Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Bedus ventei qui te portavit et ubera quae suxisti (Lc. 11). [1]

§1

O caso da donzela montanhesa estraçalhada pelos lobos, como o refere pelo Beato Alano de Rupe. Argumento do sermão: assim como a Virgem, Senhora nossa, supriu com a devoção do Rosário a falta do que tão necessário lhe era para esta vida e para a outra, assim supre e suprirá, em todos os que tiverem a mesma devoção, toda a falta do conveniente parti a vida temporal e eterna.

Este texto, tantas vezes repetido e por tantos modos ponderado, nunca teve mais alto e adequado intérprete que na ocasião presente. A oradora do Evangelho o formou antigamente com as palavras, e o mesmo texto se comenta hoje com as obras. Ela beatificou o ventre virginal e os sagrados peitos de Maria: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti (Lc. 11, 27) e o mesmo ventre e os mesmos peitos de Maria se canonizaram hoje pela virtude e milagres do seu Rosário, porque o ventre virginal supriu outro ventre, e os peitos sagrados supriram outros peitos.

É caso singular, e por todas suas circunstâncias admirável, o que agora direi, referido pelo Beato Alano de Rupe, no Livro do Nascimento do Saltério da, Virgem. Caminhavam por um deserto duas donzelas montanhesas, quando lhes saíram ao encontro dois lobos ferocíssimos e esfaimados, os quais repartiram entre si a presa inocente c sem defesa. Uma delas era devota do Rosário, que rezava todos os dias, a outra não. A esta se avançou um dos lobos, e lançando-lhe os dentes à garganta, a degolou, e caiu morta. O que sucedeu à outra, quero referir pelas palavras do mesmo autor, que são estas: Qua Rosarium Beatissimae Virginis recitare consueverat - mirares! - lupus ejus ubera abrumpit, ventrem discerpit, viscera voravit. Et adhuc triduo vixit, in quo syncere confitetur, devote communicat, fíducialiter .moritur. A Maria in extremis visitatur, et ad caelorum gaudia perducitur[2]. Quer dizer: À donzela, que rezava o Rosário arremeteu o outro lobo, arrancou-lhe os peitos, rasgou-lhe o ventre, e lhe comeu e devorou todas as entranhas. E morreu também esta logo, como a companheira? Assim havia de ser naturalmente. Mas, porque era devota do Rosário, a Virgem, Senhora nossa, sem coração, nem entranhas, a conservou viva três dias, nos quais se confessou muito devagar, e comungou devotamente, e no cabo deles visitou a mesma Senhora; e como se o lobo fora trano, e ela mártir, a levou direita ao céu. - Lembremo-nos agora daquelas palavras, que são o mais glorioso comento do nosso texto: Ejus ubera abrumpit, ventrem discerpit. E vendo a esta donzela sem peitos e sem ventre, viva contudo, quem haverá que não repita muitas vezes à soberana obradora de tão singular e estupendo prodígio: Beatus venterqui te portavit et ubera quae suxist? Bem-aventurado o Ventre virginal: Beatus verter- porque supriu o outro ventre: ventre discerpit: e bem-aventurados os peitos sagrados: Beata ubera - porque supriram os outros peitos: Ubera abrumpit.

Este, caso particular, como comento tão próprio do tema que propus, será o fundamento do meu discurso, o qual, porém, do particular se estenderá ao comum, para que sirva a todos. Veremos, pois, com a divina graça, que assim como a Virgem, Senhora nossa, em prêmio da devoção do Rosário, supriu nesta sua devota a falta do que tão necessário lhe era para esta vida e para a outra, assim supre e suprirá em todos os que tiverem a mesma devoção toda a falta do conveniente para a vida temporal, e toda a falta do importante para a eterna. Ave Maria.

II

A Virgem, Senhora nossa, poderosíssima remediadora nas necessidades materiais e espirituais. No caso em que Adão não pecara, se havia de encarnar o Filho de Deus? Se o mesmo Verbo se podia fazer homem sem ter Mãe, como Adão, por que ordenou Deus que nascesse de mulher? A salvação de Moisés das águas do Nilo. A providência de Maria nas bodas de Caná.

Que havia de ser deste miserável mundo, tão defeituoso e necessitado, depois que pelo pecado e corrupção do primeiro homem caiu da perfeição e abundância com que Deus o tinha criado e enriquecido, se a providência, e misericórdia divina o não provesse de um remédio igual à mesma necessidade, que fosse o suprimento universal de todas as nossas faltas? Este suprimento, devotos, é a Virgem poderosíssima, Senhora nossa, a qual não só desde seu nascimento, por inclinação e natural piedade, mas ab aeterno, desde sua predestinação e por força dela, foi escolhida e destinada por Deus para este gloriosíssimo fim. Perguntam os teólogos, no caso em que Adão não pecara, se havia de encarnar ou não o Filho de Deus? E a sentença bem fundada nos secretos do mesmo Deus, que ele nos revelou nas Sagradas Escrituras, é que seu Filho, o Verbo Eterno, no tal caso não havia de encarnar, e que por conseguinte não havia deter Mãe, nem havia de haver no mundo a Virgem Maria. Mas como Adão pecou, ou havia de pecar, representada na previsão da ciência divina aquela culpa, que justamente se chama feliz: O felix culpa - esta foi a razão e o motivo porque Deus predestinou a humanidade de seu Filho para que, como infinito reparador daquele pecado, desse justa e adequada satisfação à divindade ofendida.

Se o mesmo Verbo, porém, se podia fazer homem sem ter Mãe, como Adão, por que ordenou também Deus ab aeterno que nascesse de mulher, com segunda predestinação ou segunda parte dela, também não necessária, mas livre? A razão foi, dizem todos os santos, para que assim como uma mulher fora a que meteu no mundo a falta da obediência e da graça, assim fosse outra mulher o reparo e suprimento dela: a falta por Eva, o suprimento por Maria. De sorte que ab aeterno, e por força de sua própria predestinação, foi concebida, escolhida e destinada a Virgem, Senhora nossa, primeiro para reparar e suprir as faltas da primeira mãe no paraíso, e depois do gênero humano em todo o mundo. Tudo nos dirá a mesma Virgem, antes de seu nascimento, em figura, e depois de nascida, em pessoa.

Quem mais desamparado nesta vida, e mais falto de tudo o necessário para ela, que o menino Moisés, quando seus pais, não o podendo já escondera ira de Faraó, porque ele chorando se descobria, para o não afogarem com suas próprias mãos, o lançaram à corrente do rio em uma cestinha de juncos, que só tinha de barquinha o ser calafetada[3]. Faltavam-lhe ao menino no rio o pai e a mãe, que ficavam em terra; faltavam-lhe na barquinha os remos, e vela, e o piloto; faltava-lhe sobretudo o mantimento, despido já dos peitos que lhe davam leite; finalmente, faltava-se ele a si mesmo, porque não tinha braços para nadar, nem juízo para conhecer o seu perigo, nem voz para pedir o remédio. Assim ia navegando dentro de seu próprio naufrágio, amortalhado nas faixas e metido na cestinha de juncos o pequeno argonauta do Nilo, quando aparece na ribeira Maria, sua irmã, encaminhada pelos pais a explorar o sucesso. Oh! venturoso infante, no meio dessa que parece a tua maior desgraça! E Maria assiste a Moisés? Pois, ainda que falto de tudo, ela lhe suprira quanto lhe falta. Ninguém queira à barquinha melhor guia nem melhor piloto que os olhos que Maria leva postos nela. Bem mostrou aqui que já figurava no nome e nas ações aquela que depois se chamou Senhora da Guia e da Boa Viagem. Os olhos, pois, de Maria - que nesta ocasião verdadeiramente eram espias - contra a veia e força da corrente, foram alando a barquinha à praia, e tomou porto o menino, não menos que nos braços da princesa do Egito. Busca-se ama para lhe enxugar as lágrimas e lhe dar leite: oferece-se Maria para a ir buscar. E quem vos parece que traria? Só o engenho de que tinha tal nome podia dar em tal traça. A que trouxe para ama foi a mesma mãe de Moisés, à qual o entregou a princesa com grandes recomendações de que o criasse como filho, e com promessa real de que lhe seria mui bem pago aquele cuidado. Agora pergunto: se lhe falta já a Moisés alguma de tantas coisas quantas ainda agora lhe faltavam? Já tem mãe, já tem pai, já tem sustento, já tem terra, já tem vida, e já tem o que lhe não faltava, nem esperava ter, que é ser filho adotivo do mesmo rei do Egito, que o tinha mandado lançar aos crocodilos do Nilo. Assim sabe suprir Maria as faltas dos que se encomendam a ela, ainda que não sejam eles os que se encomendem. E que será se forem seus irmãos, como Maria era irmã de Moisés, e o são da Virgem Maria os irmãos do seu Rosário? Mas ainda lá não chegamos.

Passando ao Testamento Novo. Celebram-se em Caná de Galiléia umas bodas, e diz o evangelista que a Mãe de Jesus se achou ali: Et erat Mater Iesu ibi (Jo. 2, 1). Não faltará quem estranhe, ou quando menos se admire, de que a Virgem Maria se achasse ali, e assistisse a semelhantes convites e festas de bodas. Não como virgem, porque o estado virginal, posto que tão sublime, não despreza nem condena o do matrimônio, mas como Mãe do Salvador: Mater leso. Como Mãe do Salvador estava, e parecia muito bem a Senhora ao pé da Cruz: Stabat juxta crucem Iesu Mater ejus[4] - acompanhando seus desamparos, padecendo as mesmas dores, e cooperando à mesma redenção. Ali é que parecia muito bem a Mãe de Jesus. Mas em bodas e banquetes: Erat Mater Iesu ibi? Sim. Estava, e assistia ao banquete e as bodas, para suprir o que nelas faltasse, e onde há de haver falta, ali e que não pode faltar a Mãe de Jesus, e ali é que assiste: Erat Mater Iesu ibi. Cristo e seus discípulos, também se acharam nas mesmas bodas, mas nota o evangelista que vieram convidados: Vocatus est Jesus, et discipuli ejus[5]. Porém, da Senhora não se diz que a convidassem, porque ela mesma, e a sua providência, e a sua obrigação, a convidou e trouxe ali, para que se à pobreza ou negligência dos desposados faltasse alguma coisa, ela com sua caridade e advertência a suprisse. O efeito o mostrou, e assim foi suprido milagrosamente a falta que houve: Deficiente vino[6].

Mas ouçamos a réplica de Cristo, em que mais resplandece esta providência, e poderes da soberana Mãe. Representou a Senhora a seu filho, como Criador de todas as coisas, a falta que havia: Vinum non habent[7]; e o Senhor estranhando a proposta, respondeu: Quid mihi, et tibi? E que vos pertence a vós, nem a mim, na casa e na mesa alheia, o que falta? -Nondum venit hora mea (Jo. 1, 4): A minha hora de fazer milagres ainda não é chegada. - Mas nem por isso desistiu a Senhora de prosseguir o remédio daquela falta, dizendo aos que serviam que fizessem o que seu Filho lhes mandasse, como se lhe dissera a ele: Se a vossa hora de fazer milagres não é chegada, o meu cuidado e obrigação de suprir o que falta não tem horas: a mesma hora em que as coisas faltam, como agora, esta é a minha hora. - Mandou, em fim, o Senhor que as jarras, em que tinha faltado o vinho, se enchessem de água, a qual logo se converteu com abundância e melhoria no mesmo licor que faltava. Deste modo supriu a piedosíssima remediadora naquela falta, não uma só, senão muitas faltas, e faltas de muitos. Ao arquitriclino ou mordomo, supriu a falta da advertência, aos desposados a falta da prevenção, à mesa a falta de bebida, e até ao mesmo Cristo a falta da hora, fazendo que se antecipasse a que não era chegada. Finalmente, de todos os que estavam presentes, só a Senhora advertiu a falta, porque no mordomo era para se condenar, nos desposados para a sentir, convidados para a estranhar, e só na Senhora para a suprir.

§ III

Só quem bem compreender a anatomia do corpo humano poderá dignamente conhecer quantas maravilhasse encerram no caso referido pelo Beato Alano. A ressurreição dos ossos desconjuntados que viu Ezequiel no deserto, Para entrarem as almas nos corpos, não bastou que eles estivessem organizados, e com todas as disposições naturais para ser animados. Os privilégios da alma sem os instrumentos da vida.

Assim foi escolhida desde sua predestinação a Virgem Maria, e, assim é - propensa e aplicada desde seu nascimento, neste mundo tão defeituoso, a remediar e suprir todas as faltas que nele se padecem; mas muito mais depois da instituição do seu Rosário, em socorro e em prêmio dos devotos dele. Agora entra em seu próprio lugar a memória do prodigioso caso, que representei ao princípio, no qual não é fácil ponderar, nem ainda compreender, as muitas e várias faltas, e sobre dificultosas, implicadas, que a Senhora ali supriu, e por modo sobre toda a admiração admirável.

Supriu a vida na falta de todos os meios e instrumentos da mesma vida, e contra todas as disposições e causas da morte, fez que por aquela grande porta - que é pequeno o nome de ferida - se não saísse de repente a alma, mas ficasse ali detida. Só quem bem compreender a anatomia do corpo humano, a dependência e harmonia de todas as suas partes, e o artifício admirável, com que oculta e insensivelmente na oficina das nossas entranhas estão continuamente trabalhando os instrumentos que o sustentam - por onde disse Davi ao mesmo Artífice divino desta fábrica: Mirabilis jacta est scientia tua ex me[8].

Só quem tudo isto souber compreender e ponderar, poderá dignamente conhecer quantas maravilhas se encerram em se não separar a alma daquele corpo, tão desbaratado e vazio, e se conservar nele viva uma mulher, tendo-lhe arrancado e comido uma fera todo o interior das entranhas. Faltavam-lhe sem elas o sangue, faltavam-lhe as veias, faltavam-lhe as artérias, faltavam-lhe os espíritos animais e vitais, faltava-lhe sobretudo o coração, princípio e fonte da vida: e que neste estado vivesse, falasse, entendesse e exercitasse inteiramente todas as operações da vida sensitiva e racional, lembrando-se com a memória de seus pecados, arrependendo-se deles com a vontade, e confessando-os com a língua, e só não batendo nos peitos porque os não tinha? Oh! maravilha sobre todas as maravilhas, em que a Mãe do mesmo soberano Artífice parece que competiu com ele, e o venceu na mesma obra. Se víssemos que rotas as rodas de um relógio, caídos os pesos, e parado o movimento de todas as outras partes daquele abreviado labirinto, na campainha contudo soassem regularmente as horas, e o braço por fora as fosse apontando com o mesmo compasso e ordem, não seria um prodígio estupendo e jamais visto? Pois estes é o nosso caso. E tanto mais admirável e portentoso, quanto vai de um relógio artificial, que soube inventar a indústria dos homens, ao natural e sobre-humano, de que dependem as horas e anos de nossa vida, que só pode traçar a sabedoria e fabricar a onipotência de Deus.

E para que se veja quão notável maravilha foi que, não só descomposta, mas perdida toda a fábrica interior daquele corpo sem coração nem entranhas, a alma, contudo, o não deixasse, e continuasse a obrar na faltados mesmos instrumentos, o que fazia com eles, lembremo-nos dos ossos desconjuntados que viu Ezequiel em outro deserto. Chamou por eles o profeta, prometendo-lhes que lhes daria alma e viveriam: Ecce ego intromittam in vos spiritum, et vivetis[9]; mas essa alma, quando se introduziu neles, e quanto foi necessário, antes que chegassem a viver? Primeiro que tudo diz Ezequiel que os ossos se ajuntaram e uniram cada um em seu lugar, e à sua juntura; logo que se ataram entre si com os nervos; depois que se encheram de carne com todas as diferenças dela; ultimamente que se vestiram e cobriram de pele; porém que, com todas estas disposições da vida, ainda estavam mortos, e não se lhes tinha introduzido a alma: Accesserunt ossa ad assa, unumquo fique ad juncturam suam. Et vidi, et ecoe super ea nervi et carnes ascenderunt, et extenta est in eis cutis desuper, et spiritum non habebant[10]. Pois, se aqueles corpos estavam já organizados e perfeitos, e com todas as disposições necessárias para a introdução da alma, porque se lhes não introduziu logo, como o profeta tinha prometido: intromittam in vos spiritum, et vivetis[11]? Porque as disposições do corpo são obra das causas segundas, e a introdução da alma, como a sua criação, pertence só à primeira. Por isso mandou Deus segunda vez a Ezequiel que em seu nome mandasse as almas que se introduzissem naqueles corpos: Vaticinare ad spiritum, et dices: Haec dicit Dominus Deus: A quatuor ventis veni spiritus, et insufflla super inter festos istos. Et ingressus est in ea spiritus, et vixerunt[12].

De maneira que, para entrarem as almas nos corpos, não bastou que eles estivessem organizados, e com todas as disposições naturais para ser animados, mas foi necessário que, depois dessas disposições, Deus as criasse e unisse como ação e obra própria da sua onipotência. Onde se vê uma notável diferença, com que as almas entram ou saem dos corpos. Para entrar neles, não basta terem as disposições: para saírem, basta que lhes faltem. E a razão desta segunda parte é porque a alma se define: Actus corporis organici potentia vitam habentis[13]. E, faltando ao corpo a organização e instrumentos com que a alma exercita todas as suas operações vitais, natural e necessariamente deve deixar e apartar-se do mesmo corpo, porque, estando nele ociosa, não seria ato. Esta separação, pois, naturalmente necessária, é a que impediu no nosso caso a poderosa mão da Senhora do Rosário, detendo aquela alma, e mandando-lhe, que não desamparasse o corpo, posto que tão desbaratado, destituído, e falto de todas as disposições e instrumentos necessários às operações da mesma alma. E se me perguntarem curiosamente os filósofos se esta alma assim impedida e detida, ficou violentada, digo que não, antes mais privilegiada e enobrecida, pela mesma Senhora, que não sabe fazer mercês a uns com violência de outros. E ficou mais enobrecida e privilegiada, como digo, porque, obrando sem instrumentos, onde todos faltavam, o que as outras almas não podem sem eles, foi levantada a um grau quase divino, como Deus, que tudo o que obra juntamente com as causas segundas, pode obrar por si mesmo.

§IV

As finezas do suprimento jamais visto nem nas obras de Deus desde o princípio do mundo. Suprir a, falta de uma coisa com outra, e suprir a falta de uma coisa com a mesma falta. Na criação do mundo Deus supriu o nada com o mesmo mundo: no corpo desbaratado da donzela supriu a Senhora o mundo com o nada. É mais maravilhoso Deus na criação das coisas ou na conservação delas? O nada de que Deus criou o mundo, e o nada a que o mundo, depois de criado, propende por sua natural corruptibilidade.

O modo com que a Mãe do mesmo Deus supriu quanto faltava naquele corpo quase cadáver, mas verdadeiramente vivo,já disse que foi sobre toda a admiração admirável, porque não instituiu os peitos arrancados com outros peitos, nem o coração com outro coração, nem o ventre e entranhas com outras, mas com a mesma privação das coisas que lhe faltavam, ou com o nada delas supriu todas. É fineza de suprimento jamais visto nem nas obras do mesmo Deus, desde o princípio do mundo. Nos três primeiros dias da criação, porque ainda não havia sol, que foi criado ao quarto, supriu Deus a falta do sol com a luz, e ela fez os dias: Fiat lux, et fasta est lux. Appellavitque tercem diem[14]. Depois de criada Eva, faltava-lhe a Adão a costa, de que fora formada, e supriu Deus a falta da mesma costa com outra tanta carne: Replevit carnem pro ea[15]. Matou Caim a Abel, e supriu Deus à mãe a falta daquele filho com outro, chateado Set, como ela mesma disse: Posuit mihi Deus semen aliud pro Abel[16]Era tartamudo Moisés e impedido da língua, e supriu-lhe Deus a falta da língua com a boca e língua de Arão: lpse loquetur pio te ad populum, et erit os tuum[17]. No deserto faltou o pão ao povo, e supriu Deus com o maná; faltou a água, e supriu com uma fonte que os seguia; faltou a carne, e supriu-a com bandos de aves; faltou, finalmente, o mesmo Moisés, e supriu Deus a sua falta com Josué[18]. De sorte, que sempre Deus supriu a falta de uma coisa com outra: mas suprir a falta com a mesma falta, ou a coisa com a privação e o nada dela? Esta fineza de suprir guardou Deus para sua Mãe.

Na criação do mundo, criando-o Deus de nada (Gên. 1, 1), supriu o nada com o mesmo mundo; e naquele corpo humano - que também se chama mundo pequeno - tão desbaratado, supriu a Senhora o mundo com o nada. Mas este nada foi mais maravilhoso suprindo, que o da criação suprido. Excita S. João Crisóstomo uma questão, em matéria que parece a não tem, e pergunta se é Deus mais maravilhoso nas obras da criação ou da conservação? Todos dizem que a maravilha é igual, porque a obra ou a ação é a mesma. Porém, Crisóstomo, filosofando mais alto e sutilmente, diz que mais maravilhoso é Deus na conservação das coisas, do que foi na criação delas. E por quê? Porque o nada de que Deus criou o mundo não repugnava, nem resistiu à criação; porém, depois das coisas criadas, como elas são corruptíveis, e de sua natureza propendem e correm para o nada, este segundo nada repugna e resiste à conservação. As palavras de Crisóstomo, para os que as entendem são estas: Siquidem cadentia, et ad nihilum tendentia continet, non minus est continere mundum, quam fecisse. Sed si oportet aliquid, quod admireris, diceres, adhuc amplius est: naco in faciendo quidem ex nullis extantibus rerum essentiae productae sunt, in continendo vero quae facto suns, ne ad nihilum redeant, continentur. Haec ergo dum reguntur, et ad invicem compugnantia coaptantur, magnum, et valde mira bile, et plurimae virtutis indicium declarant[19]. De sorte que, como o nada de que Deus criou todas as coisas destes mundo, não repugnava nem resistiu à criação delas, e, pelo contrário, o nada a que elas depois de criadas, por sua natural corruptibilidade propendem, ajuda e chama a si a mesma corrupção, e deste modo resiste a que se sustentem e conservem, muito mais maravilhoso, e poderoso se mostra Deus hoje em fazer que não tornem a ser nada, do que se mostrou no princípio em as fazer e criar de nada. E qual destes nadas foi aquele com que a Senhora do Rosário supriu na sua devota a falta de todos os instrumentos de conservação e da vida? Não há dúvida que foi este segundo nada, e tanto mais admirável quanto as partes principais e mais vitais do mesmo corpo, não só não estavam já no estado da corruptibilidade, mas tinham passado ao da corrupção para que bastavam poucas horas, se a mesma Senhora a não impedira.

§v

Assim como a Senhora do Rosário fez esta tão notável mercê à sua devota, não era mais, fácil conservá-la totalmente sem dano, e não consentir que o lobo lhe tocasse? O caso dos dois estudantes de filosofia da Universidade de Lovaina, e da menina nobre salva das garras do leão.

Mas antes que concluamos este discurso e as maravilhas do caso, quero satisfazer a uma objeção, que há muito estou vendo têm todos no pensamento. Assim como a Senhora do Rosário, por virtude do mesmo Rosário, e em prêmio de o rezar todos os dias, fez esta tão notável mercê à sua devota, não era mais fácil conservá-la totalmente sem dano, e não consentir que o lobo lhe tocasse? Pois, por que permitiu que tão cruelmente a ferisse, espedaçasse e comesse? Se a que não rezava o Rosário, a matasse, como matou, um dos lobos, e à outra a venerassem ambos, e a deixassem livre e intacta, parece que então campeava com maior lustre e se manifestava melhor a virtude do Rosário, como a mesma Senhora tem feito outras vezes.

Dois estudantes de Filosofia na Universidade de Lovaina, companheiros e amigos, e nas inclinações viciosas - como ordinariamente sucede - muito semelhantes, tendo passado o dia em uma casa ou covil da sensualidade com todas as intemperanças da gula e da torpeza, continuavam também a noite. Soando, porém, as onze horas, um deles, que tinha por devoção rezar todos os dias o Rosário, lembrado que ainda não tinha satisfeito aquela obrigação, contra a vontade e instâncias do companheiro - o qual ficou, e o exortava a ficar - se despediu dele, e se recolheu à sua casa, onde se pôs a rezar, bem alheio do que no mesmo tempo sucedia. Não tinha bem acabado o Rosário, quando o mesmo companheiro, de que se apartara, lhe apareceu feio e medonho, ardendo todo em labaredas de fogo, e lhe disse que os pecados daquele dia tinham sido os que acabaram de encher a medida dos seus, e que por eles o condenara a justiça divina à morte repentina e ao inferno, onde já estava ardendo e arderia por toda a eternidade. -Pois se eu - replicou atônito o amigo - se eu vos acompanhei também nos mesmos pecados, como me não me condenou a mesma justiça?-Porque vós - respondeu - tivestes valedora, e eu não; e esse Rosário, que tendes nas mãos, e a Senhora dele, vos livrou, instando e alegando os demônios, também deveis ser condenado. Em suma, que aqui se cumpriu a predição de Cristo, Senhor nosso: Duo erunt in agro. unos assumetur, et alter relinquetur[20]. E assim como dos dois ladrões, que o mesmo Senhor no Calvário tinha aos lados da cruz, sendo ambos igualmente malfeitores, um porque orou e se encomendou a ele, se salvou, e o outro, porque não fez o mesmo, se perdeu (Lc. 23. 40 ss), assim sendo iguais nos pecados estes dois companheiros, o que era devoto do Rosário, e o antepôs à continuação do depravado apetite, escapou da morte e do inferno, e o outro morreu improvisamente e se condenou.

Poderá agora negar alguém que nesta mesma diferença se acreditou grandemente o Rosário à vista de dois efeitos tão encontrados, em sujeitos tão semelhantes, um livre e salvo, porque todos os dias oferecia este tributo à Mãe de Deus, e o outro condenado para sempre, porque a não servia com ele? Pois, do mesmo modo parece que se manifestaria mais a virtude desta soberana devoção, e a glória da mesma Senhora, se um dos lobos matasse, como matou, a montanhesa que não rezava o Rosário, e o outro se não atrevesse a tocar a que o rezava? Acrescento que também esta abstinência e respeito na fereza e voracidade do lobo, não seria o primeiro nem o maior exemplo do Rosário, quando no nosso caso se experimentasse assim. O que agora referirei é verdadeiramente singular, e por próprio da nossa corte, creio não será ingrato aos que o lerem. Caiu por desastre de uma janela do paço uma menina da rainha, e caiu para maior desgraça em um pátio, onde se guardava encerrado um leão, em cujas garras a lamentaram todos por morta quando escapasse da queda. Levava a menina o seu Rosário por gala - que eram os colares das senhoras naquele tempo - e também o rezava porque assim se ensinavam às filhas, e o faziam as damas. Acudiu logo o mestre da leoneira, e gente, e o que viram e ouviram foi que, tendo o leão arremetido à menina, ela lhe tinha lançado o seu Rosário ao pescoço, e correndo-lhe as mãozinhas pela gadelha, o estava afagando, como se fora uma cachorrinha de estrado e lhe dizia com muita graça: - Leão, não me comas, porque hei de ir ser freira a Castela, - O segundo autor desta história é o Padre João Antônio Velasquez, castelhano, e o primeiro o Padre João de Rho, milanês, ambos da Companhia de Jesus, e bem conhecidos por seus doutíssimos escritos[21]. Não apontam o tempo em que sucedeu, mas dizem que a menina de sangue ilustríssima se chamava Dona Ana de Almeida, e que em cumprimento do que tinha alegado ao leão, fora religiosa em Castela, correspondendo bem na santidade da vida ao milagre com que Deus lha tinha guardado. E se a virtude do Rosário pôde amansar a fereza e mitigar a voracidade de um leão, claro está que mais facilmente, e com menor força e violência, faria o mesmo em um lobo. Pois, por que razão a mesma Senhora do Rosário, que não faz exceção de idades nem qualidades, permitiu que o lobo executasse tal carniçaria nesta sua devota, e lhe comesse os peitos e o coração, e lhe devorasse as entranhas?

§ VI

Em que consistiu a glória do Filho de Deus na morte de Lázaro? A mesma razão que teve a glória do Filho de Deus no caso de Lázaro e a que teve a glória da Mãe de Deus no caso da donzela despedaçada pelo lobo. As chagas da sagrada humanidade de Cristo no céu. As duas extraordinárias comparações do ventre e dos peitos da Esposa dos Cantares e o milagre da pastora devota do Rosário.

Este mesmo argumento fizeram na morte de Lázaro os que conheceram quanto Cristo o amava, vendo-o chorar sobre a sua sepultura: Non poterat hic, qui aperuit oculos caeci nati, facere ut hic non moreretur (Jo. 11, 37)? Estes, que deu vista ao cego de seu nascimento, não podia fazer que Lázaro, a quem tanto amava, não morresse? Eles diziam assim, porque duvidaram do poder de Cristo, e nós, que conhecemos a sua onipotência sem limite de caso, nem tempo, ainda podemos apertar mais a dúvida ou a admiração. Eles diziam: por que lhe não impediu a morte? E eu dando um passo mais atrás, dissera: por que lhe não impediu a enfermidade? E já que permitiu a enfermidade, por que o não sarou antes que morresse? De tudo deu razão o mesmo Cristo, dizendo que o fim desta permissão não fora a morte de Lázaro senão a glória do Filho de Deus: Infirmitas haec non est ad mortem, sed ut florificetur Filius Dei per eam[22]. E em que consistiu esta glória do Filho de Deus? Consistiu em que maior e mais estupendo milagre foi ressuscitar a Lázaro morto, do que fora sará-lo enfermo. Distulit sanare, ut posset resuscitare - diz Santo Agostinho: - Não o quis sarar, para o poder ressuscitar. - De sorte que, podendo-lhe, impedir a morte com a vida, e a enfermidade com a saúde, não quis fazer o que podia, para mostrar quanto mais podia. E esta mesma razão que teve a glória do Filho de Deus no caso de Lázaro e a que teve a glória da Mãe de Deus no nosso. Não quis fazer o que podia, impedindo que a fera tocasse a devota do seu Rosário, para mostrar quanto mais podia, conservando-a viva sem coração nem entranhas: Ut glorificetur Mater Dei per eam[23].

Mas onde acharei eu um paralelo que me declare esta glória e acabe de ponderar a estranheza de tão estupenda maravilha? Daqui por diante é necessário subir ao céu, porque não há semelhanças na terra. Ressuscitou e subiu ao céu Cristo, Redentor nosso, e lá está com as chagas das mãos e pés, e com a do lado, abertas, e não só vivo, mas imortal. A chaga do lado era e é tão larga que coube por ela a mão de Tomé: Affer manum tuam, et mitte in latus meum[24] - e é tão profunda e penetrante, como dada para acabar de segurar a morte, em caso que no corpo verdadeiramente morto se escondessem ainda algumas relíquias da vida, Tendo pois bastado para lha tirar as quatro chagas dos pés e mãos, que agora com elas, e com a do lado, tanto maior, e em artes mais vitais, viva e se conserve imortal a sagrada humanidade, e assim ferida e aberta haja de viver sempre? Milagre é natural somente do céu, para admiração gloriosa e contemplação eterna dos remidos com o sangue das mesmas chagas. Mas, como estes sangue no mesmo instante divino foi recebido do ventre virginal de Maria, e nutrido e aumentado com o leite de seus sagrados peitos, coisa é, se por uma parte estupenda, por outra de nenhum modo admirável, que ao mesmo ventre virginal, e aos mesmos peitos sagrados comunicasse o mesmo sangue tal virtude, que na terra, que é a pátria da corrupção, a um corpo aberto com tantas chagas, e tão mortais, lhe pudessem conservar e suprir a vida, e não com outro suprimento - como se vê nas chagas de Cristo - senão a mesma Senhora por si mesma.

Este modo de suprir por si mesmo e consigo mesmo - para que subamos mais alto - não o faz, ainda no céu, a humanidade sacratíssima, senão a divindade do mesmo Deus. Quando nos pintam as felicidades do céu, ainda os autores canônicos, descrevem palácios, jardins, banquetes, galas, e todas as outras coisas preciosas e agradáveis, com que se deleitam os nossos sentidos e se ornam os nossos corpos na terra. E posto que muitos creiam que tudo isto há no céu, o mais certo é que são somente metáforas e semelhanças, acomodadas à medida da nossa curta capacidade, e que no céu não há nem fazem falta coisas tão baixas e rasteiras, e tão inferiores à alteza daquele sublimíssimo e incomparável estado. Que há logo no céu, e com que supre Deus, ou com que há de suprir aos nossos corpos tudo isto? Só S. Paulo, que o viu, o soube dizer: Ut sit Deus omnia in omnibus[25]: Tudo isto supre Deus em todos só por si mesmo, e só consigo mesmo. -- No céu não há faltas que suprir; mas, para que haja o que há na terra, e no céu não faz falta, tudo isso supre e substitui o mesmo Deus por si mesmo: Deus omnia in omnibus. Tal foi, em conclusão, o modo sobre todo o encarecimento admirável, com que a Mãe do mesmo Deus supriu no corpo da devota do seu Rosário, tudo o que lhe tinha roubado e comido a voracidade da fera. Lembremo-nos das palavras do Beato Alano. Rompeu-lhe o lobo o ventre: Ventrem discerpit - e por si mesma, e consigo mesma lhe supriu a Senhora esta falta porque o Ventre virginal lhe supriu o ventre: Beatus venter qui te portavit. - Arrancou-lhe o lobo os peitos: Ubera abrumpit - e por si mesma, e consigo mesma lhe supriu também esta falta porque os peitos sagrados lhe supriram os peitos: Beata ubera quae suxisti.

E para que ninguém duvide que estas maravilhas são singularmente próprias da Virgem Maria enquanto Senhora do Rosário, e pelos merecimentos do mesmo Rosário, o mesmo Filho, que trouxe no mesmo ventre e criou aos mesmos peitos, o celebrou e cantou assim na sua língua, que é a do texto hebreu. Falando Cristo do sagrado ventre de sua Mãe, diz: Venter tuus sicut acervus tritici, vallatus rosis[26]: e falando dos sagrados peitos, diz do mesmo modo: Ubera tua sicut duo hinnuli gemeli capreae qui pascuntur in rosis[27]. Logo iremos às rosas. Ponderemos primeiro as duas extraordinárias comparações do ventre e dos peitos, que como são bucólicas e pastoris, ambas são rústicas e do campo. O ventre diz que é como na eira o monte de trigo: Venter tuus sicut acervus tritici, A proporção que tem o trigo com o ventre é que aquele se ordena ao sustento deste: logo, se o ventre louvado é como o trigo: Sicut acervus tritici - é um ventre que sustenta outro ventre. E este foi o milagre do ventre virginal, que sustentou depois de ser comido o ventre da devota pastora. Os peitos diz que são como dois cabritinhos monteses gêmeos, que estão mamando: Sicut duo hinnuli gemeli qui pascuntur. Os peitos não são os que se sustentam do leite, senão os que sustentam com ele: logo, se os peitos são como os que os mamam: sicut hinnuli- são peitos que sustentam outros peitos. E estes foram os peitos sagrados que sustentaram os da mesma pastora, depois de serem pasto do lobo. Isto posto, agora entram as rosas. E por que diz o mesmo texto que as rosas são as que defendem o ventre: Vallatus rosis - e as rosas as que sustentam os peitos: Qui pascuntur in rosis? Porque o milagre do ventre e peitos da pastora - não eles sustentados nela, senão ela sustentada sem eles - tudo foi por milagre das rosas, que também em metáfora do campo, no nome e na virtude representavam o Rosário.

§ VII

Conto tudo supre a Senhora, assim no temporal como no espiritual, por meio do seu Rosário. A falta de riquezas e o borra uso delas. A falta de sucessão. Os perigos e riscos da vida. O pleiteante e as demandas. As casadas e o desprezo dos maridos.

Deste caso particular tão prodigioso, como de tronco, se seguem os frutos universais, que eu prometi colher dele, sendo certo, como agora veremos, que assim como a Virgem, Senhora nossa, em prêmio da devoção do Rosário, supriu nesta sua devota a falta de quanto lhe era necessário para esta vida e para a outra, assim suprirá em todos os que tiverem a mesma devoção, toda a falta do conveniente para a vida temporal e importante para a eterna. Vão agora todos e cada um representando o que lhe falta, ou pode faltar em um e outro gênero, e eu lhe mostrarei como tudo supre a Senhora por meio do seu Rosário.

Começando pelo temporal. Que vos falta? Falta-me o que supre todas as faltas, que é o dinheiro. Isto diz um pobre, e o podem dizer todos. Mas eu lhe digo que, se rezarem o Rosário todos os dias, a Mãe de Deus lhes suprirá esta falta tão abundantemente, que não só lhes não falte o que pedem no mesmo Rosário, que é o sustento de cada dia, mas tenham com que sustentar e remediar a muitos. Houve em diferentes tempos em França um homem nobre, e em Alemanha uma mulher de igual qualidade, os quais, tendo nascido muito bem herdados, vieram a cair em tão extrema pobreza, que viviam do que pediam de esmola. E como a miséria depois da felicidade é maior miséria, e há mister maior paciência, pregando por aquelas províncias o Beato Alano, a ambos receitou o seu remédio universal, que era a devoção do Rosário. O homem e a mulher o fizeram assim, e foi coisa maravilhosa, que dentro em pouco tempo, sem saber como nem por onde, se acharam com tanto cabedal de fazenda, que os que dantes pediam esmola, sustentavam com as suas a todos os pobres da terra em que viviam. E esta foi - notai - esta foi a segunda e maior mercê da Rainha dos Anjos, porque não só lhes deu as riquezas, senão o bom uso delas, sem o qual os maiores tesouros antes são castigo, que favor do céu.

Há mais a quem falte alguma coisa? Sim, e quem menos se cuida: os ricos. Eu, diz algum deles muito triste, tenho morgado, tenho herdades, tenho juros, tenho rendas, tenho comendas; mas que importam todos estes chamados bens da fortuna, se me falta a sucessão, e não tenho a quem os deixar? Acabar-se-á minha casa em mim, e ficará sepultada comigo. Bem parece que ou não sois devoto da Virgem Maria, ou não rezais o seu Rosário. Os primeiros ascendentes desta Senhora, que foram Abraão, Isac e Jacó, também não tinham filhos, e os alcançaram por orações. Rezai o Rosário, e Deus vo-los dará, tão próprios da sua mão, que vos não arrependais, como muitos, de os haver tido. Este mesmo conselho deu S. Domingos à Rainha de França, estando aquela coroa sem herdeiro, e a Senhora do Rosário lhe deu um tal filho, qual foi e é S. Luís. Pela mesma devoção alcançou outro filho uma senhora ilustre dos países de Holanda, o qual a liberalíssima Rainha do Céu lhe deu duas vezes, porque, sucedendo morrer em menor idade, assim como lho tinha dado nascido pelo Rosário, assim pelo mesmo Rosário lho tornou a dar ressuscitado.

Quem mais se queixa de lhe faltar o que há mister? Um soldado. E por que se queixa? Não por falta do socorro, farda ou pão de munição, que muitas vezes tarda ou não chega, mas pelos riscos da vida - diz ele - de que os soldados não temos um momento seguro e sem perigo. Alguns trazem consigo certas orações, falsamente acreditadas, as quais nem lhes valem contra os inimigos, nem com os mesmos cabos, a quem obedecemos: e se houvera outras, com que seguramente se suprisse esta falta, só então se pudera ser soldado. Ora, tende bom ânimo, que eu vos inculcarei quem só a pode suprir, e como. Rezai todos os dias o Rosário, e a Virgem, Senhora nossa, os livrará por meio dele de ambos esses perigos. Em Flandres, que na nossa era foi o teatro de morte mais sanguinolento, apertados muitas vezes poucos soldados católicos de um grande exército de hereges, o remédio de que se valeram foi rezarem todo o Rosário, o qual traziam a tiracolo por banda, como também a imagem da mesma Senhora pintada nas bandeiras, e com este estratagema do céu, não só se defenderam sempre vivos, mas nunca deixaram de sair vencedores. Isto quanto ao primeiro perigo, em que também se experimentou muitas vezes, que dando as balas nos peitos dos devotos do Rosário, se amassavam, como se fossem de cera. Mas, se a um soldado não basta só escapar dos inimigos, e talvez não periga menos nas severíssimas leis da própria milícia, também para estes casos, em que não aproveitam valias, a melhor apelação é para a do Rosário. Condenados à morte dois soldados, por quebrarem um bando do duque de Alba, o confessor, por ser tão inexorável o general, os desenganou que haviam de morrer sem dúvida, mas que se encomendassem à Senhora do Rosário. Um de bizarro ou obstinado, não quis; o outro, porém, se pôs a o rezar com a devoção e afetos que o aperto pedia. Saíram enfim ambos ao suplício, cada um em seu jumento, como se usa naquelas partes de Espanha - porque o exército marchava contra Navarra — e o sucesso foi que, passando os dois jumentos cercados de justiças e guardas por defronte de uma igreja, o que levava o soldado que tinha rezado, rompeu pelo meio de todos com tal fúria, que o não puderam deter, e entrando pela igreja, foi parar em uma capela da Senhora do Rosário, debaixo de cuja imunidade, não só ficou seguro, mas livre.

