermos ou oferecermos a Deus pela bem-aventurança é infinitamente menos que o preço por que ele o comprou. Logo, os quinze, a que promete a mesma bem-aventurança, não podem ser outros, senão os quinze mistérios de sua vida, de sua morte, e de sua ressur­reição, que no Rosário lhe oferecemos: Da partem septem, necnon et octo, quia ignoras quid futurum sit. Todos ignoramos o que há de ser de nós; todos ignoramos este grande, e incerto futuro, se havemos de ser bem-aventurados ou não: pois, para segurar esta tão importante incerteza, demos outra vez a Deus o que ele nos deu, e ofereçamos-lhe no Rosário os quinze mistérios de nossa mesma Redenção: Da partem septem, necnon et octo.

§ VIII

Por que não diz Salomão que demos a Deus os quinze, senão os sete e os oito? A dedicação a Deus do dia sétimo e do dia oitavo. Proporção natural do número quinze com a bem-aventurança. Os sete degraus do átrio exterior do Templo, os oito degraus do átrio interior e os salmos graduais.

Mas com razão perguntará alguém, e todos: se nestas duas partes, de sete e oito, se contém o número de quinze, porque não diz Salomão que demos a Deus os quinze, senão os sete e os oito? Aqui vereis quão admiráveis são os mistérios dos números, e quão grande proporção têm os sete e os oito, e só os sete e os oito, com abem-aventurança. Salomão no seu tempo falava com os da lei antiga, os quais então não podiam ir ao céu, senão depois da Redenção, que pertencia à lei da graça. Eles dedicavam a Deus o dia sétimo, que era o sábado: nós dedicamos a Deus o dia oitavo, que é o domingo, em que Cristo ressuscitou glorioso; e porque não bastava só aquele sete, senão junto com este oito para se conseguir a glória, por isso Salomão exorta aos seus, e a todos, que não só dêem a Deus o sete, senão também o oito: Da partem septem, necnon et octo. Excelen­temente S. Jerônimo, argumentando contra os judeus, e contra os hereges marcionistas e mani queus: Judaei dederunt partem septem credentes Sabbathum, sed non dederunt octo, suscipientes Evangelium, resurrectionem diei Dominicae denegantes. Econtrario haerettci, Marcion et  Mani-choeus, dederunt partem octo suscipientes Evangelium, sed eamdem septenario numero non tribuunt, legem veterern respuentes[30]: Os judeus dão a Deus o sete, porque observam o sábado, mas não dão a Deus o oito, porque negam o Evangelho, e não crêem a ressurreição de Cristo, que foi ao dia oitavo. Os hereges marcionistas e maniqueus, dão a Deus o oito, porque crêem o Evangelho e a ressurreição de Cristo, e não dão a Deus o sete, porque negam o Testamento Velho -e assim uns, como os outros, todos se condenam, porque não há salvação nem nos sete só, sem os oito, nem nos oito só, sem os sete, senão nos sete e nos oito juntos, com que se inteira o número de quinze, como de suas partes: Da partem septem, necnon et octo. Assim conclui o Doutor Máximo, e eu o provo e demonstro com o efeito. Sabbathum quer dizer descanso, e isto só conseguiam os da lei velha, por santos que fossem, que por isso iam descansar ao seio de Abraão. Porém esses mesmos não conseguiram a bem-aventurança, senão depois que, ajun­tando-se o oito ao sete, se aperfeiçoou o número de quinze. Esse foi o mistério por que Cristo morreu e remiu o mundo ao décimo-quinto da Lua, celebrando-se a redenção do Egito ao décimo-quarto. E como naquele dia ao sete se ajuntou o oito, e se cerrou o número de quinze, logo, aos que até então descansavam às escuras, lhes amanheceu a nova luz, com que começa­ram a ser bem-aventurados na glória.

Sendo, pois, tão natural a proporção que tem este sagrado número de quinze com a bem-aventurança, ordenada a mesma proporção por aquele supremo Autor da natureza e da graça, que tudo fez em número, peso e medida, não é muito que, junto o mesmo número aos mistérios de sua vida, morte e ressurreição, tenha a virtude e eficácia de nos fazer bem-aventura­dos, concorrendo de nossa parte as meditações e orações, com que um por um os meditamos, e em todos e cada um louvamos ao mesmo Senhor. Tudo assim como eu o digo, estava já pintado e cantado muito antes de haver Rosário, sendo o pintor Ezequiel, e o músico Davi. No Templo de Jerusalém, além do átrio chamado dos gentios, havia outros dois, em que só entravam os fiéis: um, que se chamava átrio exterior, outro interior. Ao átrio exterior, diz Ezequiel que se subia por sete degraus: Et septem graduam erat ascensus ejus (Ez. 40, 22); porém, ao interior, que se seguia depois deste, e ficava mais dentro e mais acima, diz que os degraus por que se subia eram oito: Et in octo gradibus ascensus ejus (Ez. 40,37). E porque não eram uns e outros degraus sete, ou uns e outros oito? Porque esta diferença dos degraus fazia a proporção do número e inteirava o misté­rio, confirmando tudo com o que acabamos de dizer. De maneira que os que subiam pelos sete degraus ao átrio exterior, ficavam ainda de fora, porém, os que subiam também pelos oito do átrio interior, em que se cerrava o número de quinze degraus, estes só entravam no Templo e chegavam ao Sancta Sanctonun. 0 Templo significava o céu; o Sancta Sanctonun, em que Deus assistia sobre asas de querubins, significava a glória; os quinze degraus por que se subia significavam os quinze mistérios da humanidade e divindade de Cristo; e os que subiam por eles, os que meditam no Rosário os mesmos mistérios. E falta ainda mais alguma propriedade? Sim. Porque os que subiam por aqueles degraus não subiam mudos, senão cantando ou rezando em cada degrau um salmo. Estes eram os quinze salmos a que Davi chamou graduais, porque em cada degrau dos quinze se rezava um, assim como nós no Rosário, a cada mistério, rezamos um Padre-nosso e uma década de Ave-Marfas. E a significação de tudo o que naquela famosa figura se via e ouvia, era, diz S. Jerônimo, que por quinze degraus, e por quinze orações, em que se contêm os louvores divinos, sobem os justos ao céu e a Deus, para lá o louvarem eternamente: Quindecim sunt carmina in Psalterio, et quindecim gradus in Ezecchiele, per quos ad canendum Deo, et in atriis ejus consistendum, justus ascendit[31]. Quem tão claramente descreveu o Rosário tam­bém o nomearia, se não escrevera mil anos antes.

§ VIII

Por que os quinze mistérios do Rosário são divididos de cinco em cinco? A divisão dos degraus do Templo e a divisão dos istérios do Rosário. 0 que diz Incógnito, insigne comentador dos Salmos? A corrupção dos cinco sentidos do homem, figurados em diver­sos lugares da Escritura, e os cinco remédios proporcionados pelos mistérios do Rosário.

Finalmente, estes quinze mistérios, ou degraus, os dividiu a Virgem, Senhora nossa, de cinco em cinco - que é a segunda parte deste ponto - e aqui, parece, se encontra a arquitetura do Rosário com a do templo de Ezequiel, em que com tanta propriedade o vimos retratado até agora. Os degraus, que lá eram quinze, somente se dividiam em duas partes: pois, se os mesmos quinze degraus eram figura dos quinze mistérios do Rosário, por que os divide a Senhora, não em duas partes, senão em três, e não em partes desiguais, como lá estavam repartidos, senão todas iguais e do mesmo número, cada uma de cinco em cinco? Confesso que quando aqui cheguei me entristeceu muito esta desproporção, vendo que as contas me saíam tão erradas. Mas a mesma Virgem, que não pode faltar a quem a serve, e mais em causa sua, em cumprimento da verdade com que diz de si: Ego eruditis intersum cogitationibus[32], me acudiu com uma erudição, não nova, mas muito antiga, e me ensinou a grande correspon­dência desta sua repartição de cinco em cinco, a qual eu na lição de muitos livros não tinha alcançado. A erudição que digo é do insigne comentador dos salmos, chamado o Incógnito, o qual no primeiro dos graduais diz assim: Per quindecim gradus ascendebatur ad Templum, qui gradus erant distinti per quinque ter: Os degraus por onde se subia ao Templo eram quinze, mas esses quinze, divididos em três vezes cinco: Per quinque ter. Mais elegantemente se pudera dizer, mas não com maior clareza. Vai por diante o mesmo autor, e diz que no fim de cada cinco degraus havia um espaço maior, porque ali paravam e se detinham os que subiam, rezando a cada cinco salmos algumas outras orações, e que isto faziam no quinto degrau, no décimo e no décimo-quinto: In capite quinque graduam erat majus spatium: et quando erant in quinto grado, aliqualem moram ibi faciendo, post quintum psalmum dicebant aliquas ora­tiones, consimiliter in decimo, et in decimo quinto. E esta erudição ou tradição é tão certa e tão antiga, que por isso a Igreja divide os mesmos salmos graduais em três partes, com pausa e oração diversa a cada cinco. Assim que em dividir os quinze mistérios do Rosário de cinco em cinco, não se apartou a Senhora da arquitetura do Templo, ou, para o dizer com maior certeza, não se apartou a arquitetura do Templo do desenho da mesma Senhora.

E a que fim esta repartição de cinco em cinco? Ao mesmo fim de todos os outros números e contas do Rosário. E é com altíssima providência, para que o peso da nossa fraqueza, e a guerra que nos faz o demônio pelas portas dos cinco sentidos, nos não impedissem a subida do céu. Pergunta Santo Agostinho, porque razão na parábola das Virgens se introduzem sinaladamente cinco prudentes, que entraram às bodas, e cinco néscias, que ficaram de fora[33]? E responde que o número de cinco significa os cinco sentidos, os quais, ou coma continência nos levam a glória, ou coma corrupção nos impedem a subida:In quinario numero intelligitur continentia quinque sensuum carnis: ab his quinque januis corruptionis quicumque se continent, suntquinque Virgines sapientes, etc.[34] São os cincosentidos os cinco talentos, que entregou Deus a nossas almas para negociarem o céu, mas pelo mau uso deles, eles vêm a ser os maiores inimigos de nossa salvação[35]. Eles são cinco reis amorreus que, na conquista da Terra de Promissão, resistiram e fizeram guerra a Josué[36]. Eles são cinco sátrapas dos filisteus, com que Deus proibiu aos filhos de Israel, que não tivessem comércio, e, porque o tiveram, idolatraram[37]. Eles são os cinco adúlteros da Samaritana, que, depois de todos a perderem, todos a desprezaram[38]. Eles são os cinco irmãos do rico avarento, que, ainda ardendo no inferno, ou os amava, ou tinha memória deles[39]. E eles, enfim, são as cinco juntas de animais grosseiros, com que o rústico e descortês lavrador, se escusou de ir ao banquete do rei[40]. E com muita propriedade - como bem notou Salmeirão - se chamam os sentidos juntas, porque andam atados de dois em dois. Dois olhos para a vista, dois ouvidos para ouvir, duas mãos para o tato, duas entradas para o olfato, e duas, que são a boca e a língua, para o gosto: Quinque juga boum sunt quinque sensus, qui omnes geminati sunt[41].

Repartiu, pois, a Senhora os mistérios do seu Rosário de cinco em cinco, para que nos Gozosos, se os sentidos se deixassem levar do apetite do gosto, ou nos dolorosos, se se retirassem pelo temor da pena, ou nos gloriosos, se os movesse o desejo da glória vã, em todos tivesse a alma cinco castelos-fortes, com que pudesse resistir às sugestões dos mesmos sentidos, ou cinco remedios presentíssimos, com que curar as fraquezas em que tivessem caído. Se a alma se vê tentada do demônio, aqueles cinco mistérios são as cinco pedras de Davi, com que derrubou o gigante[42]. Se se vê enferma, eles são os cinco pórticos da piscina em que se curou o paralítico, não podendo dizer: Hominem non habeo[43] -porque em todos tem a Deus feito Homem. Se se vê cativa, eles são os cinco siclos com que os primogênitos se resgatavam no templo[44]. Se se vê culpada e delinqüente, eles são as cinco cidades de refúgio, aonde se acolhiam os criminosos e logravam imunidade[45]. Se se vê emendada, mas receosa da recaída, eles são as cinco colunas do tabernácu­lo, de matéria incorruptível e bases de bronze[46]. Se, finalmente, pelos erros da vida passada, se vê desconfiada de perdão com que alcançar a eterna, eles são as cinco palavras com que Cristo disse ao ladrão: Hodie mecum eris in paradiso [47].

§ IX

Terceira questão: por que são cento e cinqüenta as Ave-Marias que rezamos no Rosário, e por que estas se dividem em três vezes cinqüenta, e cada cinqüenta de dez em dez. 0 mistério com que o Espírito Santo ordenou que os salmos fossem cento e cinqüenta. Os cento e cinqüenta salmos, e os cento e cinqüenta dias em que esteve alagado o mundo com o dilúvio. A milagrosa pesca dos cento e cinqüenta e três peixes à direita da barca de Pede. A rede dos apóstolos e a rede do Rosário.

0 terceiro ponto, e última dúvida ou questão, era: por que são cento e cinqüenta as Ave-Marfas que rezamos no Rosário, e por que estas se dividem em três vezes cinqüenta, e cada cinqüenta de dez em dez? A resposta já se sabe que há de ser a mesma. E é que todos estes números, e cada um deles significavam por diverso mistério os modos com que o mesmo Rosário nos dispõe nesta vida para a bem-aventurança, e no fim nos leva a ela. 0 maior número, pois, do Rosário, e o último, em que todas as saudações angélicas ou Ave-Marias se resumem, e é de cento e cinqüenta. E o que significa este número? O Saltério de Davi também se compõe de cento e

 cinqüenta salmos; e porque não há salmo que não esteja cheio de grandes mistérios, nem verso de cada salmo, ou palavra de cada verso, que não seja misteriosa, do mistério com que o Espírito Santo, autor dos mesmos salmos, ordenou que fossem cento e cinqüenta, nem em maior, nem em menor número, tiraremos a significação do nosso. Cassiodoro, aquele famoso secretário de el-rei Teodoreto, doutíssimo em todas as letras, e, depois de deixar a corte e se fazer monge, ilustre expositor das divinas, combina os cento e cinqüenta salmos com os cento e cinqüenta dias em que esteve alagado o mundo com o dilúvio, e, afirmando que o mistério mais evidente de um e outro número é o mesmo, diz assim: Est etiam ejusdem rei aliud evidentius Sacramentum, quod tentam quinquaginta diebus diluvio superducto criminibus suis terra diluta est.- sic et hi psalmi tali nume­ro producti genes humanum peccatis suis pollutum convenienter reddunt absolutum[48] : Assim como o mundo alagado cento e cinqüenta dias com o dilúvio ficou purificado dos pecados, que mereceram aquele castigo, assim ordenou o Espírito Santo - diz Cassiodoro - que o Saltério se compusesse de cento e cinqüenta salmos, para que com ele, como com um segundo dilúvio da graça, se purificasse de seus pecados todo o gênero humano. - Já dissemos em outras ocasiões, que o Rosário, desde seu princípio, pela semelhança do número se chamou Saltério da Virgem; e se ao Saltério de Davi se concedeu esta graça universal de purificar as almas, quanto mais ao Saltério da Mãe de Deus, composto por isso mesmo, e ensinado ao mundo depois do de Davi? As razões desta vantagem, que são muito mais evidentes, daremos no sermão seguinte, Agora só hasta dizer que. não podendo as almas entrar à bem-aventurança, senão absoltas e purificadas de todo pecado: Nihil inquinatum in eam incurrit[49] - esta é a última disposição com que o Rosário nesta vida nos habilita para a eterna, a qual conseguem, sem exceção, todos os que dignamente se valem e aproveitam dele: e assim estão significados no mesmo número de cento e cinqüenta.

Depois da ressurreição de Cristo foi S. Pedro pescar com outros discípulos, e por toda a noite, como já outra vez lhe tinha acontecido, nenhuma coisa tomaram[50]. Ao amanhecer apareceu o Senhor na praia, disse-lhes que lançassem a rede para a parte direita, e foi tão venturoso o lanço que, sem se romper a rede, trouxeram à terra cento e cinqüenta e três peixes, todos grandes: Ascendit Simon Petrus, et traxit rete in terram, plenum magnis piscibus centum quinquaginta tribus. Et cum tanti essent, non est scissum rete[51]. 0 misté   rio dos três, ponderaremos depois; vamos agora aos cento e cinqüenta. Santo Agostinho, e S. Gregório, e comumente os padres, dizem que neste número foram somente significados os escolhidos e que se salvam, e que essa é a razão por que Cristo agora mandou aos apóstolos que lançassem a rede à mão direita, aonde hão de estar só os bons no dia do Juízo, o que o mesmo Senhor lhes não disse noutra ocasião, em que os mandou pescar, e tomaram bons e maus. Santo Agostinho: Si in dexteram diceret, solos bonos significaret, si in sinis­tram, solos malos: ubi autem tacetur dextera et sinistra, mixti capiuntur, boni et mali[52]. E para que se conheça, que este privilégio é próprio do Rosário, saibamos, qual era a rede, e em que tempo se lançou ao mar? A rede, diz Santo Ambrósia que é a oração: Quae sunt autem quae laxari jubentur retia, nisi verborum complexiones, et quasi quidam orationis sinus[53]. Não se pudera melhor descrever o Rosário entre todas as orações. Na tecedura é composto de palavras todas iguais e da mesma proporção: verborum complexiones - e na figura é estendido e voltado em forma circular, com que se faz o seio e cerco da rede: Et quasi quidam orationis sinus.

E basta isto para a propriedade da semelhança? Não, que ainda lhe falta a maior de todas, que é o tempo em que se aperfeiçoou, e se lançou ao mar a rede do Rosário. Ouçamos a S. Gregório Papa: Priusquam Redemptor noster pateretur et resurgeret, mitti quidem retia ad piscandum jubet, sed utrum in dexteram, an sinistram non jubet. Quis vero nesciat bonos dextera, et malos sinistra figura ri? Haec autem piscado post Domini resurrectionem fasta, in solam dexteram missa est, quia ad videndam claritatis gloriam sola Ecclesia electorum peringit[54]: Antes de Cristo morrer e ressuscitar não mandava que a rede se lançasse à mão direita ou esquerda, e por isso colhia bons e maus; porém, depois que morreu e ressuscitou, então mandou que se lançasse só à mão direita, porque só os da mão direita são os bons e os que pertencem ao número dos escolhidos. - Ainda me parece que não caís de todo no mistério. A culpa tem a pouca e viciosa retórica dos que, para dizerem alguma coisa, sempre a dificultam primeiro, e depois a resolvem, com que, sem pergunta e resposta, não há conceito, nem os ouvintes, pelo costume, percebem o que se diz. Suposto isto, pergunto o que já está dito. Se Cristo antes de morrer e ressuscitar não mandava lançar a rede à mão direita nem esquerda, com que ela tomava bons e maus, por que razão, depois de morto e ressuscitado, a manda lançar só à mão direita, com que recolhe só os bons? Isto é o que disse, sem perguntar, S. Gregório, e este é manifestamente o mistério do tempo em que a rede se aperfeiçoou e lançou ao mar. Antes de Cristo padecer e ressuscitar: Priusquam pateretur, et resurgeret- ainda a rede do Rosário não estava feita, porque lhe faltavam os mistérios Dolorosos e os Gloriosos; po­rém, depois que Cristo morreu e ressuscitou, então se aperfeiçoou a rede, então se lançou só à mão direita, e então, sem haver que lançar fora, recolheu só os escolhidos: Haec autem piscatio in solam deveram missa est, quia ad videndam claritatis gloriam sola pertingit.

§X

Significação do número três acrescentado aos cento e cinqüenta peixes. 0 ano jubi­leu e as cinqüenta Ave-Marias do Rosário. As cento e cinqüenta palavras do Padre-Nosso. A descida do Espírito Santo ao dia quarenta e nove. Os quarenta e nove côvados do fogo na fornalha de Babilônia, excelente representação dos que louvam a Deus com o Rosário.

Este é no Rosário o mistério do número cento e cinqüenta, ao qual se ajuntou o de três, nos peixes que recolheu a rede: centum quinquaginta tribus - mas não para variar o mesmo número, senão para o repartir em três vezes cinqüenta, como ensina Santo Agos­tinho, e se faz no Rosário: Numerus centum quinquaginta tria ter habet quinquagenarium: et insuper ipsa tria propter Mysterium Trinitatis. quinquagenarius autem est Jubilaeus[55]: Os três, que se acrescentam ao número cento e cinqüenta, significam, diz Santo Agostinho, o Mistério da Santíssima Trindade - que por isso mostramos ao princípio que o Rosário é um e trino -e juntamente denotam a divisão dos mesmos cento e cinqüenta em três vezes cinqüenta, porque o número de cinqüenta é o número jubileu. - Saibamos agora o que era jubileu. Jubileu, como consta de todo o capítulo vinte e cinco do Levítico, era um ano famosíssimo no Testamento Velho, o qual vinha e se celebrava de cinqüenta em cinqüenta anos, e por outro nome se chamava o Ano da Remissão, porque nele não só concedia Deus grandes remissões, mas mandava e obrigava a que, sem exceção de pessoa, as observassem e lograssem todos, A primeira era que naquele ano não se arava, nem semeava, nem se cultivavam os campos, e cessava todo o trabalho. A segunda, que todas as herdades, ainda que se tivessem vendido e alienado muitas vezes, tornassem a seus primeiros possuidores.

A terceira, que se perdoassem todas as dívidas. A quarta, que todos os escravos se libertas­sem. Pode haver mais formoso e mais feliz ano? Pois isto é o que aquele número de cin­qüenta significava então nas coisas temporais, que logo se mudavam, e hoje nas espirituais e eternas, que duram para sempre. As cinqüenta Ave-Marias do Rosário, dividido em três terços, nos negociam o descanso eterno do céu, onde se não ara nem cava a terra, mas se come em sua própria substância o maná, sem nenhum trabalho, Elas nos restituem a herda­de e herança do Paraíso, perdida primeiro pela culpa de Adão, e depois tantas vezes vendi­da pelas nossas. E porque para esta inteira restituição é necessário que se ajunte ou preceda o perdão das dívidas e a liberdade do cativeiro, estas são as duas petições que no Rosário fazemos a Deus nas últimas do Padre-nosso: o perdão das dívidas dos pecados: Dimitte nobis debita nostra[56], e a liberdade do cativeiro do demônio: Sed libera nos a malo[57] . Vede se nos despachará Deus estas duas petições do Padre-nosso, quando nas cinqüenta Ave-Marias de cada terço rogamos à Mãe do mesmo Deus que rogue por nós pecadores. E para que se conheça a grande proporção e correspondência que têm estas cinqüenta Ave­Marias com o Padre-nosso, contai as palavras do mesmo Padre-nosso, e achareis que desde o Pater até o Amen são pontualmente cinqüenta. Tão medidas e tão contadas estão no Rosário as consonâncias do número, e tão sagrado e misterioso é o de cinqüenta.

0 que este número prometia na lei velha, cumpriu na lei da graça a vinda do Espírito Santo, enchendo de todas as graças ao dia cinqüenta, por ser este o número determina­do na lei para a remissão universal. Assim o conta e canta a Igreja: Sacro dierum circulo, quo lege fit remissio[58] . Mas esta conta parece que não está certa, nem proporcionada, nem própria, e que o Espírito Santo não havia de descer ao dia cinqüenta, senão ao dia quarenta e nove. As graças e dons do Espírito Santo são sete, e sete multiplicados por sete, ou sete vezes sete, fazem quarenta e nove: logo, no dia quarenta e nove parece que havia de vir o Espírito Santo, e não no dia cinqüenta? Assim se representa à primeira vista. Mas, ainda deixada a correspon­dência da figura e do Jubileu da lei antiga, não podia, nem devia ser a vinda do Espírito Santo ao dia quarenta e nove, por um grande mistério dos números, que aqui está escondido. 0 número de quarenta sempre é significativo de aflição e de pena, diz S. Jerônimo, e o prova com muitos exemplos da Escritura, que deixo por brevidade: Quadragenarius numerus semper afflictions et poenae est[59]. Daqui se segue que o número quarenta e nove, não só é significa­tivo de aflição e pena, senão da última e suma aflição, e da última e suma pena a que se pode chegar, porque o número quarenta só chega e se estende a quarenta e nove, e não pode passar daí; logo, trazendo o Jubileu do Espírito Santo a remissão universal dos pecados e a indulgência de todas as penas merecidas por eles, e sobre isso os dons e penhores de sua graça, com que se nos assegura o descanso eterno e bem-aventurança da glória, não podia nem devia vir senão  no dia em que se fechasse o círculo de cinqüenta: Sacro dierum circulo, quo lege fit remissão.

Isto mesmo faz o círculo do Rosário, não uma, senão três vezes, em cada uma das cinqüenta Ave-Marias que nele contamos. E saibam aqui os devotos, o que muitos não sabem, e é bem que conste a todos, que as indulgências que os Sumos Pontífices concedem aos que rezam o Rosário, não só se entendem dos que o rezam inteiro, com cento e cinqüenta Ave­Marias, senão também dos que rezam somente o que chamamos terço, com as cinqüenta que lhe pertencem, e assim o têm declarado nas suas bulas os mesmos Pontífices. Vejamos agora, em um formoso e temeroso retrato, o que dizíamos. Para que fossem lançados no fogo os meninos de Babilônia, mandou o rei bárbaro que a fornalha se acendesse quanto mais fosse possível, e diz o texto sagrado, que a labareda subia quarenta e nove côvados: Et effundebatur fiamma super fornacem cubitis quadraginta novem[60]. Bem se vê que só Deus, que o refere, podia tomar estas medidas ao fogo, e que o número de quarenta e nove era misterioso, e significava o maior fogo de todos. Lançados, pois, os meninos na fornalha, consideremos o que lhes sucedeu, quantos eram, o que faziam, e quem os assistia. 0 que lhes sucedeu foi que, sustentando-se o fogo do aéreo e do úmido, como bem filosofa Santo Agostinho, o aéreo se converteu em viração, e o úmido em orvalho que os recreava: Quasi ventum roris flantem[61]. O que faziam, era louvar a Deus, chamando-lhe muitas vezes bendito: Benedictus es, Domine, Deus patrum nostrorum[62]. E porque eram três, todos três repetiam o mesmo, sem mudar uma só palavra: Hi tres quasi ex uno ore laudabant, et glorificabant, et benedicebant Deum[63]. Finalmente, quem os assistia era um semelhante ao Filho de Deus: Et species quarti similis filio Dei i[64] . E não é isto uma excelente representação dos que louvam a Deus com o Rosário, e das mercês que Deus lhes faz por esta devoção? As vozes são três, porque são repartidas em três terços, e o que se ouve em um, sem mudar palavra, é o que se diz e repete no outro. Eles repetiam em todas as cláusulas Benedictus Deus, e nós em todas as Ave-Marias: Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui. A eles assistia-os em tudo um semelhante ao Filho de Deus, antes de o Filho de Deus encamar e se fazer visível, e nós em todos os mistérios do Rosário o temos presente. Finalmente, o efeito da parte de Deus, que principalmente pre­tendemos mostrar, é que assim como Deus lhes converteu o fogo e labaredas da fornalha em um paraíso de delícias, assim nos livra Deus das penas do inferno, significadas nos quarenta e nove côvados das labaredas, como eles mesmos disseram: Quia eruit nos de inferno[65] e, para nos levar ao descanso e delícias da bem-aventurança, nos concede a remissão universal de todos os pecados, significada no número cinqüenta: Sanctificabis annum quinquagesimum, et vocabis remissionem cunctis habitatoribus terrae tuae[66].

§ XI

0 mistério do número dez. Está tão estreitamente atada ao número dez a salvação dos homens, que nem os homens a podem conseguir nem o mesmo Deus a pode dar, senão dentro no mesmo número. Por quantos justos perdoaria Deus à Pentápole o castigo do céu. Proporção que há de haver entre o merecimento e o prêmio. 0 denário com que o pai de famílias pagou aos trabalhadores da vinha. As décadas do Rosário e o denário da glória. 0 saltério e a viola nos salmos de Davi.

Só resta o mistério do número dez, repetido em todas as décadas do Rosário, o qual melhor que todos cerra as contas, e aperfeiçoa quanto temos dito. Filo, chamado o Platão dos hebreus, falando deste número, diz assim: Denarius inter omnia est perfectissimus.' Complectitur enim cunctas numerorum differentias: item proportiones arithrneticas et geometricas: quin etiam rerum genera, quae praedicamenta dicuntur, denario numero compreendutur[67], Quer dizer que o número de dez é o mais perfeito de todos, porque compreende todas as diferenças dos números, e todas as proporções aritméticas e geométricas, e até os gêneros de todas as coisas, que os filóso­fos reduzem ao número de dez. - Perfeito é aquilo a que nada se pode acrescentar, e tal é a perfeição deste número. Pode-se repetir, mas acrescentar não se pode, porque o número de vinte, de trinta, e os demais, que se podem multiplicar infinitamente, não são nem significam outra coisa, senão o mesmo dez muitas vezes repetido. Por isso, depois que o lume natural se escureceu pelo  pecado, querendo Deus restituir o homem à perfeição original em que o tinha criado no paraíso e dar-lhe outro paraíso melhor, todos os preceitos desta reformação reduziu a divina Sabedoria ao número de dez. Neste número de dez se continha virtualmente a lei da natureza, nele se promul­gou expressamente a escrita, e nele se continuou e durará para sempre a da graça, não só tomando do mesmo número de dez o nome de Decálogo, mas ficando tão estreitamente atada a ele a salvação dos homens, que nem os homens a possam conseguir, nem o mesmo Deus lha possa dar, senão dentro no mesmo número. É caso admirável, o que agora merecia larga ponderação, se o tempo a permitira.

Mandou Deus a dois anjos que fossem pôr fogo à cidade de Pentápolis, mais conhecida pela infâmia de outro nome, e Abraão, que tinha a Deus por seu hóspede naquela ocasião, parte rogando e parte perguntando, quis saber do mesmo Senhor por quantos jus­tos perdoaria aquele castigo. Começou pelo número de cinqüenta: Si fuerint quinquaginta justi in civitate[68] - e como Deus respondesse que por cinqüenta justos perdoaria, quatro vezes foi diminuindo Abraão o mesmo número, achando sempre propícia a divina miseri­córdia. Chegou, finalmente, ao número de dez, e respondendo Deus que também por dez concederia o perdão: Non delebo propter decem[69] - no mesmo ponto, sem querer mais ouvir, desapareceu: abiitque Dominus (Gên. 18, 33). 0 mistério por que Abraão começou pelo número cinqüenta, já está dito, e é porque ele pedia perdão e misericórdia para aquela cidade, e o número de cinqüenta significa indulgência e remissão. Mas se também achou , propícia a misericórdia divina em quatro números menores, e Deus esperou e ouviu até o número de dez, por que razão não aguardou nem quis ouvir mais, e tanto que respondeu que perdoaria por dez, desapareceu? Excelentemente Salmeirão: Usque ad decem justos descendit remissio, quia Deus paratus erat parcere sodomitas usque ad servantes praecepta Decalogi[70]: Chegou Abraão até o número dez quando pedia perdão para a cidade condenada, porque no número dez se entende a observância da lei, a qual consta de dez precei­tos, e por serem dez, se chama Decálogo. - E porque abaixo deste número nem os homens podem conseguir o perdão final, com que se salvam, nem Deus o pode conceder, por isso Abraão o não pediu, e Deus desapareceu.

Bem está. Mas qual é a razão por que o perdão final, e a salvação dos homens a tem Deus tão determinada ao número dez, e tão vinculada e atada a ele, que nem o mesmo Deus a pode conceder abaixo deste número? A razão é porque entre o merecimento e o prêmio há de haver proporção igual, e como o merecimento, que é o Decálogo, consiste no número dez, e nada menos, também o prêmio, que é a salvação e a glória, se não pode conceder, senão no mesmo número, e sem diminuição nem abatimento dele. A prova é manifesta. Chamados os operários à vinha do pai de famílias, uns vieram mais cedo, outros mais tarde, uns trabalharam mais, outros menos, e no fim do dia o pai de famílias, que representava a Deus, mandou pagar a todos, e a todos se deu a mesma moeda[71]. Chamava­se esta moeda denário, com o nome derivado do número dez, porque no peso e no preço continha o valor de dez moedas menores. Pois, se uns vieram à vinha cedo, e outros tarde, se uns trabalharam muito, e outros pouco, por que paga Deus a todos igualmente com a mesma moeda e com o mesmo denário? Porque o denário significa a glória essencial, que nesta parábola se declara pela proporção numérica. E, posto que na mesma glória, os que trabalharam mais ou menos a terão maior ou menor quanto ao grau, sempre é necessário que todos a recebam igual, quanto ao número, A razão é, como dizia, porque o prêmio deve ser proporcionado ao merecimento, e como o merecimento não pode ser menor que o de todo o Decálogo, também o prêmio não pode ser menor que o de todo o denário. Mas, como no mesmo Decálogo pode ser mais ou menos perfeita a observância, assim no mes­mo denário pode ser mais ou menos perfeito o grau da glória. Sempre porém é igual em todos o número de dez no denário, porque sempre há de ser igual em todos o número de dez no Decálogo: Usque ad servantes praecepta Decalogi.

Sobre este fundamento tão sólido, passemos agora ao nosso intento, e veremos como dentro no mesmo número de dez, assim como ao Decálogo dos preceitos se promete o denário da glória, assim está prometido o mesmo denário da glória às décadas do Rosário. Em cada década do Rosário pedimos dez vezes à Virgem, Senhora nossa, rogue por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. E no Salmo trinta e um promete Deus o perdão  final dos pecados, e a glória e bem-aventurança, que a ele se segue: Beati quorum remissae sunt iniquitates, et quorum tecta sunt peccata[72]. Onde muito se deve reparar naquela pala­vra tecta, que significa proteção, porque a bem-aventurança e remissão dos pecados, que aqui se promete: Beati quorum remissae sunt iniquitates - quer Deus que se atribua, não só à sua misericórdia, mas à proteção de quem a alcança, qual é no nosso caso a da Mãe do mesmo Deus, que em cada dez Ave-Marias imploramos, E por que não pareça coisa duvi­dosa e alheia da divina justiça que a mesma bem-aventurança, que é devida à observância dos dez preceitos do Decálogo, se conceda a dez orações tão breves, foi notar Cassiodoro que neste mesmo salmo, o qual se compõe e consta de onze versos, nos primeiros dez falam, os homens com Deus, e contém outras tantas preces, e no último e undécimo respon­de Deus aos homens, e lhes concede a todos a indulgência dos pecados, que no princípio lhe pedirão, e, com nome de justos, a graça, de que é prêmio a glória: Laetamini in Domino, et exultate, justi; et gloriamini, omnes recti corde[73]. E que infere deste seu cômputo o mesmo Cassiodoro? Infere, que as dez preces, posto que tão breves, daquela década, têm diante de Deus a mesma virtude dos dez preceitos do Decálogo, contanto que sejam reza­das de todo coração. Consideremus modo - diz ele - virtutem Psalmi hujus, quod decem versibus supplicando, divinum meruerit sine aliqua dilatione responsum: forte Decalogi commonens operationem, ut sicut ille custoditus vocat ad praemium. Ita et haec compuncto cordefusa precatio, ad indulgentiae nos vota perducat[74].

Já bastava, para boa prova do que digo, a paridade destes dez versos, computa­da com as dez Ave-Marias de cada década no Rosário. Mas não se contentou com isso o profeta, e, continuando o mesmo salmo, na segunda parte dele - que é o seguinte - diz desta maneira: Exultate, justi, in Domino: rectos decet collaudatio. Confitemini Domino in cithara; in psalterio decem chordarum psallite illi. Cantate ei canticum novum[75]. Não se podia declarar mais expressamente o Rosário, e muito em particular as décadas em que se divide. Diz o profeta que se alegrem os justos, e louvem a Deus, e que o modo de o louvar seja com um cântico novo, ao som do saltério, de dez cordas, e da viola, que é de cinco.

 Primeiramente chama-se o Rosário cântico novo, isto é Canticum Novi Testamenti-como notaram Hugo, Cartusiano e Caetano -porque o Rosário, assim mental como vocalmente, é instituto e modo de orar próprio do Testamento Novo. Mentalmente, porque no Testa­mento Velho, como o Verbo ainda não tinha encarnado, nem morrera, nem ressuscitara, ainda então não havia mistérios de Cristo, nem gozosos, nem dolorosos, nem gloriosos. E vocalmente, porque no Testamento Velho rezavam-se salmos e outras orações, mas não se rezavam Padre-nossos nem Ave-Marias, havendo começado a Ave-Maria na embaixada do anjo Gabriel, e o Padre-nosso daí a trinta e dois anos, quando o ensinou o mesmo Cristo. Acrescenta o profeta que estes louvores de Deus se haviam de cantar ao som ou ao descante do saltério de dez cordas, e da viola de cinco, porque os mistérios se haviam de meditar de cinco em cinco, e as orações se haviam de rezar de dez em dez: In cithara et psalterio decem chordarum, E pára só na propriedade dos números a harmonia destes dois instru­mentos? Não. S. Jerônimo, declarando qual fosse a forma do saltério, diz que era totalmen­te diversa da viola, porque a viola tem o oco ou concavidade, onde se forma o som, na parte inferior, porém o saltério na parte de cima. E tal é a harmonia do Rosário, assim na parte mental, como na vocal: na mental, porque os mistérios que o Rosário medita, obrou-os Deus descendo ele do Céu à terra; e na vocal, porque as orações que o Rosário reza, ouve­as Deus subindo elas da terra ao céu: os mistérios fazem a harmonia cá em baixo, e as orações lá em cima: in cithara et psalterio. Aqueles, pois, que deste modo orarem e louva­rem a Deus, e ao som destes dois instrumentos lhe cantarem o cântico próprio do Testa­mento Novo, que são os que meditam e rezam o Rosário, a estes, enfim, diz o profeta que se alegrem como justos, e a estes chama bem-aventurados pela remissão dos pecados, e bem-aventurados pela proteção da graça: Beati quorum remissae sunt iniquitates, et quo­rum tecta sunt peccata.

§ XII

A predestinação dos justos e a presciência infalível de Deus. Oração da Igreja no princípio da quaresma. A predestinação incoada e a predestinação perfeita.

Tenho acabado o meu discurso, e declarado, como prometi, o que significam misteriosamente todos e cada um dos números de que se compõem as contas do Rosário. E que é o que havemos de colher de todos estes números? Cada um colherá o que lhe ditar a sua devoção e o seu juízo. 0 que a mim me aconselha o meu, e o que eu quisera persuadir a todos, é que de todos estes números tiremos uma firme resolução de ser do número dos predestinados. Mas, antes de declarar o meio e o modo, importa que se entenda primeiro como isto é possível. A predestinação de todos e cada um de nós, está decretada ab aeterno, e conhecida na presciência Divina, que é imutável; logo, parece que, ainda que nós queira­mos, nos não podemos fazer do número dos predestinados? Digo que sim, podemos. A teologia mais certa, e mais bem-fundada em todas as Escrituras Sagradas, é que Deus nos predestinou post praevisa merita. Quer dizer este termo, próprio das escolas, que previu Deus desde sua eternidade os merecimentos e obras de cada um, e conforme as mesmas obras, que são as que agora fazemos e fizermos até a morte, ou as boas, feitas com sua graça, ou as más, feitas sem ela, por nosso livre alvedrio, decretou o mesmo Deus a salva­ção de uns e a condenação de outros. Isto é o que definiu S. Pedro, quando disse: Satagite ut per bona opera certam vestram vocationem faciatis (2 Pdr. 1, 10): Procurai com todo o cuidado de fazer certa a vossa vocação por meio das boas obras. - E como a nossa predes­tinação se funda nas obras de nossa vida, daqui se segue que, enquanto vivemos, se quiser­mos, nos podemos fazer do número dos predestinados. Nem encontra esta possibilidade a presciência infalível que Deus tem dos mesmos predestinados e número deles, porque as nossas obras não são boas, porque Deus sabe que nos havemos de salvar, mas sabe Deus que nos havemos de salvar porque as nossas obras, cooperando com sua graça, hão de ser boas e dignas de salvação. Esta teologia, como dizia, é a mais bem-fundada, e revelada nas Escrituras Divinas, as quais reservo para outra ocasião, em que de propósito hei de tratar esta matéria. Por agora baste saber que assim o ensinam Vásquez, Molina, Valença, e outros gravíssimos teólogos, cuja doutrina resume o doutíssimo Comélio A Lápide nesta breve e claríssima conclusão: Hac ergo racione in cujusque fidelis potestate et arbitrio est, facere ut sit praedestinatus vel non sit[76].

Mas ouçamos a toda a Igreja Católica, coluna da fé e da verdade, a qual no princípio da quaresma, em que nos exorta à penitência, faz a Deus esta notável oração: Deus, cui soli cognitus est numerus electorum in superna felicitate locandus, tribue, quaesumus, ut omnium fidelium nomina beatae praedestinationis liber adscripta retineat: Deus, a quem só é conhecido o número dos escolhidos que hão de gozar a eterna felicidade, concedei-nos, como vos pedimos, que o livro da bem-aventurada destinação retenha e conserve em si os nomes de todos os fiéis que nele estão escritos. - Até aqui a Igreja Católica, a qual nestas palavras supõe uma coisa e pede outra, supõe que só Deus conhece o número dos predestinados, que é a presciência divina imutável e infalível, com que só a Deus, como dizíamos, é reservado o conhecimento e número dos que se hão de salvar, Mas o que pede, não obstante este conhecimento, é que os que estão escritos no livro da predes­tinação se não mudem, nem risquem, e sejam conservados nele. Pois, se já estão escritos no livro da predestinação, como se podem mudar, ou riscar, ou tirar do mesmo livro? Porque as letras, com que os fiéis se escrevem no livro da predestinação, são as nossas boas obras, e porque os que hoje obramos bem, amanhã podemos obrar mal, e os que hoje estamos em graça, amanhã podemos cair dela: por isso, assim como as boas obras, e a graça nos escre­vem naquele livro, assim as más obras e os pecados nos riscam dele. É o que disse dmiravelmente Davi, falando dos que obram mal: Deleantum de libro viventium, et cum justis non scribantur (SI. 68, 29): Sejam riscados do livro da vida, e não sejam escritos com os justos. - Por isso muitos teólogos doutamente distinguem o mesmo livro da predestinação em duas partes, uma da predestinação incoada, que consiste nas boas obras e graça presen­te, e outra da predestinação perfeita e consumada, que consiste nas boas obras e graça perseverante até o fim.

E que cristão haverá tão sem fé e sem juízo que, estando na sua mão o estar e perseverar escrito no livro dos predestinados, por sua própria vontade, e por não querer cooperar com a graça divina, que sempre está pronta, queira ser riscado dele? Que razão, que motivo, que interesse há neste mundo, ou em mil mundos, que Deus criara, pelo qual se houvesse de sujeitar nem arriscar um homem a ouvir de si aquela tremenda voz: Deleantur de libro viventium? Reis foram, e grandes monarcas, aqueles três que reinaram entre Jorão e Osias; mas que lhes aproveitou o reinar, que lhes aproveitou o cetro e a coroa, que lhes aproveitou o império e adoração dos vassalos, e a reverência e temor dos estranhos, que lhes aproveitou a grandeza, a majestade, a riqueza, a potência, os exércitos, as vitórias, se no cabo todos três foram riscados dos livros de Deus, e lançados fora como réprobos: loram autem genuit Oziam?

§ XIII

0 modo e meio eficaz para sermos admitidos e contados no bem-aventurado núme­ro dos predestinados. Os dois sinais da predestinação contidos no Rosário: conformidade coma imagem de Cristo, e a proteção da Virgem, Senhora nossa. Palavras de Deus à sua Mãe no Eclesiástico. Sendo tantos os perigos que ameaçavam naufrágio à Arca, porque se salvaram todos os que nela se recolheram? Advertência final.

Bem creio que ninguém haverá dos presentes, que não tema ser riscado dos mesmos livros, e não deseje sobretudo estar e perseverar escrito neles, e ser do número dos predestinados. Só faltava saber o modo e meio eficaz para sermos admitidos e contados neste bem-aventurado número; mas este foi o emprego de todo o nosso discurso, e isto nos mostraram e provaram, assim em comum, como em particular, todos os números de que se compõe o Rosário, pois todos eles, sendo tantos e tão vários, se uniram em um só fim, que foi prometermos a bem-aventurança. E, posto que os fundamentos foram tão diversos, como as significações dos mesmos números, nesta peroração ou epílogo, como quem no fim das contas tira a soma delas, acabo com dizer que todas as do Rosário se resumem a dois sinais da predestinação, os maiores e mais qualificados que pode haver para quantos quiserem ser do número dos predestinados.

0 primeiro sinal da predestinação é a primeira parte do mesmo Rosário, que consiste nos mistérios da vida, morte e ressurreição do Filho de Deus, que meditamos. É fundado e tirado este final da mesma formalidade intrínseca da predestinação. Como pre­destinou Deus a todos os homens? 0 mesmo Deus o revelou a S. Paulo, e S. Paulo à Igreja: Quos praescivit, et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui (Rom. 8,29): Todos os que Deus predestinou, foram aqueles que anteviu ab aeterno que se haviam de conformar com a imagem de seu Filho, e fazer-se semelhantes a ele, como exemplar da mesma pre­destinação. - Por isso a soberana Mãe do mesmo Filho, como tão alumiada em todos os arcanos divinos, e como aquela que disse de si: Cum eo eram, cuncta componens[77] - a primeira coisa, que fez na composição do Rosário foi pôr-nos diante dos olhos, não uma, senão quinze imagens do mesmo Filho de Deus, cinco nos mistérios Gozosos, cinco nos Dolorosos e cinco nos Gloriosos, para que, contemplando-o em tão diversas figuras, nos retratássemos por aquela a que mais se inclinasse o nosso afeto, e, imitando-o na vida e na morte, o seguíssemos na subida ao céu, que é o fim glorioso de todos os predestinados. Lá dissemos que estes quinze mistérios se representavam nos quinze degraus do Templo, onde se cantavam os quinze salmos, por isso chamados graduais. Agora de novo se deve advertir que o texto grego lhes chama gradus ascensionum, mas com um tal nome que significa graus de subir, e não de descer. A escada de Jacó tinha degraus, por onde se subia e descia: ascendentes, et descendentes; porém esta é uma escada por onde só se sobe, e não se desce, felicidade só própria dos perfeitamente predestinados para a bem-aventurança: lila enim ascendentes habuit, et descendentes; in istis vero gradibus beatorum solus ascensus est - diz, sobre o mesmo texto grego, Cassiodoro[78].

0 segundo sinal da predestinação é a segunda parte do mesmo Rosário, em que tantas vezes quantas repetimos as mesmas orações, saudamos e louvamos a cheia de graça, e nos mete­mos debaixo de sua poderosíssima proteção. Ser esta proteção da Virgem, Senhora nossa, um dos mais certos sinais da predestinação, coisa seria infinita citar os autores que assim o afirmam, e os lugares da Escritura com que o provam. Entre todos são insignemente misteriosas aquelas pala­vras do Eclesiástico, em que Deus, falando com sua Mãe, lhe diz que lance raízes nos seus predestinados: In electis meis mitte radices[79]. O lançar raízes é propriedade somente das plantas. E que planta é ou pode ser aquela, por meio da qual a Mãe de Deus lança raízes nos predestinados, senão a planta da rosa: Quasi plantado rosae in Iericho[80]? A rosa não tem raízes, a roseira e o rosal sim. E o Rosátio não tomou o nome da rosa, senão do rosal, que isso quer dizer rosarium; não tomou o nome da flor, senão da planta, que é a que lança as raízes: In electis meis mitte radices. Tão sabido como célebre é o milagre daquela planta que, nascendo em uma sepultura, mostrava escrito em todas as folhas, com letras de ouro: Ave grada plena. Cavaram para ver donde nascia, e acharam que tinha as raízes na boca de um defunto, o qual havia sido soldado, tão rude, e de pouca memória, que nunca soube dizer mais que Ave-Maria, cheia de graça, saudando só com estas poucas palavras, mas muito freqüentemente, a Rainha dos anjos. E se quatro palavras da Ave-Maria lançam tão fortes e maravilhosas raízes, vede o que farão cento e cinqüenta Ave-Marfas, plantadas todos os dias, e todos os dias regadas com a graça da Cheia de Graça. Ditosos e bem-aventurados aqueles, que tão certas e tão bem-fundadas prendas têm de sua predestinação e salvação.

Nunca se perderam mais homens, nem se salvaram menos, que no dilúvio. E estes poucos, que se salvaram, onde tiveram segura a salvação? Na arca de Noé, a que se recolheram. Pois, assim como Noé edificou a arca, para que se salvassem todos os que a ela se acolhessem, assim a providência e misericórdia de Cristo nos deu a Mana, figurada na mesma arca, diz S. Bernardo, para que todos os que se valerem de seu amparo se salvem: Arca Noe significavit excellentiam Mariae; sicut enim per illam omnes evaserunt diluvium, sic per istam peccati naufragium. Nesta palavra naufragium reparo muito. Para os que se embarcam se livrarem dos naufrágios, não basta que a nau seja grande, forte e poderosa. E nenhuma nau houve no mundo mais arriscada a naufragar que a arca de Noé, porque o mar em que navegava era sem comparação maior que o Oceano; a tempestade não durou um só dia, ou três, ou nove, como costumam, senão quarenta dias contínuos, de dia e de noite, e os baixios, em que podia topar e fazer-se pedaços, eram quantos montes e serras havia em todo o mundo. Sendo, pois, tantos os perigos que ameaçavam naufrágio à arca, por que se salvaram todos os que nela se recolheram? Porque a arca no dilúvio não só significava a Virgem, Senhora nossa, senão a mesma Virgem Senhora com os mistérios, e números do seu Rosário. Sobre todos os montes, onde podia perigar ou naufragar a arca, diz o texto sagrado que a água se levantou quinze côvados acima: Quindecim cubitis altior fuit aqua super montes, quos operuerat (Gên. 7, 20). E quando à arca, que, como vimos, é a Virgem, Senhora nossa, se ajuntam os mistérios e números do seu Rosário, ainda que o mundo todo perigue e se afogue, todos os que se acolhem a ela se salvam, porque todos por este meio se fazem do número dos predestinados.

Não deixarei contudo, de advertir por fim que para que a Senhora do Rosário nos alcance e segure esta graça, é necessário que nós rezemos e meditemos o mesmo Rosário com aquela atenção e aplicação que ele e a mesma Senhora requerem. Lá deixamos dito, com Santo Ambrósio e S. Gregório, que aquela rede que se lançou à mão direita, e recolheu somente os escolhidos e predestinados, era o Rosário. Mas diz e nota o texto, o que então não ponderei e reservei para agora, que sendo tantos e tão grandes os peixes, a rede não se rompeu: Cum tanti essent, non est scissum rete (Jo. 21,11). A rede rota não pesca. Se o Rosário, ou no que se reza, ou no que se medita, se rompe ou interrompe com a vagueação de outros pensamentos e outros cuidados, e, talvez, com a irreverência de outras conversações que se pode esperar de tal devoção, que antes ofende do que agrada ao mesmo Senhor e à mesma Senhora, a quem pedimos e de quem esperamos a salvação? Rezemos, pois, o Rosário, e meditemos seus soberanos mistérios com a atenção, aplicação e devoção que é devida a ambas as Majestades, com quem falamos. E deste modo seremos sem dúvida do número dos predestinados, e se escreverão nossos nomes nos livros de Deus, sem perigo de jamais ser riscados deles, como foram os dos três excluídos, que infeliz­mente reinaram entre Jorão e Osias: loram autem genuit Oziam.

FINIS

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



 

1 E Jorão gerou a Osias (Mt. 1, 8).

[2] 1 Par. 3, 11- 2 Par. cap. 22.

[3] Lançai os olhos para Abraão, vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz (Is. 51, 2).

[4] E Asa fez o que era reto aos olhos do Senhor, bem como Davi seu pai (3 Rs. 15, 11).

[5] 3 Rs. 21, 22 e seg.

[6] 3 Rs. 21, 22 e seg.

[7] De maneira que todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze gerações; e desde Davi até a transmigração de Babilônia, catorze gerações; e desde a transmigração de Babilônia até Cristo, catorze gerações (Mt. 1,17).

[8] Melquisedeque, sem pai, sem mãe, sem genealogia (Hebr. 7, 3).

[9] August. lib. 2, de Doctrin. Christiana.

 

[10] 0 que conta a multidão das estrelas, e as chama a todas elas pelos seus nomes (SI. 146, 4).

[11] Grande é nosso Senhor, e grande o seu poder; e a sua sabedoria não tem termo (SI. 146, 5).

[12] E uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça (Apc. 12, 1).

 

[13]  Assim se multiplicará Í tua posteridade (Gên. 15, 5). Sermão XXV – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira

[14] D. Hieron. lib. 2. in Amos.

[15] Vinde a mim todos os que andais em trabalho, e achareis descanso para as vossas almas (Mt.11, 11,28 s).

[16] Maldonat. et Cornei. ibi.

[17] Origen. Homil. 27 sup. Numer Hieronym. Epistol. ad Fabiolan de 42 mansion.

[18] Cyprian. Serro. de Spiritu Sancta, Greg. lib. 32 Moral. cap. 12.

[19] August. Serm.15, de v. Domini.

[20] Ouve ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu

coração, etc. (Dt. 6, 4 s).

 

[21]  Não há aqui outra coisa senão a casa de Deus e a porta do céu (Gên. 28, 17).

 

[22]  Viu uma escada posta sobre a terra, e a sua sumidade tocava o céu (Gên. 28, 12).

[23] Lyran. ibi. Bernard. tom. I, Serai. 61, cap. I.

[24] Anjos subindo e descendo (Gên. 28, 12).

 

 [25]Eu te darei a ti e à tua descendência a terra em que dormes (Gên. 28, 13).

[26] Bernard. Serin. 3 de Vigilia Nativit.

[27] Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo (Jo. 10, 9).

[28] D. Greg. Hornil. 6, in Ezech

[29] Que darei eu em retribuição ao Senhor, por todos os benefícios que me tem feito? Tomarei o cálix da salvação, e invocarei o nome do Senhor (SI. 115, 12 s).

[30] Hieronym. in hunc locum.

[31] Hieran. in cap. I, Epist. ad Galar.

[32] Eu me acho presente aos pensamentos judiciosos (Prov. 8,12).

[33] Mt. 25, 2.

[34] August. in Psal. 49, et Serm. 33. de verbis Domini.

[35] Mt. 25, 15

[36] JOS. 10, 5.

[37] Jz. 3, 3.

[38]  Jo. 4, 18.

[39] Lc. 16, 28.

[40]  Lc. 14, 19.

[41] Salmer. Tom. L Prologamen. 19.

[42] Ave-Marfas se resumem, é o de cento e cinqüenta. E que significa este número? 0 Saltério de Davi também se compõe de cento e

 1 Rs. 17, 40

[43] Não tenho um homem - que me leve à piscina. Jo. 5, 2. 7.

[44] Lev. 27, 6.

[45] Jos. 21, 36 s, et alibi.

[46] Êx. 26, 37

[47] Hoje serás comigo no paraíso (Lc. 23, 43).

[48] Cassiodor in Prologom.

[49] Não se pode encontrar nela a mínima impureza (Sab. 7, 25).

[50] Lc. 5, 4 s

[51] Subiu Simão Pedro à barca, e tirou a rede para a terra, cheia de cento e cinqüenta e três grandes peixes. E, sendo tão grandes, não se rompeu a rede (Jo. 21,11).

[52] D. August. ibi.

[53] D. Ambros. ibidem, lib. 4 in Lucam.

[54] Greg. in eum locam, Homil. 14, in Evang.

[55] August. ibi.

[56] Perdoa-nos as nossas dívidas (Mt. 6, 12).

[57] Mas livra-nos do mal (MI 6, 13).

[58] Eccles. in Hymno.

[59] D. Hieron. in Ezechiel. cap. 29.

[60]

 E a labareda levantava-se quarenta e nove côvados acima da fornalha (Dan. 3, 47).

[61] Uma como fresca viração acompanhada de orvalho (ibid. 50).

 

[62]   Tu és bendito, Senhor, Deus de nossos pais (ibid. 52).

[63] Aqueles três, como se tivessem uma só boca, louvavam, glorificavam e bendiziam a Deus (ibid. 51).

[64] E o aspecto do quarto é semelhante ao do Filho de Deus (ibid. 92).

[65] Porque ele nos tirou do inferno (ibid. 88).

[66] E santificarás o ano qüinquagésimo, e anunciarás a remissão a todos os habitantes da tua terra(Lev. 25, 10).

[67] Philo, parte t, lib. de Dechal.

[68] Se  houver cinqüenta justos na cidade (Gên. 18, 24).

[69]  Eu a não destruirei por amor dos dez (Gên. 18, 32).

[70] Salrneron. tom. I, Prolegom. 20.

[71] Mt. 20, 1 e seg.

[72] Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos (SI. 31,1).

[73] Alegrai-vos no Senhor, e regozijai-vos, ó justos, e gloriai-vos todos os de reto coração (SI. 31,11).

[74]  Cassiodor. ibi.

[75] Exultai, ó justos, no Senhor; aos retos convém que o louvem. Louvai ao Senhor com a cítara, cantai­lhe hinos a ele com o saltério de dez cordas. Cantai-lhe a ele um novo cântico (SI. 32, 1 ss).

[76] Vasquez, Molina et Valent. citati a Cornel. in locum Epistol. D. Petri.

[77] Estava eu com ele regulando todas as coisas (Prov. 8, 30).

[78] Cassiodorus ibi.

 

[79]Lança raízes entre os meus escolhidos (Eclo. 24, 13).

 

[80]  Como as plantas das rosas de Jericó (Eclo. 24, 18).