Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Undécima parte, Sermões do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

UNDÉCIMA PARTE

OFERECIDA
À Sereníssima Rainha daGrã-Bretanha

LISBOA,

Na Oficina de Miguel Deslandes,
Impressor de Sua Majestade.

M. DC, LXXXXVI.

Com todas as licenças necessárias e Privilégio Real.

SENHORA:

O mais antigo criado da Real Casa de V Majestade, não sei por que destino, muitas vezes ressuscitado antes de morto, oferece ainda vivo à Soberana Grandeza de V Majestade este pequeno volume de discursos vários, e no rosto dele, ao glorioso nome de Catarina, a roda da mesma santa superior a toda a variedade.

Acerca desta grandeza e desta roda me lembra que em duas colunas da ponte triunfal por onde, dividindo o último passo entre a terra e o mar, se despediu V. Majestade da Pátria, fixei eu duas empresas, que o tempo depois mostrou não serem menos panegíricas que verdadeiras.

Aludindo ao apelido da Grã-Bretanha, signifiquei quanto V Majestade, sendo Rainha sua, lhe acrescentava a grandeza Mostrava-se ela como ilha no meio do mar, tocando com uma ponta a Europa em Lisboa, com outra a África em Angola, com a terceira a Ásia em Goa, e com a última a América nesta Bahia. E, estendendo-se por este modo a Grã-Bretanha a toda a grandeza do mundo, emendava eu o verso do Príncipe dos poetas, demonstrando, como se via na pintura, que já os ingleses não eram os apartados e divididos de todo o mundo, mas, por mercê da nova Senhora, e Rainha sua, unidos a todo ele. A alma do que se via pintado se declarava nestas duas regras:

Desine jam toto divisas orbe Britannos Dicere: Sic toti Britannia jungitur Orbi.

A segunda empresa, verdadeiramente real, era do Sereníssimo Esposo, El-Rei Carlos, o qual, unindo a consonância das primeiras letras dos dois nomes Carlos e Catarina, em sinal do seu amor e estimação debaixo da mesma Coroa, mandou entalhar dois CC. Cada uma destas letras significa cento, e, voltada uma para a outra, formam ambas um círculo perfeito, SÍmbolo da eternidade. Aludindo, pois, a diferença da religião, e pintada, ou descrita esta segunda figura, igualmentecoroada, defronte da primeira, em uma prognosticava a duração do reinado, em outra a conversão do rei, decifrando o pensamento de ambas estes dois versos:

Bis centum Imperii CC duplex auguror annos. Aeternos faciet si se converterit unum.

O que agora direi – como em matéria tão secreta – é por boca da fama, a qual publicou em Roma, assistindo eu nela, que acabara El-Rei da Grã-Bretanha a vida com felicíssima morte, professando, pelos santos e eficazes conselhos de V. Majes­tade, a Religião Católica. Guardou a graça para o túmulo, o parto que negou a natureza ao tálamo, sendo V. Majestade mais altamente mãe do mesmo que havia de ser pai, pois, quando lhe não deu herdeiro para a coroa temporal da terra, o fez herdeiro da eterna no céu. Na volta circular daquele C foi mais venturosa a roda de V Majestade que a de Santa Catarina, porque ela não o converteu ao Imperador Maximino, que lhe oferecia as bodas, e V Majestade, aceitando as de el-rei Carlos, e o seu Império, lhe deu por ele o Empíreo.

Com este triunfo se restituiu V Majestade à Pátria, como o sol ao mesmo ponto do horizonte donde tem saído, contente de no tempo da sua ausência ter alumiado os antípodas. Menos parece que diz o número singular na pessoa daquele rei, mas a de Constantino em Roma ensinou ao mundo que a majestade do exemplo real nunca saia ele só, senão acompanhada de muitos. Catorze anos antes do nascimento de V. Majestade se tinha estampado em Lisboa, e recebido com aplausos de vaticínio, um prognóstico, que de toda a nação inglesa – tão ilustre na fé e santidade antigamente – dizia:

Por meio convertida de uma infanta Nesta conquista irá da Terra Santa

E como a terra, antes de nascer o que há de produzir, primeiro conserva e esconde em si o que nela se tem semeado – razão por que os espíritos apostólicos são chamados aeternitatis satores[1] – não serão tão maravilhosos como grandes na Grã-Bretanha os efeitos das heróicas e religiosas virtudes, que lá admiravam e veneravam nas loriosas ações da sua Rainha os mesmos que as não imitavam, quando, a seu tempo, como se espera, brotarem da mesma terra, e saírem a luz os frutos delas.

Entretanto, logre Portugal a ventura de se ver tão rico, enobrecido com a real presença de V Majestade, que todos invejamos de tão longe. E eu, como mais lembrado, não podendo dissimular a reflexão e mágoa de que as saudades que V. Majestade embarcava, entregues ao mar e ao vento, não achassem já na Pátria aquela doce respiração, de que uma e outra alma viviam. Dou, contudo, infinitas graças a Deus, que tendo-nos levado para si ambas as Majestades, assim dos filhos, como das filhas, nos deixasse sua providência os dois últimos, para que os presentes logrem e os ausentes venerem por muitos anos, nestas duas cópias tão parecidas, os heróicos e gloriosos dois originais, a que devemos a liberdade, a coroa e a eterna memória.

ANTÔNIO VIEIRA

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

[1] Semeadores da eternidade.