Ao soldado se segue bem o pleiteante - que também os pleitos são guerras - e que lhe falta? Ando - diz - arrastado com demandas, e não só me falta o favor, mas temo que também me falte a justiça, porque ambas estas coisas se vendem, e não tenho com que as comprar. Perigoso estado é esse, mas a Virgem, Senho ra nossa, costuma tomar a seu cargo os negócios de seus devotos. Rezai o seu Rosário, e, se tendes razão, não vos faltará justiça, porque o seu favor é tão superior a tudo, que nenhuma cobiça o pode perverter, nem alguma dependência estorvar. Nesse mesmo perigo se viu uma viúva, a quem por demanda pretendiam tirar o remédio. As partes eram ricas e poderosas, e ela, vendo-se só e desamparada, recorreu ao patrocínio da Mãe de Misericórdia, a quem rezava o Rosário todos os dias. Fez-se o feito concluso, e, vistos os autos com os olhos postos no poder e autoridade dos pleiteantes, e não no merecimento da causa, o juiz escreveu a sentença contra a viúva, e, subindo ao tribunal, também a pronunciou contra ela. Mas oh! maravilha da soberana mão, que tudo pode e nunca desampara a quem se vale do seu patrocínio! - as palavras, com que o juiz pronunciou a sentença, se lhe trocaram na boca de tal sorte que, imaginando que condenava a viúva, todos ouviram que condenou as partes contrárias, e indo-se reconhecer os autos, na sentença que ele escrevera com a mesma formalidade em que a quis pronunciar, se acharam também as letras trocadas, e a causa julgada a favor da devota do Rosário. Assim mudou a Mãe de Deus a língua e a pena do injusto juiz, o qual, posto que tão semelhante a Pilatos, nem pôde dizer quod scripsi, scripsi - nem quod dixi, dixi[28] - porque disse o contrário do que quis dizer, e se viu escrito o contrário do que escrevera.

Há alguma outra mulher queixosa da sua fortuna? Sim, e não viúva, mas casada. Queixa-se como honrada, não do seu estado, mas de lhe faltar o agrado de seu marido, o qual, divertido em outra parte, lhe não guarda a fé e lealdade devida. Grande dor, e verdadeiramente desesperada, pois o vínculo que havia de ser de união, se trocou em garrote da alma, e não o podendo desatar senão a morte, é o maior tormento da vida! Mas, se para abrandar essa dureza de vosso marido, lhe aplicardes o remédio do Rosário, vereis como Deus lhe muda o coração. Assim o aconselhou S. Domingos a uma senhora francesa, que com ser do sangue real, padecia esses mesmos desprezos. Só quinze dias havia - número sagrado nos mistérios do Rosário - que ela o rezava por esta tenção, quando o marido, dormindo, foi levado em visão ao inferno, e lá lhe foram mostradas as penas que lhe estavam aparelhadas e padecem os adúlteros. Eram uns leitos abrasados em fogo, e labaredas escuras, que exalavam de si uns vapores intoleráveis ao cheiro, e aqui jaziam os miseráveis, acompanhados de serpentes feias, asquerosas e medonhas, umas que lhes roíam os olhos, outras a língua, outras o coração, e todas enroscadas neles os cingiam e apertavam com tal excesso de dores que, lançando horrendas maldições sobre si, e sobre seus passados deleites, com gritos e alaridos desesperados atroavam todo o inferno. Isto viu o marido assombrado, atônito e tremendo. E a mulher, que viu? Viu de repente o mesmo marido prostrado a seus pés, pedindo-lhe perdão com infinitas lágrimas, e tão mudado e verdadeiramente arrependido, que ela enternecida se compadecia mais das suas contrições do que tinha sentido os seus pecados.

§ VIII

Outros exemplas: o homem do mar e o perigo dos mouros e das tempestades. O que, falta ao estudante: memória e habilidade. Os encarcerados e a falta de liberdade. Os enfermos e a falta de saúde.

Vou repetindo tantos exemplos, porque a variedade deles em todos os estados, e a maravilha com que a Virgem do Rosário acode a seus devotos, e lhes supre tudo aquilo de que se vêem faltos, creio que vos não causará fastio, e mais sendo tão necessários ao assunto que seguimos, que sem eles não se pode provar nem persuadir, Quem mais temos queixoso e desconsolado de sua vida? Ele o dirá. Sou um homem do mar, que agora vim de Argel, onde dei por meu resgate e perdi em uma viagem quanto tinha ganhado em muitas, que, como se diz entre nós, a água o dá e a água o leva. Nem posso deixar o ofício, porque não tenho outro, nem estes se pode aturar por falta de remédio a dois males, que o não têm. E quais são? Tempestades e mouros, porque os outros corsários se roubam, não cativam. Ora, sabei que não há mal sem remédio, e eu vos darei um para esses dois males, que é o Rosário, se fordes devoto dele. Quanto aos mouros, já tereis ouvido que, passando da África à contra-costa de Espanha, se emboscam ali para cativar os caminhantes. Fazia, pois, o mesmo caminho um religioso leigo, quando se viu cercado de uma tropa deles. E que faria? Tirou o seu Rosário, que todos os dias rezava, mostrou-lho, e como se de cada conta saísse um raio, subitamente ficaram todos cegos. Deu graças à Senhora, e rindo-se deles, continuou seu caminho. Contra as tempestades vos posso provar a mesma eficácia do Rosário com a própria experiência. Navegando eu do Maranhão para Portugal, se virou o navio de tal sorte, que a quilha ficou fora da água, e o resto dentro do mar até as escotilhas. Éramos quarenta e um os que nele vinham, e, passados todos ao costado, enquanto totalmente se não ia a pique, fizemos voto em voz alta de rezar todos os dias da vida o terço do Rosário - como tínhamos feito em toda a viagem - se a Senhora nos livrava das gargantas da morte, em que todos nos imaginávamos dentro de poucos instantes. Mas nem poucos se puderam contar, porque no mesmo ponto se tornou a voltar e endireitar o navio, e nós, como ressuscitados, tornamos a entrar nele. E porque não estava capaz de fazer viagem por falta de mastros e velas, apareceu logo outro, que nos tomou e lançou em terra. Nesta mesma carreira do Brasil caiu um marinheiro ao mar, a quem não puderam recolher os do navio. Era devoto do Rosário, encomendou-se à Senhora, e no cabo de quatro dias um grande peixe o trouxe a bordo sobre o espinhaço, e ele, subindo ao convés, com assombro de toda a companhia, tornou a encher o número e lugar em que tinha faltado. Maior maravilha ainda. O capitão Alano, famoso nas histórias do Rosário, de que era devotíssimo, indo-se ao fundo no meio do mar um navio, em que navegava, e afogando-se todos, só ele no mesmo lugar se achou em uma praia, e, caminhando por terra, a qual era desigual em pequenos outeiros e alguns montes, no fim deles advertiu - porque os ia contando - que os montes eram quinze e os outeiros cento e cinqüenta, porque do mesmo Rosário que rezava lhe tinha feito a Senhora sobre as ondas do mar uma ponte de terra firme.

E porque entre tanta variedade de estados e exercícios, se não queixem os professores das letras de os não metermos neste número, diga-nos um estudante o que lhe falta, que não é fácil confessar em gente desta profissão. Falta-me, pode dizer algum, a memória e a habilidade, e por mais que estudo e queimo as pestanas, não posso suprir estes dois defeitos. Tal era um sujeito, chamado Alberto, que depois foi tão insigne nas letras, que mereceu o nome de Magno, porque lhe supriu uma e outra falta a Virgem, Senhora nossa. Rezai-lhe vós o seu Rosário, e logo experimentareis o mesmo favor, como se viu com prodigioso exemplo em um menino sem estudo. Não tinha outra livraria mais que um livrinho do Rosário, o qual lia e meditava com grande aplicação todos os dias, e com esta só lição aprendeu e soube tanto que em todas as faculdades era consultado e ouvido com admiração de todos os homens mais doutos. Quomodo hic - diziam - litteras scit, cum non didicerit[29]? Mas se Deus ensinou quanto

to sabia em uma só palavra, que é o Verbo, que muito é que a Mãe de Deus ensinasse tanto nos quinze Mistérios do mesmo Verbo, que são outros tantos capítulos daquele livro? Outro estudante, a quem não faltava memória nem habilidade, era tão rude para a poesia, que não sabia ajuntar três sílabas que corressem em verso, mas, ensinado, não de seu mestre, senão de sua mãe, que rezasse o Rosário, ele lhe abriu a veia com tal fecundidade que não só excedeu logo a todos os condiscípulos com grandes vantagens, mas igualou os poetas de maior fama.

Há ainda quem padeça alguma falta que haja de suprir a soberana Mãe de Misericórdia? Ainda. Mas porque se não acham nem pode achar neste auditório, falará por interposta pessoa. Que vos falta? Falta-me a liberdade, porque estou preso. Não vos pergunto se estais inocente ou culpado, porque ainda não está averiguado na escola das dores se é maior a dor na culpa ou na inocência. De qualquer sorte, porém, que seja, sede devoto da Virgem, Senhora nossa, e tende confiança, que o seu Rosário vos desatará as prisões e vos porá em liberdade. Atado estava a uma forte corrente, com os pés metidos em grilhões e as mãos em algemas, esperando pela sentença, que o mesmo rigor da prisão prometia ser de morte, um homem verdadeiramente delinqüente, o qual melhor aconselhado para aquele transe, do que o tinha sido nos passos que a tal estado o trouxeram, fez voto à Virgem Maria, se o livrava, de rezar o seu Rosário todos os dias que lhe restassem de vida. Fulminou-se finalmente a sentença, e na noite da manhã em que havia de sair a ser justiçado, rotos milagrosamente todos os ferros que o prendiam, se achou fora do cárcere, e tão longe, que só deixou às justiças a admiração de quanto mais poderosas são as misericórdias da Senhora do Rosário. Mas não pararam aqui. Com este exemplo se começou a rezar o Rosário publicamente em todo o cárcere, e não se passaram muitos dias que todo ele - como o limbo dos padres no dia da Ressurreição - amanheceu vazio e despovoado, porque, abertas sem violência nem outra indústria as portas, todos se puseram em salvo.

Enfim, pois falamos dos ausentes, infinitos são aqueles a quem falta a saúde, que é o fundamento de todos os bens e gostos da vida. E se as enfermidades que, ou molestam a mesma saúde, ou a tiram totalmente, não têm número, também o não têm os milagres de cada dia, com que a Virgem, Senhora nossa, por meio do seu Rosário supre e restitui esta falta inteiramente. Se estais doente de febres, ou sejam crônicas ou agudas, ou sejam éticas ou tísicas, de todas sara a devoção do Rosário. Se padeceis nos olhos, nos ouvidos, na língua, muitos cegos, muitos surdos, muitos mudos recuperaram o uso destes sentidos pela mesma devoção. Ela é o mais presente remédio contra a pedra, contra a gota, contra a hidropisia, e contra a mesma peste geral, de que tem livrado cidades e reinos inteiros. Que direi de chagas encarceradas, de feridas penetrantes nas partes mais vitais, e de acidentes súbitos e apopléticos? Que direi de mancos, aleijados e tolhidos, sem movimento nem sentido, e totalmente baldados? Que direi dos energúmenos, aos quais não valeram medicamentos nem exorcismos, livres pela virtude deste soberano remédio, universal sem exceção? Até de doidice confirmada, de que os milagres de Cristo nos não deixaram exemplo, são muitos os que pela mesma virtude se têm restituído a perfeito juízo. Assim que não há falta alguma de quanto pertence a esta vida, ou sejam bens da natureza ou da fortuna, em qualquer estado, que a Senhora do Rosário por meio dele não supra, e remedeie tão liberal e misericordiosamente, como temos visto.

§ IX

Quão pontualmente supre a devoção do Rosário às necessidades da vida eterna. A resistência às tentações. A contrição e arrependimento no pecado. A graça de Deus e a perseverança final. A Virgem do Rosário e a pedra milagrosa do deserto.

Depois do que é conveniente e necessário à vida temporal, segue-se o que importa à eterna, que é a que só importa. Quatro coisas podem faltar a quem a deseja conseguir. Resistência contra as tentações, contrição para os pecados, graça e perseverança nela. E todas estas faltas, como da maior ou única importância, supre a Mãe da mesma graça pela devoção do seu Rosário.

Quanto à resistência das tentações, uma mulher, tão bem parecida como mal intencionada, tentou em México a um moço, o qual se rendeu facilmente a consentir na tentação. E saindo-se ambos, por conselho dela, a um lugar fora da cidade, acomodado à execução do que tinham concertado, a mulher lhe disse que primeiro havia de apartar de si um Rosário, que trazia ao pescoço debaixo do vestido. Admirado o moço de que ela visse o que trazia tão oculto, começou a suspeitar mal, tanto da vista, como da condição que lhe punha, e respondeu que por nenhum acontecimento, nem por todos os interesses do mundo apartaria de si o Rosário que todos os dias rezava à mãe de Deus. Tão fortemente tinha arraigada na alma a devoção o mesmo que tão facilmente se tinha rendido a consentir no pecado. E que fez a mulher, ouvida esta resistência? Subitamente deixou de parecer o que parecia, e se manifestou o que era, porque debaixo daquele disfarce era o demônio, o qual, transformado em um monstro de figura feiíssima e horrenda, lhe disse: - Esse Rosário te valha, e as muitas vezes que o tens rezado, porque se o apartaras de ti eu te havia de levar logo ao inferno. - Ficou o moço tão penetrado do que vira e ouvira, e tão desenganado e arrependido da fraqueza em que tinha caído, que por mais diligências que depois fez o demônio, representando-se-lhe em outras figuras, com que o importunava a pecar, invocando sempre o patrocínio da Senhora do Rosário, a nenhuma tentação se rendeu jamais.

Outro moço em Paris, tendo solicitado uma mulher casada, e não a podendo reduzir, se valeu para isso de uns nigromantes, os quais, e os demônios com eles, o ajudassem, A tanto chega a temeridade furiosa do amor cego. Mas aqui se mostrou o Rosário em dois diferentes casos singularmente maravilhosos. O primeiro foi que, não podendo os demônios vencer a mulher em todos os dias em que rezava o Rosário, fizeram tais perturbações na casa, que um dia o não pôde rezar, e logo se rendeu à tentação. O segundo que, rendida já, e saindo de noite a buscar o moço que a pretendia, a Senhora do Rosário tocou e trocou o coração do mesmo moço com uma inspiração tão eficaz, que, chegando a mulher à sua presença, o que lhe disse foi que fizesse o sinal da Cruz contra os demônios que a traziam enganada, e a acompanhou outra vez para sua casa, tão honrada como dela saíra, convertidos igualmente o tentador e a tentada.

Passando à segunda falta de contrição e arrependimento no pecado, não pode haver maior obstinação nele que a que agora direi. Andava muito triste um pobre homem, não por outra causa, senão por se ver pobre e sem remédio, quando o demônio, que o viu tão disposto, se lhe ofereceu para o remediar muito abundantemente, debaixo porém de três condições: primeira, que renunciasse o batismo; segunda, que arrenegasse de Deus; terceira, que lhe desse um escrito firmado com seu sangue de ser perpetuamente seu escravo. A todas estas condições tão horrendas se sujeitou o miserável, que tanto pode a força da necessidade em quem não põe a confiança em Deus. Assim passou muitos dias com a sua pobreza remediada, mas não por isso menos triste, porque os bens que dá o diabo, mal podem alegrar a quem se vê cativo deles e dele. Sucedeu, pois, que andando neste estado, entrou a outro fim em uma igreja, a tempo que se estava pregando do Rosário, por ser o dia da sua festa. Não era o sermão como os que ordinariamente se costumam ouvir naquele dia, empregada toda a retórica na descrição da rainha das flores e excelências da rosa, sem mais substância que a aparência da metáfora e o som do nome, mas era o discurso sólido e útil - como verdadeiramente devem ser - fundado na virtude e poderes da mesma devoção e seus mistérios, e tudo confirmado com exemplos autênticos e experimentados, que são os que só provam e persuadem. E como o pregador provasse com evidência que por meio do Rosário se convertem a Deus e Deus recebe em sua graça os pecadores, por mais perversos e obstinados que sejam, ficou persuadido o escravo do demônio, que sem embargo de o seu escrito estar firmado com o próprio sangue, o sangue de Cristo, que remiu o gênero humano do cativeiro do mesmo demônio, o livraria também a ele. No mesmo dia se resolveu a rezar o Rosário, tomando por advogada e intercessora a Virgem, Senhora nossa, e assim o fazia todos os dias com a maior devoção que lhe era possível. O demônio, porém, não se descuidava em procurar dissuadi-lo, zombando da sua nova esperança; e, quando estava rezando, lhe aparecia e lhe mostrava o escrito e a firma, dizendo que debalde se cansava, porque era seu, e o havia de ser sempre. Mas como podem prevalecer as astúcias da serpente infernal contra aquela Senhora, que a tem debaixo do pé e lhe quebrou sempre a cabeça? E que importa a fraqueza ou pertinácia dos pecados passados, se a verdadeira contrição e arrependimento os detesta e pede a Deus perdão deles? Assim se desfazia em lágrimas o escravo, não já do demônio, senão da Rainha dos Anjos, até que um dia, prostrado diante de uma imagem da Senhora do Rosário, lhe viu cair da mão um papel. Levantou-o, e pela letra e pela firma reconheceu que era o mesmo com que se tinha entregue ou vendido ao demônio. Mas não parou aqui a maravilha. Tornou a olhar, e não viu sinal de letra ou escritura, porque tudo estava apagado. E isto é o que pode e faz a virtude do Rosário, comunicando primeiro a verdadeira contrição, e por meio da contrição, apagando e aniquilando os pecados, como se nunca foram cometidos.

Não há perdão de pecados sem graça, cuja falta é a terceira, como dizíamos, e a principal e total, que só pode impedir a vida eterna. E, posto que para prova de quão pontualmente a supre a devoção do Rosário, bastava o sucesso referido, quero que ouçais outro, ainda por suas circunstâncias mais prodigioso. Havia em Itália um famoso salteador de caminhos, o qual não só despojava aos caminhantes, mas era tão bárbaro e cruel, que também lhes tirava a vida. Encontrou-se com este ladrão S. Domingos, e tendo empenhado com ele todo o seu zelo, espírito e eloqüência para o converter, não foi possível. Por fim lhe disse: - Ao menos vos peço me concedais e prometais uma só coisa muito fácil, que é rezar todos os dias o Rosário da Virgem, Senhora nossa. Aceitou ele, e rezava, mas sem nenhuma emenda na vida, continuando como dantes os mesmos roubos e insultos. Neste estado adoeceu mortalmente, sem ato algum de cristão, e os companheiros da sua quadrilha o enterraram junto a uma daquelas estradas, tão ímpia e brutalmente como tinha vivido. Dois anos havia que estava ali sepultado quando, tornando a passar pelo mesmo caminho S. Domingos, se ouviram umas vozes confusas e lastimosas, sem se ver donde saíam ou cujas eram, até que chegando ao mesmo lugar da sepultura, se conheceu distintamente que de dentro dela saíam. E o que diziam, era: - Padre frei Domingos, servo de Deus; compadecei-vos de mim. - Aberta a sepultura saiu de dentro, com todos os que acompanhavam o santo, um homem vivo. Perguntado quem era: - Eu sou - disse - padre, aquele grande ladrão, a quem procurastes persuadir que se convertesse, e não quis, e só aceitou de vossos conselhos o rezar o Rosário. Aqui me sepultaram vivo meus companheiros, tendo-me por morto por ocasião de um largo paracismo. Sepultado e coberto de terra, naturalmente havia de morrer logo e ir padecer no inferno as penas a que estava condenado por minha vida; porém, a soberana Virgem me alcançou de seu bendito Filho que não morresse, e que estes dois anos, em que padeci terribilíssimas penas, me servissem de purgatório. - Isto disse em público. E confessando-se logo ao mesmo santo de todos seus pecados, no ponto em que recebeu a absolvição, o corpo caiu morto e a alma com a graça do sacramento, que só lhe faltava, subiu a gozar da glória. Assim acabou santo o que tinha vivido ladrão. E tanto importa para conseguir a graça final a devoção do Rosário.

Só resta, para os que vivem bem, a perseverança, cuja falta supre a Mãe da mesma graça tão conaturalmente, que não são necessários exemplos onde não há milagre. Com ser regra geral que à boa vida responde a boa morte, e a má morte à má vida, é tal a inconstância e fraqueza humana, e tão superior o poder da graça divina, que também a generalidade desta regra padece as suas exceções. Dimas viveu mal, e morreu bem; Judas viveu bem, e morreu mal. Dimas viveu como ladrão, e morreu como apóstolo; Judas viveu como apóstolo, e morreu como ladrão. Mas, de quatro ladrões que concorreram na morte de Cristo, um se salvou e três se perderam, e de doze apóstolos que seguiram ao mesmo Cristo, um só se perdeu e onze se salvaram. Com tal diferença, porém, que se este mesmo que se perdeu recorresse à piedade da soberana Mãe do mesmo Filho, que tinha vendido, não só recuperaria a graça perdida, mas, depois de recuperada, perseveraria nela até o fim, como os demais. Isto, pois, que ele não soube fazer, é o meio que devem tomar todos os que, reconhecidos da sua fraqueza e inconstância, temem que, depois de alcançada a graça lhes falte a perseverança nela. Maravilhosa coisa foi que, caminhando os filhos de Israel quarenta anos por um deserto seco, estéril e falto de água, uma pedra do mesmo deserto lhes suprisse esta falta até entrarem na Terra de Promissão. E que água e que pedra do deserto é esta? A água disse Cristo a Samaritana que era a graça; a pedra do deserto diz o profeta Isaías, que é a Virgem Maria: Emitte agnum, Domine, dominatomem terrae, de petra deserti[30]. Se queremos, pois, chegar à Terra de Promissão da glória, e tememos que a água da graça perseverante nos falte, recorramos à fecundíssima pedra de que nasceu a fonte da mesma graça, e recorramos com firme e certa confiança, que assim como na pastora devota do Rosário supriu a mesma Senhora tudo o que lhe faltava para esta vida e para a outra, assim suprirá em nós, por meio do mesmo Rosário, tudo o que nos for conveniente para a vida temporal e necessário para a eterna, onde, com perpétuos louvores da Mãe e do Filho, lhe cantemos sem fim o que a voz do Evangelho entoou no princípio: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti[31]

              FINIS



[1] Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que foste criado (Lc. 11, 27).

[2] Beat. Alunas de Rupe.

[3] Êx. 2, 3 e seg.

[4] Estava em pé junto à cruz de Jesus sua Mãe (Jo. 19, 25).

[5] Foi convidado Jesus com seus discípulos (Jo. 2, 2).

[6] Faltando o vinho (ibid. 3).

[7] Não tem vinho (ibid. 3).

[8] Maravilhosa se tem feito a tua ciência em mim (SI. 138, 6).

[9] Eis aí vou eu introduzir em vos o espírito, e vós vivereis (Ez. 37, 5).

[10] Os ossos se chegaram uns para os outros, pondo-se cada um na sua juntura. E olhei, e eis que vieram sobre os tais ossos nervos e carnes para os revestir, e neles foi estendida a pele por cima, mas

eles ainda não tinham o espírito (Ez. 37, 7 s).

[11] Introduzirei em vós o espírito, e vós vivereis (Ez. 37, 5).

[12] Vaticina ao espírito, e dirás: Isto diz o Senhor Deus: Espírito, vem dos quatro ventos, e assopra sobre estes mortos. E entrou o espírito naqueles ossos, e viveram (Ez. 37, 9 s).

[13] Ato do corpo orgânico que tem a vida em potência (Arist. De Anima, lib., cap. 1).

[14] Faça-se a luz, e foi feita a luz. E chamou à luz dia (Gên. I, 3, 5).

[15] E encheu de carne o lugar (Gên. 2.21).

[16] O Senhor me deu outro filho em lugar de Abel (Gên. 4, 25).

[17] Ele ralará por ti ao povo, e será a tua boca (Êx. 4. 16).

[18] Ex. 16, 3, 15; Núm. 20, 2. 11; 1 Cor 10, 4; Núm. 11, 13.31 s; Jos. 1, 1 s.

[19] Chrysost. in cap. l ad Hebe: e. 3.

[20] De dois que estiverem no campo, uni será tomado, e deixado o outro (Lc. 17, 35).

[21] Velasquez, de Maria Advocata nostra, lib. 2 adnot. 20. Rho, lib. ear Hist. de Virtut.

[22] Esta enfermidade não se encaminha a morrer, mas para o Filho de Deus ser glorificado por ela (Jo. 11, 4).

[23] Para a Mãe de Deus ser glorificada por ela.

[24] Chega a tua mão, e mete-a no meu lado (Jo. 20, 27).

[25] Para que Deus seja tudo em todos ( I Cor. 15, 28).

[26] 0 teu ventre é como um monte de trigo cercado de rosas (Cânt. 7, 2).

[27] Os teus dois peitos são como dois cabritinhos gêmeos que pascem entre as rosas (Cânt.7,3 Text Hebr.).

[28]O que escrevi, escrevi (Jo. 19,22)

   O que disse, disse.

[29] Como sabe estas letras, não as tendo estudado (Jo. 7, 15).

[30] Envia, Senhor, o cordeiro dominador da terra, mandado da pedra do deserto (Is. 16,1).

[31] Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que fosse criado (Lc. 11,27)


 

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
 

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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão Vigésimo Sexto, de Padre António Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio