Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Beatus venter qui te portavit[1]

§1

Razões por que a eloqüente oradora do Evangelho, como inspirada do céu, não usou de outra palavra mais própria e mais decente que portavit. Por que não disse a mulher do Evangelho bem-aventurada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre? Argumento do sermão: assim como então a Senhora levou a Deus, e Deus se deixou levar da Senhora para onde ela queria, assim hoje no céu ela o leva, e ele se deixa levar para onde a mesma Senhora quer

Havendo ponderado por tantos modos, e tão vários, as poucas cláusulas deste brevíssimo Evangelho, ainda não fizemos particular advertência sobre a palavra portavit. Bem pudera a eloqüente oradora, como inspirada do céu, usar de outra, não só mais própria, mas ainda mais decente e decorosa. Porque a palavra portavit significa naturalmente levar com peso, e assim o experimentam todas as outras mães; à Mãe Virgem, como diz Santo Agostinho: Nulla poterat fieri gravedo parturienti[2]: De nenhum modo lhe podia ser pesado dentro em suas entranhas o filho que, sendo seu, era também de Deus. - Assim o ensina a razão, e o tinha já mostrado a experiência. A experiência, nos levitas que levavam a Arca do Testamento, os quais nenhum peso sentiam nela, porque era figura de Cristo[3]; a razão, porque os corpos em seu elemento não pesam, como se vê na água do mar, e o elemento de Deus é Maria. Tirado, pois, o peso à palavra portavit, só lhe fica à Mãe a significação de levar, e ao Filho, a de ser levado. Era levado o Filho, e a Mãe a que o levava: qui te portavit - e este movimento, só ativo na Mãe e só passivo no filho, é um grande e não advertido mistério, em que eu faço todo o meu reparo, e que só tem lugar no sagrado ventre, e só no tempo em que Cristo esteve encerrado nele.

Pergunta Hugo Cardeal: Por que não disse a mulher do Evangelho bem-aventurada a Mãe, senão bem-aventurado o ventre? Quare non dixit mulier illa: beata Mater quae te portavit, potius quam beatus venter? A razão e o mistério foi porque no nome da Mãe era muito menor o louvor, e muito menos o sentido da palavra portavit que no nome do ventre. A Virgem, Senhora nossa, tendo a Cristo dentro do sagrado ventre, ou fora dele, sempre era Mãe; mas levando-o dentro ou fora, como o levou em seus braços ao Egito, e pela mão ao Templo, era com grande diferença de levar a levar. Porque, sendo o filho levado dentro do ventre, não tinha outro movimento mais que o da Mãe; e sendo levado fora, ou mais ou menos crescido, sempre tinha o seu próprio movimento. Muito mais diz logo a palavra portavit junta com o beatus venter, que com o beata Mater, porque neste segundo caso não lhe estavam sujeitos todos os movimentos do Filho de Deus, e no primeiro sim. De Deus diz o apóstolo S. Paulo, por grande excelência, que nele somos, nele vivemos e nele nos movemos: In ipso enim vivimus, et movemur, et sumus (Act. 17, 28). E tal foi a excelência do ventre virginal em respeito do mesmo Deus, enquanto o concebeu e teve dentro em si, porque nele: in ipso - deu a Senhora ao mesmo Deus o ser: sumus - deu ao mesmo Deus a vida: vivimus - deu ao mesmo Deus o movimento: movemur.

Três jornadas maiores fez a Virgem Santíssima levando dentro em si a seu Filho: de Nazaré às montanhas, das montanhas a Nazaré, e de Nazaré a Belém. Mas, assim nas jornadas de mais tempo e de maior caminho, como nos passos domésticos e de cada dia, grande prerrogativa é da Virgem, que fosse tão Senhora de todos os movimentos do Filho de Deus, que ela o levasse e ele se deixasse levar sempre para onde a mesma Senhora queria: Qui te portavit. Arias Montano, em lugar de te portavit, translada do original te portans, reduzindo o tempo passado ao presente ou indefinito. E com este fundamento - ou também sem ele - questão é digna de se examinar e saber se este privilégio de levar a Senhora a seu Filho, e ele se deixar levar para onde a Mãe queria, acabou com os nove meses que viveu encerrado no sagrado ventre, ou se continuou e continua ainda hoje no céu, onde o Filho está à destra do Padre, e a Mãe à destra do Filho? O que determino ver se posso provar é que a palavra te portavit, que escolhi do Evangelho, não só se verificou daquele tempo, e na terra, senão que também hoje tem a mesma significação no céu. O argumento, pois, do meu discurso será este: que assim como então a Senhora levava a Deus, e Deus se deixava levar da Senhora para onde ela queria, assim hoje estando ambos no céu, ela o leva e ele se deixa levar para onde a mesma Senhora quer. E porque já se entende que isto há de ser em benefício e glória do seu Rosário, peçamos a graça. Ave Maria, etc.

§II

Significação do célebre trono portátil, chamado férculo, no qual Salomão costumava sair em público, quando se queria mostrar aos vassalos. As perfeições da Virgem Maria comparadas, não só ao melhor de todas as criaturas, senão ao melhor do melhor pela sabedoria do Eclesiástico. Por que aquela formosa e famosa fábrica de Salomão se chamou férculo, nome que só esta vez e só neste lugar se lê em toda a Escritura Sagrada. O ferculum dos Cânticos, e o portavit dos Evangelhos. Com que mistério deu Deus à congregação das águas o nome de Maria?

Beatus venter qui te portavit.

Entre as famosas fábricas de Salomão, é célebre um trono portátil, chamado férculo, no qual o grande monarca costumava sair em público, quando se queria mostrar aos vassalos, com toda a ostentação de pompa e majestade. A matéria desta fábrica era dos cedros do Líbano: tinha colunas que eram de prata, sobre as colunas dossel que era de púrpura, e no espaldar cadeira, que era de ouro: Ferculum fecit sibi rex Salomon de lignis Libani: columnas ejus fecit argenteas, reclinatorium aureum, ascensum - hoc est, velamen -purpureum[4]. Assim lemos no terceiro capítulo dos Cânticos. E porque naquele livro enigmático todo o material é metafórico e todo o literal místico, para inteligência do mistério que encerram as palavras referidas é necessário saber duas coisas: primeira, qual era a significação daquela fábrica: segunda, por que se chamava férculo.

Quanto à significação da fábrica, assim como Salomão significava a Cristo, assim a fábrica significava a Virgem, Senhora nossa, Mãe do mesmo Cristo, a qual ele fez e criou, dotada de todas as perfeições, como quem a fazia para si e para Mãe sua. Este é o sentido comum de todos os intérpretes[5], o qual eles explicam e aplicam por diferentes alegorias, mas eu o provo das partes da mesma fábrica, e argumento assim: a matéria de toda ela era o cedro do Líbano, que é o melhor de todos os lenhos; a do dossel, era a púrpura, que é a melhor de todas as lãs e de todas as cores; a das colunas e da cadeira, era a prata e o ouro, que são os melhores de todos os metais: logo, o todo composto destas partes não significava nem podia significar a outrem, senão a Virgem Maria, porque nela unicamente ajuntou o supremo Artífice, não só o melhor de todas as criaturas, senão o melhor do melhor. A mesma Senhora o disse assim, não por si mesma, como tão humilde, mas por outra boca inspirada pelo Espírito Santo, com autoridade de fé.

Quasi cedrus exaltata sum in Libano, et quasi cypressus in monte Sion; quasi palma exaltata sum in Cades, et quasi plantatio rosae in Jerico. Quasi oliva speciosa in campis, et quasi platanus exaltara sum juva aquam in plateis[6]. Compara-se aqui a Senhora às árvores e plantas mais insignes e mais bem dotadas da natureza: ao cedro, ao cipreste, à palma à rosa, à oliveira, ao plátano, mas é muito de notar que a todos estes nomes comuns acrescenta, como por sobrenomes, as terras, ou sítios de que era ou havia de ser cada uma. Ao cedro, sim, mas não a qualquer cedro, senão ao do Monte Líbano; ao cipreste, sim, mas não a qualquer cipreste, senão ao do Monte Sião: e por este modo às demais árvores. Pois, se estas árvores e plantas, como dizíamos, eram as mais insignes e estimadas, e as melhores que criou a natureza, por que razão lhes acrescenta a Senhora, dentro na própria espécie, aquela diferença ou preferência com que as distingue e singulariza das outras? Porque, ainda que pela primeira diferença eram as melhores entre todas as árvores, pela segunda eram as melhores entre todas as melhores. O cedro, pelo incorruptível e odorífero, era o melhor entre todos os lenhos cheirosos, e que preservam da corrupção, mas o cedro do Líbano melhor que todos os cedros: Quasi cedrus exaltara sum in Libano. O cipreste, por ser uma pirâmide verde que sobe direita ao céu, era melhor que todas as árvores consagradas ao culto divino, mas o cipreste do Monte Sião melhor que todos os ciprestes: Et quasi cypressus in monte Sion. A palma, pela prerrogativa triunfal de seus ramos, era melhor que todas as outras, de que se tecem coroas aos vencedores, mas a palma de Cades melhor que todas as palmas: Quasi palma exaltara sum in Cades. A rosa, como rainha, sem controvérsia era. a melhor de todas as flores, mas a rosa de Jericó melhor que todas as rosas: Quasi plantatio rosae in Jericho. A oliveira, pingue e doce, era melhor que todas as que se destilam em óleos, mas a oliveira, não do monte, senão dos campos, melhor que todas as oliveiras: Quasi oliva speciosa in campis. Finalmente, o plátano copado e fresco, era melhor que todas as que fazem sombra e defendem do calor do sol, mas o plátano plantado nas estradas e junto à corrente das águas, era melhor que todos os plátanos: Quasi platanus exaltata sum juxta aquam in plateis. E como as perfeições da Virgem Maria,_ não só são comparadas ao melhor de todas as criaturas, senão ao melhor do melhor, por isso no cedro, na púrpura, na prata e no ouro, que eram as partes de que se compunha o férculo de Salomão, não podia ser significada outra, senão a Mãe do verdadeiro Salomão, a mesma Virgem Maria.

Declarada a significação daquela famosa e formosa fábrica do rei mais poderoso e mais sábio, saibamos agora por que razão ele lhe chamou férculo, nome que só esta vez, e só neste lugar, se lê em toda a Escritura Sagrada. Todos os autores, latinos, gregos e hebraicos, derivam a palavra ferculum do verbo fero, que significa levar. E não lhe chamou Salomão ou carroça, ou liteira, ou andor, senão férculo, para que não só o efeito, senão o mesmo nome, mostrasse que o intento com que fora fabricado era para o férculo o levar, e ele ser levado, que não tem outra diferença a singularidade do nome. Ajuntando, pois, a propriedade desta significação com a significação da mesma fábrica, que outra coisa vem a ser a palavra ferculum dos Cânticos e á palavra portavit do Evangelho, senão dois admiráveis sinônimos, com que Salomão profetizou no ferculum o sentido do portavit, e o Evangelho declarou no portavit o mistério e sentido do ferculum? O sentido do portavit, enquanto Cristo esteve encerrado no sagrado ventre: Beatus venter qui te portavit - era - como vimos - para que o movimento ativo, e o levar, pertencesse só à Mãe, e o movimento passivo, e o ser levado, ao Filho; e o mesmo sentido e mistério, como diz Alberto Magno, é o do férculo: Per ferculum signatur uterus virginalis, guia ferculum dicitur quasi vehiculum a fero fers. Salomon ergo, scilicet Christus, fecit, idest, praeparavit sibi, idest, ad honorem suam, ferculum, idest, Beatae Vrginis uterum[7]. E para que não pareça coisa nova, ou menos decente, em Cristo o ser levado, sendo Deus, tão antigo é no mesmo Deus o ser levado, como o haver de ter Mãe que se chamasse Maria.

No princípio da criação do mundo, diz o texto sagrado que o Espírito de Deus era levado sobre as águas: Spiritus Dei ferebatur super aquas (Gên. 1, 2) - e logo diz mais que à congregação das águas deu o mesmo Deus por nome maria[8]: Congregationes aquarum appellavit maria (Gên. 1, 10). E com que mistério este nome? Com mistério e significação, diz Santo Antonino, que aquela puríssima e imensa criatura, em que Deus congregasse e ajuntasse todas as graças, se havia de chamar Maria: Congregatione aquarum appellavit maria: congregationes gratiarum appellavit Maria[9]. Mas nas mesmas palavras do texto Spiritus Dei ferebatur super aquas - da palavra spiritus, e da palavra ferebatur, e da palavra aquas parece que resulta uma implicação manifesta contra a ordem da mesma natureza, que então nascia porque spiritus, na significação natural, quer dizer vento, e as águas naturalmente são levadas do vento, e não o vento levado das águas. Como diz logo o texto que o espírito de Deus era o levado das águas: Ferebatur super aquas? - Porque as águas, como acabamos de dizer, significavam o mar das graças, Maria, e não em outro estado ou tempo - como notou Santo Ambrósio - senão no mistério da Encarnação, do qual disse o anjo: Spiritus Sanctus superveniet in te[10]. E como então é que Deus entrou no ventre virginal da Senhora, desde então, no mesmo sagrado ventre, começou a ser próprio da mesma Senhora o levar a Deus, e próprio do mesmo Filho Deus o ser levado: Qui te portavit.

§III

O privilégio dos virgens na visão de S. João. Se é grande louvor das virgens dizer-se delas que no céu seguem o Cordeiro para qualquer parte que vai, qual será o louvor da Virgem das Virgens, a qual no céu não só segue o Cordeiro, mas o Cordeiro a segue a ela? A notável resposta do Filho à Mãe que o procura no Cântico dos Cânticos. A mulher vestida de sol no Apocalipse, e o Cordeiro vestido da tela das entranhas virginais de Maria.

Isto é o que passou na terra em todo aquele tempo em que o Filho de Deus esteve encerrado no claustro virginal do ventre sacratíssimo, sendo a soberana Mãe a que o levava, e ele o que era levado a qualquer parte onde ambos iam. E, posto que o mesmo Senhor, desde o instante de sua conceição, não teve as potências da alma impedidas, como os outros recém-gerados. Senão perfeitissimamente livres, nunca, porém, quis usar da própria vontade, sujeito em tudo à da Mãe, sendo ele o que era levado, e a Senhora a que o levava para onde queria. Mas, porque o argumento que eu propus, e desejo provar, é que estes mesmos poderes ou privilégios tem e goza a Virgem Maria no céu, e que assim como nos nove que teve a Deus dentro em si, o levava cá na terra para onde queria, assim o leva hoje no céu para onde quer. Esta é a grande dificuldade desta nova e inaudita proposição.

Deixando pois a terra, e pondo-nos no céu, diga-nos S. João o que lá viu em uma das revelações do seu Apocalipse. Chama ele ao céu Monte de Sião - conforme a frase de Davi: Vìdebitur Deus deorum in Sion[11] - porque só no céu se vê a Deus - e diz que viu no céu um grande número de bem-aventurados, os quais tinham escrito na testa o nome do Cordeiro, que é Cristo, e todos lhe cantavam uma letra que nenhum outro podia cantar. E, declarando quem fossem estes, e que privilégio particular tinham entre os demais, diz que eram os virgens, e que só eles seguiam o Cordeiro para qualquer parte que ia: Virgines enim sunt. Hi sequuntur Agnum quocumque ierit[12]. Entra agora S. Bernardo, e, comparando as outras virgens com a Virgem das Virgens, dá-nos ocasião para duvidar com grande fundamento se a Virgem das Virgens no céu tem este mesmo privilégio das outras virgens, ou outro maior. Ter o mesmo somente, é pouco: ter outro maior, é muito devido; mas qual é, ou pode ser? O mesmo santo o resolve por estas excelentes palavras: In laudibus Virginum singulariter canitur quod sequuntur Agnum quocumque ierit: quibus vero laudibus dignam judicas, quae etiam praeit[13]? Se é grande louvor das virgens dizer-se delas que no céu seguem o Cordeiro para qualquer parte que vai, qual será o louvor da Virgem das Virgens, a qual no céu não só segue o Cordeiro, mas o Cordeiro a segue a ela? - Não se podia dizer mais nem melhor. De sorte que ase outras virgens no céu seguem o Cordeiro para onde vai o Cordeiro, mas a Virgem das Virgens no mesmo céu, não só segue o Cordeiro para onde vai o Cordeiro, mas o Cordeiro é o que segue a Virgem para onde vai a Virgem: Quae etiam praeit. Ela é a que vai diante, e o Cordeiro o que segue.

Mas porque não basta que um privilégio tão singular se funde só na autoridade de S. Bernardo, ouçamo-lo da boca do mesmo Cordeiro no céu. Fala com ele a mesma Mãe em figura de pastora na parábola dos Cânticos, e diz assim: Indica mihi, quem diligit anima meu, ubi pascas, ubi cubes in meridie (Cânt. 1, 6): Dizeime, Amado meu, onde apascentais vossas ovelhas, e descansais ao meio-dia? - O meio-dia, como diz Santo Agostinho, e todos os padres, significa o tempo sem tempo da eternidade da glória, onde Deus, não já em sombras, como nesta vida, mas claramente, e com todos os resplendores da divindade, se mostra aos bem-aventurados, deixando-se ver como é em si mesmo, e com esta mesma vista apascenta todos aqueles que, como ovelhas da mão direita, predestinou para o descanso do céu. Destes tempo, e deste lugar, fala a pergunta da Mãe, à qual responde o Filho, e a resposta, tão notável como sua, foi esta: Si ignoras te, abi post vestigia gregum tuorum (Cânt. 1, 8): Se ignorais, ou não sabeis de vós, segui as pisadas do vosso rebanho. - Com razão chamei notável a esta resposta. Mas examinemos primeiro a pergunta, que também tem dificuldade naquele ubi duas vezes repetido. Deus não tem ubi, ao menos duvidoso, porque sua imensidade, nem muda, nem pode mudar lugar. Pois, se não muda nem pode mudar lugar, nem há ubi, ou onde, onde no-lo esteja, como lhe pergunta a Senhora: Ubi pascas, ubi cubes[14]? Daqui se vê claramente que não fala com Deus enquanto Deus, senão com Cristo enquanto homem. Porque Cristo no céu, sem deixar a destra do Padre, pode mudar e muda lugares, que por isso se diz do Cordeiro: quocumque ierit: para qualquer parte que vá. - Pois, se o Cordeiro no céu muda lugares, e a Mãe lhe pergunta aonde está, por que lhe responde ele: Si ignoras te - quando parece que havia de dizer: Si ignoras me? Mas respondeu assim discretissimamente, como se dissera: - Se eu no céu, Mãe minha, vos sigo sempre, e não vou senão para onde vós me levais, perguntares-me agora aonde estou, mais é não saber de vós que não saber de mim: Si ignoras te. E se quereis saber por outra via o que me perguntais: Abi post vestigia gregum tuorum: Segui as pisadas do vosso rebanho, e logo o sabereis. - Mas pelas pisadas do seu rebanho, de que modo? Porque, assim como o rebanho segue a pastora, assim o cordeiro segue a Mãe, e como vós souberdes onde está a Mãe, logo sabereis onde está o Cordeiro. Tão certo é que não dá passo o Cordeiro, senão para onde é levado de sua Mãe, e isto não na terra, senão no céu: In meridie. Vede como se correspondem bem o meio-dia da glória com a manhã da Encarnação. No primeiro horizonte da vida, quando Deus se vestiu de encarnado na guarda-roupa do ventre puríssimo, a aurora não seguia ao sol, senão o sol a aurora? Pois, assim como cá o sol seguia a aurora, assim lá o Cordeiro segue a Mãe: Quae etiam praeit.

E para que se veja que nesta confirmação das palavras de S. Bernardo me não aparto do seu pensamento, tornemos a ouvir ao mesmo S. Bernardo sobre o mesmo S. João no mesmo Apocalipse. Signum magnum apparuit in caelo: Mulier amicta sole (Apc. 12, 1). Bem conhecido é o texto: Apareceu no céu um sinal maravilhoso, e nunca visto: uma mulher vestida do sol. - O sol é Cristo, a mulher é a Virgem Maria, Senhora Nossa; e por isso mesmo parece que não havia de estar a mulher vestida do sol, senão o sol vestido da mulher. É instância bem argüida do grande comentador do Apocalipse, Ansberto: Fortasse magis consequens fuisset dicere, non quod Mulier fuisset circumdata Sole, sed quod circumdedisset potius solem in utero inclusum: Quando a Senhora trouxe a Deus no sagrado ventre, então o vestiu da tela de suas próprias entranhas, dando-lhe a humanidade: logo, o sol é o que havia de estar vestido da mulher, e não a mulher vestida do sol. - Antes, por isso mesmo, replica S. Bernardo: porque agora o sol e a mulher estavam no céu: Signum magnum apparuit in caelo. E esta foi ajusta e condigna remuneração, com que o Filho quis pagar à Mãe, no céu, o que dela tinha recebido na terra: Et vestis eum, et vestiris ab eo: vestis eum substantia carnis, et vestit ille te gloria suae majestatis[15] Porque a mulher vestiu ao sol na terra, por isso o sol veste a mulher no céu: ela na terra vestiu-o com a substância da humanidade, e ele no céu veste-a com a glória da sua própria majestade. - E isto é confirmar S. Bernardo o seu pensamento, de que o Cordeiro seguia a sua Mãe para qualquer parte que fosse: quocumque ierit? Sim. Porque, assim como a Virgem na terra levava a Deus para onde queria, porque o tinha dentro do sagrado ventre, assim agora que Deus está fora dele no céu, quer o Senhor que o leve também para onde quiser, e para isso a vestiu de si mesmo. O vestido não tem outro movimento, senão o da pessoa a quem veste; e como Deus veste no céu a Mãe que o vestiu na terra, assim como na terra seguia os seus movimentos, porque o tinha dentro em si, assim não pode deixar de os seguir também no céu, porque está vestida dele: amicta sole. E a razão desta justa e recíproca recompensa, é porque não fora a paga igual à dívida, se o privilégio que a Senhora tinha na terra, levando a Deus, para onde queria, o não tivesse igualmente no céu, deixandose Deus também levar para onde a Senhora quisesse. Na terra, onde ela o vestiu, levado pela natureza da maternidade, e no céu, onde ele a veste, também levado pela glória da majestade: Vestis eum substantia carpis, et vestit ille te gloria suae majestatis. E, se queremos exemplo mais claro e mais breve, Deus não só era levado na Arca e da Arca, na peregrinação do deserto, senão também na Terra de Promissão. E por quê? Porque o deserto significa este mundo, a Terra de Promissão o céu, e a Arca a Virgem Maria: e Maria não só neste mundo levou a Deus, senão também no céu o leva, e ele é levado: Qui te portavit.

§ IV

As razões dessa voluntária sujeição de Deus: o amor, a obediência e a força. O amor da Esposa. A amorosa troca dos corações do Esposo dos Cânticos. A vontade da esposa, figurada em Rebeca, e a vontade do esposo, figurada em Isac. Quando se celebraram esses desponsórios divinos? As razões por que Deus, tendo decretado de unir a si a natureza humana, e, podendo-a tomar doutro modo e doutra parte, a tomou das entranhas da Virgem Maria.

Temos provado em geral o nosso assunto. E para que se entenda o modo com que Deus no mesmo céu, que é o trono da sua grandeza e majestade, se sujeita a ser levado de uma criatura sua, posto que a maior de todas, para onde ela quer ou quiser, desçamos em particular às razões desta voluntária sujeição, que não podem deixar de ser grandes. Digo, pois, que leva a Virgem Maria a Deus, e Deus se deixa levar da mesma Senhora para onde ela quer por três razões, ou três modos: por amor, por obediência e por força. Por amor, como esposa; por obediência, como mãe; por força, como - ao parecer - mais poderosa. Sempre, porém, por vontade do mesmo Deus, e não só por vontade quando ele quer, senão também por vontade quando parecesse que não quer, que este é só o sentido em que prego este discurso. Tanta é a significação daquela grande palavra, e tanto o respeito que deve Deus àquele te portavit, em que tudo se funda.

Primeiramente, sujeita-se Deus a ser levado da Senhora para onde ela quer por amor, como esposa, e o mesmo Senhor o confessa assim, com este mesmo nome: Vulnerasti cor meum, soror mea, sponsa, vulnerasti cor meum[16]. Depois veremos quando se celebraram estes desposórios, e onde; agora vejamos o que diz o Esposo Deus. Diz que a Virgem Maria, sua Esposa, lhe feriu duas vezes o coração: Vulnerasti cor meum, vulnerasti cor meum. E para que duas feridas? O original hebreu o declara profunda e admiravelmente. O primeiro vulnerasti quer dizer: abstulisti mihi cor: Destes-me a primeira ferida para me tirar o meu coração; e o segundo vulnerasti, quer dizer: indidisti mihi cor: destes-me a segunda ferida para me dar o vosso coração. De maneira que para esta troca foi necessário que as feridas fossem duas, e ambas no mesmo tempo, porque não ficasse o Esposo sem coração: uma ferida por onde saísse o seu, e outra por onde entrasse o da Esposa em seu lugar. E que se seguiu desta amorosa troca? Seguiu-se que dali por diante já o Esposo não queria o que queria pelo seu coração, senão pelo coibição da Esposa, e como queria pelo coração da Esposa, não podia querer senão o que ela quisesse. Assim declara literalmente os efeitos desta troca de corações o doutíssimo A Lápide: Quasi diceret: cor tuum mihi inseruisti, ut illud in me operetur: et ego omne id fatiam, quod cor tuum desiderat: Tiraste-me do peito o meu coração, e introduziste-me em seu lugar o vosso, para que eu daqui por diante não possa querer nem fazer senão o que vós quiserdes. - Isto disse, não outrem senão o mesmo Deus, nem a outrem, senão à sua Mãe enquanto Esposa: Soror mea Sponsa. E não se podia nem melhor explicar nem mais encarecer quanto a vontade divina, não em parte, senão em tudo, se conforma com a vontade da Virgem, não querendo nem tendo coração para querer senão o que ela quer.

Mas, se acaso com o coração que a esposa tirou a Deus: Abstulisti mihi cor - tivesse Deus querido alguma coisa contrária à vontade da Esposa, que havíamos de dizer neste caso? O que havíamos dizer é que sempre se há de fazer o que a Esposa quiser, ainda que parecesse que o Esposo o não tivesse querido ou não quisesse. O caso é já sucedido em próprios termos, e com o mesmo efeito que digo. Quis Isac dar a bênção e o morgado a seu filho Esaú, que era o primogênito, e Rebeca, esposa de Isac, queria pelo contrário que a bênção e o morgado fosse de Jacó, que era o filho segundo, a quem ela mais amava. Fez as diligências tão extraordinárias que todos sabemos, e também sabemos que Jacó por meio delas efetivamente conseguiu a bênção. Mas não está aqui o reparo. O que muito se deve reparar e admirar é que, sendo aquela doação, não só involuntária e sub-reptícia, senão expressamente contra a tenção de Isac, e nomeadamente dada debaixo do nome de Esaú, nem Isac a revogasse, nem a tirasse a Jacó, nem a restituísse a Esaú nem estranhasse a Rebeca as diligências que tinha feito, e que em tudo se conformasse com a sua vontade e se conseguisse o que ela quis contra o que ele queria. Santo Agostinho diz que em toda esta história não houve engano, senão mistério: Non fuit mendaciuin, sed mysterium. E, suposto que foi mistério, que mistério foi? Excelentemente S. Pedro Damião: Et illic ergo carnalis uxor - Rebecca - et hic spiritualis Sponsa - Maria - viris suis in sententiae diversitate praevaluit[17]. O mistério foi que assim como a vontade de Rebeca, mulher de Isac, prevaleceu contra a vontade de seu marido, e não se conseguiu o que queria Isac, senão o que quis Rebeca, assim, no caso em que a Esposa de Deus, Maria, e o mesmo Deus quisessem coisas contrárias à vontade da Esposa - no sentido que já disse - havia de prevalecer contra a vontade do Esposo, e não se havia de conseguir o que quisesse, ou tivesse querido Deus, se não o que quisesse Maria. - Quem podia imaginar que prevalecesse Jacó contra Esaú, tendo Esaú da sua parte a vontade do pai? Mas como a vontade da esposa estava da parte de Jacó, esta é a que prevaleceu e conseguiu quanto queria, representando-se então na terra, entre Isac e Rebeca, o que hoje passa no céu entre Deus e Maria. Deus como Esposo, e Maria como Esposa: Soror mea Sponsa.

E agora é que havemos de saber, como deixei prometido, quando se celebraram estes desposórios, e onde. O tempo foi o dia da Encarnação, o lugar o tálamo virginal do sagrado ventre, que é o fundamento de quanto temos dito e havemos de dizer. Chama Deus à Virgem Irmã, e Esposa: Soror mea Sponsa. Irmã, porque então tomou Deus a natureza humana; Esposa, porque na união da natureza humana com a divina consistiram os desposórios; e aqui é que fez aquela troca dos corações, e união ou sujeição das vontades. Qual vos parece que foi a razão por que, tendo Deus decretado de unir a si a natureza humana, e podendo-a tomar doutro modo e doutra parte, a tomou das entranhas da Virgem Maria? A razão foi, diz altissimamente S. Bernardo, porque pedia a conveniência e proporção natural que, onde se achava a maior união das vontades, se fizesse também a maior união das naturezas: Cum Deus sit in omnibus sanctis propter concordiam voluntatis, specialiter tamen cum Maria, cum qua utique tanta ei consentio fuit, ut illius non solum voluntatem, sed etiam carnem sibi conjungeret, ac sic de sua, Virginisque substantia Christum efficeret, vel potius unus Christus fieret[18]: Deus está em todos os santos por concórdia da vontade; mas foi tão superior sobre todos a união que a vontade de Deus tinha com a vontade da Virgem, que o fim por que o mesmo Deus encarnou nela é dela foi para que, assim como da vontade de Deus e da vontade da Virgem se compunha uma só vontade, assim da substância do mesmo Deus e da substância da mesma Virgem se compusesse uma só Pessoa, que foi a de seu Filho. - Oh! maravilha sobre todas as maravilhas, que as conseqüências da natureza e vontade que só se achavam na divindade de Deus, com uma troca não menos admirável se achem também na natureza e vontade da Virgem! Entre o Padre e o Filho, porque é uma só a substância e uma só a vontade, e entre Deus e a Virgem, porque era uma só a vontade, fez ele que se unissem em uma só substância. Lá dois supostos unidos em uma só vontade, cá duas vontades unidas em um só suposto. E como a união da vontade de Deus com a da Virgem é tão grande que dela resultou a do mesmo Verbo Encarnado no beatíssimo ventre, que muito é que a vontade da Virgem leve após si a vontade de Deus no céu, assim como levava ao mesmo Deus na terra, quando o tinha em si: Qui te portavit?

§V

Segunda razão da voluntária sujeição de Deus: a obediência à Mãe. A jurisdição, o poder e o império que logra hoje no céu a Senhora a título de Mãe. O que queremos dizer com as palavras da Ave Maris Stella. O recebimento de Salomão a Betsabé em palácio, figura mal representada do que Deus fez à sua Mãe no céu. Palavras de S. Pedro Damião à Senhora.

Ao título de Esposa, e por amor, se segue o de Mãe, e por obediência, não menos poderoso para se deixar levar dele no céu aquele Senhor a quem no mesmo céu, e com nome de Deus e de obediente, a voz de Josué fez parar ao sol. Bem sei o que neste ponto disputam os teólogos, e a distinção que fazem de jure ou de facto; mas nós, deixadas as argúcias da especulação, ouçamos o que conformemente, e sem escrúpulo, escreveram e pregaram todos os Santos Padres.

Santo Ildefonso, sobre as palavras da mesma Virgem: Fecit mihi magna qui potens est[19], diz assim: Hoc magnum fecit in Virgine, ut per hanc Deus fierit homo, Verbum fieret caro, et Filius Dei, factor omnium, fieret Filius Matris, quam ipse formaverat, essetque dominator nascendo subditus Ancillae, quam ipse condiderat[20]. E mais brevemente, noutro lugar: Habuit Ancilla Dominum in subdito, Ancillam Dominus in praelato - nas quais palavras, sem cláusula alguma de moderação no império ou exceção na obediência, pela ativa da parte da Mãe, e pela passiva da parte do Filho, nela apregoa Ildefonso, com expresso nome de superiora a jurisdição de mandar, e nele reconhece com nome também expresso de súdito a sujeição de obedecer: Ancilla Dominum in subdito, Ancillam Dominus in praelato.

Toda esta jurisdição, todo este poder e todo este império, logra hoje no céu a Senhora a título de Mãe, assim como o teve na terra, onde seu Filho não era menos Deus do que é no céu. E esta é a energia, com que estando hoje como está no céu, lhe conta toda a Igreja: Monstra te esse Marrem. Cuidamos comumente, quando repetimos este verso, que pedimos à Senhora rogue por nós, assim como dizemos na Ave Maria: Mater Dei, ora pro nobis. Mas, como bem notou Ricardo Laurentino, não é isso o que queremos dizer, senão muito mais. Monstra te esse Matrem, é dizer à Senhora que exercite a autoridade da sua jurisdição, e que mostre que é Mãe, não rogando, senão mandando a seu Filho: Non solum potest Filio supplicare, sed etiam potest authoritate materna eidem imperare, unde sic oramus eam: Monstra te esse Matre[21]. Nos dois versos que se seguem: Qui pro nobis natu, tulit esse tuus[22]- a dureza da palavra tulit, com que o ser Filho da Senhora se chama sofrimento, confirma com nova ênfase o mesmo sentido. Como se disséramos: já que sofreu, e se sujeitou a ser Filho, sofra também, e sujeite-se a ser mandado.

Mas ouçamos a S. Bernardo, que nos louvores da mãe que a ele lhe deu o leite, sempre é singular. Considera a Deus obedecendo a uma mulher, e a uma mulher mandando a Deus, e, suspenso na comparação infinita de um e outro prodígio, rompe eloqüentissimamente nesta apóstrofe: Mirare utrumlibet, et elige quod amplius mireris: sive Filii Dei benignissimam dignationem, sive Matris excellentissimam dignitatem. Utrinque stupor: id quod Deus feminae obtemperet, humilitas sine exemplo, et quod Deo femina principetur, sublimitas sine socio[23]: Admirai destes dois prodígios qual quiserdes, e escolhei de ambos qual mais deveis admirar: ou do Filho de Deus a profundíssima benignidade, ou da Mãe de Deus a altíssima dignidade. Utrinque stupor: de uma e outra parte não há senão pasmar, porque obedecer Deus a uma mulher é humildade sem exemplo, e mandar uma mulher a Deus é sublimidade sem companhia.

Se alguma mãe pudera fazer companhia à Senhora era Betsabé, e se algum filho pudera imitar o exemplo de Deus era Salomão. Mas nem ele, sendo tão sábio, soube ser filho, nem ela, tendo-o tão obrigado, chegou à ventura de ser obedecida de tal rei como mãe. Vindo Betsabé a palácio, mandou-lhe por Salomão uma cadeira à sua mão direita, em que se assentasse. Então lhe disse Betsabé que trazia uma petição que lhe fazer, e Salomão respondeu que, sendo sua mãe, lhe não podia negar quanto pedisse: Pete, mater mea: peque enim fas est ut avertam faciem tuam[24]. Até aqui disse bem, mas ainda pudera dizer melhor. Havia de responder que ela como mãe o podia mandar, e ele como filho a devia obedecer. Mas a verdade daqueles cumprimentos, posto que tão curtos, qual foi? Disse Salomão menos do que havia de dizer, mas não chegou a fazer o que disse: chamou-lhe mãe, mas não lhe obedeceu como filho; deu-lhe a cadeira, mas negou-lhe a petição. Este recebimento de Salomão a Betsabé em palácio, dizem as alegorias que foi figura do que Deus fez a sua Mãe no céu. Mas se foi figura, foi mal representada. A cerimônia no céu, como terra da verdade, foi menor, mas a realidade, e a realeza foi a que havia de ser. Foi menor a cerimônia, porque diz Davi que a Senhora esteve em pé à mão direita do filho: Astitit regina a dextris tuis[25]; mas a realidade foi a que devia ser, ou mais do que devia, porque, se a Mãe está em pé, reconhecendo a divindade do Filho, o Filho faz tudo o que a Senhora quer, reverenciando-a como Mãe. Ela não tomou a cadeira, mas ele deu-lhe a vontade: ela manda-o, e ele obedece.

Expressa e animosamente o grande Cardeal S. Pedro Damião, falando com a mesma Senhora no céu: Accedis ad aureum illud divinae severitatis tribunal, nora rogaras, sed imperans, Domina, non ancilla: Vós, soberana Rainha do céu, quando lá representais a Deus, vosso Filho, que faça o que vós quereis, chegais ao trono de ouro e ao tribunal tremendo não só de sua divina majestade, mas de sua severidade e ali, não como súdita, senão como Senhora, não rogais ou pedis por favor, mas mandais e ordenais com império o que quereis que se faça, e assim se executa. - E dando a razão o mesmo santo e doutíssimo Padre por que isto é no céu, e não pode deixar de ser, conclui com estas invencíveis palavras: Quomodo enim potestati tuae obviare potest potestas illa, quae de tuis visceribus traxit originem: Porque não pode ser que encontre os vossos poderes, aquele poder que de vossas mesmas entranhas tomou o ser. - Grande e forte razão! Tudo pode o poder de Deus, mas só uma coisa parece não pode, que é deixar de seguir a vontade de sua Mãe, lembrado que dela recebeu o ser naquelas entranhas, nas quais o levava então para onde queria: Qui te portavit.

§ VI

Último título e modo com que a Senhora obriga a vontade de Deus a que não possa resistir à sua: seu maior poder O significado da vitória de Jacó sobre Deus. As forças de Deus feito homem e as forças do rinoceronte. Davi e as forças da liberdade divina. A bênção do Menino Jesus no caso referido pelo Beato Alano. A notável petição de Davi: - Faça-se, Senhor, a vossa mão. - O nascimento de Farés e Zarão, figura do Filho de Deus.

Somos chegados ao último título e modo com que a Senhora obriga a vontade de Deus a que não possa resistir à sua, que é por força, como mais poderosa, no modo que já dissemos. A proposição parece arrojada, mas tão certa como grande. Uma noite inteira lutou Jacó com Deus a braço partido, e o fim da batalha foi que Deus se confessou por vencido, e que Jacó pudera mais e prevalecera contra ele: Contra Deum fortis fuisti[26]. Pois, Deus todo poderoso pode ser vencido por força, e haver quem possa mais que ele? Naquele estado, sim. Deus abraçado com Jacó, e Jacó abraçado com Deus, significavam o mistério que depois se obrou no sagrado ventre da Virgem puríssima, quando a natureza divina se abraçou com a humana, e a humana com a divina. E neste abraço foram tais as forças que os braços de Deus comunicaram aos de Jacó, não na sua pessoa, senão na sua descendência, que dela nasceu finalmente uma filha, a qual por que trouxe a Deus nos braços, lhos apertou com tanta força, que pôde mais que eles. Com razão se comparam as forças de Deus feito homem às do rinoceronte: Comua rhinocerontis comua illius[27]. Enquanto o rinoceronte andava senhor do campo, livre e solto, era tão formidável como forte; mas depois que aquela animosa e formosíssima donzela, a Virgem, lhe apertou os laços, assim como lhe dominou as forças, lhe atou também a liberdade.

Começa Davi o Salmo noventa e três, bradando e repetindo a grandes vozes: Deus ultionum Dominus; Deus ultionum libere egit (SI. 93, 4): Homens, que não temeis a Deus, adverti uma e outra vez que Deus é o Senhor dos castigos: Deus ultionum Dominus; Deus ultionum: - e sabei que o mesmo Deus obra livremente, sem haver quem o possa impedir quando quer castigar: Deus ultionum libere egit. - E de que dúvida nos tira Davi, em dizer que Deus obra livremente? Houve porventura alguém que atasse a liberdade divina, ou pudesse mais que sua onipotência? Não houve, mas havia de haver. Davi, como profeta, e o maior dos profetas, estava vendo todos os tempos, presentes, passados, futuros, e que via? Via o Paraíso terreal perdido por um pecado; via o mundo todo alagado, e todo o gênero humano afogado no dilúvio; via a sua nação desterrada e cativa no Egito, desterrada e cativa em Babilônia, desterrada e cativa nos assírios; via a sua mesma corte de Jerusalém tantas vezes sitiada, destruída e abrasada, e infinitas outras assolações de cidades, reinos, províncias, com que Deus vingava as suas injúrias, e justamente se chamava Deus das vinganças. Isto é o que via Davi por muitos anos e séculos, antes de chefiar o tempo da Encarnação do Verbo. Mas depois que o mesmo Deus se fez homem e teve Mãe, via pelo contrário que todos aqueles castigos extraordinários tinham cessado, e que já não era Deus das vinganças, senão Pai das misericórdias. Combinando, pois, o profeta tempos com tempos, e ao mesmo Deus consigo mesmo, que conceito ou juízo faria de uma tão notável mudança? O conceito e juízo que fez foi que, antes de Deus ter Mãe, obrava livremente: Deus ultionum libere egit[28] - porém, depois que teve Mãe, teve também quem lhe atasse as mãos, e por isso obrava já como sem liberdade, porque a tinha sujeita a outro querer. E isto é o que pode, hoje no céu a Mãe do Todo-Poderoso. Tanto assim, que não duvidou dizer S. Bernardino que a mesma Senhora por nós faz de Deus o que quer: Cum de Deo pro nobis facias quidquid tuae placuerit charitati[29].

Parece que se não podia dizer mais, nem tanto. Mas eu acrescento, eu declaro, que aquele fazer de Deus quanto quer, não só se entende de quando Deus quer, senão também de quando, a nosso parecer, repugnasse ou não quisesse. Caso foi notável na Bretanha que, dizendo Missa S. Domingos, a imagem da Senhora, que tinha a seu Filho nos braços, lhe disse em voz, que todos ouviram, que fosse ele o que lançasse a bênção ao povo. Viram também todos que o Menino Jesus retirava o braço, como quem não queria, porém a Senhora, lançando-lhe a mão à sua, o obrigou a que com ela lançasse a bênção: Eadem Domina pietatis, manu Filii accepta, etiam renitentis, populum signo crucis consignavit - são palavras do Beato Alano, referindo o caso. Onde se devem notar muito aquelas etiam renitentis. O Filho repugnava e não queria, mas a Senhora o obrigou, como por força, a que quisesse, dobrando-lhe a mão com a sua. Considerai-me agora a mão da Senhora pegada na mão do Filho, a do Filho resistindo, e a da Senhora prevalecendo, e se vos admirais da força de uma mão, e do rendimento da outra, ouvi a razão. Fez Davi a Deus uma petição notável, e foi esta: Fiat manus tua ut salvet me (SI. 118, 173): Faça-se, Senhor, a vossa mão, para que me ajude, e me salve. - E que mistério ou sentido pode ter dizer a Deus que a sua mão se faça? A mão de Deus, que foi a que fez o mundo, necessitava de ser feita ou podia-se fazer? Sim, podia - diz S. Gregório - e assim foi: Manus quippe Dei, quae per divinitatem non est facta, genita per humanitatem facta est[30]: A mão de Deus, quanto à divindade, não podia ser feita, porque é mão incriada; porém, a mão do mesmo Deus, quanto à humanidade, podia ser feita, e foi feita, e quem a fez e formou em suas entranhas foi a Virgem Maria. - E como ela foi a que fez aquela mão, por isso tinha tanta mão com ela, e tanta força sobre ela. Tanta mão com ela que não duvidou de a querer dobrar, e tanta força sobre ela que, repugnando, a trouxe ao que queria.

E para que se veja que render o Filho de Deus o seu braço a esta força não era forçada, senão voluntariamente, saibamos por fim de todo o discurso que então tem o mesmo Filho por mais gloriosas e mais suas as ações do seu braço quando ele não só as governa pelos próprios movimentos, senão levado também pelos impulsos de sua Mãe. Estando para nascer de Tamar dois filhos gêmeos, um que se chamou Zarão, outro Farés, Zarão lançou primeiro fora um braço, o qual a parteira lhe atou com um fio de escarlata. E que fez o menino, vendo-se com o braço atado? Desistiu do movimento natural com que ia nascendo, e tomou a recolher o braço para o ventre da mãe: Illo vero retrahente manum (Gên. 38, 29). Esta foi a breve, mas prodigiosa história, em que a profecia escreveu ou rubricou o grande mistério que digo. Zarão, cujo nome significa oriens, foi figura do Filho de Deus e da Virgem, de quem disse Zacarias: Vir Oriens nomen eju[31] A escarlata atada no braço, como diz S. Bernardo, denotava a obra da Redenção, da qual cantou a mesma Virgem: Fecit potentiam un brachio suo[32]. -Como o Filho ele Deus viu empenhado o seu braço na maior empresa que nunca houve nem haverá no mundo, tornou a recolher o braço para o mesmo ventre donde saíra, porque entendia, e queria que entendessem todos, que a maior honra e glória das ações do seu braço, não era serem só governadas pelos próprios movimentos, senão também pelos impulsos de sua Mãe. Que muito logo, que ainda quando nos primeiros movimentos, e como naturais, mostra Deus querer o contrário, seja tão poderosa a vontade da soberana Virgem que, ou voluntariamente forçado, ou forçosamente voluntário, se deixe levar para onde a mesma Senhora quer, como se de novo se tivesse recolhido ao mesmo ventre santíssimo, de que era levado: Qui te portavit.

VII

O círculo do sagrado ventre, com que a Senhora cercava ao Filho de Deus, e o círculo de rosas, com que as rosas cercavam o mesmo ventre. O que promete a Senhora aos que assistem fora de suas portas? Quando Deus quis castigar o povo hebreu pela sua idolatria, por que não confia Moisés tanto da sua oração, e se vale das intercessões de Abraão, Isac e Jacó ? Os três patriarcas da lei antiga e os mistérios do Rosário.

Posto que até agora não tenho nomeado o Rosário, sempre falei nele, porque, assim como a Senhora levava a Deus quando o tinha dentro do sacratíssimo ventre, e o leva hoje para onde quer, assim nós, por meio do Rosário, levaremos a Mãe e o Filho para onde quisermos, fazendo nossa a sua vondade. Naquele texto tão repetido: Venter tuus sicut acervus tritici vallatus liliis[33]- são certas duas coisas. A primeira, que fala literalmente do ventre virginal, como dizem todos os intérpretes. A segunda, que debaixo da palavra liliis se entendem rosas, como se lê no original do mesmo texto: vallatus rosis. De sorte que temos aqui dois círculos e dois cercos: o círculo do sagrado ventre, com que a Senhora cercava ao Filho Deus, que tinha dentro em si; e, por fora deste círculo, outro círculo de rosas, com que as rosas cercavam o mesmo ventre: Venter tuus vallatus rosis. Que o círculo das rosas signifique o Rosário, e o círculo de que o mesmo Rosário é formado seria negar-lhe o nome e a figura, se alguém se atrevesse a o negar. Sendo, pois, este círculo o do Rosário, qual é a razão por que está cercado com ele, o círculo do ventre sacratíssimo? A razão é porque faz um círculo o que fazia o outro. Assim como com o círculo do sacratíssimo ventre, porque cercava a Deus que tinha dentro em si, levava a Senhora a Deus para onde queria, assim nós, com o círculo do Rosário, de que está cercado o mesmo ventre, levaremos a Mãe e o Filho para onde quisermos. Diga-o a mesma Mãe, que é a que melhor conhece a vontade do Filho.

Fala a Senhora de cada um dos seus devotos, e diz que estes têm cuidado de assistir cada dia fora de suas portas: Qui vigilat ad fores meas quotidie, et observar ad postes ostii mei[34]. O não entrar, mas estar fora das portas, é próprio de quem cerca; e o ser esta assistência cuidado de cada dia: quotidie, também é próprio da devoção do Rosário. E que alcançarão aqueles, de quem a Senhora se achar assim cercada e assistida? É maravilhosa a resposta do texto original, o qual afirma e promete que certamente alcançarão de Deus quanto dele quiserem. Assim o dizem conformemente as versões de todos. Vatablo: Assequatur quidquid volet a Domino. Pagnino: Educet quod voluerit a Domino. Caetano: Quidquid voluerit, a Deo facile obtinebit[35]. Apenas se achará em toda a Escritura Sagrada promessa tão universal e tão estabelecida como esta! Mas assim conquista a vontade do Filho quem primeiro ganha a da Mãe. E porque dissemos dos poderes da mesma Mãe, que não só alcançava de Deus quanto queria, quando o mesmo Deus queria, senão ainda no caso em que ele não quisesse, vejamos o mesmo, com assombro, nos poderes do Rosário.

Pelo pecado da idolatria do bezerro determinou Deus acabar de uma vez com aquele povo tão ingrato e rebelde, e assim o manifestou a Moisés, prometendo lhe que o faria governador de outro, não só melhor, mas maior. Porém Moisés, que amava tanto os súditos, como devem fazer e não fazem, todos os que têm o mando e governo supremo, não só rogou a Deus instantemente que lhe perdoasse, mas tomou por terceiros e valedores a Abraão, Isac e Jacó, dizendo: Recordare Abraham, Isaac, et Jacob, etc.[36] Admira-se muito neste passo Teodoreto, não da oração de Moisés, senão da intercessão de que se valeu nela, a qual não só parecia desnecessária, sendo tão particular e tão íntimo o seu valimento com Deus, mas ainda muito alheia da confiança que o mesmo Deus lhe tinha dado na cominação daquele castigo. As palavras que Deus lhe disse foram: Dimitte me, ut irascatur furor meus contra eos, et deleam eos (Êx. 32, 10): Deixa-me, Moisés, para que execute neles a minha ira, e eu os acabe. - A palavra deixa-me bem mostrava que era bastante Moisés para ir à mão a Deus e ter mão na sua ira, com que não executasse o que queria, Pois, por que não confia Moisés tanto da sua oração e se vale das intercessões de Abraão, Isac e Jacó? Porque entendeu que para conseguir uma coisa tão grande, contra o que Deus queria e tinha determinado, não bastaria qualquer outra oração, ainda que fosse a sua, se não fosse acompanhada com a força dos mistérios do Rosário. Ora, notai.

Naqueles três grandes patriarcas estavam representados os mistérios do Rosário, segundo as três distinções de que são compostos, Abraão, a quem Deus mandou deixar a pátria e os parentes: Egredere de terra tua, et de cognatione tua[37] - representava os primeiros mistérios, em que o Filho de Deus deixou o céu e a seu Eterno Padre, e veio peregrino ao mundo para o remir. Isac, a quem Deus mandou sacrificar em um monte: Tolle filium tuum Isaac, et offeres eum in holocaustum super unum montium[38] - representava os segundos mistérios, em que o mesmo Filho de Deus, levando a cruz às costas, foi pregado e crucificado nela no Monte Calvário. Jacó, a quem Deus mostrou a escada que chegava da terra ao céu: Vidit scalam super terram, et cacumem illius tangens caelum[39]- representava os terceiros mistérios em que o mesmo Filho de Deus, depois de ressuscitado subiu glorioso ao céu e se assentou à destra do Padre. Pára aqui toda a representação? Não. Ainda é mais expressa e mais distinta, porque os primeiros, segundos e terceiros mistérios do Rosário, em cada uma das suas distinções se repartem de cinco em cinco. Abraão, quando representou os primeiros, saindo peregrino da sua pátria, não se chamava Abraão, senão Abrão: Egressos est itaque Abram sicut praeceperat ei Dominus[40] E como o nome de Abrão é composto de cinco letras, e o nome de Isaac de cinco, e o de Jacob também de cinco, não só representaram os três patriarcas as três diferenças dos mistérios do Rosário, senão os números de cada diferença. Os cinco primeiros, e Gozosos, no nome de Abraão; os cinco segundos, e Dolorosos, no nome de Isac; e os cinco últimos, e Gloriosos, no nome de Jacó, Junta, pois, a oração de Moisés com a representação dos mistérios do Rosário, tão distinta, enquanto três, nos três patriarcas, e tão repartida, enquanto cinco, nas letras de cada nome, e tão inteira, enquanto quinze, na união de todos juntos, só então teve confiança Moisés para esperar e supor que a vontade de Deus se renderia à sua, e não levaria por diante o que tinha determinado: e assim foi: Placatusque est Dominus ne faceret malum quod locutus fuerat adversus populum suum[41]. Rezai, rezai o Rosário, e tende firme confiança nos poderes seus e da soberana Autora dele, que, assim como a Senhora, quando tinha a Deus em suas entranhas, o levava para onde queria, vós também levareis a Mãe e o Filho para onde quiserdes, e não só para lhe atardes as mãos com o mesmo Rosário na ocasião dos castigos, mas também para vos encher de todas as graças.

§ VIII

De que modo a Senhora, levando a Deus em suas entranhas, santificou e enriqueceu de extraordinárias graças os lugares que visitou: Nazaré, as montanhas onde vivia Isabel, e Belém. Que quer dizer Ave? Conclusão: peçamos à Mãe de Deus, não já que rogue, senão que deseje por nós.

Lá dissemos no princípio que, com o Filho Deus em suas entranhas, fez a Senhora três jornadas maiores: a primeira, de Nazaré às montanhas; a segunda, das montanhas a Nazaré; e a terceira, de Nazaré a Belém. Estes foram os três lugares santificados com os três primeiros mistérios do Rosário, não, em figura ou representação, mas realmente. Em Nazaré se obrou o mistério da Encarnação, nas montanhas o da Visitação, em Belém o do Nascimento. E, posto que estes mistérios não foram nem podiam então ser mais que três, nestes três se representaram as diferenças de todos. Em Nazaré, os Gozosos: Exultavit Spiritus meus in Deo salutari meo[42]; nas montanhas, os ásperos e Dolorosos: Abiit in montam cum festinatione[43]; em Belém, os celestiais e Gloriosos: Gloria in altissimis Deo, et in terra pax hominibus[44]. Agora vede, como levando a Senhora a Deus em suas entranhas, a todos estes lugares, todos enriqueceu de extraordinárias graças. Indo de Nazaré às montanhas, santificou nelas ao Batista, encheu de espírito de profecia a Isabel, restituiu a fala a Zacarias mudo, e sobre todos os corações dos montanheses derramou júbilos de verdadeira alegria, e os deixou cheios de altas esperanças. Tomando das montanhas a Nazaré, como S. José dos sinais de mãe, que via na Senhora, julgasse que tinha concebido, ali se tirou a confusão e tristeza daquela perplexidade, ali teve a revelação do anjo, ali conheceu o altíssimo mistério da Encarnação, e ali soube o que nem imaginar podia, que era Esposo da Mãe de Deus, e que o mesmo Deus lhe havia de chamar Pai. Indo, finalmente, de Nazaré a Belém naquela claríssima noite, em que os céus feitos de mel, choveram as maiores doçuras sobre a terra, mandando anjos aos pastores e estrelas aos reis, aos grandes e aos pequenos, aos naturais e aos estranhos, aos de perto e aos de longe, a todos encheu de luz, de consolação, de verdade e de espíritos de nova vida. Isto obrou maravilhosamente a Senhora do Rosário, quando lhe deu princípio nos primeiros três mistérios, e neles significação a todos, levando sempre a Deus, e deixando-se Deus levar para onde a mesma Senhora queria, para que nós também entendamos que, por meio do mesmo Rosário, teremos a vontade do mesmo Deus, não só propícia, senão em certo modo, ou por modo certo, sujeita a quanto quisermos e desejarmos.

E que faremos para que assim seja sem falta? Rezemos o Rosário, e digamos em cada Ave-Maria à Mãe de Deus, não já que rogue, senão que deseje por nós. Começamos a Ave Maria por esta palavra Ave. E que quer dizer Ave? Disse-o com natural e fácil explicação, mas com altíssimo pensamento, o doutíssimo Salmeirão: De prima voce Ave adverte dici a verbo aveo, quod est desiderare: et ita idem est dicere Ave, ac dicere desidera. Ave ergo, beata Virgo, seu desidera, quia quodcumque avebas, et supra quam avebas, obtinebis[45]. Desejava a Virgem, Senhora nossa, ardentissimamente o mistério da Encarnação do Filho de Deus, e que chegasse já o tempo em que se cumprisse a promessa de Isaías: Ecce virgo concipiet[46]- não presumindo nem vindo ao pensamento de sua humildade que ela era, ou podia ser, o felicíssimo objeto daquela profecia. Aludindo, pois, a este desejo, começou o anjo a sua embaixada, dizendo: Ave que quer dizer desejai. Desejai, oh! cheia de graça, desejai: que não só tem Deus satisfeito vossos desejos, mas tudo o que quiserdes e muito mais do que quiserdes alcançareis sempre dele. Isto disse o anjo dizendo Ave; e por isso digo eu que peçamos à Mãe de Deus, não já que rogue, senão que deseje por nós. Esta petição é a primeira com que começamos a Ave Maria, esta a que repetimos cento e cinqüenta vezes no Rosário; e podemos estar certos que nem a Senhora deixará de desejar por nós, nem o Filho, que quer pelo coração da mesma Mãe, deixará de querer quanto a mesma Senhora desejar; e assim como encheu de tantas graças a todos aqueles aonde levou a Deus quando o trazia em seu sacratíssimo ventre, assim nos alcançará aquela última, que só abre as portas do céu, e leva os que dela são levados ao porto do eterno descanso: Qui te portavit.



[1] Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc.11, 27).

[2] August. Sermon. I de Nativit. Domini.

[3] Mendoça tom. 2, 2 Rs. lib.1, cap. 4, num. 4.

[4] O rei Salomão fez uma cadeirinha de madeira do Líbano: fez-lhe as colunas de prata, o reclinatório de ouro, a subida de púrpura (Cânt. 3, 9 s). Syrus et Arabicus vertunt in tegumentum, seu velamen purpurae. lia Genebrardus, Sanchez et alii.

[5] Albertus Magnus, Hugo, Cornelius, et. Alii.

[6] Elevei-me como o cedro do Líbano, e como o cipreste do Monte Sião. Cresci como a palmeira de Cades, e como as plantas das rosas de Jericó. Elevei-me como uma formosa oliveira nos campos, e como o plátano nas praças junto da água (Eclo. 24,17 ss).

[7] Albert. Lib. 10, de Laudibus Virginis.

[8] Pronuncia-se mária.

[9] Á congregação das águas deu Deuso nome de mar: á congregação de todas as graças de Deus o nome de Maria.

[10] O Espírito Santo descerá sobre ti (Lc. 1, 35).

[11] Será visto o Deus dos deuses em Sião (Sl. 83, 8).

[12] Porque são virgens. Estes seguem o cordeiro para onde quer que ele vá (Apc. 14, 4).

[13] D. Bernard. Serm. I super Missus est.

[14] Onde apascentas, onde repousas (Cânt. 1, 6)?

[15] Assim como o vestes, sois por ele vestida: vestes a ele com a substância da carne, e sois por ele vestida com a gloria de sua majestade (S. Bernard.).

[16] Tu feriste o meu coração, irmã minha esposa, tu feriste o meu coração (Cânt. 4,9)

[17] Petr. Damian. Sermon. 27.

[18] Bernard. Hom. 3 super Missus est.

[19] Fez-me grandes coisas o que é poderoso (Lc. 1, 49).

[20] Isto fez de grande à Virgem, que por ela Deus se fez homem, o Verbo se fez carne, e o Filho de Deus, criador de todas as coisas, se fez Filho da mesma Mãe que ele criara, tornando-se o dominador súdito de sua mesma escrava (Indefons. Lib. de Virginit. Mariae, cap. 8)

[21] Richard. a Sancto Laurent.

[22] Que, nascendo por nós, se sujeitou a ser teu Filho.

[23] Bernard. Serm. 2, super Missus est.

[24] Pede, minha mãe, porque não é justo que tu vás descontente (3 Rs. 2, 20)

[25] Apresentou-se a rainha à tua destra (Sl. 44, 10)

[26] Contra Deus foste forte (Gên. 32, 28).

[27] Os seus cornos são como os cornos do rinoceronte (Dt. 33, 17)

[28] O Deus das vinganças sempre obrou livremente (Sl. 93, 1).

[29] Bernard. Tom. I, Sermon. 52. cap. 2.

[30] Greg, Homil. 2, in Ezechiel.

[31] O homem que tem por nome o Oriente (Zac. 6, 12)

[32] Ele manifestou  o poder de seus braço. (Lc. 1, 51).

[33] O teu ventre é como um monte de trigo cercado de açucenas – na versão clássica do Padre Antonio :Almeida de Figueiredo (Cânt. 7, 2).

[34] Que vela todos os dias à entrada de minha  casa, e que está feito espia às ombreiras da minha porta (Prov. 8, 34).

[35] Text. Hebraeus, Vatablus, Pagninus, Caietanus.

[36] Lembra-te de Abraão, de Isac, de Jacó, etc. (Êx. 32, 13).

[37] Sai da tua terra e da tua parentela (Gên. 12, 1).

[38] Toma a teu filho Isac, e o oferecerás em holocausto sobre um dos montes (Gên. 22, 2).

[39] Viu uma escada posta sobre a terra, e a sua sumidade tocava no céu (Gên. 28, 12).

[40] Saiu pois Abraão, como o Senhor lhe tinha ordenado (Gên. 12, 4).

[41]Então se aplacou o Senhor, para não fazer contra o seu povo o mal que tinha dito (Êx. 32,14).

[42] O meu espírito se alegrou por estremo em Deus meu, Salvador (Lc. 1, 47).

[43] Foi com pressa às montanhas (ibid. 39)

[44] Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens (Lc. 2, 14)

[45] Salmeir. tom. 3.

[46] Eis que uma virgem conceberá (Is. 7, 14).


 

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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão Vigésimo Oitavo, de Padre António Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio