Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

Jacob autem genuit Joseph virum Mariae, natus est Jesus[1]

§I

Vê-se hoje a rosa natural levantada sobre sua própria natureza. Se a rosa deu ao Rosário o seu nome, comunica o Rosário à rosa os seus poderes. De tal maneira falará o autor de ambas as rosas, comparando-as entre si, que tudo o que disser da Rosa Mística, será o que ditarem as palavras do tema.

No princípio deste formoso mês, em que a terra, ostentando suas galas, nos montes se mostra vestida, e nos vales calçada de flores, com razão se dedica também a Deus a rainha de todas, a rosa. De rosas vemos alcatifados os templos, de rosas adornados os altares, de rosas coroadas as imagens dos santos, e até entre a fragrância das rosas subir ao céu o cheiro dos sacrifícios. E quem deu tanto lugar nos lugares sagrados à que só tinha seu império e dignidade nos campos? Tudo isto mereceu a rosa natural por servir à Rosa Mística: a rosa natural, que e a que deu o nome ao Rosário, por servir à Rosa Mística, que é a Virgem, Senhora nossa, que do mesmo Rosário tomou o sobrenome. Assim vem a servir uma rainha a outra Rainha, e uma rosa a outra rosa, e não só a servir, senão a receber mercês. Vê-se hoje a rosa natural levantada sobre sua própria natureza, porque, se a natureza a tinha dotado de muitas virtudes naturais, a liberalidade e poder soberano da Rosa Mística lhas comunica, não só novas, mas sobrenaturais e milagrosas. Vede que bom pagador é o Rosário. Porque, se a rosa deu ao Rosário o seu nome, comunica o Rosário à rosa os seus poderes. Antes de benta ou abendiçoada a rosa natural, era formosa para a vista, cheirosa para o olfato e saborosa para o gosto; mas hoje, depois de receber a bênção, com que a santifica o Rosário, levantando-se sobre a esfera de todos os sentidos, para as enfermidades é a mesma rosa saúde, para os venenos antídoto, para as dores refrigério, para os corações tristes alívio, e até para os espíritos infernais terror e assombro. Estas e outras grandes maravilhas de cujos exemplos estão cheias as histórias eclesiásticas, são as que obra a rosa, depois que neste formoso dia a que também deu o nome, se benze. Mas porque o assunto deste último sermão - em que é bem declaremos por fim o título de todos - pertence principalmente à Rosa Mística, e o místico se funda no natural, o que só posso prometer nesta breve proposta, é que de tal maneira falarei de ambas as rosas, comparando-as entre si, que tudo o que disser da Rosa Mística será o que nos ditarem as palavras do tema. Ave Maria, etc.

§II

Tudo o que se chama místico supõe, imita e se funda sobre o natural. As figuras de Cristo no Testamento Velho. Correspondências que tem a Rosa Mística com a rosa natural. Sendo místicos todos os outros títulos com que a Igreja invoca a intercessão da Virgem Maria na Ladainha, por que razão nenhum deles se chama místico, senão só e unicamente a rosa? Diferenças entre o místico comum e o místico por excelência no Diviníssimo Sacramento. Semelhanças e dessemelhanças entre o Sacramento e o maná, e entre a Rosa Mística e a rosa natural.

Joseph vi rum Mariae, de qua natus est Jesus[2].

Assim como a forma supõe a matéria, assim como o retrato imita o original, assim como o edifício se levanta sobre os fundamentos, assim tudo aquilo que se chama místico supõe, imita e se funda sobre o natural. Cristo neste mundo foi o Davi místico, porque a vitória, com que sem armas triunfou do mesmo mundo, foi representada no desafio e vitória com que Davi triunfou do gigante[3]. Cristo na cruz é a serpente de Moisés mística porque, assim como os mordidos das serpentes, olhando para a de Moisés saravam, assim saram do veneno da serpente infernal, os que com fé e contrição põem os olhos em Cristo crucificado[4]. Cristo no Sacramento é o maná místico, porque, assim como com o maná descido do céu se sustentaram no deserto os que caminhavam para a Terra de Promissão, assim com o verdadeiro pão do céu, Cristo sacramentado, se sustentarão na peregrinação desta vida, os que caminham, para a glória, de que o mesmo sacramento é penhor[5]. Daqui se segue que, sendo a Virgem Maria, Senhora nossa, a Rosa Mística, como lhe chama a Escritura e canta a Igreja, pela correspondência que tem a Rosa Mística com a rosa natural, se deviam conhecer as excelências da mesma Senhora, enquanto Senhora do Rosário[6]. Assim o fizeram até agora todos os que trataram esta grande matéria, considerando na formosura, na fragrância, nas virtudes medicinais e na mesma majestade natural com que a rosa mereceu o império e coroa de todas as flores, não só a eminência suprema, com que a Mãe do Criador se levanta inacessivelmente sobre todas as criaturas, mas os benefícios e graças, em todo o gênero singulares, com que por meio do seu Rosário socorre, favorece, ampara e livra, assim nos trabalhos e enfermidades do corpo, como principalmente nas espirituais e da alma todos seus devotos. A este fim se trazem hoje em louvor da rosa os versos de Anacreonte, as descrições de Plínio, os exemplos de Cleópatra, os aforismos de Galeno, as elegâncias gregas e latinas de S. Basilio e Santo Ambrósio, e até as fábulas de Vênus e Adonis feridos, que sobre a coroa real lhe deram à rosa a púrpura.

Eu, contudo, debaixo desta superfície geral e comum, examinando mais interiormente qual seja o místico, ou misterioso da nossa Rosa Mística, acho que não consiste tanto na proporção e semelhança com que é parecida à rosa natural, quanto na dessemelhança e diferença com que se distingue dela e a excede. Naquela série juntamente panegírica e oratória, com que a Igreja invoca a intercessão da Virgem Maria, alegando diversos títulos de suas excelências e louvores, e pedindo por cada um deles à mesma Senhora se digne de rogar por nós, é advertência digna de todo reparo que, sendo todos aqueles títulos verdadeiramente místicos, só à rosa unicamente se dê o nome de mística. Chama-se ali a Senhora Estrela da Alva: Stella matutina; chama-se Arca do Testamento: Arca foederis; chama-se de Davi: Turris Davidica; chama-se Porta do céu: Janua Caeli; chama-se, finalmente, e é invocada com tantos outros títulos: e sendo a Virgem misticamente Estrela da Alva, porque ela, nascendo como precursora do Sol, nos anunciou o nascimento de Cristo; sendo misticamente Arca do Testamento, porque ela só como Arca do Testamento encerrou a Deus em si, e o trouxe em suas entranhas; sendo misticamente Torre de Davi, porque nela, como de Torre de Davi, estão pendentes todos os escudos e armas de nossa defensa; sendo misticamente Porta do Céu, porque por ela entram a gozar a bem-aventurança todos os predestinados; e sendo, finalmente, místicos todos os outros títulos que naquela larga ladainha se alegam, por que razão nenhum deles se chama místico, senão só e unicamente a rosa, dizendo a Igreja: Rosa Mystica, ora pro nobis? A razão sem dúvida é porque nos outros sítios considere-se somente a semelhança que tem o místico com o natural: na Rosa Mística há de se considerar não só a semelhança que tem com a rosa senão também a diferença e vantagens com que a excede. Há místico comum e místico por excelência. O místico comum consiste por modo geral nas propriedades da semelhança: o místico por excelência, sobre as propriedades da semelhança, acrescenta por modo particular e mais sublime as vantagens da diferença. E, como entre todos os outros títulos da Senhora só o da rosa é místico por excelência, por isso só nele singular e cinicamente se lhe dá o nome de Mística: Rosa Mystica. Mística, porque imita a rosa natural, no que é: e mística, ou sobre mística, por que a excede no que não é.

No diviníssimo Sacramento - que só a este fim era bem que honrasse a festa da Rosa com sua presença - no diviníssimo Sacramento, digo, temos maravilhosamente expressa esta distinção ou excelência de místico a místico. Pouco há dissemos que Cristo no Sacramento é o maná místico; e, declarando o mesmo Senhor esta famosa figura do Sacramento, diz assim: Hic est panis qui de caelo descendit. Non sicut manducaverunt patres vestri manna, et mortui sunt. Qui manducat hunc panem, vivet in aeternum[7]. Não sei se reparais e dividis bem estas palavras. Nas primeiras diz que o Sacramento é como o maná; nas segundas, sem desdizer o que tinha dito, diz que não é como o maná. Nas primeiras diz que o Sacramento é como o maná, porque diz que o Sacramento é o pão que desceu do céu, assim como o maná descia do céu: Hic est panis, qui de caelo descendit (Jo. 6, 59) - nas segundas diz que o mesmo Sacramento não é como o maná: Non sicut manducaverunt Patres vestri manna - porque os que comiam o maná morriam: Et mortui sunt - e os que comem o Pão do Sacramento vivem eternamente: Qui manducat hunc panem vivet in aeternum. - Pois, se Cristo quer declarar a virtude do Sacramento como maná místico pelo mesmo maná natural, por que diz o que era o maná e o que não era? Porque o Sacramento não é maná místico pelo modo comum, senão maná místico por excelência. E o místico por excelência, não só consiste na semelhança que tem com o natural, senão nas vantagens com que o excede. A primeira propriedade, e ordinária, é ser como ele: a segunda, e excelente, é não ser como ele: Non sicut.

No mesmo Sacramento, e neste mesmo lugar, distinguiu maravilhosamente o mesmo Senhor este como e não como: o como da semelhança, e o não como da diferença. E para que um e outro se distinguissem e entendessem melhor divididos em duas comparações, à comparação do maná acrescentou outra muito mais excelente e mais alta. E qual é? Sicut misit me vivens Pater, et ego vivo propter Patrem: et qui manducat me, et ipse vivet propter me (Jo. 6, 58): Assim como eu recebi a vida do Padre, e vivo por ele, assim quem me come no Sacramento, recebe a vida de mim, e vive por mim. - Combinemos agora estas duas comparações, e na primeira veremos claramente o como, e na segunda o não como: na primeira o como: Sicut misit me vivens Pater[8]; e na segunda o não como: Non sicut patres vestri mortui suit[9]. De sorte que toda a semelhança e diferença do Sacramento com o Maná se reduz a um sicute a um non sicut: a um assim como e a um não assim como. E isto mesmo que Cristo declarou no Sacramento, com duas comparações, temos nós em uma só comparando a Rosa Mística com a rosa natural. Porque a Rosa Mística em muitas propriedades é como a rosa natural sicut, mas em outras mais altas e sublimes, excede muito a rosa natural, e não é como ela: non sicut.

§III

Diferenças com que a rosa natural é excedida da Rosa Mística: a rosa natural é uma flor que não dó frutos e produz espinhas; a Rosa Mística é rosa sem espinhas e rosa com fruto. Por que na genealogia de Cristo, em se nomeando Maria, se cala o genuit, e só se diz e apregoa o natus est? A espinha do pecado original.

Suposta, pois, esta semelhança e esta diferença da mesma rosa duas vezes e por dois modos mística, não determino tratar hoje do místico comum, que consiste nas propriedades da semelhança, senão do místico por excelência, que consiste nas vantagens da diferença. O sicut e a semelhança que tem a Rosa Mística com a rosa natural, como matéria muitas vezes tratada, deixo-a, porque a suponho sabida; o non sicut, e a diferença com que a mesma rosa natural é excedida da Rosa Mística, esse será o emprego do discurso presente, e a razão mais alta e mais sublime por que a Virgem, Senhora nossa, se chama Rosa Mística. Digo, pois, que excede muito a Rosa Mística à rosa natural. Em quê? Em dois defeitos que tem a rosa natural, e em duas perfeições que só se acham na Rosa Mística; em dois defeitos da rainha das flores, e em duas perfeições da Rainha dos Anjos. E quais são? São tão vistas pelos olhos que quase não era necessário que se dissessem. A rosa natural é uma flor que não dá fruto, e produz espinhas: a Rosa Mística é rosa sem espinhas, e rosa com fruto. Não é o assunto meu, senão do mesmo tema que propus.

Jacob autem genuit Joseph virum Mariae, de qua natus est Jesus[10]. Nesta cláusula do Evangelho, tantas vezes, e por tantos modos batida e debatida, o que sempre se notou, e sempre se deve notar, é o que diz o evangelista e o que não diz. Diz que de Maria nasceu Jesus, mas não diz de quem nasceu Maria; diz de quem é Mãe, mas não diz de quem é filha. E não só o título do mesmo Evangelho, mas todas as grandes personagens que nele se nomeiam, com quarenta e duas vozes estão bradando contra este silêncio. O título do Evangelho é: Liber generationis Jesu Christi: e se é livro da geração de Cristo, e tudo quanto neste livro se contém e deve conter não é mais que uma continuada descendência de pais a filhos, por que no fim, onde era mais necessária esta clareza, o que só se refere é a geração do Filho, e se cala a geração da Mãe? Desde o primeiro ascendente, que é Abraão, até o último, que é José, todas estas gerações vão encadeadas com aquele genuit: Abraham genuit Isaac. Isaac autem genuit Jacob. Jacob autem genuit Judam[11]: até que chegando a outro Jacó, diz do mesmo modo o evangelista: Jacob autem genuit Joseph virum Mariae. Pois, se desde Abraão até José chega ao continuado e repetido genuit, por que razão em chegando, e antes de chegar a Maria, se cala totalmente esse genuit, e só se diz de qua natus est? Por que no genuit estavam as espinhas, e no natus est está o fruto; e como a Rosa Mística, Maria, é rosa com fruto e rosa sem espinhas, por isso, em se nomeando Maria se cala o genuit, e só se diz e apregoa o natus est.

A origem das espinhas é quase tão antiga como o homem, e tem a mesma antigüidade que o pecado original. Assim o pronunciou Deus na sentença que fulminou contra Adão: Maledicta terra in opere tuo. Spinas et tribulos germinabit tibi[12]. Eva colheu o fruto, e Adão as espinhas. E como passaram estas espinhas do pecado original, desde o primeiro homem a todos os outros, e se continuam neles? Por meio da geração. Este é aquele autem, ou aquele mas, que em toda a série das gerações do nosso Evangelho anda sempre, como espinha, pegado ao genuit. Não há genuit nos filhos de Adão que não traga consigo o seu mas e a sua espinha. Isaac autem genuit Jacob: Isac gerou a Jacó - mas ainda que Isac foi santo, de seu pai Abraão trouxe a espinha do pecado original: Isaac autem. - Jacob autem genuit Judam: Jacó gerou a Judas - mas, ainda que Jacó foi santo, de seu pai Isac trouxe a espinha do pecado original: Jacob autem. - Jesse autem genuit David: Jessé gerou a Davi mas, ainda que Jessé foi santo, de Obed, seu pai, trouxe a espinha do pecado original: Jesse autem. - David autem genuit Salomonem: Davi gerou a Salomão - mas, ainda que Davi foi santo, de seu pai Jessé trouxe a espinha do pecado original: David autem. Assim o confessou em nome de todos o mesmo Davi: Ecce enim in iniquitatibus conceptus sum, et in peccatis concepit me mater mea[13]. E como entre todos os filhos de Adão só a Virgem Maria, por graça e privilégio singular, foi isenta do pecado original, por isso o Evangelista, tendo continuado com o mesmo genuit, com o mesmo mas e com a mesma espinha até Jacó, que gerou a José, esposo da Virgem: Jacob autem genuit Joseph virum Mariae – em chegando, ou antes de chegar a nomear Maria, calou totalmente o genuit e o autem, porque só Maria, como rosa por excelência mística, foi rosa sem espinha.

§ IV

Primeira excelência com que a Rosa Mística excede a rosa natural: ser rosa sem espinha. Nas sentenças de condenação do pecado original qual foi a razão e mistério por que na primeira quebrou a Mulher a cabeça à serpente, e na última produziu a terra as espinhas a Adão? O altíssimo e oculto mistério com que Cristo no dia da Redenção se coroou de espinhas. A redenção antecipada e por preservação, privilégio singular concedido à Virgem. As espinhas da sarça ardente e as espinhas da coroa de Cristo. O diadema de Alexandre Magno e as feridas de Lisímaco. Afigura do cordeiro coroado de espinhas no sacrifício de Isac.

Esta foi a primeira diferença, e singularmente sua, com que a soberana Rosa Mística excedeu gloriosamente a rosa natural. Falando da mesma rosa natural S. Basílio, e reconhecendo nela todos os dotes com que sobre as outras flores a enriqueceu a natureza, diz que todas as vezes que a via lhe causava tristeza e dor: Florida quidem est rosa, sed mihi tristitiam infligit: quoties fiorem hunc vídeo peccati mei admoneor, propter quod terra, ut spinas ac tribulos proferret, condemnata est[14]. A rosa - diz Basilio - que com a sua formosura para todos é alegre, para mim é triste. E por quê? Porque todas as vezes que vejo esta flor me está trazendo à memória o pecado pelo qual a terra foi condenada a produzir espinhas. - E como as espinhas foram pena e efeito do primeiro pecado, só aquela soberana Senhora, que unicamente foi isenta dele, é rosa sem espinhas. Nas sentenças da condenação do mesmo pecado temos a prova. Para o primeiro pecado do mundo, que foi o do Paraíso, concorreram três cúmplices: a serpente, Eva, Adão. Pela mesma ordem os condenou Deus a todos três, e nesta ordem tem grande mistério a primeira sentença e a última. Na primeira sentença foi condenada a serpente a que a mulher lhe quebrasse a cabeça: Inimicitias ponam inter te et mulierem: ipsa conteret caput tuum[15]. Na última foi condenado Adão, a que a terra lhe produzisse espinhas: Maledicta terra in opere tuo. Spinas et tribulos germinabit tibi[16]. A mulher que quebrou a cabeça à serpente, todos sabemos que foi a Virgem Maria, no instante de sua conceição, que é o ponto preciso em que a serpente morde a todos os filhos de Adão, concebidos por geração natural. Por isso o texto, com os termos admiravelmente trocados, primeiro diz que a mulher quebraria a cabeça à serpente, e depois que ela a quereria morder: Ipsa conteres caput tuum, et tu insidiaberis calcanea ejus[17]. Vindo, pois, à ordem das sentenças, qual foi a razão e mistério por que na primeira quebrou a mulher a cabeça à serpente, e na última produziu a terra as espinhas a Adão? O pecado original não foi o da serpente, senão o de Adão; pois, por que não foi o primeiro condenado Adão, senão a serpente? Porque na condenação e sentença da serpente venceu a mulher o pecado: na condenação e sentença de Adão produziu a terra as espinhas e como a mulher que venceu a serpente foi a Rosa Mística, rosa sem espinhas, por isso as espinhas vieram tanto depois da mulher, que quando a terra produziu as espinhas, já a mulher tinha quebrado a cabeça à serpente. Antes da última sentença, ainda na terra não havia espinhas: Spinas et tribulos germinabit tibi - e quando o pecado produziu as espinhas na última sentença, já a Rosa Mística na primeira tinha quebrado a cabeça ao mesmo pecado: Ipsa conteret capuz tuum - e por isso rosa sem espinhas.

Desta antecipada vitória, com que a mulher venceu o pecado e a serpente, não depois de mordida, senão antes de a poder morder, se entenderá o altíssimo e oculto mistério com que Cristo, no dia da Redenção se coroou de espinhas. A Virgem, Senhora nossa, ainda que isenta de todo o pecado, também foi remida por meio da Paixão de seu Filho. Não remida como curada depois de ferida, nem remida como levantada depois de caída, nem remida como resgatada depois de cativa, mas remida, como preservada da ferida, como preservada da queda e como preservada do cativeiro, que é o mais nobre e o mais excelente modo de remir e livrar. No princípio deste Evangelho, que é o livro da geração de Cristo, enquanto Redentor - que isso quer dizer: Liber generationis Jesus - chama-se o mesmo Senhor Filho de Davi e Filho de Abraão, os quais também foram redentores, porque Davi livrou a Saul do gigante e dos exércitos dos filisteus, e Abraão livrou a Lot dos quatro reis babilônios, que fizeram guerra ao da sua cidade, e outros[18]. Mas, se Abraão e esta sua vitória foi muito primeiro que a de Davi, por que se dá neste livro do Redentor o primeiro lugar a Davi, e o segundo a Abraão: Filii David, filii Abraham[19]? Porque Abraão livrou a Lot do cativeiro, Davi livrou a Saul do perigo; Abraão livrou a Lot depois de estar vencido e cativo dos babilônios, Davi livrou a Saul de que o vencessem nem cativassem os filisteus. Ambos remiram e ambos foram redentores, mas só Davi antecipadamente, e preservando. Metu regem liberavit, et antequam servitium contribules experientur, depulit - diz S. Basilio de Selêucia[20]. E porque este modo de redenção antecipada é muito mais nobre e glorioso, por isso no livro do Redentor, sendo Abraão primeiro que Davi, se dá o primeiro lugar a Davi e o segundo a Abraão. Na mesma terra que produziu as espinhas temos a primeira parte desta diferença com alusão à segunda. A terra que produziu as espinhas foi a terra maldita pelo pecado: Maledicta terra in opere tuo. Spinas et tribulos germinabit tibi[21]- a terra que sem espinhas produziu o fruto foi a terra bendita e sem pecado, na qual e da qual nasceu o mesmo Deus: Benedixisti, Domine, terram tuam[22]. Assim o cantou o real profeta, e logo acrescenta a diferença das duas redenções, ou dos dois modos de remir, um por resgate depois do cativeiro, e outro por preservação antes dele: Benedixisti, Domine, terram tuam; avertisti captivitatem Jacob. Remisisti iniquitatem plebis tuae[23]. Notai a diversidade dos termos. No primeiro diz: Desviastes o cativeiro: Avertisti captivitatem. - No segundo diz: Remitistes e perdoastes o pecado: Remisisti iniquitatem. - O desviar é por preservação de perigo: o remitir é por remédio e perdão do pecado. Mas o desviar o perigo e o remir por preservação foi privilégio singular concedido a uma só pessoa: Avertisti captivitatem Jacob. - E o perdão do pecado, depois de incorrido, foi indulgência universal, que se estendeu a todos: Remisisti iniquitatem plebis tuae.

E como o modo de remir por preservação é muito mais nobre e glorioso, e a maior glória de Cristo Redentor foi preservar a sua Mãe de que não fosse tocada das espinhas do pecado, por isso no dia da Redenção formou delas a sua coroa e se coroou das mesmas espinhas, de que a tinha preservado. Clemente Alexandrino dando a razão por que Cristo, no dia da Redenção, se coroou de espinhas, diz que assim como tinha aparecido entre espinhas quando remiu o povo de Israel do cativeiro do Egito[24], assim se quis também coroar de espinhas quando remiu o gênero humano, para mostrar que uma e outra redenção fora obra do mesmo poder: Quod primum per rubum visum fuerat Verbum per spinam rursus assumptam ostendit se ejusdem potentiae[25]. Não me atrevo a censurar um tão grande e antiquíssimo mestre da Igreja de que não disse bem, mas digo que disse pouco, e menos do que devera, em afirmar que uma e outra redenção fora obra do mesmo poder, porque na redenção do Egito remiu Deus os que estavam cativos e feridos das espinhas, que por isso apareceu na sarça, porém, na redenção do gênero humano, não só remiu os feridos das espinhas, que eram todos os filhos de Adão, mas preservou a sua Mãe de que elas a não ferissem, e esta obra não foi do mesmo poder, senão de muito maior. Curar as feridas, é remédio da arte, e obrar como médico; preservar delas, é privilégio do poder, e obrar como Senhor. Por isso quando remiu o povo não apareceu coroado das espinhas, e agora que preservou delas a sua Mãe, sim. Há quem o diga? Não menos que Salomão, figura do mesmo Cristo: Egredimini et videte, filiae Sion, regem Salomonem in diademate quo coronavit illum mater sua[26]): Saí, saí, filhas de Jerusalém, e vede a coroa com que Maria, Mãe de Jesus, coroou a seu Filho, assim como Bersabé, mãe de Salomão, coroou o seu. - Da coroa de espinhas entendem o passo Santo Atanásio, Santo Isidoro Pelusiota, e outros[27]. Pois, Maria, Mãe de Jesus, Maria, Mãe do Redentor, é que coroou a seu Filho com a coroa de espinhas? Sim. Porque quando ele preservou e livrou a sua Mãe das espinhas, então é que mereceu esta gloriosa coroa[28]. Quando o soldado na guerra a preservava da morte, e livrava algum cidadão romano de que não o matasse, recebia uma coroa, que por isso se chamava cívica. Assim Cristo, porque livrou e preservou do pecado a sua Mãe, mereceu a coroa que por isso se deve chamar materna: Coronavit illum mater sua. E não tem menor ilusão nem menor energia o nome do diadema: In diademate. Vendo Alexandre Magno ferido a Lisímaco, valente soldado, tirou da cabeça o diadema, que naquele tempo era uma faixa, para que com ela lhe atassem a ferida[29]. E nunca a coroa de Alexandre esteve mais gloriosa que nesta famosa ação, tirada da cabeça do rei para atar as feridas do soldado. Se Cristo tirara o diadema para atar as feridas de sua Mãe, não obrara como rei, nem como filho; mas, porque obrou como Filho, não atando-lhe as feridas, senão preservando-a delas, por isso com as mesmas espinhas de que foi preservada, lhe teceu a Mãe o diadema com que o coroou como rei: In diademate quo coronavit illum mater sua.

Finalmente, para que se veja sem réplica que esta coroa de espinhas lhe foi devida a Cristo, e Cristo se coroou com ela, por que remiu e preservou a sua Mãe das espinhas do pecado de Adão, ponhamo-nos no Monte Mória, onde a primeira vez se representou este mesmo ato, com as figuras mais vivas e todas as ações mais próprias. Foi Abraão por mandado de Deus sacrificar seu filho naquele monte, quando levantada já a espada, não faltava mais que a execução do golpe, teve-lhe mão no braço um anjo; e para que ficasse o sacrifício perfeito, foi substituído em lugar de Isac um grande cordeiro, o qual ali apareceu atado e coroado de espinhas. Digo coroado, porque para o atarem as espinhas, bastava que lhe enlaçassem os pés, e elas não o prenderam senão pela cabeça, rodeando-a como coroa. Assim o diz expressamente Santo Agostinho, acrescentando o que o mesmo cordeiro foi figura de Cristo coroado de espinhas na sua Paixão: Illo ariete, qui cornibus ex frutice tenebatur, Jesus Christus significabatur, antequam immolaretur, spinis judaicis coronatus[30]. Mas vamos ao texto, e acharemos nele todas as circunstâncias e propriedades do caso na idade, na coroa, na redenção e no modo de remir. Levavit Abraham óculos suos, viditque post tergum arietem inter vepres haerentem cornibus, quem assumens obtulit holocaustum pro filio[31]. Foi o cordeiro semelhante a Cristo na idade: arietem - porque Cristo padeceu em idade de varão perfeito; foi semelhante na coroa: Inter vepres haerentem cornibus - porque Cristo foi coroado de espinhas; foi semelhante na redenção: Quem assumens obtulit holocaustum pro filio - porque o cordeiro remiu o filho, como Cristo a Mãe; sobretudo, foi semelhante no modo de remir, porque Isac foi remido por preservação. O pai, como diz S. Paulo, imaginou que Deus o havia de ressuscitar: Arbitrans quia et a mortuis suscitare potens est Deus[32]. Mas ele não foi ressuscitado depois de morto, senão preservado da morte, para que não morresse. Agora pergunto: e a quem remiu Cristo por modo de preservação entre todos os nascidos? Não há dúvida que só e unicamente a sua Mãe, porque só ela foi preservada do pecado de Adão e da maldição das espinhas, a que por ele foi condenada a terra. Logo, na preservação de Isac foi representada a preservação de Maria, no sacrifício do cordeiro, o de Cristo, e nas espinhas da coroa, as espinhas com que o Filho se quis coroar por ter preservado delas a sua Mãe. E porque a Virgem, Senhora nossa, por este privilégio singular, e só a ela concedido, foi preservada das espinhas do pecado, por isso só a Rosa Mística é rosa sem espinhas, nem teve lugar nela o genuit espinhado e espinhoso de todos os filhos de Adão: Jacob autem genuit Joseph vi rum Mariae.

§V

Segunda excelência da Rosa Mística sobre a rosa natural: ser rosa com fruto. As flores nas palavras de bênção com que Deus deu fecundidade à terra. Se Deus não multiplica milagres sem necessidade, por que não só fez que a vara de Arão florescesse, mas que juntamente com as flores produzisse também frutos? Cristo, fruto de duas flores: uma flor que era a pátria, Nazaré, e outra flor que era a Mãe, ambas flores sem esperança de fruto. A Virgem Maria, única flor com fruto, sem perder a honra e honestidade de flor.

A segunda excelência, não só igual, mas ainda maior, com que a Rosa Mística excede gloriosamente a natural, é ser rosa com fruto. A rosa natural é formosa, mas estéril, como Raquel: a Rosa Mística é formosa como Raquel e fecunda como Lia. A rosa natural é rainha das flores, mas somente flor: A Rosa Mística, sobre ser a Rainha das rainhas é flor com fruto, Mãe com Filho, e Maria com Jesus nos braços: Mariae, de qua natus est Jesus[33].

Nesta diferença de dar fruto ou não dar fruto vai tanto de flor a flor, como de ser a não ser. Quando Deus lançou a bênção de fecundidade à terra, dando-lhe virtude de produzir e criar, as palavras da bênção foram estas: Germinei terra herbam virentem, et lignum pomiferum faciens fructum (Gên. 1, 11): Brote a terra as ervas verdes, e as árvores que produzem fruto. - De sorte que na bênção de Deus entraram nomeadamente as ervas, as árvores e os frutos, e só das flores parece que se não fez menção: mas sim fez. As flores que produzem fruto foram compreendidas nos mesmos frutos que produzem: as que não produzem fruto ficaram contadas entre as ervas. O cravo, o lírio, o jasmim, a rosa, e todas as outras flores que não dão fruto, por mais pintadas, por mais formosas, por mais mimosas e afidalgadas que sejam, todas pertencem ao predicamento das ervas. Este é o lugar que lhe sinalou Davi, sem outra maior dignidade: Mane, sicut herba transeat; mane fioreat, et transeat; vespere decidat, induret, et arescat[34]. Pelo contrário, as flores que dão fruto, estas são as de que faz todo caso o soberano Agricultor da natureza. Assim o entendeu a lavradora das églogas de Salomão, tão entendida como ele. Exortava não a outrem, senão ao mesmo Agricultor divino, a que madrugassem: Mane surgamus[35] - e a que saíssem ao campo: Egrediamur in agrum[36]. E para que com tanto cuidado e desvelo? Não para ver se os prados se vestiam de flores, senão para saber se as flores produziam frutos: Videamus si flores fructus parturiunt[37]. Os frutos são os partos das flores, e as flores que não chegam a este parto são abortos. São geradas, como diz Plinio, in diem, porque no mesmo dia em que a vida lhes dá a cor, a fragrância lhes exala a vida. Pala manhã nascem, ao meio-dia adoecem, à tarde morrem, e nem permanecem em si, nem no fruto, porque o não produzem. Logo, não bastava só à Rosa Mística, para exceder cabalmente a rosa natural, a primeira excelência de ser rosa sem espinhas, se não tivesse também a segunda, de ser rosa com fruto. Já muito antes de isto ser, estava pintado assim nas idéias do Testamento Velho.

Querendo Moisés nomear a tribo e a pessoa a que havia de pertencer o estado eclesiástico e a tiara do Sumo Sacerdócio, para evitar os ciúmes da emulação, tão perigosa entre iguais, ordenou que todos os príncipes e cabeças de cada tribo trouxessem a sua vara ao Tabernáculo, para que, postas no Sancta Sanctorum e na presença da Arca, aquela que milagrosamente florescesse, declarasse qual era a eleição de Deus, e a confirmasse. Fez-se assim, e na manhã seguinte, vindo Moisés e os demais a reconhecer as suas varas, acharam que a de Arão reverdecida, não só tinha produzido flores, mas flores e frutos: Invenit germinasse virgam Aaron: et turgentibus gemmis eruperant flores, qui foliis dilatatis, in amygdalas deformati sunt[38]. Este milagre teve duas partes: a primeira necessária, e a segunda parece que não. Que a vara florescesse era necessário, por que este era o sinal da eleição divina, em que todos se tinham comprometido; que além das flores desse também frutos, não era necessário, porque nem Moisés tinha proposto esta condição, nem os demais a esperavam. Pois, se Deus não faz nem multiplica milagres sem necessidade, porque acrescentou o segundo milagre ao primeiro, e não só fez que a vara de Arão florescesse, mas que juntamente com as flores produzisse também frutos? S. Bernardo e Ruperto, seguindo a Santo Agostinho[39], respondem que aquela vara era uma, e representava outra: era a vara do Arão, e representava a vara de Jessé, a Virgem Maria, Senhora nossa. E para significar Deus que escolhia a Arão entre todos os homens para o sumo sacerdócio, bastava que a vara, em quanto vara de Arão florescesse; porém, para significar que o mesmo Deus havia de escolher a Virgem Maria entre todas as mulheres para Mãe de seu Filho, era necessário que a mesma vara, enquanto representava a vara de Jessé, não só produzisse flores e frutos juntamente. É o que a Igreja canta da mesma Virgem e da mesma vara: Virga Jesse floruit; Virgo Deum et hominem genuit: A vara de Jessé floresceu, e a Virgem gerou a Deus Homem. - Virga Jesse floruit: eis aí a flor; Virgo Deus, et hominem genuit: eis aí o fruto.

No mesmo mistério temos tudo, e não com uma só, senão com dobrada confirmação. O anjo que trouxe ao mundo a embaixada de que Deus se queria fazer homem, não só veio dirigido a Mãe, senão também a pátria de que havia de nascer. Veio dirigido -diz o texto - à pátria, que era Nazaré: Missus est angelus Gabriel a Deo in civitatem Galilaeae, cui homem Nazareth[40]- e veio dirigido à Mãe, que era Maria: Ad virginem desposaram viro, etc. et nomen virginis Maria[41]. E por que razão, ou com que mistério, não só se encaminhou o embaixador, e a embaixada nomeadamente à Mãe, senão também nomeadamente à pátria? Porque o filho que havia de nascer, sendo um, havia de ser fruto de suas flores: uma flor, que era a pátria, e outra flor, que era a Mãe. Ora, vede. Nazaré quer dizer flor: e assim a cidade de Nazaré, como a Virgem de Nazaré, ambas eram flores sem esperança de fruto. A Virgem de Nazaré era flor sem esperança de fruto pelo voto com que se tinha consagrado a Deus de virgindade perpétua, no qual renunciou voluntariamente toda a esperança de haver de ter filho, sacrifício em que a Senhora foi a primeira entre todas as mulheres, e a única entre todas as daquele tempo, as quais ansiosamente pelo fruto de sua fecundidade esperavam ter parte na geração do Messias. A cidade de Nazaré também era flor sem esperança de fruto, e com nota bem particular, ou particularidade bem notável, porque era provérbio antiqüíssimo em toda a Galiléia que de Nazaré se não podia esperar coisa boa. Esta é a razão porque, dizendo o apóstolo S. Felipe a Natanael que tinha achado o Messias, e que era Jesus de Nazaré, Natanael, como letrado tão douto em todas as tradições hebréias, lhe respondeu: A Nazareth potest aliquid bom esse (Jo. 1, 46)? Porventura de Nazaré pode sair alguma coisa boa? - Tal era o estado em que se achavam a cidade de Nazaré e a Virgem de Nazaré, cada uma delas flor, e ambas sem esperança de fruto, quando à cidade e à Virgem chegou a embaixada celestial, de que na mesma cidade e da mesma Virgem havia de nascer o Filho de Deus. E que se seguiu daqui? Que a Virgem, como Mãe, deu a Cristo o nome de Jesus: Vocabis nomen ejus Jesum[42] - e a cidade, como pátria, deu ao mesmo Cristo o sobrenome de Nazareno: Quoniam Nazaraeus vocabitur[43]. - E por este modo, sendo Jesus nazareno, um só fruto foi fruto juntamente de uma e outra flor: fruto da flor Nazaré, enquanto nazareno, e fruto da flor Maria, enquanto Jesus: De qua natus est Jesus.

Mas, se bem a Virgem de Nazaré - como a mesma Nazaré - foi flor com fruto, nesta grande prerrogativa teve a Rosa Mística uma tão singular e excelência, que não só excedeu a rosa natural, estéril e infrutífera, mas a todas as flores que dão fruto fez perder a cor de corridas. As flores que produzem frutos todas morrem de parto. Custa-lhes o parto a vida, e o chegar a dar fruto o deixar de ser flor. É o que disse elegantemente em duas palavras Plínio: Pereunt ut pariant. São as flores como Raquel, que morreu de parto de Benjamim. Viveu o filho e morreu a mãe: nasceu o fruto e pereceu a flor. O princípio do frutificar foi o fim do florescer. E esta é a triste pensão em que todos os filhos das flores nascem póstumos, porque nem o fruto viu a flor de que nasceu, nem a flor o fruto que produziu. Na vara florescente de Arão é notável a palavra com que o texto sagrado declara que as flores deram fruto: Flores in amygdalas deformati sunt. Não diz que as flores produziram, ou se transformaram, senão que se deformaram em frutos: deformati sunt. O deformar-se é deformidade, porque é perder a própria forma. Havemos, pois, de dizer que é deformidade das flores o produzir frutos? Sim, porque quando o fruto recebe a forma, perde a flor a sua. Por mais formosas que fossem as flores, em chegando a produzir fruto, já o que era formosura fica deformidade, perdida a gala, perdida a cor, perdida a forma, e caído e perdido tudo o que lhe dava o nome e ser de flor.

Não assim a flor de Nazaré, Maria, como falando com a mesma Senhora argúi discretamente S. Pedro Crisólogo: In tuo conceptu, in tuo pariu crevit pudor, aucta est casotas, integritas roborata est, est solidata virginitas Virgo, si tibi salva sunt omnia, quid dedisti[44]? Na vossa conceição e no vosso parto, Senhora, cresceu a pureza, aumentou-se a castidade, fortificou-se a inteireza e confirmou-se a virgindade. Pois, Virgem, se nada perdestes, que é o que destes; Si tibi salva sunt omnia, quid dedisti? - Bem perguntado e bem argüido, se a obra fora da natureza. A natureza no-lo sabe dar sem tirar: tira e destrói uma forma para dar e introduzir outra. Mas não assim na Cheia de Graça, em que as leis da natureza não tiveram parte. Deu a graça e recebeu o Filho a forma de fruto sem tirar nem perder a Mãe a forma de flor. Se a rosa natural tivera entendimento e lhe perguntasse porque era flor sem fruto, responderia sem dúvida, com majestade de rainha, que antes não queria ter fruto que perder a honestidade e a honra. O mesmo respondeu a Rosa Mística, não em outro senão no mesmo caso. Quando o anjo disse à Senhora: Ecce concipies, et paries filium[45] - respondeu a Virgem conforme o voto e pressuposto em que estava firme: Quomodo fiel istud, quoniam virum non cognosco[46]? E porque antepôs a honra e a honestidade ao fruto, por isso foi flor com fruto, sem perder a honra e honestidade de flor. Assim o diz a mesma Virgem, e pelas mesmas palavras: Flores mei fructus honoris et honestatis (Eclo. 24, 23): As minhas flores são frutos de honra e de honestidade. -Etenim in arboribus - comenta Cornélio -flore simul cum fructibus existere non possunt, sed erumpente fructu, decidir fios: at vero in sola Deipara, super omnem naturae cursum, haec duo conjunta reperiuntur: Diz, pois, a Virgem que as suas flores são frutos da honra e da honestidade, porque, se os frutos não fossem da honra e da honestidade, quando nascessem os frutos cairiam as flores. E como só o fruto bendito da bendita entre todas as mulheres foi fruto da honra e da honestidade, só e unicamente nela se acha o fruto junto com a flor, e a flor junto com o fruto: o fruto Jesus e a flor Maria: Mariae de qua natus est Jesus.

§ VI

Maria, Rosa sem espinhas e rosa com frutos. Quais são os frutos que se colhem do fruto da Rosa Mística? No Rosário da Virgem têm seguros seus devotos todos os bens. O que disse uma voz a um devoto bem intencionado, que queria deixar a devoção do Rosário?

Temos visto como a soberana Rosa Mística é rosa sem espinhas e rosa com fruto. De um fruto parece que se não podem colher outros frutos, e muito menos das espinhas, das quais disse Cristo: Numquid colligunt de spinis uvas, aut de tribulis ficus[47]? Contudo, assim das espinhas, de que careceu a mesma Rosa Mística, como do fruto que produziu, havemos nós de colher, não só copiosos, mas preciosos frutos. Veniat dilectus meus in hortum suum, et comedat fructum pomorum suorum (Cânt. 5, 1): Venha o meu amado - diz a Virgem, Senhora nossa - ao seu jardim, e colha os frutos de seus frutos que são os mesmos de que tinha dito: Cum pomorum fructibus[48]. E já temos frutos de frutos, que era a primeira coisa que parecia nova, dificultosa ou imprópria. O Amado todos sabemos que é por antonomásia Cristo; o seu jardim também temos dito muitas vezes que é o Rosário. E quais são os frutos de que se hão de colher, ou de que se colhem outros frutos? São os mistérios do mesmo Rosário, nos quais está repartido o bendito fruto do ventre sacratíssimo, e por isso, sendo um só fruto, se chama frutos. Para colher, pois, agora, ou para recolher estes frutos e para saber e compreender quais, quantos, quão grandes, quão úteis e maravilhosos sejam, basta só a memória do que temos tão largamente historiado e discorrido nestes trinta sermões, nos quais reduzido ao epílogo de uma só palavra, mostramos que no Rosário da Virgem, Senhora nossa, têm seguros seus devotos todos os bens. Todos os bens, ou são da natureza ou da fortuna ou da graça, ou da glória. Os da natureza são a vida e a saúde; os da fortuna, a riqueza e a honra; os da graça, o perdão dos pecados e aumento das virtudes; os da glória, a vista de Deus e bem-aventurança eterna. E quantos vimos que desconfiados de todo o remédio humano, por virtude do Rosário recuperaram a saúde e, estando para morrer ou condenados à morte, e ainda depois de mortos tornaram a vida? Quantos que, perdida a fazenda ou não tendo que perder, da miséria da extrema pobreza surgiram subitamente a opulência de ricos; e, abatida na opinião dos homens a honra, se viram mais honrados do que dantes eram? Quantos que pela continuação e enormidade dos pecados, quão desesperados do perdão, se restituíram à graça, ou tíbios e imperfeitos nas virtudes, subiram ao grau mais alto da perfeição? E quantos, finalmente, que morrendo impenitente, e segundo a presente justiça, ou dignos da condenação ou já condenados, aos quais arrancados das unhas do demônio e das gargantas do inferno, se lhes concedeu nova vida, com que mereceram a eterna? Estes são os frutos que se colhem do fruto da Rosa Mística, enquanto rosa com fruto.

E enquanto rosa com espinhas, livra-nos também delas? Sim. E pelo mesmo modo e privilégio singular com que seu Filho a livrou, que é o da preservação. Todos os males, trabalhos, desgraças e misérias desta vida, são feridas mais ou menos penetrantes com que nos picam ou trespassam as espinhas de Adão. Assim o confessou Davi: Conversus sum in aerumna mea, dum configitur spina (SI. 31, 4): Converti-me nos meus trabalhos, quando neles, e com eles se pregavam em mim as espinhas que nasceram do primeiro pecado. - Para evitar estas espinhas, nenhuma prudência, nenhuma cautela basta, porque os casos súbitos e as desgraças se levantam debaixo dos pés, e não estão na mão do homem. Que lavrador há de imaginar que, semeando trigo e plantando vides, da seara e da vinha lhe há de nascer espinhas? Pois, isto é o que sucede aos homens, que donde tinham razão de esperar a conveniência, lhes nasce a desgraça, e em vez de colher frutos, colhem espinhas. Jeremias, falando da sementeira do trigo: Seminaverunt triticum, et spinas messuerunt (Jer. 12, 13): Semearam trigo, e colheram espinhas; e Isaías, falando da planta das vides: Expectata est ut faceret uvas, fecit autem spinas (Is. 5, 2 secundum LXX): Esperava que da minha vinha houvesse de colher uvas e colhi espinhas. - Destas espinhas, pois, nascidas donde menos se podiam esperar ou temer, e destes casos inopinados, que nenhuma providência pode prevenir, e de que nenhuma cautela nos pode livrar, nos livra a Mãe de Deus por meio do seu Rosário, preservando-nos das mesmas desgraças e dos mesmos trabalhos, sem nós o sabermos nem advertirmos.

Muitos anos havia que um devoto bem intencionado rezava o Rosário, quando o demônio o tentou com o pretexto de maior serviço de Deus, não a que deixasse a devoção, mas a que trocasse esta por outra. - Há tantos anos - dizia consigo - que rezo o rosário, sem que por este serviço receba nenhuma mercê ou favor da Virgem Maria, sinal certo, que lhe não agrada; e assim parece que será mais conveniente que eu sirva a mesma Senhora e lhe ofereça outro tributo que lhe seja mais agradável, com que mereça alguma remuneração, que em tanto tempo não tenho merecido - Assim estava este homem, não deliberado, mas inclinado e vacilante, quando ouviu uma voz que o chamou por seu nome. - Quem me chama? - disse espantado. - Chama-te - continuou a voz - quem quer saber de ti por que te queixas da Senhora do Rosário. - Não me queixo, respondeu, mas descontenta-me esta devoção, porque, havendo tantos anos que a continuo, nenhum favor tenho alcançado por ela. - Oh! ingrato e desconhecido - replicou então a mesma voz, e com maior aspereza -já que dizes que nenhum favor alcançaste pela tua devoção, responde-me ao que te quero perguntar. Dize-me: onde estão teus irmãos? Não morreram todos, e tu estás vivo, e são? Tal e tal casa de teus vizinhos, não arderam, e a tua está em pé? Tantos outros não padeceram tantas desgraças e infortúnios, na fazenda, na honra, na vida, na mulher, nos filhos? Pois, se a Virgem Maria, como Senhora do Rosário, pelo que tu lhe rezavas, te preservou de tantos trabalhos, desastres e perigos, como dizes que te não tem aproveitado esta devoção, nem a Senhora por ela te tem feito mercês, sendo estas tão grandes? - Ouvindo isto, ficou corrido e confuso o bem intencionado, mas mal entendido devoto do Rosário. Conheceu que querer trocar esta devoção por outra, era tentação do demônio, e viu claramente que as mercês, que sem reparar nem advertir tinha recebido, eram mais e maiores, e muito mais singulares, que quantas ele podia desejar nem pedir. De sorte que os bens que nos faz, e os males de que nos livra a Virgem Santíssima do Rosário, respondem às duas propriedades da Rosa Mística, rosa sem espinhas e rosa com fruto. Rosa sem espinhas, de que foi preservada, preservando-nos dos males, e rosa com fruto de que foi fecundíssima, comunicando-nos os bens, e em uma e outra excelência como Mãe do Autor de todos os bens e Redentor de todos os males, que é Jesus: Mariae, de qua natus est Jesus.

§ VIII

Conclusão: os dois desenganos das duas rosas: a brevidade da vida presente e a eternidade e riscos da vida futura. O perigo a que estava exposto o autor durante a epidemia de 1686. Na cruz, quando Cristo deixa sua Mãe, então se vê deixado de Deus. A exortação de Tomás de Kempis.

Tenho provado o que prometi, e mostrado em uma outra rosa, não tanto a semelhança da natural quanto a diferença e vantagens da mística. E, pois, este último sermão é o fim dos demais, justo será que também nele e com ele demos o fim a todos. Mas que direi eu aos devotos e não devotos do Rosário por conclusão e remate de quanto lhes tenho dito? Sejam por despedida dois desenganos: um com que nos admoesta a rosa natural, a brevidade desta vida; e outro, com que nos lembra a Rosa Mística os riscos e eternidade da outra.

Estava calado o mais eloqüente de todos os profetas, Isaías, quando ouviu uma voz do céu, a qual lhe mandava que bradasse: Vox dicentis, clama (Is. 40, 6 s). E como o profeta perguntasse o que havia de bradar Et dixi, quid clamabo? – respondeu a voz: Omnis caro foenum, et omnis gloria ejus quasi fios agri. Exsiccatum est foenum et cecidit fios (ibidem). O que hás de bradar, com tais vozes que todos te ouçam, é que a vida do homem é como o feno verde, e toda a sua glória como a flor do campo: secou-se a verdura, caiu a flor. - Tal é a brevidade da nossa vida; e não há flor que não esteja bradando: Homens, aprendei de mim. - Por isso dizia o mais desenganado de todos: Homo natus de muliere, brevi vivens tempore, etc. Qui quasi fios egreditur et conteritur[49]. E se qualquer flor é espelho para a vida humana, e desengano para a brevidade dela, quanto mais a que mais floresce, e menos dura que todas, e a que é a flor das flores, a rosa?

Quam longa una dies, aetas tam longa rosarum,

Una dies aperit, conficit una dies[50]:

Toda a idade ou idades da rosa, não tem mais duração que de um só dia, em que nasce, vive e morre. - O mesmo sol que a viu de manhã fresca e formosa, de tarde a deixou murcha e seca. Com tão apressado vôo passa a rosa a carreira da vida, sendo nova pregadora cada dia da brevidade da nossa. Tal é o documento e desengano que nela consideram poetas, oradores e santos, moralidade que algum dia me pareceu demasiadamente encarecida e estreita, mas hoje vejo que ainda é larga. Neste mesmo maio de mil seiscentos e oitenta e seis, em que escrevo esta regra, e não sei se chegarei a acabá-la, mais larga vida é a da rosa na Europa que a dos homens na América. Lá toda a rosa tem de vida um dia inteiro: cá muitos homens - que tal é a força do mal presente - não chegam a ter ametade do dia, nem duas horas, nem uma, arrebatados da saúde à morte sem passar pela enfermidade. Este é o clima mais benigno, estes os ares mais puros, esta a terra mais sadia, esta é hoje a Bahia. Mas, que importa que a terra, o ar e as influências dos astros se mudem, ou não mudem, se todos trazemos dentro em nós o veneno da própria mortalidade? As tréguas da vida, sempre duvidosa e incerta, poderão durar mais ou menos; mas, finalmente, se há de morrer. Finalmente - torno a dizer se há de morrer. E se a disposição mais robusta e a idade mais florente não têm um dia, nem uma hora, nem um momento seguro, que deve fazer cada um neste universal desengano da vida, senão tratar da eterna?

Este é o fruto, e de suma importância, que da rosa natural, que não dá fruto, devem colher os que têm fé e juízo. E porque dos riscos da eternidade só nos pode livrar a Rosa Mística, seja a segunda conclusão e último desengano, que só debaixo do patrocínio da Virgem Maria, Senhora nossa, se pode esperar e conseguir a vida eterna com firme e segura confiança. Nela e por ela se salvam todos os que se salvam, e sem ela, e porque sem ela, por isso se perdem quantos se perdem. Ouvi concordes na mesma e admirável sentença a dois insignes intérpretes dos arcanos divinos, Santo Anselmo e S. Boaventura: Sicut, o Beatissima, omnis a te aversus, et a te despectus, necesse est ut intereat, ita omnis ad te conversus, et ad te respectus, impossibile est ut pereat[51]: Assim como, ó Virgem beatíssima, todo aquele que se aparta de vós, e vós apartais dele os vossos misericordiosos olhos, necessariamente se perde, assim aquele que se converte a vós, e vós pondes nele os olhos de vossa misericórdia e piedade, impossível é que se não salve. - As palavras necesse est e impossibile est são as mais apertadas que se podem dizer nem imaginar. E estes são os termos por que falam, com a aprovação geral dos teólogos, aqueles grandes doutores, e tão alumiados do céu. Quanto à primeira parte, é notável a conseqüência da terceira e quarta palavra de Cristo na cruz; a terceira foi: Mulier ecce filius tuus[52] - na qual Cristo deixou a S. João sua Mãe, a quarta foi: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me[53] - na qual se queixou de se ver deixado de Deus. - Pois, quando Cristo deixa sua Mãe, então se vê deixado de Deus? Sim. Porque Cristo na cruz, como tinha tomado sobre si nossos pecados, fazia figura de pecador segundo a propriedade desta figura que representava - nesta representação digo, e segundo a propriedade desta figura que representava - foi conseqüência natural que se visse deixado de Deus quando acabava de deixar a sua Mãe, porque todo o pecador que deixar a Mãe de Deus, necessariamente se verá também deixado de Deus: Necesse est ut pereat. Pelo contrário - quanto à segunda parte - S. João, no mesmo teatro do Calvário, fazia figura dos predestinados que por isso nomeadamente se chama ali o amado: Discipulum quem diligebat[54]. - E aquele a quem Deus dá a Virgem Maria por Mãe: Ecce Mater tua[55] - e ele a aceita e serve como tal: Et ex illa hora eccepit eam discipulus in sua[56] - assim como os predestinados não podem deixar de se salvar, assim é, impossível que ele se perca: Impossibile est ut pereat.

Supostos estes dois desenganos, um do fim desta vida, que não pode tardar muito, e outro da vida sem fim, que só se pode assegurar ou perder no patrocínio da Mãe de Deus, ou falta dele, o que resta é, que todos, servindo com verdadeira devoção à mesma Senhora, procuremos merecer e alcançar o patrocínio e amparo de sua poderosíssima graça. Oh! Quem me dera nesta última despedida poder persuadir e meter na alma de todos esta resolução! Mas, porque não fio tanto da fraqueza do meu espírito, ouvi ao devotíssimo e espiritualíssimo Tomás de Kempis, exortando a seus ouvintes em semelhante caso: Eligite hanc benignissimam Matrem Jesu in Matrem specialem, et advocatam ante morrem, et salutate eam Angelica Salutatione frequenter, quia hanc votem audit valde libenter[57]: Elegei a benigníssima Mãe de Jesus por especial Mãe vossa e advogada antes da morte, e saudai-a freqüentemente com a oração da Ave Maria e saudação do anjo, cuja voz sempre ouve com grande vontade, e lhe agrada muito - por mais que se repita muitas vezes, como fazemos no Rosário. - Marfam salutate: saudai a Mana; Mariam invocate: invocai a Maria: Manam cogitate: meditai em Maria: Mariam nominate: nomeai a Maria: Mariam honorate: honrai a Maria: Mariam sempre glorificate: glorificai a Maria. - E porque não bastam só as vozes e louvores da boca, acompanhai a Mana em todos os passos de sua vida e de seu Filho: Cum Maria ambulate - que é a segunda e mais interior parte do mesmo Rosário. Cum Maria Jesum quaerite: com Maria buscai a Jesus; Cum Maria Jesum in ulnis portate: com Maria trazei a Jesus nos braços: Cum Maria et Jesu in Nazareth habitate: e com Maria e Jesus morai em Nazaré, que são os mistérios Gozosos. Cum Maria in Jerusalém ite: com Maria ide a Jerusalém: Cum Maria juxta crucem Jesu state: com Mana estai junto da cruz de Jesus: Cum Maria Jesum plorate: com Maria lamentai a morte de Jesus; Cum Maria Jesum sepelite: e com Maria o sepultai - que são os mistérios Dolorosos. Cum Maria et Jesu resurgite: com Maria e Jesus ressuscitai; Cum Maria et Jesu caelos ascendite: com Maria e Jesus subi ao céu: Cum Maria et Jesu vivere et mor! desiderate: e com Maria e Jesus desejai viver e morrer nesta vida, para os gozar na outra - que são os mistérios Gloriosos.

Assim deu fim à sua exortação o espírito extático de Tomás, sem nomear o Rosário, nem cuidar nele, porque o espírito e alma desta devoção não consiste no nome que lhe deu a rosa natural, senão no místico dos mistérios, de que é composto. E esta foi e é a razão por que no princípio ofereci, e agora tomo a oferecer à Soberana sempre Virgem, minha Libertadora e Senhora estes dois pequenos e mudos tributos da já cansada pena, debaixo do nome sem voz de Rosa Mística.

§ VIII

Três defeitos que o autor reconhece neste trabalho: a largueza dos sermões, a eleição dos assuntos e a indignidade do pregador. A esses defeitos supre o autor terminando esta série de sermões com um sermão que a própria Virgem do Rosário ordenou a São Domingos que pregasse em Paris.

Três defeitos grandes reconheço e confesso neles, os quais posto que tarde, como contrição na honra na hora da morte, me há de ensinar a emendar a mesma Senhora e mestra do Rosário. O primeiro defeito é a largueza dos sermões; o segundo, a eleição dos assuntos; o terceiro, a indignidade do pregador. A largueza dos sermões, que sendo no número trinta, na extensão são mais de sessenta, e por isso molestos a quem os ler. A eleição dos assuntos, que para os doutos poderiam ser mais levantados, para o vulgo mais claros e, para todos mais úteis. A indignidade do pregador que tanto diminui o crédito na doutrina como a fé em quem a ouve. Mas todos estes defeitos suprirá só sermão sumamente breve, sumamente útil e de suma autoridade e dignidade. Assim como Deus, tendo falado primeiro pelos profetas, depois, como notou S. Paulo, falou pelo seu próprio Filho: Olim Deus loquens in prophetis: novissime locutus est nobis in Filio[58] - assim também, tendo muitas vezes pregado o Rosário por S. Domingos e seus filhos, ultimamente o pregou e ensinou a pregar por sua própria Mãe: Novissime locutus est nobis in Matre. Quando S. Domingos, na festa de S. João Evangelista, tendo estudado um doutíssimo sermão para pregar na catedral de Nostra Dama a toda a corte e universidade de Paris, lhe mandou a Soberana Virgem que pregasse do Rosário, como já referi: meteu-lhe na mão a Senhora um livro, dizendo que ali estava escrito um sermão do Rosário, e que assim lhe mandava que o pregasse e se devia pregar. Este sermão, pois, brevíssimo, utilíssimo e digníssimo, reservei e poupei para este último lugar, não como coroa, mas como retração e emenda dos meus, desejando quando menos acabar bem.

564.O modo de pregar de Cristo, Sabedoria infinita, todo era por parábolas, e este sermão da Mãe da mesma Sabedoria todo é por suposições e perguntas, para que nós tiremos as conseqüências. Fortíssimo modo de persuadir, e evidentíssimo. Diz, pois, ou pergunta assim a soberana pregadora do Rosário: - Dizei-me se um reino estivesse falto de sucessão, por ser a rainha estéril, e lhe oferecessem uma pedra preciosa, por virtude da qual ficasse fecunda, não a aceitaria com muito gosto? - Nesta pergunta aludia a Senhora à rainha Dona Branca de França, que por virtude do Rosário, não tendo sucessor o reino, alcançou um filho, e tal filho, como S. Luís. Agora fala em geral com todos, fazendo pelo mesmo modo diferentes perguntas.

Dizei-me: quem há de passar por terra de inimigos, não procura levar um salvo-conduto, com que lhe dêem a passagem livre? E se o caminho é escuro e de noite, não estima muito uma luz, que vá diante e o guie? E se é deserto e despovoado, não deve prevenir e levar consigo o viático? E se, cansado de caminhar, acha uma árvore sombria e uma fonte fresca, não tem este por um grande alívio e regalo?

Mais: se na terra em que viveis, fossem todos tão pobres, ou tão avarentos que, pedindo vós esmola de porta em porta, ninguém vo-la desse, e tivésseis notícia de um príncipe muito rico e muito misericordioso, não vos chegaríeis a ele? E se a mesma terra se abrasasse em peste, e vos inculcassem um antídoto contra o qual não tivesse forças o contágio, não o compraríeis logo, e traríeis junto ao coração? E se as sentinelas dessem rebate e chegassem a bater a cidade exércitos inimigos, não vos acolheríeis ao castelo mais forte?

Finalmente: se estivésseis metido e aferrolhado em um cárcere, sem esperança de liberdade, e vos oferecessem uma chave, com que abrir as portas e sair dele não beijaríeis a mão de quem vo-la desse, e vos poríeis em salvo? Ou, se tivésseis ofendido o rei com graves crimes de lesa-majestade, estando já para ouvir a sentença de morte, com confiscação de todos os bens, e perpétua infâmia não solicitaríeis por todas as vias e a todo o preço a graça e patrocínio da rainha, para que vos valesse naquele perigo e vos alcançasse perdão?

Isto é o que prega, e estas são as perguntas que faz a Virgem do Rosário, supondo que o mesmo Rosário é o salvo-conduto para os inimigos, a luz para as trevas, o viático para o deserto, a árvore sombria para o calor, a fonte fresca para a sede, o rio misericordioso para a esmola, o antídoto para a peste, o castelo forte para a guerra, a chave para o cárcere, e, sobretudo a mesma Senhora, a rainha só poderosa, para aplacar e alcançar perdão do rei ofendido e irado. O que agora resta é que cada um responda a estas perguntas, e sobre estas suposições tire as conseqüências. Haverá algum tão mal entendido, e tão inimigo de si mesmo e da sua salvação, que não infira daqui, e se persuada e resolva a procurar o patrocínio e amparo da Senhora do Rosário, e por meio do mesmo Rosário a se introduzir na sua graça? Ouçam todos, e considerem e meditem devagar, as forças deste fortíssimo sermão, e as evidências deste invencível discurso. E os que responderem como devem às perguntas, e bem podem ajuntar às suposições, que sem dúvida são do número dos predestinados para a glória: Quam mihi, et vobis, etc.

FINIS-LAUS DEO



[1] E Jacó gerou a José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus.

[2] José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus (Mt. 1, 16).

[3] 1 Rs. 17, 50.

[4] Jo. 3, 14.

[5] Jo. 6, 59

[6] Eclo. 24, 18.

[7] Aqui está o pão que desceu do céu. Não como vossos pais que comeram o maná e morreram. o que come deste pão viverá eternamente (Jo. 6, 59)

[8] Assim como o Pai, que é vivo, me enviou (Jo. 6, 58).

[9] Não como vossos pais que morreram (Jo. 6, 59).

[10] E Jacó gerou a José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus (Mt. 1, 16).

[11] Abraão gerou a Isac, e Isac gerou a Jacó, e Jacó gerou a Judas (Mt. 1, 2).

[12] A terra será maldita na tua obra. Ela te produzirá espinhos e abrolhos (Gên. 3, 17 s).

[13] Eis aqui sabes que eu fui concebido em iniqüidades, e em pecados me concebeu minha mãe (Sl. 50, 7)

[14]D. Basilius in Exameron.

[15]Eu porei inimizades entre ti e a mulher: ela te pisará a cabeça (Gên. 3, 15).

[16] A terra será maldita na tua obra. Ela te produzirá espinhos e abrolhos (Gên. 3, 17 s).

[17]Ela te pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar (Gên. 3, 15).

[18] 1, Rs. 17, 50; Gên. 14, 15 e seg.

[19] Filho de Davi, filho de Abraão (Mt. 1, 1).

[20] Basil. Seleuc. orat. 16.

[21] Ver nota 16.

[22] Abençoaste, Senhor, a tua terra (Sl. 84, 2).

[23] Abençoaste, Senhor, atua terra; apartaste o cativeiro de Jacó. Perdoaste a maldade do teu povo (Sl. 84, 2 s).

[24] Êx. 3, 2.

[25] Clement. Alex. 2, Pedag. cap. 8.

[26] Saí, filhas de Siao, e vede ao rei Salomao com o diadema de que sua mãe o coroou (Cânt. 3, 11).

[27]D. Athanas, tract. de passion. et Cruce. Isidor. Pelusiota, lib. 1, Epist. 95.

[28]Textor in office. tom. 1, verb. Coronae Diversae.

[29]Justin. lib. 15, cap. 3, in fin.

[30]August. lib. 16, de Civitat.

[31]Levantou Abraão os seus olhos, e viu atrás de si um carneiro que estava embaraçado pelas suas pontas entre os espinhos, e, pegando nele, o ofereceu em holocausto em lugar do filho (Gên. 22, 13).

[32]Considerando que Deus o podia ressuscitar até dentre os mortos (Hebr. 11, 19).

[33]Maria, da qual nasceu Jesus (Mt. 1, 16).

[34]De manhã passa como a erva, pela manhã floresce, e passa; à tarde cai, endurece, e se seca (Sl. 89, 6).

[35]Levantemo-nos de manhã (Cânt. 7, 12).

[36]Saíamos ao campo (ibid. 11).

[37]Vejamos se as flores produzem frutos (ibid. 12).

[38]Achou que tinha brotado a vara de Arão, e que, inchando os gomos, tinham saído flores que se transformaram em amêndoas (Num. 17, 8).

[39] Bernard. Rupertus. August. Serm. 1 de Tempore.

[40] Foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré (Lc. 1, 26).

[41] A uma virgem desposada com um varão, etc. e o nome da virgem era Maria (ibid. 27).

[42] E por-lhe-ás o nome de Jesus (Lc. 1, 31).

[43] Que será chamado Nazareno (Mt. 2, 23).

[44] Chysol. Serm. 142.

[45]Eis conceberás e parirás um filho (Lc. 1, 31)

[46]Como se fará isso, pois eu não conheço varão (ibid. 34)?

[47] Porventura os homens colhem uvas dos espinhos, ou figos dos abrolhos (Mt. 7, 16)?

[48] Com frutos de macieiras (Cânt. 4, 13)

[49] O homem nascido da mulher vive breve tempo, etc. Que como flor sai, e é pisado (Jo. 14, 1 s).

[50] Ausonius.

[51] D. Anselm. de Laudib. Virgin. D. Bonavent. in Pharetr. cap. 5.

[52] Mulher, eis aí o teu filho (Jo. 19, 26)

[53] Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste (Mt. 27, 46)?

[54] Ao discípulo que ele amava (Jo. 19, 26).

[55] Eis aí tua mãe (ibid. 27).

[56] E desta hora por diante a tomou o discípulo para sua casa (ibidem).

[57] Thomas a Kempis 3. p. Serm. 2.

[58] Deus, tendo falado noutro tempo pelos profetas, ultimamente nos falou pelo Filho (Hebr. 1, 1s).



 

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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão Trigésimo com o Santíssimo Sacramento Exposto, de Padre António Vieira.


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio