Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão de Santo Antônio, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO,

Em dia da Santíssima Trindade, na Cidade do Maranhão.

Qui fecerit et docuerit, hic magnus vocabitur in regno caelorum[1].

A predestinação dos homens e a predestinação dos dias. Qual é a razão por que um dia é mais célebre que outro dia, e um ano mais célebre que outro ano, sendo que o mesmo sol faz os dias e mais os anos? Razões da união e concurso da festa da Santíssima Trindade com a solenidade de Santo Antônio. De que modo o dia da Santíssima Trindade vem autorizar, honrar e engrandecer o dia do Santo Antônio? Assunto do sermão: Concorrendo toda a Santíssima Trindade para as grandezas de Santo Antônio, o Padre lhe deu o poder, o Filho lhe deu a sabedoria, e o Espírito Santo lhe deu a santidade.

Não só há predestinação para os homens, senão também para os dias: os homens predestinados para a glória de Deus; e os dias predestinados para Deus ser glorificado neles. Não é esta proposição ou distinção minha, senão da mesma sabedoria divina, no capítulo trinta e três do Eclesiástico. Faz ali este autor, tão canônico como todos os outros, da Escritura Sagrada, uma notável questão: Quare dies diem superat, et iterum lux lucem, et annus annum a sole (Eclo. 33, 7)? Qual é a razão por que um dia é mais célebre que o outro dia, e também neste mesmo dia um ano mais célebre que o outro ano, sendo que o mesmo sol faz os dias e mais os anos? — Responde o mesmo texto, que a razão desta diferença não é outra, senão a vontade e eleição divina. E, assim como Deus predestinou os homens, não só para serem gloriosos no céu, mas também para serem mais santos, mais sábios, mais nobres, mais ricos, e mais poderosos e ilustres na terra, assim também predestinou os dias, para que uns fossem mais santos, mais festivos, e de maior veneração e celebridade, por serem dedicados a maior culto divino ou na fé da sua mesma divindade, ou na memória e reconhecimento de seus particulares benefícios. Esta é a resposta quanto à primeira parte da questão e quanto à diferença dos dias: Quare dies diem superat? — Quanto à segunda parte, e à diferença dos mesmos dias na variedade dos anos: Et iterum lux lucem, et annus annum — a razão da diferença é porque, variando-se com os anos os tempos, a ordem e o lugar dos dias também se varia, da qual variedade e mudança se segue que as festas e celebridades dos dias, ou se dividem entre si, ou se ajuntam no mesmo dia. E tudo isto não sucede acaso, senão porque assim o ordenou a disposição da sabedoria divina: A Domini scientia separati sunt, facto sole, et praeceptum custodiente. Et immutavit tempora, et dies festos ipsorum, et in illis dies festos celebraverunt[2].

Tudo o que até agora disse — e foi necessário dizer-se, por ser sabido e advertido de poucos — é o que temos e celebramos neste grande dia, sempre grande, e hoje com especial grandeza: sempre grande universalmente, por ser o dia da Santíssima Trindade, criadora e conservadora do mundo, o qual, como pendente de três dedos, sustenta a onipotência do Padre, a sabedoria do Filho, a bondade do Espírito Santo: Appendit tribus digitis molem terrae[3] . — E grande, principalmente, na monarquia e reinos de Portugal, isto é, nas quatro partes do mesmo mundo, na Europa, na África, na Ásia, e nesta América, por ser juntamente dia do nosso português, Santo Antônio. A união e concurso destas duas celebridades no mesmo dia, poderia parecer ser sucedida acaso, pela variedade do ano; mas, como já nos consta por revelação e autoridade divina, que assim a dignidade dos dias, como a variedade dos anos, tudo está predestinado e ordenado ab aeterno pela disposição e eleição daquela suprema providência, que assim como criou todas as coisas, assim decretou e sinalou a cada uma delas a diferença dos tempos, com muita razão podemos duvidar, na união deste misterioso concurso, a qual das duas partes se deve atribuir principalmente o motivo ou empenho do mesmo encontro: se à religião e virtudes de Santo Antônio, para com elas, nos ensinar a crer, a admirar e celebrar dignamente o mistério profundíssimo e incompreensível da Santíssima Trindade, ou à mesma Trindade Santíssima, para nos declarar e fazer entender as grandezas e excelências do seu grande servo Antônio.

Parece que este mesmo nome de servo, e de um servo tão extremamente zeloso em procurar sempre e em tudo a maior glória de seu Senhor; e de um servo que neste mesmo dia da Santíssima Trindade pregou tantas vezes aos ignorantes, e fez crer aos infiéis que, sendo um em essência, é trino em Pessoas, e, sendo as Pessoas três, e cada uma delas Deus, não são três deuses, senão um só Deus; e de um servo, que todos os dias e momentos da vida, sem tomar ou reservar para si um só instante os dedicou e consagrou a este mesmo culto, a esta mesma veneração, e a este mesmo obséquio, com nome, com hábito, e com profissão de menor, que ainda na mesma glória professa; sendo finalmente certo, e mais conforme à razão e à obrigação, e à natureza, que o servo busque ao Senhor, e não o Senhor ao servo: por estas e infinitas outras considerações, parece que neste concurso, ou encontro de festas e dias, o de Santo Antônio sem dúvida é o que se vem sujeitar, render e servir, para também com o seu e consigo celebrar e festejar o da Santíssima Trindade.

Contudo, se eu hei de dizer o que sinto, o meu parecer, sem lisonja nem encarecimento, é que não acaso, mas por ordem e disposição divina, como fica mostrado, não é o dia de Santo Antônio o que neste concurso vem celebrar e servir o da Santíssima Trindade, senão o da Santíssima Trindade o que vem autorizar, honrar e engrandecer o de Santo Antônio. Primeiramente, não é ação menos decente, ou alheia da majestade das três Pessoas divinas, virem elas assistir com modo de presença mais alta e mais sublime aos servos seus mais fiéis e mais diligentes, que dignamente sabem amar, obedecer, e servir à mesma majestade. Assim o preguei deste lugar o domingo passado, com palavras do mesmo Cristo: Si quis diligit me, sermonem meum servabit, et Pater meus diliget eum, et ad eum veniemus (Jo. 14, 23): Quem me ama — diz Cristo — obedecerá e guardará meus preceitos, e a quem os obedecer e observar, amará meu eterno Pai, e a ele viremos. — E quem são estes que hão de vir, e assistir ao que ama e obedece a Cristo: Et ad eum veniemus? — É omesmo Padre, e o Filho, e o Espírito Santo, as três Pessoas da Santíssima Trindade, diz a fé e a Teologia, com todos os santos padres. E se a Santíssima Trindade em pessoa, ou em pessoas, promete vir assistir a quem ama a Cristo, e observa seus preceitos, como negará este favor no seu dia a Santo Antônio, tão diligente e exato observador, não só dos preceitos, senão dos acenos da vontade de Cristo, e tão amante, e amado seu? Quando o mesmo Cristo, que por amor de nós se fez homem, e por amor de Santo Antônio se fez menino, e se lhe veio pôr nos braços, como o vemos, quem foi o que buscou, e a quem? Não foi Antônio a Cristo, senão Cristo a Antônio. Pois, se para honrar a obediência, e corresponder ao amor, não é Antônio o que vai a Cristo, senão Cristo o que vem a Antônio, o que fez a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, por que o não fará também a primeira e a terceira: Et ad eum veniemus?

Assim é hoje, e naturalmente assim havia de ser, nem podia ser doutra sorte no concurso destes dois dias. Por quê? Porque o dia de Santo Antônio é dia estável e fixo, que se não muda nem varia com a mudança, dos anos; o dia da Santíssima Trindade é dia não fixo, senão mudável, que com a variedade dos anos se varia também, e se muda: logo, este é o que só podia vir, e o que veio. Este singular favor, não sucedido agora acaso, senão por decreto e disposição eterna, é o que na ordem e dignidade dos dias estava destinado e predestinado pela divina providência, para que o dia da Santíssima Trindade, e a Santíssima Trindade nele viesse autorizar e honrar com infinitos aumentos de celebridade o dia de Santo Antônio, e para que a mesma Trindade, como autora das excelências e grandezas do nosso santo, fosse também a pregadora delas.

Tudo isto, e nada menos, é o que dizem as palavras do Evangelho que tomei por tema: Qui fecerit et docuerit, hic magnus vocabitur in regno caelorum: Aquele que fizer e ensinar, terá nome de grande no reino do céu. — Na terra, que é um ponto em respeito do céu, não pode haver grandes, como bem e filosoficamente notou Sêneca, condenando o nome de Magno em Alexandre. Santo Antônio foi verdadeiramente grande, porque foi grande no reino do céu. Mas porque essas grandezas no mesmo reino do céu são maiores e menores, para manifestar a grandeza deste prodigioso menor, só o podia fazer toda a Santíssima Trindade, porque toda ela o fez grande. Este será o assunto do meu discurso; esta a união, ou unidade a que reduzirei o concurso a estes dois dias; e este o nó indissolúvel com que, em tanta disparidade de extremos, atarei e concordarei uma e outra festa. Que diz o Evangelho? Três grandes coisas em três palavras: Qui fecerit, et docuerit, magnus vocabitur (Mt, 5,19) — e as mesmas três coisas mostrarei eu que foram aquelas com que as três Pessoas da Santíssima Trindade fizeram grande a Santo Antônio. Mas de que modo? A Pessoa do Padre, dando-lhe o fecerit; a Pessoa do Filho, dando-lhe o docuerit; e a Pessoa do Espírito Santo, dando-lhe o vocabitur. Suposto e proposto assim o que hei de dizer, espero que, para glória da mesma Trindade, em tão nova e dificultosa empresa, nos não faltará com sua graça a Filha do Padre, a Mãe do Filho, e a Esposa do Espírito Santo, porque, como bem disse Ricardo de Santo Laurêncio: Per ipsam, et in ipsa et ex ipsa augetur gloria Patris, et Filii, et Spiritus Sancti[4]. Ave Maria.

§II

As obras de Deus ad extra. Se a primeira, e todas as obras da criação se atribuem a Deus enquanto um, por que razão a última, que foi o homem, se refere expressamente ao mesmo Deus enquanto trino. As obras singulares de Deus que por expressão particular pertencem à Santíssima Trindade e às três pessoas divinas. Por que razão Davi, pedindo a bênção do céu sobre o povo de Israel, repete três vezes o nome de Deus? Como se distinguiam entre si as bênçãos das três pessoas divinas? Viegas e os três as de Jeremias.

Quando Deus obra fora de si mesmo — que os teólogos chamam ad extra — é certo, com certeza de fé, que para qualquer efeito, maior ou menor, não só concorre como primeira causa a unidade da essência divina, senão também igual e indivisamente a trindade das pessoas. Contudo, na expressão deste mesmo concurso há uma diferença, tão notável que, se a obra, posto que grande, não é a mais excelente, atribui-se o efeito à unidade, isto é, a Deus enquanto um; mas, se é a mais nobre e a mais excelente de todas, refere-se expressamente à Trindade, isto é, a Deus enquanto trino. Na primeira e mais antiga obra de Deus temos a prova e o exemplo desta particular expressão. No princípio, diz o texto sagrado, criou Deus o céu e a terra: In principio creavit Deus caelum et terram (Gên. 1,1); continuou a obra da criação por todos os seis dias seguintes, e sempre fala o texto pelos mesmos termos; chegado, finalmente, o fim do mesmo sexto dia, em que Deus criou o homem, muda a Escritura Sagrada o estilo, e diz que disse Deus: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram (ibid. 26): Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. — Pois, se no princípio disse creavit, por que agora diz faciamus? Todos os santos padres e intérpretes entendem concordemente que a palavra singular: creavit, significa a unidade de Deus, e a palavra do número plural: faciamus — significa a trindade das pessoas. Pois, se a primeira e todas as outras obras da criação se atribuem a Deus enquanto um, por que razão a última, que foi o homem, se refere expressamente ao mesmo Deus enquanto trino? Porque todas as outras obras, ainda que grandes, não eram as mais nobres e mais excelentes, como feitas por Deus para servirem ao homem; porém, o homem, criado e formado pelo mesmo Deus, como imagem sua, para dominar e ser senhor de todas, era a mais nobre e mais excelente de todas. E, posto que todas eram obras do mesmo Deus e da mesma onipotência, as menos nobres atribuem-se à unidade e a Deus, enquanto um na essência, e a mais nobre e a mais excelente à Trindade, e ao mesmo Deus, enquanto trino em pessoa.

Não sou tão apaixonado das grandezas de Santo Antônio, que ordene este primeiro alicerce do meu discurso a dizer que a diferença que faz o homem a todas as outras criaturas, faz Santo Antônio a todos os outros homens. O encarecido a que falta o sólido, é vaidade, e não verdade; e as verdades deste grande homem foram tão grandes, que nem se podem declarar, quanto mais encarecer. 0 que só quis assentar por primeiro fundamento do que hei de dizer, é que as grandezas e dotes singulares com que Deus levanta umas criaturas sobre outras criaturas, e umas obras suas maiores sobre outras, posto que grandes, por exceção ou propriedade, e, quando menos, por expressão particular, pertencem à trindade do mesmo Deus, e às três divinas pessoas. Pede Davi a Deus que se digne de bendizer ou abendiçoar o seu povo, com tal vantagem que nele singularmente, como povo seu, seja Deus reverenciado e temido de todas as outras nações do mundo, e diz assim: Benedicat nos Deus, Deus noster! Benedicat nos Deus, et metuant eum omnes fines terrae[5]..

E por que razão, ou com que energia invoca Davi a Deus nesta petição, repetindo três vezes o nome de Deus: Benedicat nos Deus, Deus noster, benedicat nos Deus? — Porque, como a sua petição era que o povo de Israel fosse abendiçoado sobre todos os outros, coerentemente, e segundo a propriedade do que pedia, havia de invocar a Deus enquanto trino, e a todas e cada uma das três pessoas da Santíssima Trindade. De maneira que o primeiro nome Deus, significa a Deus Padre: Benedicat nos Deus; o segundo nome Deus, significa a Deus Filho, e por isso Deus noster: Deus nosso, porque só a Pessoa de Filho se fez homem como nós; e o terceiro nome Deus, significa o Espírito Santo: Benedicat nos Deus. Assim declaram este famoso texto todos os intérpretes, e particularmente Hugo Cardeal o confirma com outro do capítulo sexto dos Números em que Deus mandava expressamente que o povo se abençoasse, não com uma, nem com duas, senão com três bênçãos. A primeira, em nome do Padre: Benedicat vos Dominus, et custodiat vos: ecce benedictio Patris[6]. — A segunda, em nome do Filho: Ostendat Dominus faciem suam vobis: ecce benedictio Filii[7]. — A terceira, em nome do Espírito Santo: Et det vobis pacem: ecce benedictio Spiritus Sanct[8].

E se perguntarmos: Estas três bênçãos da Pessoa do Padre, da Pessoa do Filho, e da Pessoa do Espírito Santo, como se distinguiam entre si, e quais eram ou haviam de ser, responde o mesmo doutor eminentíssimo, como se eu o tivera subornado para este dia: Pater in potentia, Filius in sapientia, Spiritus Sanctus in beneficentia: A bênção do Padre havia de ser comunicando o poder, a bênção do Filho comunicando a sabedoria, a bênção do Espírito Santo comunicando a bondade e santidade. — Agora se entende claramente o que eu prometi no tema do Evangelho, sem o declarar: Qui fecerit, et docuerit, hic magnus vocabitur. — Até os menos doutos sabem que ao Padre se atribui o poder, ao Filho a sabedoria, ao Espírito Santo a santidade. E eu, que disse? Que, concorrendo toda a Santíssima Trindade para as grandezas de Santo Antônio, o Padre lhe dera o fecerit, o Filho lhe dera o docuerit, e o Espírito Santo o vocabitur. E agora veremos que verdadeiramente assim foi. Porque a Pessoa do Padre, para Santo Antônio fazer tão prodigiosas maravilhas — qui fecerit- lhe deu o poder; a Pessoa do Filho, para ensinar e converter o mundo — docuerit — lhe deu a sabedoria; e a Pessoa do Espírito Santo, não só para santificar as almas, mas também para ser chamado por antonomásia o santo — vocabitur- lhe deu seu próprio nome, ou o seu nome próprio.

Mas antes que passemos à prova particular de cada um destes títulos — por que não pareça excesso de novidade referi-los às três pessoas divinas — vejamos como se portou com Deus e consigo o nosso menor, ornado pelo mesmo Deus, ou, por melhor dizer, cheio de tão extraordinárias grandezas. Aquele grande expositor, também português, a quem chamaram em Espanha el padre de los conceptos, porque quando saiu com os seus comentários sobre o Apocalipse, andando mui validas nos púlpitos as comparações ou os símiles, então se introduziram em seu lugar, ou se acreditaram mais os que hoje se chamam conceitos — e digo se chamam, porque, como bem disse um grande poeta do mesmo tempo, também castelhano: muitos são tais, e têm tão pouca substância, que parecen concepto, y es sonido. — Este expositor, pois, naqueles três as do profeta Jeremias -A, A, A, Domine Deus[9]reconhece que fala o mesmo profeta com as três Pessoas da Santíssima Trindade. E sobre as palavras que Deus lhe tinha dito: Priusquam te formarem in utero, novi te; et antequam exires de vulva, sanctificavi te, et prophetam in gentibus dedi te[10]diz que a palavra novi te foi do Padre, a palavra sanctificavi te do Filho, e a palavra prophetam dedi te do Espírito Santo. As do expositor são estas: Loquebatur enim cum et Sancta Trinitas: Pater dicens: novi te; Filius dicens: santificavi te: Spiritus Sanctus dicens: prophetam dedi te[11].

Não é logo pensamento — posto que favor grande — nem alheio, nem menos digno da majestade das três pessoas divinas, que no dia da Santíssima Trindade, em que a mesma Trindade vem honrar a Santo Antônio, as três pessoas divinas tomem cada uma por sua conta as três palavras do Evangelho: O Padre, a palavra fecerit; o Filho, a palavra docuerit; o Espírito Santo, a palavra vocabitur. No vocabitur significou a terceira pessoa a santidade para o nome: Sanctificavi te; no docuerit, significou a segunda a sabedoria para a doutrina: prophetam dedi te; no fecerit, significou a primeira o poder para as obras: novi te — que assim declarou este conhecimento a provisão dos poderes: Ecce constitui te super gentes et super regna, ut evellas et destruas, et disperdas, et dissipes, et aedifices, et plantes[12]Com tanto excesso como este — a que também podemos chamar trino — se portou Deus liberal e grandioso com Santo Antônio. E Santo Antônio com Deus, de que maneira? Quando mais levantado, então mais humilde, quando maior, então menor: A, A, A, Domine Deus: ecce nescio loqui, quia puer ego sum[13]. — Jeremias escusava-se alegando a menoridade dos anos: Quia puer ego sum — e Santo Antônio, repetindo três vezes ah! ah! ah! ao Padre, alegava o ser menor na idade; ao Filho, o ser menor no hábito; ao Espírito Santo, o ser menor no nome. Mas quanto se escusava por mais incapaz, e quanto se reconhecia por mais indigno das grandezas a que as três pessoas divinas o levantavam, tanto era mais digno de todas, e mais igual a todas, como agora veremos.

§111

A divina moderação de Santo Antônio nas obras que fazia. Os venenos da vara de Moisés. Como usava Elias da espada que Deus lhe meteu na mão com os seus poderes? As severidades e castigos dos poderes de Jeremias. Os três divinos visitantes do tabernáculo de Abraão, e a destruição de Sodoma e Gomorra. Qual foi o anjo que se deixou ficar na casa de Abraão? Se aos que vão para o céu chama Cristo benditos de seu Padre, aos que hão de ir para o inferno, e lhes chama malditos, por que lhes não acrescenta também o sobrenome de malditos de seu Padre? Por que deu o Padre o poder de julgar a seu Filho, não enquanto Filho de Deus, senão enquanto Filho do homem?

É tão própria da pessoa do Padre a atribuição da onipotência para as obras, que o mesmo Cristo lhe atribuía todas as suas: Pater in me manens, ipse facit opera[14].E Santo Antônio, no poder que lhe foi comunicado com o fecerit, obrava com tão divina moderação nas que fazia, que bem mostrava serem derivadas da onipotência do Padre. A Moisés concedeu Deus na vara uma larga participação do poder divino; mas quantas vezes a vara se converteu em serpente, e o mesmo poder na mão de Moisés foi veneno? Digam-no as pragas horrendas do Egito em todos os elementos; a morte e degolação universal, em uma noite, de todos os primogênitos; e o Mar Vermelho aberto, e levantado em duas serranias, que logo tomaram acordo mesmo nome, e, afogado Faraó com todos seus exércitos debaixo das ondas, a água, como cantou o mesmo Moisés, foi a terra das suas sepulturas. Os mesmos poderes, se não foram maiores, deu Deus a Elias também santo, mas não capitão ou soldado, senão religioso. E que castigos não fez no mundo a espada do seu zelo sempre ardente? Ele foi o que mandou às nuvens que não chovessem sobre a terra, sem dar licença à aurora para que destilasse sobre ela uma só gota de orvalho, Secaram-se os rios, as fontes, os montes, os campos, os vales, sem se ver uma folha verde naquele perpétuo e tremendo estio sem inverno nem primavera. Abrasavam-se os gados, as feras, as aves, os homens; mirrava-se a vegetativa, mugia a sensitiva, clamava ao céu a racional; e não havia vida ou coisa vivente que não morresse e estalasse à sede. Só Elias, que tinha as chaves na mão, se não abrandava, porque, se elas eram de ferro, ele era de diamante.

Ele foi o que sobre os dois capitães que lhe levaram recados de el-rei Acab, para que descesse do monte, fez descer fogo do céu, que aos capitães e soldados desfez logo em cinzas. Ele o que por sua própria mão, e dos que o acompanhavam, em um dia degolou sobre o Rio Cison oitocentos e cinqüenta sacerdotes de Baal, e dos outros ídolos. E assim usava Elias da espada que Deus lhe meteu na mão com os seus poderes. Finalmente, o mesmo Jeremias, que pouco há nos serviu de outro exemplo, também nos poderes que Deus lhe deu, o foi de semelhantes severidades, castigos e ruínas. Disse-lhe Deus que o tinha constituído sobre os reis e sobre os reinos, para arrancar e plantar, para dissipar, destruir e edificar; mas nas execuções deste supremo império não vimos reinos plantados, senão arrancados; não edificados e levantados, senão destruídos e arruinados, sujeitos ao jugo estranho, dominados e cativos, Muitos anos andou Jeremias, com assombro dos que viam aquele portento, carregado de jugos e cadeias, as quais pelos embaixadores que estavam em Jerusalém ia mandando aos seus reis, em sinal do cativeiro que lhes anunciava, como foi ao rei de Edom, ao rei de Moab, ao rei de Amon, ao rei de Tiro, ao rei de Sidônia, e ultimamente ao rei da mesma Jerusalém, Sedecias,

O Antônio, não menos poderoso que todos estes ministros de Deus tão santos, com a investidura de toda a onipotência divina, obsequiosa, por não dizer sujeita a vosso império! Mas nunca para destruições, nunca para ruínas, nunca para dano, castigo, perda, ou dor de alguém; mas para remédio, para alívio, para consolação, para alegria, para bem e utilidade de todos. Nisto mostrastes e provastes claramente ao mundo que os poderes com que obráveis em tudo quanto fizestes — qui fecerit — eram de participação, não de outra pessoa da Santíssima Trindade, senão do Padre, que, como Pai, tudo faz para bem, e não sabe fazer mal.

Estava Abraão no vale de Mambre esperando à porta da sua casa ou tabernáculo os peregrinos que por ali passavam, para os hospedar- caridade pela qual se chamou Seio de Abraão aquele lugar debaixo da terra, aonde os santos antigos também esperavam, até que se lhes abrissem as portas do céu — quando viu o mesmo Abraão três caminhantes notáveis, que não eram propriamente nem o que pareciam nem o que eram, senão o que representavam. Pareciam três homens, eram três anjos, mas representavam as três pessoas da Santíssima Trindade. Neste sentido diz a Igreja: Tres vidit, et unum adoravit[15]Hospedadas debaixo deste disfarce, as três divinas pessoas, duas delas partiriam a castigar a Sodoma, como a castigaram com fogo descido do céu, e uma entretanto se deixou ficar com Abraão. Até aqui o texto expressamente, o qual porém no que calou, ou não exprimiu, nos deixou também uma dúvida bem curiosa e necessária, mas não fácil de resolver. Se as pessoas eram todas as três da Santíssima Trindade, por que foram executar este castigo só duas? E se uma se deixou ficar com Abraão, qual foi esta que não foi? Não falta quem diga modernamente, depois de ler os expositores, que foi a Pessoa do Filho, o qual, como ele só se fez homem, se compadeceu mais daqueles homens[16]. Mas esta mesma razão de ser homem, como logo veremos, é a prova de não ser ele o que ficou.

Eu respondo confiadamente, que foi sem dúvida a Pessoa do Padre, e o provo do mesmo texto, aonde dizem assim as duas pessoas que foram executar aquele castigo: Delebimus locum istum, eo quod increverit clamor eorum coram Domino, qui misit nos ut perdamus illos (Gên. 19, 13): Não podemos deixar de castigar esta cidade, porque o clamor de seus habitadores chegou à presença do Senhor, que nos mandou fazer esta execução. — E daquela palavra misit nos, se convence que estas duas pessoas eram o Filho e o Espírito Santo, porque, como ensina a Teologia, e consta das Escrituras, o ser mandado — missus — só se pode dizer das duas pessoas, uma mandada do Padre, que é o Filho, outra mandada do Padre e do Filho, que é o Espírito Santo, e de nenhum modo do Padre. Assim o tinha eu imaginado com algum receio, por ser pensamento sem autor, quando venturosamente o fui achar em Santo Agostinho no Livro 2° de Trinitate, onde excita e resolve a questão pelo mesmo fundamento com estas palavras: Sed quas duas personas hic intelligimus? Na Patris et Filii, an Patris et Spiritus Sancti, an Filii et Spiritus Sancti? Hoc forte congruentius quod ultimum dixi: Missos enim se dixerunt, quod de Filio et Spiritu Sancto dicimus: nam Patrem missum nusquam scripturarum nobis notitia occurrit. — Até aqui Santo Agostinho. Acrescento do mesmo texto outra congruência e confirmação não pequena.

Acabando de comer os três divinos hóspedes, todos perguntaram a Abraão aonde estava Sara: Dixerunt ad eum: Ubi est Sara uxor tua (Gên. 18, 9)? — E logo, não todos, senão um só lhe disse, que no ano seguinte, por aquele mesmo tempo, de Sara, que era estéril, teria um filho: Cui dixit: Revertens veniam ad te tempore isto, et habebit filium Sara uxor tua (ibid, 10). — Logo, aquele que agradeceu, e pagou a hospedagem, assim como era o que mandou aos dois, assim foi o que prometeu o filho, e fez pais a Abraão e a Sara, por quê? Porque a prerrogativa e atribuição de fazer pais é própria só e única da Pessoa do Padre, como afirma S. Paulo: Hujus rei gratia flecto genua mea ad Patrem Domini nostri Jesu Christi, ex quo omnis paternitas in caelis et in terra nominatur[17]. — Suposto, pois, que a primeira pessoa da Trindade, o Padre, é o que ficou com Abraão, por que não foi também com as outras duas pessoas à execução daquele castigo, a qual pertencia à justiça, à providência, e à onipotência, que é comum a todas as três pessoas divinas? A mesma razão em que se funda a pergunta é a resposta. Aquela missão ou comissão das outras duas pessoas era para castigar, para destruir, para assolar, para abrasar e desfazer em cinzas aquela depravada e miserável cidade; e a ruína e dano, e qualquer mal dos homens, não quer a Pessoa do Padre, como Pai, que se atribua a ele.

E se não, passemos dos princípios ao fim do mundo. No dia do Juízo, feita aquela separação de todos os homens, uns à mão direita, outros à esquerda de Cristo, aos da direita, chamando-os para o céu, dirá o supremo Juiz: Venite benedicti Patris mei (Mt, 25, 34): Vinde, benditos de meu Padre. — E aos de esquerda, mandando-os para o inferno: Ite, maledicti, in ignem aeternum (ibid. 41): Ide, malditos, ao fogo eterno, — Parece que nesta segunda parte da sentença falta uma palavra, como bem notou Orígenes: Considerandum est, quod sanctis non solum dictum est benedicti, sed cum additamento Patris mei: e contra autem non dicitur maledicti Patris mei[18]. — Pois, se aos que vão para o céu chama Cristo benditos de seu Padre, aos que hão de ir para o inferno, e lhes chama malditos, por que lhes não acrescenta também o sobrenome de malditos de seu Padre? Já está dito, e as mesmas palavras o dizem. Porque as bênçãos, o dar o céu, e todos os outros bens, pertencem à distribuição do Padre; as maldições, o inferno, e todos os outros males, não quer ele que se lhe atribuam. Se sois bendito e bem-aventurado, sois do Padre: Benedicti Patris mei; se sois maldito e mal-aventurado: Ite maledicti — não sois do Padre, sois vosso, que de vós, e não dele, vos vieram esses males: Nam benedictionis quidem ministrator est, maledictionis autem unusquisque sibi est autor.

E se esta prerrogativa singular da Pessoa do Padre se verificou no princípio do mundo, e se há de verificar no fim, se assim foi no passado, e assim há de ser no futuro, assim também, e não de outra maneira, é no presente. Grande e admirável texto em matéria ocultíssima, e verdade que a mesma Pessoa do Padre quis nos fosse revelada no Evangelho, para que todos soubéssemos o que temos na sua beneficência: Ne que enim Pater judicat quemquam: sed omne judicium dedit Filio (Jo. 5, 22): O Padre — diz Cristo — a ninguém julga, e todo o poder e ofício de julgar cometeu e deu ao Filho. — Destas palavras nascem duas grandes e graves questões: primeira, por que a Pessoa do Padre a ninguém julga; segunda, por que o ofício de julgar o cometeu todo ao Filho. A razão da primeira é porque ao ofício de julgador pertence não só absolver, senão também condenar: e o Padre não quer condenar a ninguém; o ofício de julgador, ainda que proceda justamente, ele e a mesma justiça, aos maus castiga e faz mal, aos bons premeia e faz bem. E, posto que esta segunda parte é muito própria da Pessoa do Padre, a primeira é muito alheia da sua piedade e misericórdia. E daqui se segue a razão e fundamento da segunda questão declarada pelo mesmo Cristo: Potestatem dedit ei judicium facere, quia Filius hominis est (ibid, 27). Deu a Pessoa do Padre o ofício e poder de julgar à Pessoa do Filho, porque o Filho é também Filho do homem. — Pois, se a Pessoa do Filho é Deus pelo que tem do Padre, e é homem pelo que tem de nós, por que quis que nos julgasse enquanto Filho nosso, e não enquanto Filho seu? Admiravelmente S. Bernardo: Ipse Pater Deus dedit Filio suo judicii potestatem — notai agora muito — non quia suus, sed quia Filius hominis est: o vere Pater misericordiarum[19]! Deu o Padre poder de julgar ao seu Filho, mas não enquanto seu, senão enquanto nosso; não porque é Filho de Deus, senão porque é Filho do homem: porque o ofício de julgar é de justiça, e de fazer justiças, e o Padre não é Pai da justiça, nem das justiças, senão da misericórdia e das misericórdias: O vere Pater misericordiarum!

§ IV

Santo Antônio, perfeitíssimo imitador do Padre, na onipotência que lhe foi por ele outorgada, O poder de Santo Antônio por ocasião da condenação de seu pai inocente. As maiores maravilhas desse Deus, ou Vice-Deus português. A vitória de Santo Antônio sobre Encelino, tirano da Lombardia. Os milagres de Santo Antônio depois da morte.

Já, ainda que não quiséssemos, estamos vendo que a Pessoa do Padre é a que deu a Santo Antônio o fecerit- e que em todos os poderes desta sua onipotência delegada, foi perfeitíssimo imitador do mesmo Padre, usando dela só para fazer bem, e de nenhum modo mal, e para obras sempre de misericórdia, e nenhuma, posto que lícita, de justiça. Condenado o pai de Santo Antônio à morte, e não o podendo livrar, ou suspender a execução os seus embargos: — Bom partido — diz o filho. — Seja testemunha no caso o mesmo morto. Aceita a proposta com riso, porque não conheciam a quem a fazia — e bastava ser português, para que em Portugal a não cressem — chega o fradinho à sepultura, manda ao defunto, como Cristo a Lázaro, que saia fora; pasmam todos de o verem vivo, e já não duvidavam do que havia de dizer. Perguntado se era aquele homem o que o matara, respondeu que não. Eu cuidava que com a vista do milagre se haviam de embotar os fios ao cutelo; mas os executores do crime, com fereza mais de carniceiros, que zelo de ministro da justiça, instavam e requeriam ao inquiridor milagroso que perguntasse mais ao ressuscitado quem fora o seu matador. Agora eram eles os dignos de riso; a boa porta batiam. Respondeu muito mesurado o franciscano, metendo as mãos nas mangas, que ele viera a livrar o inocente, e não a condenar culpados. Não respondera mais a Pessoa do Padre, se falara por boca de Frei Antônio.

Não foi isto mais que uma amostra do pano, e de como o santo usava dos poderes que Deus lhe tinha dado, sempre para bem, como o Padre, e nunca para mal. Assim como a providência divina fez a Moisés Deus do Egito, com poder sobre os elementos: Constitui te Deum Pharaonis[20]assim fez a Santo Antônio com aquele fecerit, não Deus de um só reino, ou parte do mundo, senão de todo, com domínio e império universal sobre todas as criaturas. E como o mesmo mundo está fundado em uma concórdia discorde, e não há coisa nele que não tenha o seu contrário, a maior maravilha deste Deus, ou vice-Deus português, foi que nesta mesma contrariedade, não só ele seguiu sempre as partes do bem, mas, com violência de toda a natureza, a obrigou a que as seguisse. Quantas vezes mandou Antônio ao fogo que não queimasse, ao vento que não assoprasse, à água que não molhasse? E por que o demônio deitou na lama a uma senhora, que vinha ouvir o santo, mandou também à terra que o lodo lhe não tocasse nem descompusesse o vestido. Que direi do mesmo demônio, instrumento sempre do mal, já que falamos nele? Tendo este tentado um noviço a que deixasse o hábito e a religião, não quis Antônio ajudar-se dos anjos — os quais lhe eram tão obsequiosos que, como correios, lhe traziam as cartas, e duas vezes em seus ombros o levaram a lugares muito distantes — mas mandou ao mesmo demônio que ele fosse buscar o noviço, e o trouxesse, como trouxe, à religião. Até ao demônio, muito a seu pesar, obrigou a fazer bem. Chamavam a Santo Antônio martelo dos hereges; mas eu não sei que casta de martelo era este, que não parecia de ferro, senão de cera, porque sempre reduziu os hereges com brandura, e nunca com rigor.Santos houve que os cegaram e emudeceram; mas como os havia de emudecer nem cegar, aquele que a tantos cegos deu vista, a tantos mudos língua, e a tantos surdos ouvidos?

Dos braços do anjo saiu Jacó manco, e a quantos mancos e aleijados deu Antônio pés e braços? A um filho desobediente, que, repreendido pelo santo, se cortou a si mesmo o pé com que tinha desacatado a sua mãe, o mesmo lho restituiu outra vez a seu lugar, e uniu à perna, com maior milagre que o do manco de S. Pedro na porta especiosa do Templo. Que bem pareceria o retrato daquele pé entre tantas muletas penduradas diante dos altares de Santo Antônio! Oh! que gloriosas alâmpadas! Mas ainda luzem e resplandecem mais as amarras, as cadeias, e as mortalhas, que também se vêem pendentes diante das suas imagens, em todos os santuários do mundo; as amarras dos naufragantes salvos, e as cadeias dos cativos em terra de mouros, livres; as mortalhas dos agonizantes, ou não permitidos morrer, ou depois de mortos ressuscitados. Nove ressuscitou de uma só vez este grande dominador da vida e da morte, mandando à mesma morte, que a infinitos enfermos que já mastigava, os não engolisse, ou que engolidos já, como a baleia de Jonas, os vomitasse vivos.

Nenhum santo, daqueles a quem comunicou Deus seus poderes, teve maior e mais justa causa para usar deles pela parte da severidade e rigor, como Santo Antônio. Dominava na Lombardia um tirano chamado Encelino, tão soberbo, tão insolente e tão cruel, que de uma só vez, com esquisitos gêneros de tormentos, matou a onze mil paduanos, naturais daquela nobilíssima cidade, tão devota de Santo Antônio, que mereceu lhe desse o seu sobrenome. E como vingaria o santo aquelas e outras injúrias? A esta fera, a este monstro, a este inimigo capital do gênero humano foi buscar pessoalmente, e quando seria obra digna do seu poder e do seu zelo, se por suas próprias mãos o fizesse em pedaços, como fez o profeta Samuel a Agag, rei dos amalecitas, e quando com maior razão lhe pudera dizer o que disse o mesmo Profeta: — Agora te farei o que tu fizeste a tantos — ou quando, pelo menos, com uma só palavra, como S. Pedro a Ananias, o pudera derrubar morto a seus pés, o castigo com que se contentou a sua bondade — próprio da bondade e piedade do Pai — foi compadecer-se do miserável e tremendo estado a que as suas tiranias o tinham já condenado em vida às penas do inferno; a morte, que por tantas mortes tinha merecido; os clamores dos inocentes, que bradavam ao céu; a justiça e vingança divina, tantas vezes e por tantos modos provocada; a paciência do mesmo Deus, com que ainda lhe prometia o perdão e esperava a emenda; as orações e penitências, que o mesmo que o repreendia tinha oferecido por ela; e tudo isto com tal eficácia de espírito, e com razões tão acesas em vivo fogo de caridade, que aquele coração, mais duro que os bronzes, não pôde deixar de se abrandar e derreter; e, quando os soldados que o cercavam temiam e aguardavam contra o santo algum excesso furioso de sua tirania, Encelino, desapertando o cinto, e lançando-o como baraço ao pescoço, em reconhecimento de suas culpas, se lançou humilde a seus pés. Ó vitória nunca imaginada em uma batalha tão dificultosa! Assim venceu um poderoso a outro poderoso, triunfando do poder injusto, cruel e tirano, que tantos e tão execrandos males fazia, o poder piedoso, amigo e santo, que todo se empregou sempre em fazer bem a todos.

Acabou finalmente na flor da idade aquela vida que tanto se apressou a consumar a carreira, mas nem a morte lhe diminuiu o poder, nem mudou a condição de fazer a todos bem, e a ninguém mal. Morto Santo Antônio, e, concorrendo todos os enfermos ao seu sepulcro, nele experimentavam tal diferença, que os que iam confessados, e em graça de Deus, todos de qualquer enfermidade ficavam de repente sãos, com inteira e perfeita saúde; mas os que não levavam esta disposição da graça, tornavam tão enfermos como vieram. O que reparo e admiro neste grande e tão notável caso, não é que o corpo de Santo Antônio morto desse vida a uns; o que a mim e a todos deve causar maior admiração é que, pelo mesmo modo, não desse morte aos outros. O corpo de Cristo, que também no Sacramento está morto e sepultado, aos que chegam a ele em graça dá vida; e se não vão em graça, morte: Mors est malis, vita bonis[21]Pois, por que não faz o mesmo Santo Antônio? Não é ele o que com o diviníssimo Sacramento nas mãos, adorado pelo mais bruto de todos os animais, converteu o herege mais bruto que ele? Por que razão logo não imita nos seus milagres ao mesmo Senhor, e aos que vêm em graça dá vida, e aos que falta a graça, morte? A solução verdadeira é a que provamos em todo este discurso. Dá vida a uns, e não dá morte a outros, porque os seus poderes eram do fecerit que lhe comunicou a Pessoa do Padre, e como tais só podia fazei, bem e não podia fazer mal. Assim havemos de dizer coerentemente.

Mas desta mesma solução nasce outra maior instância. A bondade da Pessoa do Padre é de tal condição, que o mesmo bem que faz aos bons, faz também aos maus. Assim o notou e provou Cristo com o exemplo do sol: Ut sitis Filii Patris vestri, qui solem suum oriri facit super bonos et malos (Mt. 5, 5): Não haveis de fazer bem aos que vos amam somente, senão também aos que vos não amam, para mostrardes que sois filhos do Pai do céu, o qual faz nascer o seu sol sobre os bons e sobre os maus. — Sendo, pois, os poderes de Santo Antônio derivados do poder da Pessoa do Padre, por que sarava só aos bons, e aos maus não? Respondo que sim sarava, porque, experimentando os maus que não saravam porque não estavam em graça, como os que iam confessados, confessavam-se também, e, postos em graça de Deus, recebiam igualmente a do santo. Por este modo, assim os bons como os maus, todos saravam; só com uma diferença, que aqueles saravam primeiro, e estes um pouco depois. E nisto mesmo imitava o santo, com grande propriedade, o exemplo do mesmo Padre: Qui solem suum oriri facit — porque, ainda que o Padre faz nascer o seu sol para todos, o sol primeiro alumia aos que vigiam, e depois aos que dormem. Assim o fazia também Santo Antônio, mostrando em tudo e por tudo que tudo o que vivo e morto fazia, era em virtude dos poderes do Padre, que lhe dera o fecerit.

§V

Como a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Filho, deu a Santo Antônio, para a ciência da doutrina cheia de maravilhas que ensinou, a sabedoria. A sabedoria, a eloqüência divina, e os prodigiosos efeitos da doutrina de Santo Antônio. A presença milagrosa de São Francisco de Assis durante um sermão do santo. Santo Antônio, Arca do Testamento. Os pregadores que pregam cantando. Como era ouvido o santo, e como se portavam os que o não queriam ouvir?

Mostrado como a primeira Pessoa da Santíssima Trindade, o Padre, para o poder das obras maravilhosas que fez, deu a Santo Antônio o fecerit, segue-se ver  como a Segunda Pessoa, o Filho, para a ciência da doutrina, também cheia de maravilhas que ensinou, lhe deu o docuerit. Como ao Padre se atribui a onipotência, e o provamos com o texto do mesmo Cristo, assim ao Filho se atribui a sabedoria, e se prova com o testemunho de S. Paulo: In quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditi[22]. — Mas quem poderá declarar dignamente de quanta parte destes tesouros foi enriquecido Santo Antônio? Depois de estarem por muitos anos escondidos, quis Deus que se descobrissem, e logo lhe mandou, por uma carta, seu grande patriarca, S. Francisco, que exercitasse o ofício de ensinar -docuerit — e que fosse, como foi, o primeiro mestre da Teologia e Escritura Sagrada de toda a religião seráfica. De maneira que os Alenses, os Boaventuras, os Escotos, e os outros famosíssimos doutores desta grande Atenas da Igreja Católica, todos foram raios daquela primeira luz. Quando ao quarto dia da criação do mundo apareceram no céu o sol, a lua e as estrelas, não diz a Escritura que criou Deus aquelas luminárias celestes, senão que as pôs no firmamento: Et posuit eas in firmamento (Gên. 1, 17). — E se as pôs então, quando as criou? Todos os santos e intérpretes do texto sagrado dizem que foram criadas na luz do primeiro dia, quando Deus disse: Fiat lux (ibid. 3) — e esta primeira luz foi a que o Criador repartiu por todos os sete planetas, e por todas as estrelas sem-número do firmamento.

Assim, pois, como todas as luzes que de dia e de noite alumiam o mundo, devem o seu princípio, o seu nascimento e o seu ser àquela primeira luz, assim todos os astros e constelações seráficas, que tanto têm alumiado, alumiam e hão de alumiar o mundo até o fim dele, ou com a voz em infinitos pregadores, ou com a pena em infinitos volumes, todos são raios e rios daquela fonte de luz — como a que viu Mardoqueu — e todos são resplendores, e filhos daquele pai, a quem a imensa e luzidíssima família franciscana pode chamar com razão Pater luminum: Pai dos lumes. Ainda então não tinha saído à luz o lume da Teologia, Santo Tomás; ainda então muitos daqueles profundos mistérios, que hoje estão tão manifestos, estavam ocultos; muitas daquelas questões, que hoje estão tão declaradas, estavam escuras; e toda aquela silva inumerável de conclusões e decisões teológicas estava inculta, impenetrável, confusa, intrincada e sem ordem; e o grande Antônio foi o Jasão, foi o Prometeu, e foi o Teseu, que com o prumo de seu juízo sondou o mais profundo, com o farol do seu engenho alumiou o mais escuro, e com o fio do seu discurso abriu o caminho ao mais intrincado.

Saindo Antônio, ou antes de sair das cadeiras, subiu aos púlpitos; e não há entendimento que possa compreender, nem língua que possa declarar com palavras a sabedoria e eloqüência divina, o espírito, a eficácia, a luz, e os prodigiosos efeitos da sua doutrina. A aula em que ensinava não eram os templos, por magníficos e mais capazes que fossem, porque não cabia o auditório senão nos campos. Os dias em que pregava, ainda que fossem feriais, a sua pregação, para que não se tocavam os sinos, e só a fama de que havia de pregar, os fazia de guarda. Fechavam-se as oficinas, fechavam-se as lojas, fechavam-se as tendas, fechavam-se os tribunais; e nem os oficiais atendiam às suas artes, nem os mercadores aos seus interesses, nem os requerentes aos seus pleitos, nem os ministros aos seus despachos; enfim, dias santos. E se estes dias santos não começavam das vésperas, começavam das matinas, porque não só madrugavam os ouvintes, mas à meia-noite, como dizem todas as crônicas, se preveniam muitos a tomar o lugar nos campos. S, Jerônimo, S. Gregório. S. Leão Papa, e muito particularmente Santo Agostinho, se queixavam do anfiteatro romano, porque lhes tirava os ouvintes; mas quando em Roma pregava Santo Antônio, os anfiteatros eram os desertos, e os desertos e os campos os anfiteatros.

Grande maravilha que em uma cidade de tantos passatempos e delícias, a sua maior delícia fosse um homem que a despovoava. Como eram tão inumeráveis os ouvintes, não era menor maravilha que todos ouvissem o pregador. E, tanta vastidão de campo e descampado, uns estavam perto do púlpito, outros muito longe, mas tão claramente o ouviam os de longe como os de perto; por sinal que, não podendo vir ao sermão uma devota mulher, desejosa de ouvir o santo, em sua casa, que distava duas milhas, o ouviu como se estivera ao pé do púlpito. Todos ouviam, e com maior maravilha todos entendiam o pregador, como se falasse na sua própria língua, porque a língua do apóstolo português era das mesmas com que sobre os de Cristo desceu o Espírito Santo. Isto se viu particularmente em um ano santo, em que todo o mundo concorre a Roma, Achavam-se no imenso auditório italianos, espanhóis, franceses, ingleses, alemães, suecos, dinamarcos, polacos, moscovitas, gregos, armênios, persas, turcos, mouros, etíopes, e todos, como se na cidade de S. Pedro ouvissem ao mesmo S. Pedro, ouviam em uma língua todas as línguas, e cada um a sua: Audivimus unusquisque linguam nostram, in qua nati sumus[23].

Mas que novo ouvinte de Santo Antônio é este que eu estou vendo, nem esperado, nem imaginado por ele? Caso singular e inaudito! Estava Santo Antônio pregando em um capítulo geral da sua Ordem, e o sermão era da Cruz; senão quando S. Francisco, que estava em outra cidade muito distante, aparece no ar à vista de todos, com os braços abertos em figura de cruz. Santo patriarca, e seráfico padre, quem nos pode declarar o mistério dessa vossa aparição, senão vós mesmo? Três coisas não entendo o modo com que viestes aqui, o fim para que viestes e a forma em que aparecestes. Quanto ao modo suposto que não deixastes de estar aonde estáveis, viestes reproduzido. E quem vos reproduziu? Não há dúvida que este vosso filho, e a sua palavra. Oh! maravilha estupenda! Em Deus o Padre produz ao Filho; e aqui o filho, se não produziu, reproduziu ao padre. Lá a palavra é a produzida, aqui a palavra foi a producente. E a que foi, ou para quê? Para o mesmo fim que teve o Padre Deus quando apareceu no Tabor. Falava o Filho da mesma Cruz de que falava Antônio, e quis manifestar a todos o padre seráfico que aquele era o seu filho mais amado, e encomendar a todos que o ouvissem: Hic est Filius meus dilectus, in quo mihi bene complacui: ipsum audite[24]. — Finalmente, sendo ele seu ouvinte, representou-se de repente em forma de cruz, para mostrar que era tanta a eficácia da palavra de Antônio, que não só podia fazer os homens amigos da Cruz, senão convertê-los em cruzes. A imagem do serafim transformou a Francisco em crucificado, e a pregação de Antônio transformou-o em cruz.

E donde lhe vinha a Santo Antônio esta tão extraordinária eficácia? Vinha-lhe do que dizia, e da voz e ação com que dizia. O que dizia eram tudo verdades, tiradas e cavadas das minas das Sagradas escrituras, e particularmente do Evangelho. O Papa Gregório IX, que dentro do mesmo ano canonizou a Santo Antônio, ouvindo-o pregar, chamou-lhe Arca do Testamento; mas disse pouco, porque a Arca do Testamento só continha as Tábuas da Lei, parte do Testamento Velho; mas na memória e entendimento de Santo Antônio estavam encerrados os tesouros de ambos os Testamentos, e no segundo as palavras de Cristo, sobre todas as divinas, diviníssimas. Este era o fino aço do que dizia, forjado na fornalha do coração, limado na agudeza do entendimento, e despedido pela língua em setas: Sagittae tuae acutae, populi sub te cadent, in corda inimicorum regis[25]. — Como as setas eram agudas — sagitae acutae — e a agudeza não era para lisonjear os ouvidos, senão para ferir e penetrar os corações — in corda — por isso os povos inteiros caíam a seus pés. Populi sub te cadent.

Das ações de Santo Antônio no púlpito não acho mais que uma na sua história. Estando uma vez pregando no campo, toldou-se o céu, começaram a se ouvir trovões com horror, e ameaços de grande tempestade; e que fez então o pregador? Moveu uma mão para o mais espesso das nuvens, e bastou o poder, ou a graça deste meneio, para que emudecessem os trovões, a tempestade se suspendesse, a nuvem servisse ao auditório de toldo, e ao santo de dossel — mas sem goteiras. — Estes mesmos efeitos causava aos ouvintes o ar das suas ações, que era o compasso das vozes, suspensos todos e mudos na admiração do que viam e ouviam, não havendo em tantos milhares de homens, mulheres e meninos, quem rompesse com um ai — e mais havendo muitas lágrimas — a atenção extática do silêncio.

O modo de dizer, já moderado, já forte; já mavioso na compaixão, já formidável e tremendo nas invectivas; enfim, qual o requeria a impressão dos afetos, basta supor que era tão vivo, tão eficaz, tão poderoso e sem resistência, como se colhe sem discurso, tanto do que feria, como do que curava. Só para documento de muitos pregadores, e do modo com que se deve falar no púlpito, não deixarei de ponderar o que sucedeu a Santo Antônio pregando, não uma, senão duas vezes. Pregava na noite de Quinta-Feira Maior, ao tempo em que no seu com vento se cantavam as matinas, e, lembrado que lhe tocava no coro uma lição, que faria? Parou no que ia dizendo, e sem sair do púlpito, apareceu no coro, onde foi visto e ouvido de todos cantar a sua lição; e, tanto, que lá acabou, continuou cá o que ia pregando. Outra vez lhe sucedeu semelhante caso, presente o santo ao mesmo tempo no púlpito, e presente no coro, mas com a mesma circunstância e advertência que, enquanto cantava em uma parte, estava mudo na outra, sem falar palavra. Pois, se Santo Antônio estava no mesmo tempo, presente em dois lugares, por que não cantava e pregava juntamente em um e outro? O estar presente em dois lugares era o milagre; mas, supostas as duas presenças, naturalmente e sem milagre podia falar juntamente em ambos; por que razão logo quando cantava não pregava?

O mesmo fato está dizendo que a música há de estar tão longe do sermão como o púlpito do coro. Quando pregava não cantava, e quando cantava não pregava, porque a língua de Santo Antônio não era dos pregadores que cantam quando pregam. Isto de pregar cantando é um vício e abuso que se tem introduzido nos púlpitos, frouxo, fraco, frio, e quase morto; sem força, sem eficácia, sem energia, sem alma; contra toda a retórica, contra toda a razão, contra toda a arte, contra toda a natureza, e contra a mesma graça. O pregar não é outra coisa que falar mais alto. Pregar cantando é muito, bom para adormentar os ouvidos e conciliar sono, por onde ainda os que mais cabeceiam, dormem ao tom do sermão. As vozes do pregador hão de ser como as caixas e trombetas da guerra, que espertam, animam, e tocam à alma, como eram as de Santo Antônio; por isso todos o ouviram com uma atenção tão vigilante e tão viva, que nem pestanear podiam, quanto mais dormir.

Assim era ouvido Santo Antônio, e só nos resta saber como se portava com os que o não queriam ouvir. Os hereges rebeldes e obstinados não queriam ouvir os golpes daquele martelo, que tanto os feria; e que fez o santo para os converter sem que o ouvissem? Aos apóstolos disse Cristo: Faciam vos fieri piscatores hominum (Mt. 4, 19): Até agora éreis pescadores de peixe, eu farei que sejais pescadores de homens. — Assim o fez Santo Antônio, mas por tal modo e tal arte, qual nunca eles, nem antes, quando pescadores, nem depois, quando apóstolos, inventaram. Quando pescadores, Pedro, e os demais, pescavam os peixes com as redes; quando apóstolos, pescavam os homens com a pregação. E Santo Antônio trocou um e outro artifício. Aos peixes pescou-os com a pregação, e aos homens pescou-os com os peixes, fazendo dos mesmos peixes a com que os pescava. Ambos os lanços, assim o do mar como o da terra, foram igualmente venturosos. O lanço do mar pescou os peixes que vieram todos a ouvir da boca do santo a palavra de Deus, com a atenção que sabemos; e o lanço da terra pescou os homens, porque os hereges, que o não queriam ouvir, com a evidência e assombro do mesmo milagre, cercados e presos dentro na rede, e atados de pés e mãos, não tendo para onde fugir, vencidos e convencidos se converteram.

§ VI

Quem ensinou a Santo Antônio a doutrina tão encontrada, com que se fez ouvir dos brutos, que o ouviram como racionais, quando os racionais o não queriam ouvir, como brutos. O novo e admirável artificio com que Santo Antônio trocan do as palavras de Cristo, para se fazer pescador de homens, se fez primeiro pescador de peixes. Os efeitos da pesca milagrosa de São Pedro. A maior maravilha e o maior milagre do tramaturgo português: conseguir na opinião o grau de idiota. De que modo imitou pelos mesmos passos o filho de S. Francisco ao Filho do Eterno Padre. O Filho de Deus e o estudo da ignorância.

Este foi o novo e admirável artifício com que Santo Antônio, trocando as palavras de Cristo, para se fazer pescador de homens, se fez primeiro pescador de peixes, e, pescando os peixes, não com redes, senão com a pregação da palavra de Deus, da pescaria da mesma palavra fez as redes com que pescou aos homens, E se me perguntarem quem ensinou a Santo Antônio esta doutrina tão encontrada, com que se fez ouvir dos brutos, que o ouviram como racionais, quando os racionais o não queriam ouvir como brutos, respondo que a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Filho, o qual lhe comunicou o docuerit, e a sabedoria divina de ensinar. E, posto que a doutrina parece encontrada em um e outro caso, no dos apóstolos, e no de Santo Antônio a temos expressa, não por outrem, senão pelo mesmo Cristo. Disse Cristo a S. Pedro que lançasse as redes ao mar; e ele, sobre o desengano do que tinha experimentado no mesmo mar toda aquela noite respondeu que assim o faria, não confiado na rede, senão na sua palavra: In verbo tuo laxabo rete[26]. — Foi a rede ao mar, e a palavra de Cristo trouxe a ela tanta multidão de peixes, que a não podiam arrastar, nem os pescadores a tinham visto semelhante. Já aqui temos a primeira parte da pescaria de Santo Antônio, pescando os peixes com a palavra de Deus; vejamos agora a segunda, em que dos peixes assim pescados fez as redes com que pescar aos homens.

Saltando S. Pedro em terra com os outros companheiros, o que sucedeu então refere S. Lucas com palavras tão milagrosas como o mesmo milagre: Stupor enim circumdederat eum, et omnes qui cum illo erant, in captura piscium (Lc. 5, 9): Vendo a multidão dos peixes pescados em virtude da palavra de Deus, Pedro, e todos os que com ele estavam, ficaram cercados de pasmo. — Note-se muito a palavra circumdederat: não diz que o pasmo os assombrou, ou desmaiou, ou tirou fora de si, senão que os cercou: stupor circumdederat eos. — E por quê? Porque naquele caso houve dois cercos, um no mar, outro na terra: no mar o cerco da rede que cercou e tomou os peixes em virtude da palavra divina: In verbo tuo — e na terra o pasmo do milagre dos peixes tomados, do qual pasmo fez Cristo a rede com que cercou e tomou os homens: Stupor enim circumdederat eos.

E que se seguiu deste caso? Duas coisas: uma, que S. Pedro se lançou aos pés de Cristo, confessando-se por pecador: Exi a me, quia peccator sum, Domine[27]como os hereges, convertidos e prostrados aos pés de Santo Antônio, confessaram o pecado da sua infidelidade. A segunda, dizer Cristo a S. Pedro que dali aprenderia a ser pescador dos homens: Ex hoc jam homines eris capiens[28]porque com a palavra de Deus: In verbo tuo — e com a evidência dos milagres: in captura piscium-os apóstolos então, e Santo Antônio tantos anos depois, converteu o mundo.

Por certo que este famoso exemplo, tão bem ensinado em Cristo, e tão bem aprendido e imitado em Santo Antônio, bastava por prova de que a ciência, da qual ele recebeu o docuerit, foi a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Mas, posto que bastasse como prova pública, ainda temos outra maior e mais admirável, que foi a secreta e oculta. A maior maravilha, e o maior milagre do nosso taumaturgo português não foi o ressuscitar mortos — como ressuscitou nove de uma só vez — nem o dominar todos os elementos, nem o ter sempre aparelhada e pronta aos acenos da sua vontade a mesma onipotência; mas qual foi? Foi que, tendo o peito cheio daquela extra, ordinária sabedoria adquirida e sobrenatural, que depois rebentou e saiu a público ao tempo que a providência divina tinha determinado com assombro e pasmo do mundo, ele não se chamando mestre ou doutor, nem ainda discípulo, com o simples nome de Frei Antônio, tivesse encoberto e sepultado dentro em si mesmo tudo o que sabia, com tal segredo que fosse reputado de todos por idiota e ignorante.

Daqui nasceu que, como tal, e de nenhum préstimo ou talento, desestimado e desprezado de seus próprios irmãos, naquele grande capítulo geral em vida de S. Francisco, não houvesse guardião ou prelado algum que o quisesse aceitar por súdito, e, o que é mais que tudo, que nem ele, para remir esta necessidade, desamparo e desprezo, manifestasse a menor luz dos tesouros que debaixo da rudeza e remendos do seu burel estavam encerrados. Oh! milagre sobre todos os milagres! Oh! prodígio sobre todos os prodígios do mais prodigioso e milagroso de todos os santos! Agora havia eu de começar o sermão, para cavar no descobrimento destas minas o imenso de virtude, de capacidade, de poder, que nesta única ação ou omissão, não de um dia, ou muitos dias, senão de anos sobre anos, reconhece e faz estremecer o juízo humano.

O mais alto ponto, o mais fino, e o mais difícil da sabedoria, não é o saber: é o saber e poder encobrir o que sabe. Sabia muitas coisas por revelação divina o profeta Jeremias, as quais não podia manifestar e diz assim: Factus est in corde meo quasi ignis exaestuans, claususque in ossibus meis, et defeci, ferre non sustinens[29],A peça de artilharia carregada, se lhe taparam a boca, e lhe põem fogo, rebenta: não há bronze que o resista. Tal é, diz o profeta, o que sei, e não posso ocultar: arde dentro no meu coração como fogo que me penetra nos ossos, com tal violência e tormento, que me faltam as forças, desmaio, e o não posso sofrer. — Um só segredo, que não podia passar dele, guardava dentro em si o profeta Isaías: Secretum meum mihi, secretum meum mihi[30]. — E, declarando o texto original os efeitos que causava este segredo no interior donde não podia sair, diz: Macies est mihi, macies est mihi, tabes est mihi, tabes est mihi: Ai de mim, que me vejo emagrecer e mirrar, ai de mim que me vejo entisicar sem remédio, pela força que me faço em não dizer uma coisa que sei. — A muitos entisica o estudo por saber, a Isaías entisicavao o saber, porque o havia de ocultar. Ah! Isaías! Ah! Jeremias! Vós sois os dois profetas maiores; e, pois, no forçoso silêncio de não poderdes dizer o que sabeis, se vos aperta tanto o coração, pedi a Santo Antônio que parta convosco da largueza e capacidade do seu. Nele tem encerrados todos os segredos da Filosofia, nele todos os segredos da Teologia, nele todos os segredos vossos, e de toda a Sagrada Escritura, e nele todas as revelações e ilustrações divinas, que continuamente recebe do céu, e nem por isso se lhe aperta ou estreita o peito, nem os seus ossos se secam ou entisicam; antes, ardendo dentro neles muito maior fogo, nem o fumo da menor luz aparece cá fora.

Elifás Temanites, o primeiro dos quatro sábios que disputaram com Jó, escusando-se de lhe haver de dizer o que trazia meditado, ainda que o houvesse de molestar, tomou esta salva: Conceptum sermonem tenere quis poterit (Jó 4, 2)? Que homem haverá que o que tem concebido no entendimento, o possam impedir e ter mão, para que não saia à língua? — Alude à conceição corporal, à qual necessariamente se segue o parto, sem que haja poder ou força, em todas as da natureza, que o possa impedir. Primeiramente ao quis poterit de Elifás, respondo que este homem, que ele teve por impossível, foi Santo Antônio, pois, estando tão cheio, e como rebentando de sabedoria, ele a soube e pôde conter dentro em si mesmo, como se a não tivera. E quanto à conceição e parto a que alude o mesmo sábio, acrescento que a força desta conseqüência e semelhança ainda foi mais forte e mais admirável no mesmo santo, pelo muito que tinha de divino o seu entendimento. Deus também concebeu ab aeterno: Ex utero ante luciferum genui te[31]e, assim como o conceber na Pessoa do Padre, juntamente foi conceber e falar, assim o ser concebido, na Pessoa do Filho, juntamente foi ser concebido, e ser Verbo e palavra do Padre.

E como o entendimento de Antônio tinha tanto de divino, e tanta propensão, como divino, a se comunicar todo, o não lhe sair à língua, nem por uma palavra, o muito que tinha concebido, assim como era maior esta violência, assim foi maior maravilha a vitória de a reprimir e conter. Deus quanto sabia disse — nem pôde deixar de o dizer — em uma palavra; e Santo Antônio, de quanto sabia, nem uma só palavra disse. E para que vejamos em frase e termos humanos quanto teve de divino este silêncio, o provérbio humano diz: Scire tuum nihil est, nisi te scire hoc sciat alter: Todo o vosso saber é nada, se ninguém sabe o que vós sabeis. — Donde se segue que, fazendo Santo Antônio que ninguém soubesse o que ele sabia, com esta ação, aos outros homens quase impossível, aniquilou toda a sua sabedoria: Scire tuum nihil est. — Agora pergunto: E qual é aquela potência do mundo, que pode aniquilar? Só aquela que de nada criou todas as coisas. Assim o resolve a melhor filosofia, que o criar e o aniquilar é regalia só de Deus. E, tendo Deus dado ao entendimento de Santo Antônio a primeira parte do divino, para poder compreender o que soube, também lhe deu, e com maior maravilha, esta segunda, para poder aniquilar o que sabia.

De tudo o que até agora tenho dito, claramente terão entendido os que não só ouviram com os ouvidos, senão com os olhos abertos, que toda a sabedoria de Santo Antônio, e muito mais nesta última circunstância de a encobrir, foi participação e influência da segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que lhe deu o docuerit. Antes de a mesma Pessoa, o Verbo Divino, encarnado, sair a ensinar: Coepit facere et docere[32]que fez? O mesmo, nem mais nem menos, que Santo Antônio. Quando Cristo, em sua menoridade, perdido, foi achado no Templo entre os doutores, não somente admirados eles, mas pasmados, como diz o texto, do que perguntava, do que respondia, e do que sabia: Stupebant super prudentia et responsis ejus[33]parece que deviam dizer os pais, isto é, S. José e a Senhora: Este Menino não está perdido em Jerusalém, em Nazaré é que está perdido: deixemo-lo ficar entre os doutores, pois, tanta habilidade tem para as letras. — Mas não foi assim. Tornou para Nazaré, e ali se exercitava, ou serrando, ou acepilhando um madeiro com José, e levando os cavacos à mãe, para que dos suores de ambos guisasse o de que se haviam de sustentar todos três.

Desta maneira esteve eclipsado por muitos anos aquele divino Sol, e reputada a sua sabedoria por ignorância, até que saiu a alumiar o mundo. Pode haver maior retrato, ou mais vivo original de Santo Antônio? Em seus primeiros anos, em hábito de cônego regrante, com o nome de Dom Fernando, sendo a fama da Universidade de Coimbra, e a admiração dos seus doutores. E depois, trocando a murça com o burel, e mudando o nome de Fernando em Antônio, para desbatizar a sua sabedoria, o que fez em Itália entre os seus frades foi a profissão de idiota e ignorante, servindo na cozinha, e nos outros exercícios mais baixos e humildes da casa, com que ele se escusou, quando a primeira vez foi mandado pregar. Assim imitou pelos mesmos passos o nosso filho de S. Francisco ao Filho do Eterno Padre, sendo certo — reparai muito no que agora digo — sendo certo, que, a um e a outro Filho, mais dificultoso foi o estudo da ignorância que o uso da sabedoria.

Pecou Adão, e antes de Deus, em figura de homem, lhe perguntar aonde estava: Adam ubi es?[34]diz o texto que andava o Senhor passeando no Paraíso, e falando consigo em vozes que o mesmo Adão ouviu: Cum audisset vocem Domini deambulantis in paradiso[35] . — E que fazia o Filho de Deus — que o Filho era, pois tinha tomado forma de homem — que fazia, andando e falando assim? Profundissimamente Tertuliano: Interrogans Adam quasi nesciens, ubi es, quae erat persecuturus, ediscebat[36]. O Filho de Deus sabia muito bem aonde Adão estava, e havia-lhe de perguntar aonde estava, como se o não soubera, quasi nesciens — e como havia de mostrar que ignorava o que sabia, andava passeando e repetindo como estudante, e aprendendo o que havia de dizer para não errar: Quae erat persecuturus, ediscebat. — Tão dificultoso é aprender a ignorar, até à sabedoria, que tudo sabe! E não só no caso de Adão: quasi nesciens — nem só no caso do dilúvio: quasi non praescius — nem só no caso de Abraão: quasi ignorans quid sit in homine — mas em infinitos outros, diz o mesmo Tertuliano, tornava a aprender Deus esta lição todas as vezes que, perguntando, ou argüindo, ou dissimulando, havia de mostrar que ignorava o que sabia: Quae erat persecuturus, infinita semper ediscebat.

Para que se veja com quanta cautela, com quanta circunspeção, e com quanta vigilância havia de viver Antônio como Argos de si mesmo, e como réu de sua própria ciência, exposto aos olhos ouvidos e línguas, não de uma, mas de muitas comunidades, e comunidades de gente regular, cujos olhos são os mais agudos para ver, cujos ouvidos os mais despertos para ouvir, e cujas línguas as mais prontas para não perdoar; e todos, por tudo, os mais linces, para nada se lhes esconder. Assim estudava e se desvelava a sua humildade depois de jubilado nas letras, por conseguir na opinião o grau de idiota, estudo tanto mais dificultoso à natureza e à honra, quanto é mais custoso à presunção abater as sobrancelhas que queimar as pestanas. Mas isto se entende daquela ciência que se aprende nas escolas públicas da vaidade, e não debaixo do magistério secretíssimo da Divindade, cuja segunda Pessoa, como lhe tinha dado, para se esconder, o exemplo, assim lhe comunicou, para ensinar, o docuerit.

§ VII

O modo com que a terceria Pessoa da Santíssima Trindade comunicou a Santo Antônio a santidade. Se o nome santo é comum a todas as pessoas divinas, por que o tomou a terceira Pessoa por particular e próprio seu? O nome de santo absoluto, e por antonomásia, com que o Espírito Santo, sem outro exemplo mais que o do Verbo, fez que Santo Antônio singularmente, entre todos os santos, fosse chamado o santo.

Declarada a verdade e o modo, com que a primeira Pessoa da Santíssima Trindade deu a Santo Antônio o fecerit, e a segunda o docuerit, só resta que vejamos como a terceira lhe deu o vocabitur. E se nesta distribuição de suas grandezas tocou ao Padre o fecerit, pela atribuição da onipotência; e ao Filho o docuerit, pela atribuição da sabedoria; não menos propriamente pertence ao Espírito Santo o vocabitur pela atribuição da santidade, que significa o mesmo nome de santo, o qual, sendo comum a todas as Pessoas Divinas, é próprio e especial da terceira. Ajunta-se este nome no nosso texto com o magnus: Magnus vocabitur in regno caelorum[37] porque no céu, aonde só os nomes são verdadeiros o nome de santo, como maior e mais excelente é também único, e sobre todos com que Deus é louvado. Aqueles serafins que assistiam perpetuamente ao trono de Deus, o que cantavam a coros, como diz o profeta Isaías, era: Sanctus, sanctus, sanctus (Is. 6, 3): sanctus ao Padre, sanctus ao Filho, sanctus ao Espírito Santo; e três vezes, não mais nem menos, porque cantavam à Santíssima Trindade. Mas, se as perfeições da Santíssima Trindade são tão infinitas como o mesmo Deus, e os cantores eram serafins, os espíritos e entendimentos supremos de toda a corte do céu, por que não variavam a música e os louvores, assim como alternavam as vozes? Porque, sendo também infinitos os nomes de Deus, nenhum há que mais lhe agrade que o nome de santo, por ser este sobre toda a excelência o mais excelente. Assim responde o grande Dionísio Areopagita, no admirável livro que compôs De Divinis Nominibus: — Deus per excellentem cuncta excellentiam Sanctus praedicatur[38].

Este nome, pois, de santo — que no céu é o maior, e mais cantado e celebrado de todos — é também o próprio da terceira Pessoa da Santíssima Trindade, e o que ela tomou para si e deu a Santo Antônio, Mas, para que vejamos quanto deu, saibamos a razão por que o tomou. Na Santíssima Trindade, o Padre é espírito e santo, o Filho é espírito e santo, o Espírito Santo é espírito e santo. Pois, se este nome é comum a todas as Pessoas divinas, por que o tomou a terceira Pessoa por particular e próprio seu? Porque este nome era o que melhor nos podia declarar a igualdade que tem o Espírito. Santo com o Padre e com o Filho, naquela mesma diferença em que parece que lhe não é igual. Ora vede. A pessoa do Padre gera o Filho, a Pessoa do Padre e a do Filho produzem o Espírito Santo; porém, a Pessoa do Espírito Santo, nem só como Padre, nem acompanhado como o Padre e o Filho, produz outra Pessoa divina, porque não é possível outra. Logo, parece que não é igual a Pessoa do Espírito Santo à do Padre e à do Filho. E se são iguais, como verdadeiramente são: Qualis Pater, talis Filius, talis Spiritus Sanctus — esta, que parece desigualdade, e verdadeiramente é diferença muito notável, com que se supriu? Com o nome de santo.

Com o nome de santo, digo, não só como comum a todas as Pessoas da Santíssima Trindade, mas como próprio da terceira. Não é o Espírito Santo, como o Pai, que gera outra pessoa divina, qual é o Filho; mas é santo como o Pai: não é como o Filho, que com o, Pai produz outra Pessoa divina, qual é o mesmo Espírito Santo; mas é santo como o Filho. E como é igual ao Padre e ao Filho no nome, não de santificado, mas de santo, nem de santidade acidental, senão substancial, nem recebida de outrem, mas própria, porque é santo como o Pai, ainda que não seja Pai, e porque é santo como o Filho, ainda que não seja Filho, é tão igual e tão Deus como o mesmo Filho e como o mesmo Pai. Excelentemente Orígenes: Sanctus Spiritus ita sanctus est, ut non sit sanctificatus: nec initium sanctitatis ejus accepit. Similique modo de Patre et Filio intelligendum est. Sola enim Trinitas substantia est, quae non extrinsecus accepta sanctificatione, sed natura sua sit sancta.

Deste nome próprio de santo, fundado na santidade substancial da terceira Pessoa da Santíssima Trindade, se deriva, com a mesma propriedade natural, o de santificador, santificando e distribuindo a mesma santificação, como absoluto e independente Senhor, como e a quem quer: Divisiones gratiarum sunt, idem autem Spiritus dividens singulis prout vult[39]diz S. Paulo. — E o maior exemplo deste poder, como notam os teólogos[40], e o mais semelhante ao que logo veremos em Santo Antônio, foi o do mistério inefável da Encarnação do Verbo. Trazendo o anjo Gabriel esta embaixada — a que só a grandeza de um ânimo capaz de receber dentro de si a todo Deus pudera ter que replicar — respondeu ao reparo da Senhora que aquela obra, quanto ao modo, não teria nada de humano, porque, assim como a Pessoa que havia de encarnar, era a segunda da Santíssima Trindade, assim os soberanos artífices da mesma união seriam a primeira Pessoa, que é o Altíssimo, e a terceira, que é o Espírito Santo: Spiritus Sanctus superveniet in te, et virtus Altissimi obumbrabit tibi[41]. — E que se seguiram destes dois discursos unidos em um, ambos divinos, e no mesmo sujeito? O mesmo anjo declarou que seriam dois efeitos, e dois nomes tão inefáveis como o próprio composto: um que se chamaria Filho de Deus, e outro que seria por antonomásia o santo: Ideoque et quod nascetur ex te sanctum, vocabitur Filius Dei[42]).

Agora — quanto é lícito comparar ou equiparar por semelhança extremos tão infinitamente distantes — tomemos destas duas cláusulas o sanctum e o vocabitur. O vocabitur é o que dissemos, e imos provando, que deu e comunicou a Santo Antônio a terceira Pessoa da Santíssima Trindade; e o Sanctum, o nome de santo absoluto, e por antonomásia, com que o mesmo, Espírito Santo, sem outro exemplo mais que o presente, fez que Santo Antônio singularmente entre todos os santos fosse chamado o santo. S. Bernardo, ponderando as palavras do anjo: Et quod nascetur ex te Sanctum[43]admirado da novidade do termo, exclama: Ut quid ita simpliciter Sanctum, et absque additamento? Santo e simples e absolutamente santo, sem aditamento: que é isto[44]? É o que disse o anjo do Verbo depois de encarnado, e o que quis o Espírito Santo, que também se verificasse de Santo Antônio: Sanctum, et absque additamento. — Santo Antônio em Pádua, aonde tem o seu sepulcro, não se chama Santo Antônio, senão o santo por antonomásia, e sem aditamento. Vou ao santo, venho do santo, sem outro nome, quer dizer: vou a Santo Antônio, venho de Santo Antônio.

E para que se veja que isto foi não por afeto ou devoção particular humana, senão por instinto divino, inspirado pelo mesmo Espírito, quando Santo Antônio passou desta vida, temendo os seus religiosos que o povo o não deixasse sepultar, resolveram a ter a morte em segredo, até lhe darem sepultura com as portas fechadas; mas os meninos, por divino instinto, no mesmo instante em que expirou começaram a bradar por todas as ruas: Morreu o santo, morreu o santo. — E como, Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem[45]também eles, com línguas do céu, o nomeavam por santo sem aditamento. Oh! excelência grande de Antônio! Não digo bem: Oh! excelência grande do santo entre todos os santos! S. Francisco, seu santo padre, chama-se santo; mas com aditamento, S. Francisco; S. Domingos, companheiro e irmão do mesmo S. Francisco, chama-se santo; mas santo com aditamente, S. Domingos. Os dois filhos dos mesmos pais, doutores e lumes da Igreja, o angélico e o seráfico, também se chamam santos; mas santos com aditamentos, um Santo Tomás, outro, S. Boaventura; porém, Santo Antônio singular entre todos, Santo sem aditamento, e por isso, com muita razão, Santo Antônio de Pádua, porque só Pádua lhe aceitou com o nome próprio, sendo que teve muitos nomes. Em Lisboa se chamou no batismo Fernando, em Coimbra, na mudança do hábito se chamou Antônio; e só Pádua lhe acertou com o verdadeiro nome, santo, e mais nada, porque é mais que tudo: Sanctum sine additamento.

§ VIII

Não é mais dar o Espírito Santo que recebê-lo? De que modo Santo Antônio comunicou o Espírito Santo a um noviço tentado de abandonar a religião. A diferença notável por que comunicavam o Espírito Santo os apóstolos e Cristo, Senhor nosso. De que modo não só comunicou a terceira Pessoa da Santíssima Trindade a Santo Antônio o nome de santo, senão também o antenome de Espírito, e o sobrenome de Paráclito. A significação do nome e a missão de Noé. O milagre de Santo Antônio, o grande consolados, na cidade de Milão.

E, posto que para provar que a vocação ou imposição deste nome parece que bastava à verdade do que acabo de referir, para que este último discurso se parecesse com os dois passados, determinei mostrar como o vocabitur em Santo Antônio não fora menos próprio do Espírito Santo que o fecerit e o docuerit do Padre e do Filho. E não sei se o mesmo Santo Antônio, ou o mesmo Espírito Santo, me quis repreender como covarde, e castigar como escasso em seus louvores. Não é mais dar o Espírito Santo, que receber dele quanto pode dar? E não é mais que dar o Espírito Santo, dá-lo do modo que só o pode dar aquele de quem o mesmo santo recebeu o ser? Estes dois mais são tão estupendos, que tanto podia tremer a língua de os imaginar, como a mesma fé de os crer. Mas eu ofenderia gravemente ao Espírito Santo, e faria igual agravo a Santo Antônio, se não referisse lisamente o que agora direi. Depois de fortemente tentado por muitos dias um noviço da mesma Ordem, rendido enfim à força da tentação, resolveu-se a deixar o hábito. E que faria a dor e caridade de Frei Antônio, que se achava no mesmo convento, para o conservar na vocação? Oh! prodígio sobre toda a admiração estupendo! Também parece derivação do vocabitur. — Vai aonde estava o noviço, abre-lhe com as mãos a boca, mete-lhe por ela a respiração e alento da sua dizendo: Accipe Spiritum Sanctum: Recebe o Espírito Santo — e no mesmo ponto fugiu o espírito tentador, tomou em si o tentado, triunfou do inimigo que o tinha vencido, e perseverou até a morte na religião, como filho digno de tal mãe, e segunda vez gerado de tão santo pai. Não foi isto dar o Espírito Santo, que é mais que recebê-lo?

Vamos agora ao modo, sem comparação mais admirável que a mesma obra. Cristo, Senhor nosso, deu o Espírito Santo aos apóstolos, e deu também poder aos apóstolos para darem o Espírito Santo; mas de que modo? Com uma diferença muito notável. Os apóstolos comunicavam o Espírito Santo pela imposição das mãos, pondo-as sobre aqueles que o recebiam, como diz S. Lucas: Imponebant manus super illos, et accipiebant Spiritum Sanctum[46]. — E cristo comunicou o Espírito Santo aos apóstolos com o alento e respiração da sua própria boca, a qual respiração eles recebiam nas suas, como o mesmo Senhor juntamente lhes disse: Insufflavit, et dixit eis: Accipite Spiritum Sanctum[47]. — E qual foi a razão desta diferença? Muito grande, muito particular, e muito necessária. Porque os apóstolos, com a imposição das mãos significavam nelas o que faziam com poder e autoridade recebida de Cristo, e Cristo, com o alento e respiração da sua boca, significava que ele era, como segunda pessoa da Santíssima Trindade, a que juntamente com a primeira produzira e espirara o mesmo Espírito Santo — que essa é a palavra e termo teológico com que se declara a produção e processão com que o Espírito Santo procede do Padre e do Filho. — Assim o dizem Santo Agostinho, S. Cirilo, Beda, e os outros padres, na exposição do mistério desta ação de Cristo[48]. E nós, à vista do que fez Santo Antônio, ou da confiança, poder e autoridade que teve para o fazer, que podemos dizer, senão pasmar? De maneira que, havendo de comunicar Santo Antônio o Espírito Santo, não o fez como S. Pedro, S. Paulo, S. João, e os outros apóstolos, com a imposição das mãos sobre o religioso tentado e vencido, senão com o alento e respiração da sua boca, e dizendo: Accipe Spiritum Sanctum — pelo mesmo modo, assim na ação como nas palavras, com que o mesmo Cristo quis significar e representar nelas, como Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que dele procedia a terceira. Tanto é o que amou e o que honrou o Espírito Santo àquele santo, a quem, com a propriedade do nome, deu a antonomásia do seu.

E, pois, temos na boca de Santo Antônio, por obra e por palavra, uma tão singular figura da processão do Espírito Santo, vejamos nela uma nova prerrogativa do mesmo divino Espírito Santo, participada também de Santo Antônio, e gloriosamente continuada nele. Falando Cristo da sua processão, enquanto segunda Pessoa da Santíssima Trindade e da processão do Espírito Santo, enquanto terceira Pessoa, de si diz que procedeu: Ego ex Deo processi[49] e do Espírito Santo diz que procede: Spiritum veritatis, qui a Patre procedit[50], — As processões, assim do Filho como do Espírito Santo ambas foram ab aeterno; pois, como falando Cristo de uma e outra, da sua diz que procedeu de pretérito — processi — e da do Espírito Santo diz que procede de presente — procedit? A razão é porque às processões eternas, ad intra, ajuntou o Senhor as temporais, ad extra, quando o Filho e o Espírito Santo vieram a este mundo. Expressamente consta de um e outro texto, porque no primeiro acrescenta veni, e no segundo cum venerit: no primeiro: Ego ex Deo processi, et veni[51] — e no segundo: Cum venerit Paraclitus, qui a Patre procedit[52]. — Diz, pois, Cristo, falando de si, que procedeu e veio, de pretérito, porque de tal maneira veio do Padre a este mundo, que tornou outra vez para o mesmo Padre: Exivi a Patre, et veni in mundum: interum relinquo mundum, et vado ad Patrem[53]).

Pelo contrário, do Espírito Santo diz de presente que procede e vem, porque de tal maneira veio, que sempre vem, e sempre está vindo, comunicando a todos os seus dons e graças. A questão foi agudamente excitada pelo abade Ruperto[54] ; e a solução também é sua, com uma não menos aguda e bem fundada advertência. Mas porque a mesma foi primeiro de Santo Atanásio, e mais expressa e elegantemente declarada por ele, as suas palavras são estas: Dei quidem Filius, post impletam totam dispensationem, tandem assumtus est: Spiritus vero Sanctus super apostolos veniens, et super omnem carnem effusus, non est rursus assumptus, sed in generationes transit omnes, et si quemlibet hominem invenit, habitat super eum[55]E porque a segunda Pessoa da Santíssima Trindade veio à terra, e depois tornou para o céu, e a terceira veio, porém, não tornou, mas está sempre conosco em todo o tempo e em todo o lugar. Esta mesma graça de estar sempre conosco comunicou o mesmo Espírito Santo a Santo Antônio, e para que fosse primeiramente em todo o tempo, não só lha concedeu em vida, senão também depois de morto.

Os outros santos geralmente neste mundo trabalharam, padeceram, glorificaram a Deus, serviram ao próximo, venceram o demônio, pisaram o mundo, mortificaram a carne; com o exercício das virtudes cultivaram as almas próprias; com a palavra e o exemplo, as alheias; bons para si, e fazendo bem a todos. Isto enquanto viveram; acabada, porém, feliz e constantemente a carreira da vida, deixaram este mundo, e foram-se para o céu a gozar o fruto dos seus trabalhos, e descansar deles. Bem assim como Cristo, o qual: post impletam totam dispensationem, tandem assumptus est. — Pelo contrário, Santo Antônio, imitando também a Pessoa do Espírito Santo, pela prerrogativa do nome, em ficar sempre conosco: Assumptus non est, sed in generationes transit omnes. — Quatrocentos e vinte e sete anos faz hoje que Santo Antônio foi tomar posse do eminentíssimo lugar que tem na corte do céu, como grande dela: Magnus in regno caelorum — mas nem por isso em todos os anos e dias de tantos séculos deixou de estar sempre conosco na terra, nada menos poderoso e vigilante em nos assistir, acudir e ajudar, senão muito mais que quando vivia. Quando vivia — que é a segunda parte da mesma prerrogativa — estava juntamente em diferentes lugares; agora está em todos os do mundo, e se hoje o não vemos na própria pessoa, vemo-lo nos mesmos e maiores efeitos.

Pouco tivera feito o Espírito Santo em dar a Santo Antônio, com o vocabitur, o nome de santo, se lho não dera acompanhado das outras partes de que inteiramente se compõe o seu próprio nome. O nome da terceira Pessoa da Santíssima Trindade, pelo que é em si, e pelo que obra em nós, compõe-se inteira e inefavelmente destas três palavras: Spiritus, Sanctus, Paraclitus: Espírito, Santo, Paráclito. E, por virtude e extensão do mesmo vocabitur, não só comunicou a mesma Pessoa divina a Santo Antônio o nome de santo, senão também o antenome de Espírito, e o sobrenome de Paráclito: o de Espírito, cuja propriedade é estender-se a todas as quatro partes do mundo, como diz Ezequiel: A quatuor ventis insuffla Spiritus[56] — e o de Paraclitus — que quer dizer consolator: consolador — para que em todas as partes do mesmo mundo assistisse como espírito, e em todas fosse consolador, como é, de todos os que tivessem necessidade de consolação. Quando o Espírito Santo desceu do céu, veio em figura de espírito: Spiritus vehementis[57]e em figura de línguas de fogo: Linguae tanquam ignis[58]não só pelo que então significava nos apóstolos, senão pelo que depois havia de obrar em todos: em figura de espírito, porque como espírito havia de encher todo o mundo: Spiritus Domini replevit orbem terrarum[59]e em figura de línguas, e essas de fogo, porque, como consolador, havia de alumiar e alentar a todos com a luz e consolação das suas vozes: Et hoc quod continet omnia, scientiam habet vocis[60].

E quem não vê nestas mesmas figuras retratado hoje a Santo Antônio? Depois que a sua alma se despiu do corpo, ele ficou espírito, e do corpo só lhe ficou a língua incorrupta e incorruptível, como é o fogo: o espírito para a assistência universal de todo o mundo, e a língua para consolação universal de todos em qual quer parte dele. Neste mesmo dia, e nesta mesma hora em que nós celebramos a Santo Antônio na América, o celebram e festejam com muito maiores demonstrações de solenidade na Europa, na África e na Ásia todas as nações e todos os estados do mundo. E por quê? Porque nenhuma nação nem estado há nele, grande ou pequeno, que nos trabalhos e necessidades, a que todos estão expostos, não invoque e chame por Santo Antônio; e nenhuma voz há dos que o invocam, a que ele não responda: Aqui estou. É verdade que o não vemos com os olhos, mas vemo-lo nos efeitos. Isso é ser invisível como espírito, e efetivo como consolador. E se não, digam-no todos em todo o tempo e lugar. Os lavradores no campo, os navegantes no mar, os soldados na guerra, os mercantes nos comércios, os pleiteantes nas demandas, os requerentes nos despachos, os presos nos cárceres, os cativos nas masmorras, os enfermos nas doenças, os agonizantes na morte, e até os mortos nas sepulturas, porque não há lugar nem estado tão alheio de toda a esperança e remédio, a que as consolações deste Paráclito universal se não estendam.

O maior trabalho, e o mais universal do mundo, de que ninguém e nenhuma coisa escapou, foi o dilúvio de Noé, e este nome de Noé lhe pôs seu pai Lamec, que era profeta, dizendo: Iste consolabitur nos (Gên. 5, 29): Este nos consolará — porque Noé na língua hebráica quer dizer — consolator et consolatio: Consolador e consolação. — E cumpriu-se a profecia e significação do seu nome no mesmo. Noé, porque ele foi o restaurador e reparador do mundo, e o consolador e a consolação daquela perda universal e imensa, em que se incluíram todas as da fazenda, as da fortuna, as da natureza, as da vida, e as de quanto em mil e seiscentos e cinqüenta e seis anos tinha cultivado o trabalho, adquirido a cobiça, levantado a ambição, e multiplicado e gerado a propagação humana. Então prometeu Deus que não haveria mais outra perda universal como aquela; mas deixou o mesmo mundo sujeito a tantas outras particulares, ou livres ou violentas — sobre as da mesma fragilidade natural, de então para cá mais enfraquecida — que apenas há casa, família, nem pessoa, nem dia neste vale de lágrimas, livre de tristezas, aflições e trabalhos, para cuja consolação não há outro consolador e paráclito mais pronto e mais familiar e doméstico, e que invocado diga, aqui estou, como Santo Antônio.

De quão vivas, eficazes e efetivas sejam as razões da sua língua para a consolação das mais desesperadas tristezas e aflições, pudera referir muitos casos, todos admiráveis, dos quais só contarei um, por ser sucedido em nossos dias, e me parecer que do mundo velho, onde foi muito celebrado, ainda não passou ao novo. Na cidade de Nápoles estava sentenciado à morte um pobre homem, a quem não valeram arrazoados, nem embargos, nem, como ele dizia, a própria inocência, prevalecendo contra tudo a prova das testemunhas; com o triste desengano de haver de sair a justiçar ao outro dia, fez à ventura uma petição, a qual entregou à sua mulher, igualmente aflita, para que a levasse ao vice-rei, e, lançada a seus pés, o procurasse mover com suas lágrimas a que ao menos lhe comutasse o castigo em outra que não fosse de morte. Foi a desconsolada requerente a palácio, mas não teve entrada, porque aquelas portas, sempre patentes aos ricos e poderosos, só para os pobres, que não têm nem podem, costumam de ordinário estar fechadas. E que faria sobre esta desesperação a miserável?

Devia ser boa cristã: resolveu-se a bater às portas do céu, pois que achava recriadas as da terra. Vai-se à igreja de Santo Antônio, e entre lágrimas e soluços põe a petição sobre o altar aos pés de santo, dizendo que, pois tinha nos braços o Rei, não dos vice-reis, mas dos reis, dele esperava o seu despacho, o qual viria buscar ao outro dia. Ainda não tinha bem amanhecido, quando a que esperava que as portas da igreja se abrissem chegou ao propriedade é estender-se a todas as quatro partes altar, aonde achou o seu papel, ao que mostrava, sem nenhuma mudança. Abriu-o, viu que tinha mais escritura, pediu, porque não sabia ler, que lha declarassem, e como lhe dissessem que continha o perdão do vice-rei, e logo pusessem ao condenado em sua liberdade, já se vê como correria alegre a lhe levar a nova e a vida. Presenteu o despacho ao carcereiro, o qual, porém, o teve por novo crime, entendendo que a letra e a firma era furtada. Eis aqui outra vez trocada a tristeza em novo susto. Levou o carcereiro o papel ao secretário, que também confirmou o furto da letra, admirado da grande semelhança e propriedade dela; e, supondo que o caso pedia nova inquirição e exame, para ser cortada a mão que tal escrevera, e não imaginando, nem lhe passando por pensamento o que o vice-rei poderia responder, lhe presentou aberta a petição.

Mas, ó Antônio, verdadeiro e universal paráclito! Ó Antônio, piedoso consolador, e certíssima consolação de todos os angustiados e aflitos! Ó língua viva e imortal! Ó língua a mais eloqüente e poderosa oradora para convencer entendimentos e trocar vontades, e para render a divina e as humanas à vossa! Respondeu o vice-rei que a letra não era fingida, senão sua, e que ele escrevera o despacho, e o firmara de sua mão. E dando a causa de não só haver moderado a sentença, mas de absolver totalmente o réu solto e livre: Este mesmo papel — disse — me trouxe aqui um fradinho de S. Francisco, que me disse tais coisas, e com tal eficácia, que eu não pude deixar de fazer e escrever o que ele quis. Executou-se o perdão, divulgou-se o caso, pasmaram os que não conheciam bem o autor; mas os que conhecem o seu poder e as suas maravilhas, sem admiração nem novidade só diziam: Isto é ser Santo Antônio. — E eu, que direi? Só digo que a terceira Pessoa da Santíssima Trindade tem bem desempenhado neste discurso o vocabitur, pois para dar o Espírito Santo inteiramente a Santo Antônio todo o seu nome, não só lho deu enquanto santo, senão também enquanto Espírito e enquanto Paráclito: Sanctum quoque, et Paraclitum spiritum.

§ IX

Os três documentos do sermão: para os que a fortuna fez poderosos, para os que o estado faz sábios, e para os que a profissão deve fazer santos.

Tenho acabado, posto que mais largamente do que eu quisera, as três partes do meu discurso. Para que, imitando a Santo Antônio em todas elas, ofereçamos também algum obséquio à fiel veneração das três Pessoas da Santíssima Trindade; do que o nosso santo imitou em cada uma, tiremos muito brevemente três documentos, O primeiro, para os que a fortuna fez poderosos; o segundo, para os que o estado faz sábios; o terceiro, para os que a profissão deve fazer santos. Todo o homem tem obrigação de ser semelhante à Santíssima Trindade. Por isso Deus, não só enquanto um, senão enquanto trino – falando entre si as três Pessoas divinas – quando criou o homem, disse: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram (Gên. 1, 26): Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. — Se o poderoso puder moderar o que pode, usando do poder só para o bem, será semelhante à Pessoa do Padre, e imitará a Santo Antônio no fecerit. Se o sábio souber encobrir a seu tempo o que sabe, e só manifestar o que convém, será semelhante à Pessoa do Filho, e imitará a Santo Antônio no docuerit. Se o que deve ser santo, estimar a verdade deste nome sobre todos os títulos do mundo, será semelhante à Pessoa do Espírito Santo, e imitará a Santo Antônio no vocabitur. Desta maneira o poder moderado, a sabedoria bem entendida, e a santidade sobre tudo estimada, lhe alcançarão a sólida e eterna grandeza, não na terra, aonde tudo é pequeno e pouco, senão no céu, aonde tudo é muito e grande: Qui fecerit et docuerit, hic magnus vocabitur in regno caelorum[61].



[1] Aquele que fizer e ensinar, terá nome de grande no reino do céu (Mt. 5,19).

[2] Foi a ciência do Senhor que os diferenciou, depois que criou o sol, o qual obedece às suas ordens. E variou as estações e os seus dias de festa, e nelas se celebraram as solenidades (Eclo. 33, 8 s).

[3] Sustentou em três dedos toda a massa da terra (Is. 40, 12).

[4] Richardus de S. Laurent. lib. 2 de Laud. Virg.

[5] Abençoe-nos Deus, o nosso Deus. Abençoe-nos Deus, e temam-no todos os limites da terra (SI. 66, 7 s).

[6] O Senhor vos abençoe e vos guarde: eis a bênção do Padre. - Na Vulgata: O Senhor te abençoe e te guarde (Núm. 6, 24).

[7] O Senhor vos mostre a sua face: eis a bênção do Filho. Na Vulgata: O Senhor te mostre a sua face (Núm. 6, 25).

[8] E vos dê a paz: eis a bênção do Espírito Santo. - Na Vulgata: E te dê a paz (Núm. 6, 26).

[9] Ah! ah! ah! Senhor Deus (Jer. 1, 6).

[10] Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe, te conheci; e antes que tu saísses da clausura do ventre materno te santifiquei, e te estabeleci profeta entre as gentes (Jer. 1, 5).

[11] Viegas, Apocal. 6, sect. 5.

[12] Eis aí te constituí eu sobre as gentes e sobre os reinos, para arrancares e destruíres, e para arruinares e dissipares, e para edificares e plantares (Jer. 1, 10).

[13]Ah! ah! ah! Senhor Deus: Tu bem vês que eu não sei falar, porque eu sou um menino (Jer. 1, 6).

[14] O Pai, que está em mim, esse é o que faz as obras (Jo. 14, 10).

[15] Viu a três, mas adorou a um somente.

[16] Escobar ibi.

[17] Por esta causa dobro eu os meus joelhos diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a paternidade toma nome nos céus e na terra (Ef. 3, 14 s).

[18] Origen. Homil. 9, in diversis loc. Evang.

[19] Bern. Servi. 73, in Cantic.

[20] Eu te constituí deus de Faraó (Ex. 7, 1).

[21] E morte para os maus, e vida para os bons.

[22] No qual estão encenados todos os tesouros da sabedoria e da ciência (Col. 2, 3).

[23] Ouvimos nós falar cada um na nossa língua em que nascemos (At. 2, 8).

[24] Este é aquele meu querido filho, em quem tenho posto toda a minha complacência: Ouvi-o (Mt. 17,5).

[25] As tuas setas são agudas nos corações dos inimigos do rei; debaixo de ti cairão os povos (SI. 44, 6).

[26] Sobre a tua palavra soltarei a rede (Lc. 5, 5).

[27] Retira-te de mim, Senhor, que sou um homem pecador (Lc. 5, 8).

[28] Desta hora em diante serás pescador de homens (ibid. 10).

[29] Ateou-se no meu coração um como fogo abrasador, e reconcentrado nos meus ossos; e desfaleci, não o podendo suportar (Jer. 20, 9).

[30] O meu segredo para mim, o meu segredo para mim (Is. 24, 16).

[31] Eu te gerei do seio antes do luzeiro (SI. 109, 3).

[32] Começou a fazer e a ensinar (At. l, 1).

[33] Estavam pasmados da sua inteligência e das suas respostas (Lc. 2, 47).

[34] Adão, onde estás (Gên. 3, 9)?

[35] Como tivesse ouvido a voz do Senhor que passeava pelo paraíso (ibid. 8).

[36] Tertull. adversus Praxeam, pág. 1022.

[37] Será reputado grande no reino dos céus (Mt. 5, 19).

[38] Dionys. de Div. Nomin. cap. 12.

[39] Há pois repartição de graças, mas um mesmo é o Espírito, repartindo a cada um como quer (1 Cor.12,4. 11).

[40] Suar de Trinit. lib. 2, cap. 5.

[41] O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra (U. 1, 35).

[42] E por isso mesmo o Santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus (ibid.).

[43] O Santo que há de nascer de ti (Lc. 1, 35).

[44] Bern. Serm. 4, super Missus.

[45] Tu fizeste sair da boca dos infantes e dos que mamam um louvor perfeito (Si. 8, 3).

[46] Punham as mãos sobre eles, e recebiam o Espírito Santo (At. 8,17).

[47] Soprou sobre eles, e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo (Jo. 20, 22).

[48] August tract. 121.

[49] Eu saí de Deus (Jo. 8, 42).

[50] Espírito de verdade que procede do padre (Jô. 15, 26).

[51] Eu saí de Deus, e vim (Jo. 8, 42).

[52] Quando vier o consolador, que procede do Pai (Jo. 15, 26).

[53] Eu saí do Pai, e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo, e torno para o Pai (Jo. 16, 28).

[54]Rupert. 1. 1, de process. Spirit. Sanct. c. 11.

[55] Athan. q. 79.

[56] O Espírito assopra dos quatro ventos (Ez. 37, 9).

[57] Vento que assoprava com ímpeto (At. 2, 2).

[58] Como línguas de fogo (ibid. 3).

[59] O Espírito do Senhor encheu o universo (Sab. l, 7).

[60] E, como abrange tudo, tem conhecimento de tudo o que se diz (ibid.).

[61] Aquele que fizer e ensinar terá nome de grande no reino do céu (Mt. 5, 19).