Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão XXV – Maria Rosa Mística, do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti[1].

Por que se dá a Deus o título de Deus das vinganças? Como se vingava Cristo dos falsos testemunhos dos homens? Os princípios do Rosário nas palavras da devota mulher do Evangelho: Bem-aventurada a Mãe que trouxe em seu ventre a tal Filho, e o criou a seus peitos.

Um dos títulos maravilhosos com que nas sagradas letras se nomeia e celebra a majestade divina, é o de Deus das vinganças: Deus ultionum (SI. 93, 1). E por que se chama Deus das vinganças o que é Pai das misericórdias, e fonte de todos os bens? Chama-se Deus das vinganças porque a vingança é regalia própria da divindade, e quem se quer vingar por si mesmo, toma a Deus, a jurisdição que é sua: Mea est ultio[2]. Chama-se Deus das vingan­ças, porque as injúrias que os poderosos fazem aos pequenos, de que eles se não podem defender, Deus tem tomado por sua conta vingá-las: Mihi vindicta: ego retribuam[3]. Cha­ma-se, finalmente, Deus das vinganças, porque os homens, quando se vingam, chegam, quando muito, a tirar a vida, e as vinganças de Deus duram por toda a eternidade, como o mesmo Deus: Quia fortis ultor Dominus[4]

Isto é o que comumente dizem os intérpretes. Mas eu, combinando a festa presente com o Evangelho que nela nos propõe a Igreja, acho outro novo e maior título, e mais próprio da divindade e majestade de Deus, porque ele se quis chamar Deus das vin­ganças. E qual é? Ser Deus tão endeusadamente vingativo que, quando as blasfêmias dos homens levantam falsos testemunhos contra ele, ele em certo modo faz verdadeiros os mesmos falsos testemunhos, em benefício dos mesmos homens, para assim se vingar de seus caluniadores. Isto sim que é ser Deus das vinganças, porque tais vinganças só se podem achar em Deus. Chamaram os homens a Cristo samaritano, e Cristo com que se vingou desta injúria? Fazendo-se samaritano seu. Samaritanus, quer dizer custos, o guar­dador, e, havendo nas ovelhas tal ronha, Cristo se fez guardador delas. Desprezavam os homens a Cristo, chamando-lhe carpinteiro, e filho de outro. E Cristo, Filho do Supremo Artífice do universo, como se vingou deste desprezo? Com lavrar em toda a sua vida o lenho da cruz, e se deixar pregar nele para os remir. Murmuravam os homens de Cristo comer e beber com os pecadores, condenando este modo de os ganhar com os nomes da mais vil intemperança: Homo voraz, et potator vini[5]. E como se vingou Cristo desta afron­ta? Com lhes dar a comer seu corpo e a beber seu sangue. Assim provava Cristo ser Deus com se vingar assim. E o mesmo temos no Evangelho, e celebridade de hoje, com maior e mais admirável exemplo.

Vendo os escribas e fariseus o famoso milagre do demônio mudo, chamaram a Cristo mago e feiticeiro, dizendo que por arte mágica, e pacto que tinha com os demônios, os lançava dos corpos: In Beelzebub principe daemoniorum ejicit daemonia[6]. E quando os homens trataram a Cristo de mago e feiticeiro, com que se vingou o Senhor desta tão sacrílega e blasfema calúnia? Vingou-se, como costumava, com a fazer verdadeira. Mas, de que modo? Fazendo, como divino Encantador, que acudisse e refutasse à mesma calú­nia, uma boa e animosa mulher que se achava naquele ajuntamento, e levantou a voz, dizendo: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti: Bem-aventurada a Mãe que trouxe em seu ventre a tal Filho, e o criou a seus peitos. - E que seria se eu agora dissesse que esta mulher, e nestas mesmas palavras, foi a que deu princípio ao Rosário? De quando começasse esta soberana devoção há duas opiniões entre os historiadores eclesiásticos. A primeira, e mais comum, refere seu princípio aos tempos de S. Domingos; a segunda, e  mais antiga, aos da primitiva Igreja. Mas a minha, que não chamo terceira, por não ser opinião, senão evidência, é que começou o Rosário nas palavras desta mulher. Naquele tempo, como Cristo ainda não morrera nem ressuscitara, ainda não havia os mistérios Dolorosos da morte, nem os Gloriosos da ressurreição do Senhor. Só havia os Gozosos da sua infância, e estes são os que a devota mulher compreendeu nas suas palavras: no beatus venter o da Encarnação e Visitação, e no ubera quae suxisti, o do Nascimento e Presentação do Templo. E ajuntou com grande propriedade a mesma oradora os louvores da Mãe com os do Filho, e os do Filho com os da Mãe, porque esta é a tecedura recíproca de que se compõe o Rosário. De sorte que, quando os caluniadores de Cristo lhe chamam mago e feiticeiro, e quando o Senhor se quer vingar desta injúria, com a fazer verdadeira e lhes mostrar que o era, então, e no mesmo ponto, se deu princípio ao Rosário. E por que razão, ou com que mistério? Porque o mesmo Rosário havia de ser a arte, e instrumento mágico com que Cristo havia de enfeitiçar, e encantar aos homens, e com que os mesmos homens, depois enfeitiçados, o haviam de enfeitiçar também a ele e a sua Mãe. Está dito em poucas palavras o que hei de provar em muitas. Ave Maria, etc.

§II

A verdade na mentira dos escribas e fariseus, por ocasião do milagre do demônio mudo. Cristo, divino encantador da Igreja. 0 caso da virgem Justin e do mago Cipriano.

Não há mentira tão falsa que, se a querem fazer aparente ou verossímil, se não funde em alguma suposição verdadeira. Tal foi a calúnia com que os escribas e fariseus do nosso evan­gelho blasfemaram o milagre de Cristo, dizendo que lançara o demônio mudo em virtude e com poder de Belzebu, príncipe dos demônios: In Beelzebud prmcipe daemoniorum ejicit daemonia. Supunham que uns demônios são mais poderosos que outros, e esta suposição é verdadeira, porque, como os demônios que seguiram a rebelião de Lúcifer, tinham sido anjos de todas as hierarquias, assim como os anjos das hierarquias superiores são mais poderosos que os outros anjos, assim os demônios das mesmas hierarquias são mais poderosos que os outros demônios. Daqui se segue o que os mesmos escribas e fariseus igualmente quiseram inferir, que se há uns demônios mais poderosos que outros demônios, também há uns feiticeiros mais poderosos que outros feiticeiros. Assim se viu antigamente em muitos teatros, principalmente da Germânia, onde os feiticeiros e magos - como as feras ou gladiadores no anfiteatro de Roma - saíam a se competir e ostentar os poderes da sua arte, e, com invenções não só estupendas, mas joco­sas, uns triunfavam com aclamações e aplausos, e outros ficavam vencidos[7]. E a razão desta tão notável diferença, não era outra, senão a maior ou menor sabedoria e sutileza, e o maior ou menor poder dos demônios, com que os mesmos feiticeiros tinham pacto, e dos quais eram instruídos e governados. Mas, se houvesse um feiticeiro, um mago e um encan­tador, o qual se governasse e obrasse por mais alta sabedoria e mais absoluto poder que o de todos os anjos e o de todos os demônios, não há dúvida, que este feiticeiro venceria a todos os feiticeiros, este mago a todos os magos, e este encantador a todos os encantadores.

Isto suposto, pergunto agora: e há no mundo este tal mago e este tal encantador, cujos feitiços vençam os de todos os feiticeiros, e cujos encantos os de todos os encantadores? Sim há, diz Santo Ambrósio. E quem é? 0 mesmo Cristo, Deus e homem, a quem os escribas e fariseus caluniaram de feiticeiro e mago. As palavras do grande doutor da Igreja são estas: Multi tentant Ecclesiam, sed magicae ares carmina ei nocere non possunt. Nihil incantatores valent, ubi Christi canticum quotidie decantatur. Habet incantatorem suam Dominum lesum, per quem magorum incantantium carmina, et serpentum veneno vacuarit, et ipse sicut serpens exaltatus devoret colubros aegyptiorum: Cuidais que só nas sinagogas do demônio, que são as escolas da arte mágica, há feiticeiros e encantadores? Enganais-vos, diz Ambrósio, porque também a Igreja tem o seu encantador, que é Cristo Jesus, contra o qual nenhuma coisa valem todas as artes mágicas e encantos. Bem sabeis o que fez Moisés no Egito[8]. Pois, assim como Moisés não somente venceu as serpentes dos feiticeiros e magos de Faraó, mas encantou aos mesmos encantadores, tirando-lhes toda a arte e toda a força, assim o nosso divino Encan­tador, Cristo, com mais poderosos e invencíveis encantos, não só desfaz todos os feitiços, mas enfeitiça e encanta os mesmos encantadores. Em prova destes encantos contra encantos, e destes feitiços contra feitiços, é tão raro, como propriíssimo caso, o que refere S. Gregório Nazianzeno[9]. Justina, virgem consagrada a Deus, foi solicitada para as bodas por um mancebo rico e nobre, ao qual, como não aproveitassem nada todos aqueles meios e extremos, de que o amor ardentemente empenhado se costuma valer, comprou a um insigne mago, chamado Cipri ano, para que com os mais poderosos e eficazes feitiços o ajudasse a conquistar a vontade, que não podia render, Fê-lo assim Cipriano, tomando por instrumento, não alguma velha-diz o santo-que costumam ser as mais destras neste exercício, mas um demônio, dos que têm a seu cargo, e por oficio, excitar nos corações o amor profano, o mais industrioso e astuto de todo o inferno. Sentiu a inocente virgem o infernal incêndio, e, não bastando para o apagar os jejuns, as penitências e as outras armas da milícia espiritual, com que a rebeldia dos apetites se sujeita ao império da razão, que faria? Invoca por último remédio o socorro de seu Esposo, Cristo, e da Virgem Maria, defensora da castidade, mas com que sucesso? Com o mais admirável e esquisito que nem imaginar se podia Desfeita subitamente, por virtude de Cristo, a força dos feitiços, e desencantados os encantos, o demônio, que assoprava o fogo, não só fugiu e deixou livre a Justina, mas, entrando no mesmo mago Cipriano, que o chamara, e atormentando-o fortemente, se vingava nele da empresa em que o tinha metido. E já temos encantado o encantador,

Falta agora que o amor do inferno, que o mago queria acender em Justina, se transforme em amor do céu, que abrase a ele, e que o fogo, que havia de queimar a inocen­te, queime as mesmas artes mágicas, que eram as culpadas. E tudo sucedeu assim. Reco­nhecendo Cipriano que havia outro encantador mais poderoso, e que este era o Deus dos cristãos, assim como Saul se valia de Davi e da sua harpa contra o demônio que o infestava[10], assim ele - prossegue Nazianzeno - se valeu de Cristo e de sua Santíssima Mãe contra o mesmo demônio que tinha invocado, e agora o atormentava, o qual também logo fugiu dele, e ele, pondo o fogo a todos os livros e instrumentos da arte mágica, trocou o amor, para que o tinham comprado, em amor do mesmo Cristo, e ficou tão enfeitiçado dos seus encantos, que não só recebeu a sua fé, fazendo-se cristão, mas deu por ele a vida, sendo mártir. Até aqui o grande doutor, entre todos os da Igreja, por antonomásia, o teólo­go, em uma eloqüentíssima oração, em que conclui toda a narração do caso com esta sen­tença: Divina enim Sapientia contraria per contraria procurare novit, ut majorem sui admiratio nem mortalibus excitet: Porque Deus, para maior admiração de sua sabedoria, mostra que sabe curar uns contrários com outros contrários, isto é, uns feitiços com outros feitiços, uns encantos com outros encantos, e uma arte com outra arte: Ut ars arte, veneficium veneficio, et incantatio incantatione vinceretur, comenta um douto expo­

sitor do mesmo Nazianzeno[11].

§ III

Quais são os instrumentos de que o divino Encantador se ajuda ou se serve para assim enfeitiçar os que enfeitiça e encantar os que encanta. A harpa de Davi e a vara de Moisés, figuras do Rosário, o instrumento mais oposto e contrário em tudo às superstições da arte mágica assim na substância como no modo. As orações do Rosário e as palavras ou caracteres usados nas invocações mágicas. A fé dos feiticeiros na desigualdade dos número, e a desigualdade dos números no Rosário.

Em suma que, por sentença e autoridade dos dois grandes doutores da Igreja, Ambrósio, da latina, e Nazianzeno, da grega, não só temos a Cristo no nome e no exercício encantador, como lhe chamaram os escribas e fariseus, mas tão sábio, tão poderoso e tão excelente encantador, que com seus feitiços desfaz todos os feitiços da arte mágica, e com os seus encantos enfeitiça e encanta os mesmos encantadores. Segue-se agora ver quais sejam os instrumentos de que o mesmo Encantador soberano se ajuda, ou mais verdadeira­mente se serve, para assim enfeitiçar os que enfeitiça e encantar os que encanta. E, posto que os mesmos santos não puderam dizer nomeadamente que é o Rosário, porque ainda em seu tempo o não havia, das suas mesmas palavras se colhe, não só sem violência, mas com grande propriedade e clareza.

Santo Ambrósio diz que Cristo foi figurado encantador em Moisés, quando venceu e confundiu os magos do Egito. S. Gregório Nazianzeno, que foi figurado em Davi, quando lançava o demônio do corpo de Saul. E quais foram os instrumentos com que Moisés e Davi alcançaram estas vitórias contra a arte mágica e contra o autor dela? 0 instrumento de Moisés foi a vara, o de Davi foi a harpa, e em um e outro instrumento, maravilhosamente se representaram as duas partes de que é composto o Rosário. A vara era instrumento mudo, a harpa era instrumento com vozes, e tal é propriissimamente o Rosário nas partes mental e vocal de que se compõe. Na parte mental é instrumento mudo, porque mudamente meditamos os mistérios; na parte vocal é instrumento com vozes, por­que com vozes rezamos as orações. Mais disseram ambos os mesmos doutores. Ambrósio diz: Nihil incantatores valent, ubi Christi canticum quotidie decantatur: Nenhuma coisa valem os feitiços de todos os encantadores, quando todos os dias se canta o cântico de Cristo. - E que cântico de Cristo é este que se canta todos os dias, senão o Rosário? Cântico de Cristo, porque todo é formado e composto dos mistérios de Cristo, e cântico de todos os dias, porque todos os dias se reza e se repete sem mudança nem variedade o mesmo. Nazian­zenodiz: Contraria per contraria procurare novit: que os instrumentos de que usa o divino Encantador, Cristo, são totalmente contrários aos encantos dos magos; e não há instrumen­to mais contrário, nem mais oposto ou contraposto em tudo às superstições da arte mágica, que o mesmo Rosário, assim na substância como no modo.

Quanto à substância. Os mágicos e feiticeiros - para o demônio que os governa melhor enganar aos homens e mais ofender a Deus - a matéria de que costumam usar em seus encantos são comumente coisas sagradas e palavras santas. Quantas vezes se tem visto que, instigados do mesmo demônio têm chegado a roubar ocultamente Hóstias consagradas, para abusarem delas em seus encantos, permitindo Deus estes horrendos sacrilégios, não só em castigo dos grandes pecados, que a divina justiça costuma castigar com a permissão de outros maiores, mas para que o mesmo demônio ensine aos hereges, que os cometem, que debaixo daqueles acidentes se oculta o verdadeiro corpo de Cristo, a quem os demônios têm tanto ódio, que antes quiseram cair do céu, que adorá-lo. E que palavras são as que se lêem ou não entendem nos caracteres, ou hebraicos, ou gregos, ou latinos das suas invocações mágicas, senão as palavras, ou sentenças mais sagradas e divinas, ou expressas da Escritura, ou com­postas dela? E como a matéria de que a arte mágica usa em seus encantos são coisas no exterior e palavras santas, para que o artifício do Rosário fosse com toda a proporção contrário e oposto, contrapondo coisas a coisas, e palavras a palavras-mas umas e outras de superior e invencível virtude-nem as coisas podiam ser mais sagradas que os mistérios da vida, morte, e ressurreição de Cristo, nem as palavras mais santas e as invocações mais poderosas que as do Padre-nosso e Saudação Angélica. Isto quanto à substância.

Quanto ao modo. É preceito inviolável, e superstição própria da arte mágica, que quanto fazem ou dizem em seus encantos seja sempre em número desigual. Balaão, como lhe chama a Escritura, era feiticeiro: Balam, filium Beor ariolum[12]. Peitou-o el-rei Balac, para que com seus feitiços e encantos, enfraquecesse as forças do exército de Israel, que tinha à vista; e ele ordenou primeiramente que se levantassem sete altares, e logo que para o sacrifício se lhe tivessem preparado sete bezerros e outros tantos carneiros, nomea­damente do mesmo número: Aedifica mihi hic septem aras, et para totidem vitulos, ejusdem­que numen arietes[13]. Neste número, sinalado sempre o mesmo, declarou bem o feiticeiro quanto importava para o efeito dos feitiços o mistério ou superstição do número. Sete altares, sete bezerros, sete carneiros. E por que não seis, nem oito, senão sete? Porque a arte mágica de nenhum modo se serve de números iguais, ou pares, senão sempre de número desigual, ou ímpar. Assim o lemos em Ovídio, nos feitiços de Medéia, em Lucano, nos feitiços de Ericto, e em Virgílio nos de Maga, que enfeitiçou a Dáfnis. Dá a razão o mesmo príncipe dos poetas, dizendo:

Terna tibi haec primum, triplici diversa colore

 Licia circundo: terque haec altaria circum

 Effigiem duco. Numero Deus impare gaudet[14].

Onde, debaixo do nome Deus, se entendia o mesmo autor desta superstição, o de­mônio, a quem os gentios adoravam como deus nos simulacros dos ídolos. E era tanta a fé que todos tinham nesta desigualdade do número para conseguir o que desejavam, que não só os pastores nos rebanhos observavam que as reses nunca fossem pares, mas até os soldados, como refere Vegécio, quando abriam o fosso aos muros ou trincheiras dos arrai­ais, segundo o maior ou menor número dos inimigos, ou o faziam de nove pés, ou de onze, ou de treze, ou de dezessete: Fossam aperiunt latam, aut novem, aut undecim, aut tredecim pedibus; vel, si major adversariorum numerus metuitur, pedibus decem et septem: impa­rem enfim numerum observare morís est[15]. Sendo, pois, a superstição do número desigual tão própria da arte mágica, e o Rosário o instrumento com que o divino Encantador, Cristo, a havia de destruir, para que também de número a número fosse proporcionada a oposição de um feitiço a outro feitiço e de um encanto a outro encanto, esta é a propriedade maravi­lhosa com que foi, não só conveniente, mas necessário que também o Rosário, assim nos mistérios como nas orações de que é composto, guardasse a mesma desigualdade dos números. As partes em que se divide, três; os mistérios, não catorze, nem dezesseis, senão quinze, e destes mistérios os Gozosos cinco, os Dolorosos cinco, os Gloriosos cinco, e que até às décadas das Ave-Marias se acrescentasse um Padre-nosso, para que as orações fossem onze.

Nem deve parecer esta observação demasiadamente especulativa, ou nova, ou inventada livremente, porque antes seria defeituoso o artifício do Rosário, se a arte do segundo Encantador se não opusesse em tudo à do primeiro. 0 primeiro encantador que houve no mundo foi o demônio, transformado primeiro na serpente, para encantar a Eva, e depois transformado em Eva, para encantar a Adão[16]. E que fez o segundo Encantador, Cristo, para desfazer o que tinha feito ou enfeitiçado o primeiro? Notou tudo, e decretou consigo, não de o vencer de poder a poder - que fora pouca glória - mas de o enganar e encantar de arte a arte. Assim o canta a Igreja: Multiformis proditoris ars ut artem falleres. Pois, assim como Cristo se figurou na serpente do deserto, para contrapor serpente a ser­pente, e assim como morreu em uma cruz, para contrapor árvore a árvore, e assim como foi pregado nela ao meio-dia, para contrapor hora a hora - porque ao meio-dia foi vencido Adão, como se colhe do texto: Deambulantis in paradiso ad auram post meridiem[17] - assim foi conveniente e necessário que no último instrumento e encanto universal do Rosá­rio, ordenado para desfazer todos os feitiços do demônio, o número também se contrapu­sesse ao número, e o desigual ao desigual, e por este modo se correspondessem e contrariassem em tudo uma arte com outra arte: Ars ut artem falleret.

§ IV

Quão maravilhoso é o Encantador divino na prática e exercício dos mistérios do Rosário. Quão grande encantador é Cristo Menino, sobre os outros encantadores mais sábios, A arte natural da áspide contra a arte mágica dos feiticeiros. A vitória de Cristo sobre a arte dos magos. A atração da cruz e os encantos de Anfion. Os homens transforma­dos em brutos pela magia de Circe, e os brutos reformados em homens pelos feitiços da cruz. Resposta do lavrador romano acusado de feitiçaria pela excessiva fertilidade de suas lavouras. Os ungüentos usados pelos magos em seus vôos, e os ungüentos com que Cristo unge os seus eleitos.

Temos visto em comum, não só a Cristo soberano Encantador, mas quão pró­prias são, segundo a arte, assim na matéria como na disposição, todas as proporções que concorrem no Rosário para ser o instrumento dos seus encantos. Agora vejamos em particular, por todos os mistérios do mesmo Rosário, quão maravilhoso é o mesmo Encantador na prática e exercício deles, e quão eficaz, e poderosamente enfeitiça e encanta.

Começando pelos mistérios Gozosos, que são os da infância de Cristo, falando da mesma infância o profeta Isaías, diz assim: Delectabitur infans ab ubere super foramine aspidis[18]. Não há dúvida que fala o profeta do nascimento de Cristo, como se vê claramen­te de todo o texto que começa: Egredietur virga de radice Iesse[19]: e diz que o belo infante, desde os peitos de sua Mãe, meterá a mão nas covas e cavernas das áspides, e as domará e fará tão mansas, que brincará com elas. Quão próprio efeito seja da arte mágica encantar e amansar as serpentes, não é necessário citar autores, pois nenhum há que o não diga. Mas por que razão neste caso, entre todas as serpentes, faz menção Isaías da áspide, mais que de outra: Delectabitur infans super foramine áspides? Porque é o maior encarecimento com que podia exagerar quão grande Encantador é Cristo menino, sobre todos os encantadores mais sábios. Davi lhe tinha dado o argumento, quanto disse: Sicut aspidis surdae, et obturantis aures suas quae non exaudiet votem incantantium, et venefici incantatis sapienter[20]. Todos os santos, e expositores, seguindo a tradição comum, que vale mais que a autoridade de Plínio e Eliano, dizem que aludiu o profeta nesta sentença ao instinto natural da áspide, a qual, pressentindo a eficácia das palavras mágicas, com que os feiticeiros encantam e amansam as serpentes, ela, achando-se sem mãos com que tapar os ouvidos - como os companheiros de Ulisses contra o encanto das sereias[21] - prega fortemente um ouvido na terra, e cerra o outro com a ponta da cauda, e, fazendo-se por este modo total­mente surda, vence com a sua arte natural a arte mágica do feiticeiro, e se livra dos seus encantos. Por isso diz Davi que, por muito sábio que seja o encantador, não pode encantar a áspide: Sicut aspidis surdae, et obturantis aures suas, quae non exaudiet votem venefici incantantis sapienter. De sorte que os encantadores muito sábios sabem e podem encantar as outras serpentes: a áspide, para não ser encantada, sabe e pode mais que os encantado­res; porém, o nosso Menino Encantador, sabe e pode mais que as áspides: Delectabitur infans super foramine aspidis. 0 que para os outros Encantadores é impossível, para o nosso Encantador é jogo.

Já agora se não admirará o mundo de ver apear ao portal de Belém os três Reis Magos, com todas as suas tropas, adorando no presépio, e entre as palhas, o Divino Encan­tador recém-nascido. Santo Agostinho, S. Jerônimo, S. Crisóstomo, Santo Ambrósio e Santo Tomás, dizem que estes magos, não só eram astrólogos, senão verdadeiramente fei­ticeiros e encantadores. Mas muito mais sábio e muito mais poderoso encantador é que eles o que, mudo e sem falar palavra, por uma estrela, também muda, os trouxe desde o Oriente, e os pôs a seus pés rendidos. Esta foi a razão por que o evangelista, sendo reis, lhes não chamou reis, senão magos [22]  , porque maior glória foi para Cristo infante a vitória da sua arte que a sujeição das suas coroas.

Passando aos mistérios Dolorosos. Disse Cristo em sua vida que, quando fosse levan­tado na cruz, atrairia tudo a si: Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad me ipsum[23]. Esta é outra grande maravilha dos poderes da arte mágica, com que Anfion, famoso mago, deu tão celebrada matéria às fábulas dos poetas[24]. Dizem eles que com a consonância e harmonia dos versos que cantava, levava após si os penhascos e os bosques. A verdade é que Anfion arrancava de seu lugar as árvores, e abalava e movia as pedras; porém, não era como músico, com as vozes do seu canto, senão como valentíssimo feiticeiro, com a forçados seus encantos. Mas que tem isto que ver com os do nosso Encantador crucificado ou exaltado na cruz? Tudo disse que então havia de atrair a si: Omnia traham ad me ipsum. E assim foi, diz Ruperto, porque trouxe a si o céu, trouxe a si a terra, e trouxe a si o inferno. 0 céu, eclipsando-se e vestindo-se de luto o sol, e cobrindo o mundo de trevas; o inferno, saindo do seio de Abraão muitos dos que lá esperavam aquele dia, e aparecendo ressuscitados em Jerusalém; a terra, tremendo toda, e quebrando-se de dor as partes mais insensíveis e duras dela, que são as pedras[25]. Mas não foi isto só o que trouxe ou atraiu a si, como bem ponderam Santo Agostinho e S. Cirilo. Com as quatro pontas, ou cabos da cruz, desde o Oriente ao Poente, e desde o Setentrião ao Meio-dia, trouxe a si as quatro partes do mundo; e com os caracteres hebraicos, gregos e latinos do título trouxe a si todas as línguas, todas as nações e todas as gentes do universo.

Com outro intento lhe puseram de um e outro lado na cruz outros dois crucifi­cados; mas este mesmo foi um novo mistério e o maior dos seus encantos. Circe, famosa encantadora, transformava os homens em brutos[26], e estes efeitos, posto que aparentes, bem mostravam ser da arte do demônio, que assim o tinha feito no primeiro homem: Homo, cum in honre esset, comparatus est jumentis, et similis factus est illis[27]. Porém, o nosso divino Encantador quis morrer entre dois homens, havendo nascido entre dois brutos, para que conhecêssemos que os seus encantos e transformações não eram para fazer de homens brutos, senão de brutos homens. Nabucodonosor, primeiro transformado em bruto, e de­pois reformado em homem, foi obra da mesma mão, primeiro justa, e depois piedosamente onipotente[28]; mas no gênero humano não sói assim. 0 homem transformado em bruto, foi obra da magia do demônio, e o bruto reformado em homem, vitória dos encantos de Cristo.

Estes são os feitiços da sua cruz e de todos os outros instrumentos dos mistérios Dolorosos. Lembra-me a este propósito que, acusado de feiticeiro um lavrador romano, pela excessiva fertilidade com que as suas lavouras se avantajavam às de todos, confessou ele ingenuamente o crime em presença do Senado; e, perguntado quais eram os seus feitiços, pediu de espaço aquela noite para responder. Ao outro dia apareceu no mesmo lugar, carrega­do de arados, de grades, de encinhos, de enxadas, de podões, de foices, e de todos os outros instrumentos rústicos, e, lançando-os diante dos senadores, disse: Veneficia mea, quirites, haec sunt[29]: Padres conscriptos, estes são os meus feitiços. - Isto mesmo faz o Rosário nos mistérios Dolorosos. Põe-nos diante dos olhos a Cristo carregado com a cruz, com a coluna, com a lança, com os açoites, com os cravos, com os espinhos, e com todos os outros instru­mentos e tormentos de sua Paixão, e, dizendo-nos o mesmo Senhor com a boca amargada de fel e o coração aberto: Veneficia mea haec sunt: Estes são os meus feitiços - que coração haverá tão duro e tão de áspide, que se não deixe enfeitiçar e encantar deles?

Finalmente, os mistérios Gloriosos, em que vemos a Cristo subindo ao céu, a quem não arrebatarão e darão asas. Os feiticeiros, quando querem voar, têm certos ungüentos, com que se untam e voam. Assim voou, à vista de toda Roma, Simão, o mago samaritano; assim voou e desapareceu, em presença do imperador Domiciano, Apolônio Tianeu, que suce deu na arte e na escola a Simão; assim voou de Tessália para Atenas, e de Atenas para Ásia, a antiga Medéia; e assim voam as modernas, mais culpadas e indignas de perdão nafé do tempo presente, pois aprendem a arte do encantador do inferno, quando puderam seguir o do céu[30]. Trahe me, post te curremus in odorem unguentorum tuorum[31] - dizia a Cristo a Esposa dos Cantares. E quando o disse? S. Bemardo: Anima sancta contemplaras Christum in caelum ascendentem, clamat: Trahe me post te: ut tecum e valle lachrymarum in montes aeternitatis, et aeternae voluptatis ascendam[32]: Quando Cristo subiu ao céu, contemplando a Esposa santa sua ascensão gloriosa, então é que lhe pediu que a levasse após si, para que ela também subisse deste vale de lágrimas aos montes eternos da glória, - Mas por que faz menção a Cristo dos seus ungüentos, quando lhe pede que a leve após si ao céu: Trahe me, post te curremus in odorem unguentorum tuorum? Porque Cristo, como soberano Encantador, também na sua divina magia tem outros ungüentos com que, ungidos os que o querem seguir, voam após ele, que é a graça e unção do Espírito Santo, que com sua vida e morte nos mereceu, diz o mesmo S. Bernardo. Assim ungido voou e foi arrebatado S. Paulo ao terceiro céu; assim ungida subiu a Madalena sete vezes no dia a ouvir as músicas dos anjos; assim ungidos os Hieroteus, os Dionísios, os Franciscos, as Brígidas, as Gertrudes, as Teresas, e tantos outros espíritos extáti­cos, enfeitiçados das saudades e amor do mesmo Esposo, ou no corpo, ou fora do corpo, voavam freqüentemente ao céu, onde mais viviam que na terra. Na terra eram uns corpos encantados e aparentes, mais verdadeiramente mortos que vivos, porque a sua vida não apare­cia onde eram vistos, mas estava escondida no céu, em Deus e com Cristo. Tudo são palavras do apóstolo S. Paulo: Mortui estis, et vita vestra est abscondita cum Christo in Deo[33].

§V

Outros encantos dos mistérios do Rosário. O feitiço praticado na imagem do enfei­tiçado. Tudo o que o demônio executou na imagem de Deus, Adão experimentou e padeceu Deus em sua própria pessoa. Deus, enfeitiçado pela força de seu amor Saul e a feiticeira de Endor A que fim, sendo o Filho imagem natural do Padre, a tratou Deus tão áspera e rigorosamente, assim na vida como na morte? A imagem de barro e de cera nos feitiços amatórios de Dafne. As ervas mágicas e as palhas do presépio. Os mistérios gloriosos, estátua de pedras preciosas, usada nos feitiços de Deus.

Assim enfeitiça e encanta Cristo aos homens em todos os mistérios do Rosário. Mas, debaixo deste modo de enfeitiçar, que todos entendem, se ocultam nos mesmos mis­térios outros encantos mais altos, não entendidos, e porventura nem imaginados. Uma feitiçaria tão usada, como efetiva, é tomar o feiticeiro a imagem da pessoa que quer enfei­tiçar, e ir executando na mesma imagem tudo o que pretende que a pessoa enfeitiçada faça ou padeça. A este modo de enfeitiçar alude a maga virgiliana, quando diz da imagem de  Dafne, que havia de ser o enfeitiçado:

Terque haec altaria circum effiziem duco[34]

Isto posto, vamos ao encanto, que com razão chamei não imaginado. Para o demô­nio, derrubado do céu, se vingar de Deus - quem tal imaginara! - intentou enfeitiçar ao mesmo Deus. E que fez? Como Adão era a imagem de Deus: Creavit Deus hominem ad imaginem et similitudinem suam[35] - arca com Adão, e, apertando-o com toda a força dos seus encantos, foram tais os efeitos, e se não foram os efeitos, foi tal o sucesso, que tudo o que o demônio executou na imagem de Deus, experimentou e padeceu Deus em sua pró­pria pessoa. Vede-o claramente. Assim como Adão, que no estado da inocência, era impas­sível, ficou passível, assim Deus, que era impassível, por este mesmo sucesso se fez passível. Adão, que por privilégio do seu estado era imortal, ficou mortal, e Deus, que por natureza era imortal, se fez também mortal. Adão, que tinha por pátria bem-aventurada o paraíso, foi lançado do paraíso, e Deus, que tinha por corte o céu, desceu do céu e se desterrou a este mundo. Finalmente, Adão ficou sujeito a todas estas penas, por causa do pecado, e Deus, por ocasião do mesmo pecado, se sujeitou às mesmas penalidades, não cometendo - que não podia - o pecado, mas tomando-o sobre si, e pagando por ele, como se o cometera: Eum, qui non noverat peccatum, pro nobis peccatum fecit[36]. Que diremos neste grande caso? Que obraram os feitiços do demônio em Deus tudo o que executou na sua imagem, e que ficou Deus verdadeiramente enfeitiçado? Digo que enfeitiçado sim, mas não por força dos encantos do seu amor, pelo qual permitiu e dispensou em si mesmo tudo o que a mágica do demônio havia de obrar, se pudera, posto que não podia. Falo com Santo Agostinho e com Santo Tomás.

Pediu el-rei Saul a uma feiticeira, que por arte mágica - a qual neste caso é propriamente nicromancia - lhe ressuscitasse a Samuel, porque o queria consultar[37]. E assim se fez. Apareceu Samuel nos mesmos trajos em que andava neste mundo, e falou com Saul, e satisfez às suas dúvidas. Mas, ou fosse Samuel verdadeiramente ressuscitado em seu próprio corpo, ou fosse a alma de Samuel somente em corpo fantástico e aparente, nenhuma destas coisas podia fazer a arte mágica, porque nem o demônio pode ressuscitar mortos, nem pode tirar as almas dos lugares onde Deus as tem ou presas ou depositadas, como a alma de Samuel estava no seio de Abraão. Pois, se nem a feiticeira, nem o demônio, por nenhuma arte, podiam fazer o que intentaram, como sucedeu tudo assim, e do mesmo modo que ela e ele o tinha procurado por meio de seus encantos? Porque ainda que a feiticeira e o demônio não podiam ressuscitar a Samuel, nem tirara sua alma do lugar onde estava, e trazê-la à presença de Saul, e com efeito nenhuma destas coisas fizeram, não basta que no mesmo tempo em que eles aplicavam os seus encantos, obrasse Deus, por si mesmo e por outros motivos, o mesmo que eles não podiam, e haviam de fazer, se pudessem. Assim o diz Santo Agostinho na Epístola a Simplício: Non est absurdum credere aliqua dispensation permissum fuisse, ut non dominante arte magica, vel potentia, sed dispensa­tion occulta, quae Phytonissam, et Saulem latebat, se ostenderet spiritus justi aspectibus regis divina eum sententia percussurus[38]. E Santo Tomás, na questão cento e setenta e quatro da Secunda Secundae: Nec obstar, quod arte daemonum hoc dicitur factum: quia et si daemons animam alicujus sancti evocare non possunt, neque cogere ad aliquid agen­dum, potest tarnen hoc fieri divina virtute, ut dum daemon consulitur, ipse Deus per suum nuntium veritatem enuntiet[39]. Assim pois, como o demônio com a mesma soberba, e ignorância, com que quis ser como Deus, quisesse também enfeitiçar a Deus, e sucedesse com efeito em uma das Pessoas Divinas o que ele executou na sua imagem, não foram contudo artes nem poderes do demônio, senão misericórdias e finezas do mesmo Deus, que, enfei­tiçado do seu próprio amor, quis pelos mesmos meios reformar a sua imagem, e confundir e encantar o encantador dela.

Ainda estão ocultos maiores mistérios e encantos nos mesmos mistérios do Rosário. Já não é o demônio o que quer enfeitiçar a Deus com a sua imagem humana, mas é o mesmo Deus que quer enfeitiçar aos homens com sua imagem divina. Agora vos peço maior atenção. A imagem divina de Deus é o Verbo Eterno: Qui est imago Dei, et figura substantiae ejus[40]. Encamou o Verbo Eterno, não só sujeito a todas as pensões da nature­za, senão a todos os rigores da fortuna. 0 nascer e morrer, foram pensões da natureza: o nascer em uma manjedoura sem casa, e o morrer em uma cruz sem cama, foram rigores da fortuna. Quem o obrigou a todas estas sujeições, tão alheias de quem era, foi seu próprio Pai: Qui proprio Filio suo non pepercit[41]. Mas a que fim? Aqui está a profundidade do mistério e do encanto. A que fim, sendo o Filho imagem natural do Padre, tão imortal, impassível e invisível como ele, a fez Deus passível, mortal e visível, vestindo-a da nature­za humana? E a que fim, depois de visível, mortal e passível, a tratou tão áspera, tão dura e tão rigorosamente, assim na vida, como na morte? 0 fim foi para Deus enfeitiçar os ho­mens, por amor dos quais o fizera homem. 0 demônio enfeitiça o homem, pondo os feiti­ços na imagem do homem; porém, Deus enfeitiçou o homem pondo os feitiços, não na imagem do homem, senão na sua. E assim como nos feitiços do demônio tudo o que o demônio faz e executa na imagem, padece o enfeitiçado em si, assim neste modo de enfei­tiçar tão diferente, e que só podia ser inventado por Deus, o fim altíssimo de sua sabedoria foi que tudo o que ele fazia e executava na sua imagem, fizesse também e executasse o homem em si mesmo, não por encanto violento, senão voluntário, conformando-se a imita­ção humana com a imagem divina. Isto é o que chamou S. Paulo: Conformes fieri imaginis Filii sui[42]; e isto é o que fizeram, como homens verdadeiramente enfeitiçados e encanta­dos, todos aqueles que, excedendo os limites da paciência e as façanhas do amor, imitaram tão forte, como amorosamente, a mesma imagem, e se conformaram com ela.

A imagem, que fez a Maga, de que já falamos, para enfeitiçar a Dafne, não só foi de uma matéria, senão de duas, uma de barro, outra de cera, e ambas com sutilíssimo engenho. Pôs uma e outra junto do fogo, e no mesmo tempo, e com o mesmo calor, a de cera derretia-se, e a de barro endurecia-se mais. E estes dois efeitos eram os mesmos que com aquele feitiço se pretendiam no coração de Dafne, a saber, que para quem não amava se abrandasse, e para quem amava se endurecesse. Assim o diz com tão admirável brevida­de, como propriedade, a poesia do grande filósofo:

Limus ut hic durescit, et hac ut cera, liquescit,

 Uno, eodemque igni: sic nostro Daphnis amore[43].

 Ponde agora os olhos na mesma imagem de Deus, ou no presépio ou na cruz. 0 fogo do amor é o mesmo, e a imagem a mesma, mas no presépio derretida, e por isso abranda os corações que enfeitiça, na cruz endurecida, e por isso fortalece os que encanta. Por que cuidais que houve tantos santos confessores, e há ainda hoje tantos varões moços, e mulheres de heróico e generoso espírito, que, renunciando as riquezas e pisando as digni­dades, e ainda os cetros e as coroas, ou se retiraram aos desertos, ou se sepultaram vivos em uma cova? Sem dúvida porque a humildade, a pobreza, o desamparo, o rigor do tempo e do

lugar, e todas as outras penalidades com que Deus no presépio apertava e afligia a sua imagem, enfeitiçando-lhes os entendimentos e as vontades, e derretendo-lhes os corações, obravam neles os mesmos efeitos. Para que percam já o nome nas histórias e a fama nas fábulas as verbenas, os mirtos e os louros mágicos, e todas as outras ervas, flores e sucos, ou nascidas no Ponto, ou colhidas na Arcádia, ou arrancadas e espremidas do Ossa, do Pindo e do Olimpo, pois um menino, sem mãos e sem voz, só com umas palhinhas secas faz tanto maiores encantos. E, passando do presépio ao Calvário, por que cuidais que houve e há ainda em nossos dias, tantos mártires de tão estranha e invencível fortaleza, tão duros, como se fossem de mármore ou de bronze, contra as feras, contra o ferro, contra o fogo e contra a ira e raiva dos tiranos, mais feros que as mesmas feras, senão porque vendo as dores, e os tormentos, com que Deus martirizava a sua imagem encravada e agonizante na cruz, encantados da paciência e constância, e enfeitiçados do coração e amor com que os padecia, a sua mesma dureza os abrandava para os abraçar, e a sua mesma brandura os endurecia para os não sentir? Pasmem, pois, e emudeçam também aqui, e fiquem já indig­nas de toda a admiração e memória, ou as espadas encantadas dos Aquiles, ou as armas fabulosas forjadas nas fornalhas do Etna e temperadas na lagoa Estígia, pois um homem com as mãos pregadas, e morto, só com dois lenhos atravessados pôde encantar, sujeitar e dominar o mundo: Domuit orbem, non ferro, sed ligno.

 Às duas imagens, uma de barro outra de cera, acrescenta Grilando a terceira, feita também de pedras preciosas, para os mesmos feitiços amatórios. Vel ex terra - diz ele - vel ex cera, vel ex gemmis[44]. E esta é a que só nos faltava para complemento dos três mistérios do Rosário. Um de cera, nos Gozosos, brando pelas ternuras da infância, outro de barro, nos Doloro­sos, duro pelos tormentos da cruz, e o terceiro de pedras preciosas, nos Gloriosos, pelos resplendo­res da ressurreição: e tudo por virtude do mesmo fogo: uno, eodemque igne. Porque o fim para que Deus nos quis enfeitiçar com a sua imagem, conformando-nos com ela na imitação suave da vida, e na forte e dura da morte, que são os mistérios Gozosos e Dolorosos, foi para que por meio deles o merecêssemos acompanhar eternamente nos Gloriosos, para os quais nos tinha predestinado: Quos praescivit, et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui[45].

§ VI

Se Cristo nos enfeitiça com os mistérios do Rosário, e nós, por enfeitiçados, ficamos também feiticeiros, a quem enfeitiçamos? A força que têm as nossas orações para encantar a Deus. 0 Rosário e as invocações mágicas de que fala Isaías. A ressurreição de Samuel e a ressurreição dos devotos do Rosário. De onde tem virtude o Rosário para obrar estes encan­tos e encantar a Deus? As promessas, ou pactos do Rósário, e a justiça divina.

Temos visto como Cristo, soberano Encantador, nos enfeitiça, e encanta em todos os mistérios do Rosário, não só por um, senão por dois modos, ambos maravilhosos, mas o segundo mais alto ainda, e mais admirável que o primeiro. Agora se segue o que Plinio afirma de certos feitiços, que é tal a sua qualidade e eficácia, que aqueles, a quem tocam, não só ficam enfeitiçados, senão também feiticeiros: Tantum remanet virus excepto semel malo, ut venefici fiant venena passi[46]. Mas, se Cristo é o que nos enfeitiça com os  mistérios do Rosário, e nós, por enfeitiçados, ficamos também feiticeiros, a quem enfeiti­çamos? Não menos, nem a outrem, senão ao mesmo Cristo. Ele a nós, com os mistérios, e nós a ele, com as orações; ele a nós, na parte mental do Rosário, como vara de Moisés muda, e nós a ele, na parte vocal, como harpa de Davi com vozes.

Não é coisa nova, posto que grande, que as orações dos homens tenham força de encantar a Deus. Assim o disseram os Setenta intérpretes, declarando a virtude das mesmas vozes da harpa de Davi. Davi diz: Praecinite Domino - e os Setenta: Excantate Dominum (SI. 146, 7). Não são dois oráculos, senão um só e o mesmo. Em Davi diz: Orai a Deus; e nos Setenta diz: Encantai a Deus porque Deus é tão bom, que se deixa enfeitiçar, e as nossas orações tão poderosas, que o enfeitiçam. Excantatur Dominus, quando sanctis carminibus, et precationibus ab ira in peccatorem concepta, avellitur[47] - diz, comentando o mesmo verso, Genebrardo, e concordando o texto de Davi com a versão dos Setenta. Esta é a razão fundada na verdade do mesmo Deus, porque quando a sua justiça decreta absolutamente algum casti­go, antes de proceder à execução, proíbe primeiro a nossa oração. Ao profeta Jeremias proibiu Deus que não orasse pelo povo: Noli orare pro populo isto[48]. Do mesmo modo a Lot, que não orasse pelas cidades infames, a Josué, que não orasse por Acã, e a Samuel, que não orasse por Saul[49]. E todas estas prevenções antecipava Deus, porque no Tribunal de sua Justiça estavam sentenciados os castigos com decreto absoluto e irrevogável. Mas, se os decretos eram absolu­tos, e não podiam deixar de se executar, que importa que orassem ou não orassem os homens, ou de que se temia Deus? Assim dificulta o caso o doutíssimo comentador dos Livros dos Reis, Mendonça. E perguntando: Cur, quaeso, Deus orari se prohibet[50] ? Responde: Plane, quia timet excantari: Sabeis por que proíbe Deus com tanta prevenção o ser orado? E porque teme o ser encantado: Plane, quia timet excantari. E se as outras orações encantam e enfeiti­çam a Deus, quanto mais as do Rosário?

Definindo Isaías as invocações e imprecações mágicas, com que os encantado­res enfeitiçam, chamou-lhes em uma palavra equipolente a duas, elóquio místico. Assim consta do capítulo terceiro do mesmo profeta, porque onde o original hebreu tem prudentem incantatorem, lê a nossa Vulgata prudentem eloquii mystici[51]. Transferindo, pois, esta  mesma definição das invocações mágicas, e aplicando-a às orações cristãs, com que encan­tamos a Deus, a nenhuma quadra mais inteiramente, e com maior propriedade, que ao Rosário, E por quê? Porque toda a essência do Rosário, por seu gênero e por sua diferença, se compreende e declara nesta definição. Todas as outras orações são elóquio, porque em todas falamos com Deus, mas elóquio místico, só o Rosário propriissimamente. Elóquio, porque na parte vocal todo consta de vozes; místico, porque na parte mental todo consta de mistérios. Assim que o verdadeiro devoto do Rosário, que medita os seus mistérios e reza as suas orações, este é o sábio e prudente encantador que encanta a Deus: Prudentem incantatorem: prudentem eloquii mystici.

Não quero outro expositor, senão o mesmo profeta, e no mesmo texto hebreu. No capítulo vinte e seis diz assim Isaías, falando com Deus: Effundunt incantationem, quando castigatio tua eis. Quer dizer: quando vós, Senhor, quereis castigar, ou ameaçais castigos aos homens, o que fazem os sábios ou prudentes do elóquio místico é derramar contra vós os seus encantos, para que, como enfeitiçado ou encantado, vos quebrem as forças e se defendam da vossa ira. Mas, que encantos são estes tão poderosos com Deus, ou contra ele? 0 nosso português, Foreiro, peritíssimo na língua hebréia, cuja é a versão, o declara: Effundunt incantationes, hoc est, orationes arte compositas, et apte concinnatas: Os encantos, que derramam contra Deus estes sábios encantadores, são umas orações com­postas por tal arte que são aptas, e têm força para o encantar. - Não chegou a dizer expres­samente, e por seu próprio nome, que são as orações do Rosário. Mas que orações há outras, por muitas e repetidas, às quais convenha tão naturalmente a propriedade de derra­madas? Ou que arte há, ou pode haver, tão sobre-humana e verdadeiramente divina, que lhe desse energia e forças, para encantar a Deus, senão a arte com que o mesmo Rosário foi composto e ordenado pelo Filho e pela Mãe do mesmo Deus? Effundunt incantantiones, hoc est, orationes arte compositas, et apte concinnatas.

Está provado o encanto. Mas o entendimento ainda deseja saber duas coisas que necessitam de declaração. Primeira: em que consiste este encantamento de Deus? Segunda: donde tem virtude o Rosário para o encantar? Quanto à primeira, respondo que o encantamento de Deus consiste em ficar o mesmo Deus como ligado e atado por força das nossas orações, e dominado, sujeito e obediente a elas, sem lhes poder resistir. Tudo disse Santo Antonino: Oratio, ut ita ditam, valet contra Deum, quasi teneat eum

ligatum: est enim fortis, et efficax, ut omnia vincat, et omnibus dominetur, etiam Deo, Estar Deus como ligado e atado, prova-se da oração de Moisés, a quem disse o mesmo Deus: Dimitte me, ut irascatur furor meus[52]. E o estar dominado, sujeito e obediente, prova-se da oração de Josué, de quem diz a Escritura: Obediente Domino voci hominis[53]. E que vem a ser Deus ligado, Deus dominado, Deus obediente e sujeito, senão o mesmo Deus e o mesmo Onipotente encantado?

Já deixamos provado e resoluto, com Santo Agostinho e Santo Tomás, que a pitonisa ou maga, de que se valeu Saul, não tinha poder, por forçadas artes mágicas, nem para ressuscitar a Samuel, nem para o tirar do seio de Abraão, onde estava. Leiam-se, porém, as histórias eclesiásticas, e achar-senão mais de cinqüenta ressuscitados, que depois de mortos, e alguns deles já sepultados, tomaram a viver pela devoção do Rosário. E quase são outros tantos exemplos os daqueles que, estando já condenados ao inferno, por morrerem em pecado, lhes concedeu Deus novo espaço de penitência, com que a fizeram, e se salvaram. De sorte que, nem como autor da natureza, nem como autor da graça, resiste Deus aos poderes do Rosário, deixando-se vencer e atar da força de suas orações ou de seus encantos. Como autor da natureza, não, porque quebra as leis universais de morrer o homem uma só vez; e também não como autor da graça, porque, tendo-se-lhe acabado o tempo de merecer ou desmerecer, ou, como dizem os teólogos, estando já extra viam, lhes concede que tomem a ela e emendem os maus passos com que a correram, E esta é a resposta da primeira dúvida.

A segunda, e não menor pergunta: Donde tem virtude o Rosário para obrar estes encantos e encantar a Deus? Alguns quiseram, que a tivesse ex opere operato[54]. E se este privilégio se houvesse de conceder a algumas orações, nenhumas há, que mais digna e altamente o merecessem, que a divina do Padre-nosso e a angélica da Ave-Maria. Mas, porque isto não só é incerto, mas improvável, digo que toda a virtude que tem o Rosário para encantar a Deus, não é pela eficácia das palavras, posto que tenham muita, senão pela promessa, obrigação e fidelidade do pacto. A força dos outros feitiços e encantos não está nas palavras mágicas, que nenhuma tem, mas é toda e só do demônio invocado, e do pacto com que se obrigou a acudir a ela, e cumprir o que prometeu. E se esta pontualidade se experimenta nos pactos e promessas do pai da mentira, quanto mais nos de Deus, que é a Suma Verdade? Assim o declara Santo Atanásio, com a mesma palavra de pacto, sobre a promessa de Cristo: Ubi sunt duo vel tres[55] - cuja oração define que não pode deixar de ter efeito, não por força das palavras da mesma oração, senão pro ipsius Salvatoris pacto[56]. Este mesmo pacto alegava Davi a Deus, quando orava, dizendo: Secundum eloquium tuum eripe me (SI. 118,170): Livrai-me, Senhor, não segundo as minhas palavras, com que o peço, senão segundo a vossa, com que o prometestes.

Mas estas promessas ou pactos do Rosário, donde constam? Todos os pactos de Deus, tantas vezes repetidos na Sagrada Escritura, constavam da Arca do Testamento, onde estavam guardados, que por isso se chamava Arca foederis[57]. E do mesmo modo constam os pactos do Rosário da verdadeira Arca do Testamento, a Virgem, Senhora nossa, por cuja sacratíssima boca não menos vezes foram repetidos e revelados. A S. Domingos, ao Beato Alano, seu sucessor, e a muitos outros pregadores e devotos do Rosário, prometeu a mesma Mãe da Verdade divina humanada, tudo o que dele temos dito, sendo os mesmos efeitos a maior e mais segura prova de serem todos pactos expressos. Assim que ninguém pode duvidar que, sendo Deus invocado pelos merecimentos infinitos de seu Filho, e intercessão de sua Santíssima Mãe nas orações de ambos, que são as do Rosário, deixará o mesmo Deus de obrar por virtude extraordinária tudo o que lhe pedirmos, sendo ele, com novo modo de encanto, o invocado juntamente e o encantado. Esta é a obrigação de justiça, com que Davi em outro lugar supunha que Deus, invocado por ele, não podia faltar a suas petições, porque o mesmo que sem pacto seria liberalidade, em suposição do pacto já era justiça: Invocantem exaudivit me Deus justitiae meae[58], Assim declara Pselo, padre grego, a virtude da palavra cum invoca­rem, argumentando das invocações mágicas para as divinas: Quoniam invocado-diz ele –est virtutis cujusdam praestantioris occulta quaedam atractio, adductioque; siquidem gentiles incantationibus ac invocationibus quasdam ad se pravorum spirituum virtutes attrahebant, quin et ipsis eorum personis cum iisdem conversando vim afferebant[59].

§ VII

A Virgem, Senhora nossa, encantada pelas virtudes do Rosário. A magia mais pode­rosa e mais decantada pelos poetas: trazer a lua do céu à terra. Vários exemplos dos  poderosos encantos do Rosário. Os despojos dos enforcados e a conversão do jovem fidal­go de Valença. 0 que devem pedir à Senhora todos os que se sentirem infeccionados pelo veneno do amor profano.

Desta maneira, encantados nós por virtude do Rosário, encantamos também com ele a Cristo, e só resta, como prometi, vermos igualmente encantada pelo mesmo modo a Mãe do soberano Encantador. 0 primeiro caso com que isto se prova tem tanto de admirável como de lépido. Encomendavam-se a uma imagem da Senhora do Rosário duas mulheres, uma casada, e outra amiga, ou mal amigada, com o marido. Esta, como culpada, pedia misericórdia, e a outra, como ofendida, pedia justiça. Continuaram am­bas na sua oração um ano inteiro, ao cabo do qual, falou a Senhora por boca da sua imagem, à que pedia justiça, e lhe disse estas notáveis palavras: Quaere alium, mulier qui tibi justitiam faciat: Ego nullo modo facere possum, quae tam grata salutatione ab illa meretrice afficior: Mulher, busca quem te faça justiça, porque eu de nenhum modo ta posso fazer, vendo-me obrigada das saudações tão agradáveis - isto é, das Ave-Marias - com que a mesma, que a ti te ofende, a mim me afeiçoa. - Que faria com este desengano uma mulher, sobre zelosa, desesperada? Sai-se da igreja enfurecida, e en­contrando na rua a mesma contra quem tinha pedido justiça, começa a bradar que a prendam como feiticeira e encantadora, porque com as suas artes mágicas tinha enfeiti­çado a Mãe de Deus. São palavras do mesmo autor da História: Existimans Matrem Domini delusam incantationibus meretricis[60]. E nós, que diremos? Diremos, que foi imaginação, como a da mulher, que assim o cuidou e o disse? Não por certo. Com a mesma verdade com que as Escrituras dizem que as nossas orações encantam a Deus, com essa havemos de crer que aquelas Ave-Marias da devota pecadora encantaram a Mãe de Deus. 0 efeito o mostrou, porque os encantos e feitiços foram recíprocos. As­sim como a mulher enfeitiçou a Senhora com as suas orações, assim a Senhora, enfeiti­çada, a enfeitiçou também a ela com as suas palavras, porque, tanto que soube que a imagem tinha dito que não podia fazer justiça contra ela, ela, no mesmo ponto, a fez em si mesmo, e, emendando a vida, a sepultou para sempre em uma estreita cela, onde nunca cessou de repetir, em ação de graças, as gratíssimas saudações do Rosário, a que tanto devia. 

Deixo de ponderar que um dos grandes prodígios, ou prestígios da arte mágica, é fazer falar as estátuas, como a imagem da Senhora falou no nosso caso, porque passo a outros maiores e mais freqüentes, em que os encantos do Rosário, não só vencem os da magia verdadeiros, senão também os mais fabulosos. Os encantos mágicos mais decanta­dos nas fábulas dos poetas, é serem tão poderosos, que chegam a tirar a lua do céu, e traze-­Ia à terra:

Carmina vel caelo possunt deducere lunam[61].

diz Virgílio, e o mesmo celebram Ovídio, Horácio, Tibulo, Catulo, Sêneca, Lucano, Estácio, e todos, assim latinos como gregos. Mas isto mesmo, que eles só souberam fabular e fingir, tem obrado muitas vezes verdadeiramente os encantos do Rosário, em outra mais alta e melhor lua que a do primeiro céu. Falando o profeta Habacuc da Ascensão de Cristo e da Assunção de sua gloriosíssima Mãe, diz, que no dia da Ascensão se elevou o sol, e no dia da Assunção se pôs a seu lado a lua: Elevatus est sol, et luna stetit[62]. É o que tinha dito Davi: Astitit regina a dextris tuis[63]. Sendo pois a Rainha dos anjos a lua do céu empíreo, vede agora quão poderosos são os encantos do Rosário, para a trazer do céu à terra: Caelo deducere lunam.

Um capitão católico, pelejando com poucos soldados contra muitos hereges, de que se viu em grande aperto, porque era devoto do Rosário, o mesmo Rosário lhe trouxe a lua do céu à campanha, e, sendo socorrido da Mãe de Deus, a mesma Senhora tomou a vanguarda, e lhe deu vitória. Uma Senhora espanhola, sendo cativa pelos mou­ros de Granada, que a mandaram servir em uma cavalariça, porque era devota do Rosá­rio, o mesmo Rosário lhe trouxe a lua do céu àquele humilde lugar, onde, no dia do nascimento de Cristo, pariu um filho, a quem chamou Mariano, em memória da Virgem Maria, que a assistiu no parto, e ela e o filho se acharam de repente livres na igreja de Santiago de Galiza, donde eram naturais. Um eclesiástico, desconfiado dos médicos, por uma chaga na garganta, que lhe impedia a respiração, porque era devoto do Rosário, o mesmo Rosário lhe trouxe a lua do céu junto ao leito onde jazia, e a mesma Mãe de Deus, com raio de leite de seus sagrados peitos, que lhe instilou na boca, o sarou em um instante. Uma mulher portuguesa, condenada à morte e enforcada em Lisboa, porque era devota do Rosário, o mesmo Rosário lhe trouxe a lua do céu àquele sítio, que tão indigno parecia de tão soberano planeta, e, aparecendo-lhe a Senhora na mesma forca, lhe sustentou a respiração e a vida por muitas horas, até que, levada à sepultura, se levantou dela, não ressuscitada, mas viva. Um religioso moço, tentado e resoluto a dei­xar o hábito, porque era devoto do Rosário, o mesmo Rosário lhe trouxe a lua do céu à cela, e, mostrando-se-lhe a Rainha dos anjos com um vestido meio bordado de Ave­Marias de ouro, lhe mandou que perseverasse até o acabar, e que então iria vestir o que também se lhe preparava na glória. Uma pastorinha pobre, estando já agonizante, por­ que era devota do Rosário, o mesmo Rosário lhe trouxe a lua do céu à sua choupana, e a mesma Mãe de Deus a assistiu até expirar, e, com um luzidíssimo acompanhamento de virgens e coros de anjos, lhe foi dar sepultura na mesma ermida onde rezava. Um moço francês, muito dado a outros vícios, mas casto, porque era devoto do Rosário, o mesmo Rosário lhe trouxe a lua do céu à casa no dia das bodas, as quais, porém, lhe impediu a Soberana Virgem, com um acidente mortal, dizendo-lhe que por casto o queria por esposo seu, e não de outrem. Finalmente, porque seria matéria infinita se a houvésse­mos de prosseguir, bastem os exemplos referidos em todo o gênero de pessoas, estados e perigos, para que conste quanto mais poderosos são os encantos verdadeiros do Rosário, que os fabulosos da arte mágica.

Mas porque os professores dela, para suas feitiçarias, não só se costumam valer dos despojos dos mortos, mas muito particularmente dos enforcados, como já em seu tempo notou Plínio, para que até esta propriedade não falte aos feitiços do Rosário, quero acabar com um sucesso, por todas suas circunstâncias tão maravilhoso como grande. No reino de Valença houve um fidalgo rico e moço, com que já está dito quais seriam os seus pensamentos. Deu em festejar com passeios públicos uma senhora casa­da, de igual ou maior qualidade, mas tão honesta como ilustre. Chegou a notícia ao marido, e não só para dissimular o seu agravo, mas para o vingar, com pretexto de passar os calores do estio no campo, se passou com toda a família a uma quinta. Anda­dos alguns dias, entrou em um aposento, onde estava só a mulher, deu volta à chave, e, tirando de um punhal, lhe mandou que escrevesse o que lhe ditasse. Respondeu a senho­ra, muito segura, que nem para a sua obediência eram necessários punhais, nem para a sua inocência havia temores. Escreveu, e o que continha o papel ditado, era estranhar ela ao fidalgo dos passeios o descuido de a não ver naquele retiro, avisando-o que, se era por falta de ocasião, naquela noite a tinham boa, por estar o marido ausente. Que fosse só, como o pedia o segredo, que acharia a porta do jardim aberta, e uma escada arrimada a uma janela; que subisse por ela, e seria bem recebido.

Mandada e entregue esta carta com as cautelas necessárias, já se vê qual seria o contentamento do moço, tão fácil de enganar, como cego. Deu o para­bém à sua fortuna, vestiu-se da melhor gala, e, tanto que foram horas, montando no cavalo de que mais se fiava, se pôs a caminho. Lembrou-se nele - que não foi pouco em tal ocasião - que ainda naquele dia não tinha rezado o Rosário, como costumava, e ao mesmo tempo em que o acabava de rezar, ouviu uma voz que lhe dizia: - Cavaleiro, pára. - Olhou, e, como não visse pessoa alguma, prosseguiu. E a voz outra vez: - Cavaleiro, pára, chega-te aqui. - Era este lugar da estrada junto à forca pública, donde, segundo as leis daquele reino, se não tiram os justiçados em todo um ano. E, parecendo-lhe, que dentro do cercado estaria quem lhe falava, apeou-se, tirou pela espada, entrou a reconhecer quem seria. Então lhe disse um dos enforcados que, por piedade cristã, lhe cortasse o baraço. Fê-lo assim, caiu o enforcado em pé, e, em agradecimento do benefício que tinha recebido, lhe pediu que o tomasse nas ancas, porque o havia de acompanhar naquela jornada. Resistiu o cavaleiro, respondendo que não podia ser, porquanto lhe importava ir só; mas foram tão vivas as razões que lhe deu o morto, que houve de condescender com elas, e foram ambos.

Chegados ao jardim, acharam a porta aberta e a escada arrimada, e, indo o fidalgo para subir, teve mão nele o enforcado. E, pedindo-lhe a capa e o chapéu: - Eu sou - disse - o primeiro que hei de provar esta aventura, para que se faça com toda a segurança. - Subiu, e não tinha bem entrado pela janela, quando se ouviu o ruído das armas, com que o marido e os criados o esperavam de mão posta, e foram tantas as estocadas com que o passaram de parte a parte, que como morto, e mais que morto, o lançaram pela mesma janela. Caiu outra vez em pé, e tornaram a montar ambos no mesmo cavalo. Desceram os de casa a enterrar secretamente o corpo, para que se não soubesse o caso e, como o não achassem, entenderam que não tinha vindo só, e que os criados o haviam retirado e, sem haver homicídio, se homiziaram todos. Quem viu ja­mais semelhantes encantos? Mas o morto, que caminhava nas ancas do vivo, lhe decla­rou quem era a encantadora e qual o instrumento.

Eu, senhor - disse o enforcado ao cavaleiro - sou, e estou tão morto, como vós havíeis de estar a esta hora, se a Mãe de Deus vos não livrara; e livrou-vos, porque todos os dias rezáveis o seu Rosário. Esta que em mim parece vida, e esta voz que ouvis, tudo é fantástico; por isso me não mataram, com tantas feridas e espadas, os inimigos que para a vossa morte estavam aparelhados. Se vós subíreis pela escada, vós havíeis de ser o morto, e não só no corpo, mas na alma, porque a porta que vos esperava aberta, não era a do jardim, senão a do inferno donde vos não podiam livrar os passos, e tensão que leváveis. Agradecei a vida e a salvação a quem a deveis, e a mim - porque já tinham chegado ao posto da forca - me restituí ao lugar donde me tirastes. - Com estas palavras nos ouvidos, e com esta declaração do que, sem o  entender, tinha visto, confuso e assombrado se retirou o fidalgo moço à sua casa, mas tão outro, e com tão diferente juízo, como se naquelas poucas horas se tiveram passa­do muitos anos. Deu tal volta à vida, que a todos e a si mesmo, mais parecia encanta­do que convertido. Os que o tinham conhecido escândalo da cidade, pasmavam de o ver o maior exemplo dela: os que imaginavam que o tinham morto, criam que ressuscitara, e ele, que só sabia o que passara, vendo-se com alma por meio de um cadáver, vivo por meio de um morto, e tirado do inferno por meio de um fantasma caído da forca e depois pendurado nela, tudo isto, que mais pareciam sonhos, julgava haverem sido encantamentos. E verdadeiramente assim eram, porque ele, por meio do Rosário, tinha encantado a Mãe de Deus, e a Senhora, pelo merecimento do mesmo Rosário, o tinha transformado e encantado a ele.

E haverá à vista de um tão prodigioso acontecimento, quem não exclame com as vozes do Evangelho: Beatus venter qui te portavit? Haverá, quem se não sinta enfeitiçado destes encantos da Senhora do Rosário? Os escribas e fariseus, que atribuíam o milagre à arte mágica, diziam que fora obrado: In Beelzebub principe daernoniorum. E se há tantos que se deixem enfeitiçar pelo príncipe dos demônios, não é melhor a cada um ser enfeitiçado da Rainha dos anjos? Desfazer uns feitiços com outros feitiços, posto que muitos juristas o tenham por lícito, é erro condenado e definido pelo Direito Canônico. Mas aquela alma, que tão enfeitiçada andava do amor profano, os feitiços do Rosário a desenfeitiçaram. Por isso S. João Damasceno em nome dos que assim andam, não a outrem, senão à Virgem Maria, pedia desenfei­tiçasse o seu coração: Cor meum malefico serpentes veneno inficionatum potenti pharmoco tuo conserva[64]. Isto é o que devem pedir à mesma Senhora todos os que se sentirem infeccionados do mesmo veneno, esperando da poderosíssima virtude dos seus encantos, que por eles serão livres, não só dos perigos da vida, mas restituídos do pecado à graça, e, perseverando na devoção do seu Rosário até a morte, tresladados à eternidade da glória. Amém.

FINIS

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que foste criado (Le. 11, 27).

[2] Minha é a vingança (Deut. 32, 35).

[3] A mim me pertence a vingança: eu retribuirei (Rom. 12, 19).

[4] Porque o Senhor é vingador forte (Jer. 51, 56).

[5] Homem glutão, e bebedor de vinho (Mt. 11,19).

[6] Ele expele os demônios em virtude de Belzebu, príncipe dos demônios (Lc. 11,15).

[7] Del Rio et alii.

[8] Êx. 7, 12; 8, 18 s.

[9] Nazianz. Orat. 18 in laudem S. Cypr.

- Advertat lector Cyprianum istum non esse illum Carthaginensem Episcopum, quamvis id ex falsa historia supponatur, sed magnum ejusdem nominis: Advirta o leitor que não se trata aqui de Cipriano, bispo de Cartago, como falsamente se supõe, mas de um mago de igual nome.

[10] I Rs. 16, 23.

[11] Velásquez in Maria Advocata nostra, lib. 4, adnote.

[12] Balaão, filho de Beor, o qual era um adivinho (Núm. 22, 5).

[13] Levanta-me aqui sete altares, e prepara outros tantos novilhos, e igual número de carneiros (Núm. 23,29).

[14] Primeiramente cinjo tua imagem com este tríplice fio de cores diversas, e o conduzo três vezes ao redor deste altar: o número ímpar é agradável à divindade (Virgilius, Eclog. 8).

[15] Primeiramente cinjo tua imagem com este tríplice fio de cores diversas, e o conduzo três vezes ao redor deste altar: o número ímpar é agradável à divindade (Virgilius, Eclog. 8).

[16] Gên. 3, 1 e seg.

[17] Que passeava pelo paraíso depois do meio-dia (Gên. 3, 8).

[18] E divertir-se-á a criança de peito sobre a toca da áspide (Is. 11, 8).

[19] Sairá uma vara do tronco de Jessé (Is. 11. 1).

[20] Como o da áspide surda, e que fecha os seus ouvidos, que não ouvirá a voz de encantadores, nem a de mago que encanta segundo a sua arte (SI. 57, 5 s).

[21] Homer Odyss. lib. 12.

[22] MI. 2, 1.

[23] E eu, quando for levantado da terra, todas as coisas atrairei a mim mesmo (Jo. 12, 32).

[24] E eu, quando for levantado da terra, todas as coisas atrairei a mim mesmo (Jo. 12, 32).

[25] Mi. 27, 45.51 ss

[26] Homer Odyss. lib. 10.

[27] 0 homem, quando estava na honra, foi comparado aos brutos irracionais, e se fez semelhante a eles (SI. 48, 13).

[28]  Dan. 4, 30 e seg.

[29] Plin. Secund. Histor. Mund. lib. 18, cap. 6.

[30] Histor Pontific. part. 1, c. 3. pág. 20. Textor in Of c. tom. 2, verti. Venefici, et verb. Magi.

[31] Leva-me tu: nós correremos após de ti ao cheiro dos teus bálsamos (Cânt. 1, 3).

[32]  Bernard. ibi.

[33] Já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus (Col. 3, 3).

[34] E conduzo a imagem três vezes ao redor deste altar (Virg. Eclog. 8).

[35] Criou Deus o homem à sua imagem e semelhança (Gên. 1, 27. 26).

[36] Aquele que não havia conhecido pecado, o fez pecado por nós (2 Cor. 5, 21).

[37] I Rs. 28, 11 e seg

[38] August. Epistol. ad Simpliciurn

[39] D.Thom. q. 170, 2.2.

[40]  0 qual é a imagem de Deus, e a figura da sua substância (2 Cor. 4, 4: Hebr. I, 3).

[41]  0 qual é a imagem de Deus, e a figura da sua substância (2 Cor. 4, 4: Hebr. I, 3).

[42]  0 qual é a imagem de Deus, e a figura da sua substância (2 Cor. 4, 4: Hebr. I, 3).

[43] Como ao mesmo fogo esta argila se endurece e esta cera se liquefaz, possa assim Dáfnis sentir nosso amor (Virg. Eclog. 8).

[44] Como ao mesmo fogo esta argila se endurece e esta cera se liquefaz, possa assim Dáfnis sentir nosso amor (Virg. Eclog. 8).

[45] Os que ele conheceu na sua presciência, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho (Rom. 8, 29).

[46]  Plinius lib. 28, cap. 3.

[47] Genebr. ibi.

[48] Não me peças que perdoe eu a este povo (Jer.14, 11).

[49] Gên. 19, 21; Jos. 7, 20; 1 Rs. 16, 1

[50] Mendonça ibi in annotat.

[51]  Ao ciente da linguagem mística (Is. 3, 3).

[52]  Ao ciente da linguagem mística (Is. 3, 3).

[53] Obedecendo o Senhor à voz de um homem (Jos. 10. 14).

[54]  Valle de Incant. et Ensalmis.

[55] Onde se acham dois ou três (Mt. 18, 20).

[56] Athanas. in Apolog. ad Imperar. Constantinum.

[57] Arca do concerto (Núm. 10, 33).

[58] Quando eu invocava me ouviu o Deus da minha justiça (SI. 4, 2).

[59]  Psellus in Catena PP. Graeeorum.

[60] Phillip. Labbe tom. 1 Bibliot.

[61] Os encantos são capazes de tirar a lua do céu (Virg. Eclog. 8).

[62]  Habacuc 3, 11 ex graeco.

[63] Apresentou-se a rainha à tua destra (SI. 44, 10).

[64]  Daniasc. in Moeneis, ode 3 et 4 de B. Virg.