LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, em Lisboa, na Capela Real, ano de 1655, do Padre Vieira
Edição de Referência:
Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.
SERMÃO DA QUINTA DOMINGA DA QUARESMA,
Em Lisboa, na Capela Real,
Ano de 1655.
Quis ex vobis arguet me de peccato? Si veritatem dito vobis, quare non credi
tis mihi[1]?
§1
O sermão de Cristo à corte de Jerusalém e aos príncipes dos sacerdotes. O famoso aro de fé de Cristo contra os judeus, e o aro de fé do pregador contra os cristãos.
A uma corte e seus príncipes, à corte de Jerusalém, e aos príncipes dos sacerdotes, pregou Cristo hoje um sermão, cujo exórdio em duas cláusulas é o que eu tomei por tema. O sermão, já naquele tempo acomodando-se ao lugar e aos ouvintes, foi de um famoso ato da fé contra os judeus. Na primeira cláusula provoulhes o Senhor que era o Messias; na segunda, convenceu-os e condenou-os de o não crerem: Quis ex vobis arguet me de peccato? Quem de vós me argüirá de pecado? — Nesta pergunta, a que não podiam responder nem replicar, provou Cristo com evidência que era o Messias, porque homem sem pecado ninguém o foi, nem podia ser senão um homem que fosse juntamente Deus, qual era o Messias prometido na lei. — E se eu — continua a segunda cláusula — e se eu sou o Messias, e como verdadeiro Messias vos digo a verdade: Si veritatem dito vobis — por que me não credes a mim: Quare non creditis mihi? — Se eu sou o esperado, por que não sou crido? Se a vossa esperança é esta, por que não concordais a vossa fé com a vossa esperança? Dai a razão, que não tendes nem podeis ter: Quare, quare?
A minha obrigação hoje, como sempre, é seguir o exemplo de Cristo e o texto do Evangelho E, sendo o tempo, alugar e o auditório tão diverso, qual será o sermão? Nas circunstâncias será também diverso, mas o assunto o mesmo. 0 assunto e sermão de Cristo foi de um ato da fé contra os judeus; o meu será de outro ato da fé, não contra os judeus, senão contra os cristãos. Praza à bondade e misericórdia divina, que se não verifique também em nós a maldição do povo judaico, que, tendo olhos não vejam, tendo ouvidos não ouçam, e tendo, ou devendo ter entendimento não entendam: Excaeca cor populi hujus, et aures ejus aggrava, et oculos ejus claude: Ne forte videat oculis suis, et auribus suis audiat, et corde suo intelligat[2].
§11
Em que erram os judeus e em que erram os cristãos. Um caso notável que sucedeu ao pregador em sua última viagem das ilhas a Lisboa. Os que cantam, os que zombam e os que choram diante do perigo da salvação.
Deixados os judeus, que não crêem a Cristo como verdadeiro Messias, e falando com os cristãos, que o cremos, confessamos e adoramos, com as mesmas palavras convence o divino pregador a uns e a outros, mas muito mais forte, e muito mais eficazmente aos cristãos: Si veritatem arco vobis, quare non creditis mihi? — Que diz Cristo aos judeus? Se vos digo a verdade, por que me não credes? Que diz Cristo aos cristãos? Se credes a verdade que vos digo, por que a não abrais? Os judeus erram em não concordar a sua fé com a sua esperança; os cristãos erram em não concordar a sua vida com a sua fé: e qual é maior erro e maior cegueira? Não há dúvida que a dos cristãos. Por quê? Porque a fé é das coisas que não se vêem: Argumentum non apparentium — e o não crer pode ter alguma desculpa nos olhos; porém, crer uma coisa, obrar a contrária, nenhuma desculpa pode ter, nem aparência de razão, ainda falsa. Aqui nos aperta a nós mais que aos judeus aquele quare. Quare? Por que razão? Daí-a cá. Todos os que aqui estamos, por mercê de Deus, somos homens, e somos cristãos: enquanto cristãos, somos obrigados a ter fé; enquanto homens, somos obrigados a dar razão. E se eu tenho razão para crer o que Cristo diz, que razão posso ter para não fazer o que Cristo diz? Se tenho razão para dar a vida pela fé, que razão posso ter para não concordar a fé com a vida?
Dito é antigo, e, como verdadeiro e discreto, muito celebrado, que na cristandade não havia de haver mais que duas prisões, a dos cárceres do Santo Ofício, e a da Casa dos Orates. Porque um homem, qualquer que seja, ou tem fé ou não tem fé: se não tem fé, é herege, e pertence aos cárceres do Santo Ofício; se tem fé, e crê que há Deus, e céu, e inferno, e, contudo, vive como se o não crera, é rematadamente doido, e pertence à Casa de Orates. Os judeus do nosso Evangelho, de uma e outra censura, e de uma e outra pena se mostraram bem merecedores. Quanto à fé, e ao creditis, não só negaram a fé a Cristo: Non creditis mihi — mas à sua infidelidade acrescentaram blasfêmias: Nonne bene dicimus nos quia samaritanus es tu, et daemonium habes[3]? — De sorte que no mesmo ato da fé, e no mesmo cadafalso, se pela infidelidade mereciam a fogueira, pela blasfêmia mereciam a mordaça. E quanto ao juízo, e ao uso da razão — quare — diz o texto que tomaram pedras para atirarem a Cristo: Tulerunt ergo lapides, ut jacerent in eum (Jo. 8, 59). — No sagrado do Templo, nem as pedras eram tão mudas nem tão soltas, que as pudessem tomar ali: sinal é logo que já as traziam consigo. Vede se mereciam ser levados à Casa dos Orates, pois não só eram doidos, senão doidos de pedras?
Passemos agora de Jerusalém à cristandade. Porventura é melhor o nosso uso da razão que o seu quare? É melhor a nossa fé, que o seu non creditis? Não crer é ter entendimento cego e obstinado; crer uma coisa e obrar outra, é totalmente não ter entendimento; se não temos entendimento, não somos homens; se não temos fé, não somos cristãos. Que somos logo? Terrível conseqüência uma e outra! Se não somos homens, quando muito somos animais; se não somos cristãos e católicos, quando menos somos hereges. Não me atrevera a dizer tanto, se não tivera experimentado ambas estas conseqüências, e visto ambas com os olhos. Nesta última viagem — seja-me lícita a narração do caso, que, por raro e próprio do intento, é bem notável — nesta última viagem minha, que foi das Ilhas a Lisboa, em que aquela travessa no inverno é uma das mais trabalhosas, o navio era de hereges, e hereges o piloto e marinheiros; os passageiros éramos alguns religiosos de diferentes religiões, e grande quantidade daqueles músicos insulanos, que, com os nossos rouxinóis e pintassilgos vêm cá a fazer o coro de quatro vozes, canários e melros.
As tempestades foram mais que ordinárias, mas os efeitos que nelas notei, verdadeiramente admiráveis. Os religiosos todos estávamos ocupados em orações e ladainhas, em fazer votos ao céu e exorcismos às ondas, em lançar relíquias ao mar, e, sobretudo em atos de contrição, confessando-nos como para morrer uma e muitas vezes. Os marinheiros, como hereges, com as machadinhas ao pé dos mastros, comiam, e bebiam alegremente mais que nunca, e zombavam das nossas que eles chamavam cerimônias. Os passarinhos no mesmo tempo com o sonido que o vento fazia nas enxárcias, como se aquelas cordas foram de instrumentos músicos, desfaziam-se em cantar. Oh! valha-me Deus! Se o trabalho e o temor não levasse toda a atenção, quem se não admiraria neste passo de efeitos tão vários e tão encontrados, sendo a causa a mesma? Todos no mesmo navio, todos na mesma tempestade, todos no mesmo perigo, e uns a cantar, outros a zombar, outros a orar e chorar? Sim. Os passarinhos cantavam, porque não tinham entendimento; os hereges zombavam, porque não tinham fé; e nós, que tínhamos fé e entendimento, bradávamos ao céu, batíamos nos peitos, chorávamos nossos pecados.
Isto é o que eu vi e passei, e isto mesmo o que nós não vemos, estando no mesmo, e em pior e mais perigoso estado. A travessa é da terra para o céu, e da vida mortal para a eternidade; o mar é este mundo; os navegantes somos todos; o navio, o corpo de cada um, tão fraco e de tão pouca resistência por todos os costados, e a tempestade e as ondas muito maiores: Ascendunt usque ad caelos, et descendunt usque ad abyssos (SI. 106): São tão grandes, ou tão intensas as ondas — diz Davi — que umas sobem até o céu, e outras descem aos abismos. — Isto que nos poetas é hipérbole, no profeta é verdade pura e certa, sem encarecimento. Se, quando a onda vos afoga, estais em graça, põe-vos no céu: Ascendunt usque ad caelos; — se, quando vos soçobra e tolhe a respiração, estais em pecado, mete-vos no inferno: Descendunt usque ad abyssos. — E que no meio de um perigo mais que horrível e tremendo, em que o menos que se perde é a vida, uns não temam, e cantem, outros zombem, e não façam caso, e sejam tão poucos os que se compunjam e tratem da salvação? Sim, outra vez, porque os menos são os que têm entendimento e fé; os demais nem têm fé nem entendimento.
Ora, já que todos imos embarcados no mesmo navio, pergunte-se cada um a si mesmo, a qual destas partes pertence. Sou dos que cantam? Sou dos que zombam, ou sou dos que choram? Sou dos cristãos e católicos, ou sou dos hereges? Sou dos homens com uso de razão, ou dos irracionais? Que as avezinhas não reconheçam o perigo da vida, não alcança mais o seu instinto; que os hereges não temam a estreiteza da conta, esta é cegueira da sua infidelidade; mas que um homem cristão, no meio destes dois perigos, com a morte e a conta diante dos olhos, neste mesmo tempo esteja cantando ao som dos ventos, e zombando ao balanço das ondas! Cristão, aonde está a tua fé? Homem, aonde está o teu entendimento? Se tens uso da razão, dá cá a razão: Quare, quare?
§ III
A sem-razão dos cristãos que cantam ao som dos ventos e zombam ao balanço das ondas. Sendo a fé uma só fé, assim como Deus é um só Deus, qual é o fundamento ou motivos Dor que os homens se dividiram em tantas seitas? Os que trocam ou mudam a fé, para a concordar com a vida, As razões de Epicuro, Mafoma, Calvino e Lutero. Queixa de Moisés contra os deuses novos do povo de Israel. Com quanta verdade disse Davi ser cegueira própria dos judeus, não só errar na fé, senão errar sempre.
É tão dificultosa e tão impossível esta razão, que nenhum homem há, nem houve, nem haverá, que por mais voltas que dê ao entendimento, a possa dar, não digo verdadeira e sólida, mas nem ainda falsa e aparente. Se consultardes os bons e os justos, que caminham pela estrada real da verdade e da virtude, todos hão de dizer, e dizem constantemente que a vida se há de concordar com a fé. E se fizerdes a mesma pergunta aos maus e aos péssimos, que seguem os caminhos do erro e os precipícios da infidelidade, até estes, se não responderem que a vida se há de conformar com a fé, ao menos hão de dizer que a fé se há de conformar com a vida. Ouvi agora uma notável ponderação, e tão certa como admirável. Sendo a fé uma só fé, assim como Deus é um só Deus: Unus Deus, una fides (Ef. 4, 5) — qual é o fundamento ou motivos por que os homens se dividiram em tantas seitas? Não há dúvida que se cavarmos ao pé, e lhe buscarmos as raízes, acharemos que todas se semearam nos vícios, e deles brotaram e nasceram.
Primeiro se depravaram as vontades, e depois se perverteram os entendimentos. Epicuro era delicioso, Mafoma era torpe, Lutero e Calvino eram relaxados da sua profissão, e depois depravados em tudo. Vinde cá, maus homens, sede embora maus viciosos, vivei embora, ou na má hora, à vossa vontade, largai a rédea a vossos apetites; mas não façais nem inventeis novas seitas. Epicuro seja quão delicioso quiser; mas não negue a Deus o atributo da Justiça, para que os homens tenham por bem-aventurança as delícias. Mafoma seja tão torpe, e tão abominável como foi; mas não faça também torpe o céu, para que os homens esperem na bem-aventurança as torpezas. Lutero e Calvino vivam tão viciosa e depravadamente como viveram; mas não ensinem que o sangue de Cristo nos há de salvar sem cooperação nossa, para que os homens creiam que pode haver salvação e bem-aventurança sem obras. Pois, se estes homens podiam fartar a bruteza dos seus apetites sem agravo nem mudança da fé, por que a mudaram tão cegamente, e formaram seitas tão bárbaras e tão novas?
Aqui vereis como não há entendimento tão depravado e tão cego, nem erro tão irracional e tão atrevido, que ditasse ou admitisse jamais que a vida não havia de concordar com a fé. A vida, diziam todos, necessariamente há de concordar com a fé: nós não queremos mudar a vida, senão continuar em nossos vícios; que faremos, logo? Não temos outro meio senão trocar os mesmos extremos, e mudar a fé., porque desta maneira, já que a vida não concorda com a fé concordará com a vida. Não queremos fazer vida nova? Pois façamos fé nova; e assim o fizeram. Assim o fez na gentilidade Epicuro; assim o fez no paganismo Mafona; assim o fizeram na cristandade Lutero e Calvino; e se tornarmos ao ato da fé dos judeus, assim o tinham eles já feito muito antes de todos.
No capítulo 32 do Deuteronômio, parte referindo o passado, e parte profetizando o futuro se queixa Moisés de que viessem ao povo de Israel deuses novos, que seus pais não tinham conheciso: Immolaverunt diis quos ignorabant: novi recentesque venerunt, quos non cloluerunt patres eorum[4]. — O Deus antigo e verdadeiro, em que creram seus pais, era aquele que pelos honrar, e se honrar deles, se chamava Deus Abraham. Deus Isaac, et Deus Jacob (Êx. 3, 6). — E donde aos filhos de Abraão, Isac e Jacó, deixado o Deus antigo e verdadeiro, lhes vieram estes deuses novos e falsos: Novi recentes que venerunt? — Vieram-lhe do Egito, vieram-lhes de Canaã, e vieram-lhes da mesma terra de Israel. Vieram -lhes do Egito, porque, esquecidos da doutrina de José, imitaram as larguezas e intemperanças dos egípcios, e adoraram os deuses do Egito. Vieram-lhes de Canaã, porque, desprezada a lei que já tinham recebido de Moisés, sem freio de lei nem razão, seguiram as cegueiras e vícios dos cananeus e adoraram os deuses de Canaã. Vieram-lhes da mesma terra de Israel, porque, abraçando os preceitos impiamente políticos de Jeroboão, deixavam o único templo de Deus verdadeiro em Jerusalém, e em todos os montes e bosques levantavam altares aos ídolos da gentilidade, e se fartavam das torpezas e abominações dos seus sacrifícios. De sorte que não foram os primeiros que vieram os deuses novos, senão os vícios novos; nem foi a fé ou superstição nova a que ensinou o modo de viver novo, mas a. novidade das vidas e dos costumes foi a que introduziu a novidade dos deuses: Novi recentes que venerunt.
Aqui se deve notar de caminho uma advertência digna de grande reparo, e de grande doutrina e desengano para os que ainda não acabam de crer em Cristo, e é, com quanta verdade disse Davi ser cegueira própria dos judeus, não só errar na fé, senão errar sempre: Et dixi: Semper hi errant corde[5]. — Vede-o no tempo passado e no presente. De maneira, filhos de Abraão, Isac, e Jacó, que no tempo da lei velha buscáveis deuses novos: Novi recentes que venerunt — e no tempo da lei nova buscais e adorais o Deus velho? Não é isto errar sempre? Respondem que não, e parece que dizem bem, porque os judeus deste tempo não adoram ídolos. E se não adoram ídolos, como seus antepassados, o que eles confessam, e não podem negar, que é o que adoram? Dizem que adoram a unidade de Deus, que é a frase com que se explicam em toda a parte. Agora torno eu a perguntar: E esse Deus, cuja unidade adorais, confessais também que é trino? Não. E esse Deus, cuja unidade adorais confessais também que se fez homem? Não.
Logo tão idólatras sois agora como fostes antigamente, porque adorar o Deus verdadeiro, negando que é trino e adorar o Deus verdadeiro, negando que se fez homem, é adorar um deus que não há, é adorar um deus fingido e falso, que é a verdadeira idolatria. E se não, vamos à experiência. A verdadeira fé entre os judeus nunca chegou a durar quarenta anos, como notou o mesmo Davi no mesmo lugar: Quadraginta annis proximus fui generationi huic; et dixi: Semper hi errant corde[6]. — Pois, se quando a vossa fé não chegava a durar quarenta anos, Deus sempre se compadeceu de vós, e vos acudiu, livrando-vos de tantos cativeiros, mandando-vos profetas e redentores, agora, que há mil e seiscentos anos que perseverais nessa fé do verdadeiro Deus, por que vos não acode? Porque essa que vós chamais fé, é tão verdadeira idolatria, e muito mais refinada do que era dantes.
§ IV
Quais vivem e procedem mais corretamente, e mais conformes com a razão: os gentios, os pagãos, os hereges, os judeus, ou os maus cristãos? A galharda proposta de Elias aos hebreus adoradores de Baal. A rematada loucura dos que não concordam a vida com a fé. A resposta coerente e discreta de Faraó a Moisés: Que Deus é esse, para que eu o obedeça? — A pergunta da serpente a Eva, e a pergunta do jumento a Balaão. Qual é a razão por que pediram razão aos homens os animais, que não têm uso de razão?
Mas continuemos o ato da fé dos cristãos, com os quais o juízo do meu discurso não há de ser menos reto. Acabamos de dizer que os judeus também seguiram, ou anteciparam os passos dos gentios, dos pagãos e dos hereges, em trocar e mudar a fé para a concordar com a vida; agora saibamos se os cristãos procedem mais coerentemente e conforme à razão, e se respondem melhor àquele quare, Os outros mudam a fé, os cristãos não a mudam: a fé dos outros mudada, é falsa; a fé dos cristãos conservada, é a verdadeira; mas, se olharmos para as vidas, as dos outros concordam com a sua fé, as de muitos cristãos não concordam com a sua. Quais vivem logo e procedem mais coerentemente, e mais conformes com a razão? Não há dúvida — miséria e vergonha grande! Não há dúvida que mais conforme à razão procede o gentio, mais conforme à razão o pagão, mais conforme à razão o herege, e mais conforme à razão o judeu, que são todas as quatro espécies da infidelidade, E por quê? Porque todos estes seguem com a vida o que crêem com a fé; e o mau cristão com a fé crê uma coisa, e com a vida segue outra. Ouçamos neste ponto ao homem mais zelador da verdadeira fé, Elias. Estava no seu tempo o povo de Israel quase no mesmo estado, ou verdadeiramente no mesmo em que hoje vemos a cristandade.
E que fez o grande profeta? Quando Jacó acabou a luta com o anjo, tocoulhe o anjo em um joelho, com que daí por diante ficou manco: Tetigit nervura femoris ejus, et statim emarcuit: ipse vero claudicabat pede[7]. — O joelho significa a adoração, e o manquejar Jacó de um joelho significava que o povo de Israel, descendente do mesmo Jacó, com um joelho, que era o são e direito, havia de adorar o verdadeiro Deus, e com outro, que era o manco e torcido, havia de adorar os ídolos. E tal era o estado em que naquele tempo se achava o mesmo povo, por uma parte adorando o Deus de Israel, e por outra o ídolo de Baal. Vendo, pois, Elias esta diferença e confusão de adorações tão discordes e tão contrárias, convocou o povo, e disse-lhe desta maneira: Usquequo claudicatis in duas partes (3 Rs. 18, 21)? Até quando, ó povo insensato, haveis de manquejar na fé, divididos e discordes de vós mesmos em duas partes? — Si Dominus est Deus, sequimini eum: si autem Baal, sequimini illum (ibid.): Se o Deus de Israel, a quem eu adoro, é o verdadeiro Deus, segui o Deus de Israel; e se Baal, a quem vós adorais, é o Deus verdadeiro, segui a Baal.
Só a espada de Elias podia cortar tão direito, e falar tão resolutamente. Ouvida a galharda proposta, diz o texto sagrado que todo o povo emudeceu, e não houve quem abrisse a boca, ou replicasse uma só palavra: Et non respondit et populus verbum (ibid.), — E por que razão: quare? Porque assim como não há coisa mais coerente, nem conseqüência mais posta em razão, que seguir um homem com a vida aquilo que adora e crê com a fé, assim não há, nem pode haver ditame mais irracional e mais contrário a toda a razão, que crer uma coisa com a fé, e seguir outra com a vida. Ou a fé seja de Deus, ou a fé seja de Baal, sempre a vida e as obras hão de seguir a fé. Crer em Deus e seguir a Deus, uma e outra coisa era boa; crer em Baal e seguir a Baal, uma e outra coisa era má. Mas, posta uma vez a fé de Deus verdadeira, e a fé de Baal falsa, tão errada conseqüência era, e tão contrária a toda a razão não seguir a Baal como não seguir a Deus: Si Dominus est Deus, sequimini eum; si autem Baal, sequimini illum.
Cristãos — os que não obramos o que devemos — a quem adoramos? A quem cremos? A quem seguimos? Usquequo claudicatis in duas partes? — Será bem que tenhamos um pé em Roma, adorando a Cristo, outro em Constantinopla, guardando o Alcorão? Um em Roma, beijando o pé a S. Pedro, outro em Jerusalém, beijando a mão a Herodes? Um em Roma, rezando a Santa Maria Maior, outro em Chipre, oferecendo sacrifícios à deusa Vênus? Um em Roma, visitando as sete Igrejas, outro em Londres ou Amsterdão, profanando os altares, e perdendo a reverência às imagens sagradas? Isso faz o turco, o judeu, o gentio, o herege, e cada um conforme a sua fé; e, sendo a nossa tão contrária, será bem que em nós, cristãos e católicos, se ache o mesmo? Se não concordar a vida com a fé é um ditame tão bárbaro e tão irracional, que não cabe no entendimento de Lutero, que não cabe no entendimento de Epicuro, que não cabe no entendimento de Mafoma, e como cabe no nosso entendimento? Pôr a bem-aventurança nas delícias, como Epicuro, é ser gentio: passe; pôr a bem-aventurança nas torpezas, como Mafoma, é ser turco: seja; esperar a bemaventurança sem obras, como Lutero e Calvino, é ser herege: vá na má hora. Mas ser cristão na fé, e a vida ser de Epicuro? Ser cristão na fé, e a vida ser de Mafoma? Ser cristão e católico na fé, e a vida ser de Lutero e de Calvino, em que entendimento pode caber tão rematada loucura? Há quem responda, há quem dê razão, há quem diga o quare?
O povo judaico junto ficou tão convencido da proposta de Elias, que todo emudeceu, sem haver quem replicasse uma só palavra. E eu, em toda a Escritura Sagrada, só acho um homem que satisfizesse à minha pergunta, e respondesse a propósito. E que homem será este? Cristão? Não. Judeu? Não. Gentio? Não. Turco? Não. Herege? Não. Pois, que casta de homem será ou pode ser o que só respondeu a propósito ao nosso quare? Um ateu, Todos esses outros, ou fiéis ou infiéis, conhecem a Deus: só o ateu o não conhece, e só este pode dar a verdadeira razão do que perguntamos. El-rei Faraó tinha cativo o povo de Israel no Egito, e com o mais duro e intolerável cativeiro que se pode imaginar. Não lhes pagava o trabalho, antes lho acrescentava cada dia, para que não tivessem hora de descanso; punha-lhes por ministros, que superintendessem às obras em que serviam, os de condição áspera e cruel, para que mais os oprimissem; não lhes dava de comer com que sustentar a miserável vida, e até os filhos lhes matava cautelosamente, sem que os pudessem esconder nem livrar; enfim, o sumo da tirania. Neste estado de tanto aperto, em que se não ouviam mais que clamores ao céu, chegou Moisés ao Egito, e notificou a Faraó, da parte de Deus, que desse liberdade ao seu povo, para lhe ir sacrificar no deserto: Haec dicit Dominus Deus Israel: Dimitte populum meum, ut sacrificet mihi in deserto[8]. — E que vos parece que responderia Faraó? Quis est Dominus ut audiam vocem ejus? Que Deus, e que Senhor é esse, para que eu o obedeça? — Nescio Dominum, et Israel non dimittam: Não conheço tal Deus, nem tal Senhor, nem hei de dar tal liberdade ao povo. — Ó bárbaro! ó rebelde! Ó insolente e brutal tirano!
Isto é o que estão dizendo todos, mas eu não digo assim. Digo que respondeu Faraó muito coerente e discretamente. Como bárbaro sim, mas como bárbaro bem entendido; como desobediente sim, mas como desobediente racional. — Não conheço a Deus, e não hei de libertar o seu povo? — Ruim fé, mas boa conseqüência. Na fé falou como bruto, na conseqüência respondeu como homem. Não obedecer a Deus, e dar por razão: não o conheço — bem se segue, Mas conhecer a Deus, e dizer conheço a Deus, e não querer fazer o que manda Deus, é conseqüência e razão que não cabe em nenhum entendimento. Oh! quantos Faraós mais bárbaros, oh! quantos ateus mais irracionais há na cristandade! Oprimir os povos, cativar os livres, gemerem os pobres, triunfarem os poderosos; não se dar de comer a quem trabalha, não se pagar a quem serve; tirarem-se as vidas aos inocentes, e viverem os que as tiram, não só do seu suor, senão do seu sangue; e dar por razão de tudo isto: Nescio Dominum (Ex. 5, 2): Não conheço a Deus — é obrar mal, mas falar coerentemente. Porém, oprimir, cativar, destruir, roubar, assolar, afrontar, matar, tiranizar, e sobre isto dizer: conheço a Deus — sobre isto dizer: sou cristão — sobre isto dizer: tenho fé — não há juízo humano, nem entendimento racional em que caiba tal coisa. E se não, dai cá a razão: Quare, quare?
Para confirmação desta minha instância, tantas vezes repetida, não quero alegar nem oráculos de Deus, nem evidências de anjos, nem discursos de homens, senão ditos e palavras dos mesmos brutos irracionais, e o que eles sentiram e disseram, ou disseram sem o sentir, Duas vezes sabemos que falaram neste mundo os brutos: a serpente que falou com Eva, e o jumento que falou com Balaão. E que disseram? Coisa notável! Sendo ambos irracionais, um à mulher, outro ao homem, ambos lhe pediram razão. A serpente a Eva: Cur praecepit vobis Deus[9]? — O jumento a Balaão: Cur percutis me[10]? Cur é o mesmo que quare: por que razão? E qual é a razão por que pediram razão os animais que não têm uso de razão? Porque são tão obrigados os homens a dar razão do que fazem, que até os animais têm direito para lha pedir, e eles obrigação de lha dar. Mais ainda. Pediram razão estes dois animais; e de que a pediram? Das mesmas duas coisas em que nós litigamos, fé e obras. A serpente a Eva pediu-lhe a razão do que cria: Cur praecepit vobis Deus? — O jumento a Balaão pediu-lhe razão do que obrava: Cur percutis me? — E se até os mesmos brutos, sem uso de razão, pedem razão ao homem da sua fé e das suas obras, nós por que a não pediremos cada um a si mesmo?
Se esta é a minha fé, e a minha fé é a verdadeira, as minhas obras por que são tão alheias dela, e tão contrárias? Que o cego não veja, e caia, que o judeu não conheça a verdade que lhe diz Cristo, e não creia: Non creditis mihi — pode-o escusar a sua cegueira; mas que o cristão, que crê, adora e confessa a Cristo, e professa a sua lei, na vida e nas obras negue a mesma verdade! Assim como ao judeu o escusa a sua cegueira, assim a nossa luz acusa mais, e condena a nossa. Se dissermos publicamente, como Faraó: Nescio Dominum (Ex. 5, 2): que não conhecemos a Deus — tinha coerência e desculpa o nosso ateísmo; mas, depois da água da Batismo, depois do óleo da Crisma, e, o que é mais, confessando e comungando no grêmio da Igreja Católica, e na face de toda a cristandade, haja professores dela, que na soltura dos costumes, e no escândalo da vida, se não distingam dos ateus! Os mesmos brutos irracionais, e o mesmo irracional dos brutos, se Deus lhes soltara as línguas, assim como duas vezes pediram razão aos homens, assim tinham razão de dizer duas mil, e clamar ao céu e à terra que somos mais brutos que eles.
§V
A argumentação dos maus cristãos, em nós, ainda que a vida seja má, a fé é boa. A admirável e sutilíssima explicação do evangelista S. João. O notável dito de Davi no Salmo 118.O símbolo da fé e a fé do címbalo. Que importa o soar do crer sem a consonância do obrar? Se aquele que dantes era cristão, e depois negou a fé, é renegado, o que no mesmo tempo confessa a fé e a nega, que será? Os dois testemunhos de S. João e de S. Paulo.
Sou tão amigo e reverenciador da razão, que até as sombras dela ouço de boa vontade. Podem instar os cristãos que não guardam a lei de Cristo, e argumentar por si nesta forma. É verdade que os infiéis de todo o gênero, e ainda os mesmos ateus, parece que procedem mais coerentemente, e mais conforme à razão, porque eles concordam a sua fé com a sua vida, e nós não concordamos a nossa vida com a nossa fé. Mas nesta mesma diferença há outra muito maior e melhor, que faz pela nossa parte. E qual é? É que neles a fé é má, e a vida também má; porém em nós, ainda que a vida seja má, a fé é boa. Logo, ao menos em a metade dos procedimentos, são melhores os nossos que os seus? Assim parece, mas não é assim. Por quê? Porque aonde a vida é má, não pode a fé ser boa. Texto expresso de S. -João: Qui dicit se nosse Deum, et mandata ejus non custodit, mendax est, et in hoc veritis non est (Jo. 2, 4). — Quem diz que conhece a Deus, e não guarda seus mandamentos, mente. — E por que mente, se o que crê é verdade?
Admirável e sutilissimamente se explicou o mesmo S. João: Mendax est, et in hoc ventas non est (ibid.): Mente, e a verdade não está nele. — No tal caso a verdade está nos mistérios que crê, mas não está no que crê os mistérios. Notai. Uma coisa é a verdade da fé em si, a qual propriamente se chama fé; outra é a verdade da fé em nós, a qual propriamente se chama crença. A fé em si sempre é verdadeira, a crença em nós pode ser verdadeira, e pode ser falsa: se concorda com a vida, é verdadeira, porque obramos conforme cremos; se não concorda com a vida, é falsa e mentirosa, porque cremos uma coisa, e abramos outra. Por isso o que não guarda os mandamentos, ainda que creia e confesse tudo o que ensina a fé, mente, e não está nele a verdade: Qui mandata ejus non custodit, mendax est, et in hoc veritas non est. — Se o cristão e católico cuida que a sua fé é melhor que a dos infiéis, somente porque crê o que ensina o Credo, engana-se e mente-se a si mesmo: não basta só crer no Credo; é necessário crer nos mandamentos.
Daqui se entenderá um notável dito de Davi no Salmo 118, aonde alega e diz a Deus que cria nos seus mandamentos: Quia mandatis ruis credidi[11]. — O crer pertence ao Credo, e não aos Mandamentos; ao Símbolo, e não ao Decálogo. O Símbolo e o Decálogo são duas Escrituras divinas, em que consiste toda a obrigação e perfeição cristã. O Símbolo contém os mistérios da fé; o Decálogo contém os mandamentos da lei: os mistérios da fé temos obrigação de os crer, os mandamentos da lei temos obrigação de os guardar. Pois, por que troca Davi os termos, e em lugar de dizer a Deus que guardava os seus mandamentos, diz que os cria: Quia mandatis tuis credidi? — Porque aludiu o profeta com elegante energia, e picou e condenou os que só crêem no Credo. Este Salmo 118 foi composto por Davi pelas letras do ABC, para o cantarem, como cantavam, os que iam em romaria ao Templo. E quis ensinar a todos que o ABC da fé, é ajuntar o Símbolo com o Decálogo, e a crença do Credo com a crença dos mandamentos: Quia mandatis ruis credidi. — O Símbolo que não anda junto com o Decálogo não é símbolo da fé, é fé do címbalo.
Explico a proposição, porque bem entendo que a não entendem todos. Escrevendo, S. Paulo aos coríntios, e falando da fé e dos mandamentos, que todos se reduzem ao da caridade, pondo o exemplo em si, diz desta maneira: Si habuero omnem fadem ita ut montes transferam, charitatem autem non habuero, mihi sum (1 Cor. 13, 2): Se eu tiver toda a fé, e tal, e tão eficaz que possa abalar os montes, e passá-los de um lugar para outro, e não tiver caridade, nenhuma coisa sou. — E se quereis que vos declare este nada que sou com uma semelhança: Factus sum velut aes sonans, aut cymbalum tinniens (Ibid. 1): Sou como um sino de metal, que não faz mais que soar e tinir. -Comparai-me agora o Símbolo com o címbalo: o Símbolo é o que contém toda a fé: Si habuero omnem fidem — e com toda essa fé sem caridade, na qual consistem os mandamentos: Charitatem autem non habuero — que é ou que, será qualquer cristão? Velut aes sonans, aut cymbalum tinniens: Será como o sino, que não tem mais que o soar e o tinir. — Passa o Santíssimo Sacramento por junto a uma igreja, repicam os sinos das torres; e que vem a ser esta correspondência? O Sacramento é o mistério da fé; mas os sinos nenhuma coisa têm de fé, mais que o soar, e o tinir: sonans et tinniens. — Eis aqui qual é a fé de todo o Símbolo em que cremos, se lhe falta a observância dos mandamentos de Deus. Não é símbolo da fé, é fé do címbalo. Que importa o soar do crer sem a consonância do obrar? Que importa o tinir, ou os tinos da fé com os desatinos das vidas?
Má vida e boa-fé, tomo a dizer, é mentira. E por que, outra vez? Porque o que professa a fé, nega-o a vida; o que diz o som das palavras, nega-o a dissonância das obras. Vede como concorda S. Paulo com S. João, os dois maiores teólogos da escola de Cristo: Confitentur se nesse Dcum, factis autem negant (Tit. 1, 16): Com as vozes confessam a fé de Deus, e com as obras negam o mesmo Deus e a mesma fé que confessam. — Dizei-me: É boa a fé dos cristãos que a negam em Argel? Pois sabei que para ser renegados não é necessário ir lá cativos. Ouvi a S. Salviano, Bispo de Marselha, que está defronte do mesmo Argel: Christiani sine operibus bonis nil sibi per fidei supercilium usurpare debent. — Note-se muito o fidei supercilium. Por uma parte, não só vazios de obras boas, senão cheios e carregados de obras más; e por outra, com as sobrancelhas levantadas, muito prezados e presumidos de cristãos, usurpando, e roubando o nome que lhes não é devido. Por uma parte com a voz e com os pensamentos, blasonando que navegam na barca de Pedro; e por outra, com ambos os braços remando nas galés de Mafoma. É boa-fé esta? É melhor que a dos mesmos turcos? Não faltará quem replique e diga que sim, e com o mesmo exemplo, porque os cristãos forçados, que remam nas galés de Mafoma, debaixo das bandeiras turquescas, nem por isso perdem a fé de Cristo.
Agradeço a agudeza da réplica; mas vamos navegando pelo Mediterrâneo acima. Aporta a mesma galé ao porto de Chipre; salta Mulei Amet no meio da coxia, desembainha a cimitarra, e diz assim: — Com esta a todo o cristão, que não adorar aquela imagem de Vênus, hei de cortar a cabeça. — E que sucederá neste caso? O cristão que não quis adorar perdeu a cabeça, e ficou mártir; o que adorou conservou a vida, e ficou renegado. Agora pergunto: E se aquele cristão, que, por força, e contra sua vontade, adorou a Vênus em uma estátua de mármore, é renegado, que diremos daqueles que, não por força, senão muito por sua vontade, e por seu gosto, adoram a mesma Vênus, não em uma estátua de mármore, senão em outras que não são de pedra? Se aquele que antes era cristão, e depois negou a fé, é renegado, o que no mesmo tempo confessa a fé, e a nega, que será? Destes é que fala S. Paulo: Confitentur se nosse Deus, factis autem negant (Tit. 1, 16): No mesmo tempo confessam a Deus, e no mesmo tempo o negam; — e fé juntamente confessada e negada, que fé é? Pior que a do turco, porque o turco não nega o que confessa, o cristão nega o que confessa, com manifesta contradição. Assim o definiu, com autoridade pontifical, S. Gregório Papa: Si fidem operibus tenet, si moribus non contradicit: Confessar a fé com tão manifesta contradição, não só é crer em Deus com fé falsa, mas é crer em Deus à falsa fé: com fé mentirosa, com fé renegada, com fé traidora. E ninguém se admire de eu chamar a esta fé dos que se chamam cristãos, pior que a do turco, porque o mesmo S. Paulo, estranhando muito menores defeitos de boas obras, não duvidou dizer que só pela omissão delas era pior o cristão que o infiel: Et est infideli deterior (1 Tim. 5, 8).
§ VI
O testemunho do apóstolo São Tiago. Por que a fé sem obras é morta. Como morre e se mata a fé? A morte natural e a morte violenta da fé. Os tiranos gentios e o mau cristão.
Suposto o muito que fica dito, já eu me pudera contentar com estes dois grandes testemunhos de S. João e S. Paulo, ambos de fé. Mas porque a lei diz: In ore duorum, vel trium stet omne verbum[12] -quero acrescentar o terceiro, do apóstolo S. Tiago, o qual, entre todos os doze, foi o primeiro que provou a sua fé com a maior de todas as suas obras, que é o dar a vida. Tomou S. Tiago entre mãos este ponto da fé com obras — às quais chamou Salviano elegantemente testes fidei — e porque o apertou mais forte e eficazmente que todos, ouçamos o que diz: Fides, si non habeat opera, mortua est in semetipsa. Sed dicet quis: Tu fidem habes, et ego opera habeo: ostende mihi fidem tuam sine operibus, et ego ostendam tibi ex operibus fidem meam. Tu credis quoniam unus est Deus: bene facis: et daemones credunt, et contremiscunt[13]. — Até aqui a força dos argumentos; ponderemos cada um de per si.
Primeiramente, diz S. Tiago que a fé sem obras é fé morta: Fides sine operibus mortua est in semetipsa. — Dídimo, declarando esta sentença, diz: Fides mortua non est fides, sicut homo mortuus non est honro: Assim como o homem morto não é homem, assim a fé morta não é fé. — Mas este comento parece que é contrário ao texto, porque o texto diz: Mortua est in semetipsa: que a fé é morta em si mesma. — Logo, se é a mesma, é fé? Sim: é fé, e a mesma fé; mas, assim como o homem morto é o mesmo homem, do mesmo homem — nomeado por seu nome — dizemos que morreu, que vai a enterrar, que está sepultado, que há de ressuscitar. E, contudo, esse mesmo não é já homem. Ainda que um homem não faça nem tenha obra alguma boa, dirá: Eu creio tudo o que crê a Santa Madre Igreja; logo, a minha fé é a mesma que a do maior santo? Assim é. A mesma, mas morta: Mortua in semetinsa. — No santo é viva, porque é fé com obras; e em vós, porque carece de obras, é morta. O mesmo S. Tiago tomou a declarar a sua sentença por outra frase: Sicut enim corpus sine spiritu mortuum est, ita et files sine operibus mortua est (Tg. 2, 26): Assim como o corpo sem alma é morto, assim a fé sem obras é morta. — De maneira que as obras são a alma da fé: e do mesmo modo que o homem com a alma é homem vivo, e sem alma é homem morto, assim a fé com obras é fé viva, e sem obras é fé morta. É fé sem `alma, ou fé desalmada, porque é fé de cristãos desalmados.
E se alguém me perguntar: como morre, ou se mata a fé? — respondo que por um de dois modos: ou natural, ou violentamente. Se a fé somente carece de boas obras, morre naturalmente, e como à fome; se, além de não ter boas obras, exercita as más, morre violentamente, e como à espada. Quanto ao primeiro modo, diz assim Santo Agostinho: Sicut corpus cibo reficitur, sic fides charitate animaturt[14]: Assim como o corpo vive do comer, com que se nutre e sustenta, assim a fé se anima e alimenta com as obras de caridade. — De onde se segue que, do mesmo modo, assim como o corpo, faltando-lhe o comer, morre à fome, assim também morre à fome a fé, faltando-lhe as obras de caridade. Não tem menor autor esta conseqüência, que o mesmo S. Tiago, o qual argumenta nesta forma: Si frater aut soror nudi sint, et indigeant victu quotidiano, non dederitis autem eis quae necessaria sunt corpori, quid proderit? Sic et lides, si non habeat opera, mortua est in semetipsa (Tg. 2, 15 ss). — Quer dizer: Se o pobre estiver despido, e não tiver que comer, e vós lhe não derdes o necessário para o corpo, que lhe aproveita? Logo, a fé sem obras é morta. — Parece que não havia de inferir assim o apóstolo, nem atribuir a morte à fé, senão ao pobre, porque o pobre sem comer morrerá à fome, e sem vestir morrerá de frio: logo, a fé que lhe não dá o necessário, mata ao pobre? — Não — diz o apóstolo — porque o pobre, se eu lhe não der a esmola, dar-lhe-á outrem; mas a fé, como não se pode sustentar das obras alheias, senão das próprias, ela é a que no tal caso se mata à fome a si mesma: Mortua est in semetipsa.
Quanto ao segundo modo de morrer a fé, ou se matar violentamente, e como à espada, disse-o S. Bernardo, chamando homicida da própria fé ao que mata com más obras: Si munus mortuum offers Deo, sic Deum honoras et placas, tuae fidei interfector[15]? — Matador da fé, lhe chama, e verdadeiramente é mais cruel matador da fé que os tiranos mais cruéis. Os Neros e Dioclecianos não atormentavam os cristãos para lhes tirarem a vida, senão para lhes matar a fé; por sinal que, se negavam a fé, logo lhes davam a vida. E que sucedia então? Comparai-me cristão com cristão, e tirano com tirano. O bom cristão sofria as catastas, os ecúleos, as lâminas ardentes, as grelhas, as rodas de navalhas, e deixava matar a vida para conservar viva a fé. E o mau cristão hoje mata a fé por não perder um gosto, um apetite, um interesse vil da covarde e infame vida. O tirano gentio, por um dos deuses falsos, procurava matar a tormentos a fé alheia; e o tirano cristão, mais cruel que todos os tiranos, sem fazer caso do Deus verdadeiro nem o temer, e por fartar a sua vontade, não duvida ser homicida e matador da fé própria: Tuae fidei interfector
§ VII
A proposta de São Tiago aos cristãos e a proposta de Elias aos adoradores de Baal. O exemplo que alega São Tiago da fé com obras. Os maus cristãos, e os soldados romanos que ofendiam a Deus com punhadas e bofetadas. A fé embalsamada dos palácios e templos de Lisboa.
Deste primeiro argumento, passa o apóstolo ao segundo, tanto mais forte quanto mais evidente, porque desce da especulação à prática, da razão à experiência, e do discurso aos olhos. É um desafio de fé a fé, uma armada de obras, e outra sem elas, confiada só em si mesma, e diz assim: Tu fidem habes, et eg.o opera habeo: ostende mihi fidem tuam sine operibus, et ego ostendam tibi ex operibus fidem meam. — Faz aqui S. Tiago o mesmo que fez Elias, que foram as duas melhores espadas da lei velha e da nova. Elias, para mostrar aos olhos a verdadeira divindade de Deus, e a falsa de Baal: — Fazei vós — diz — sacrifício ao deus que adorais, e eu o farei também a que adoro; e sobre qual descer fogo do céu, esse seja crido por verdadeiro Deus. Responderam todos: Optima propositio (3 Rs.18, 24): Boa proposta-e tal é a de S. Tiago,- Vós — diz o apóstolo — dizeis que tendes fé, eu digo que tenho obras: mostre agora cada um de nós a sua fé, vós sem obras a vossa, e eu com obras a minha, e seja tida por verdadeira fé a que mostrar que o é. A demonstração da fé, que é interior e invisível, parece dificultosa e impossível, e não é senão muito fácil. A fé é cega, mas, assim como o cego me não vê a mim, e eu o vejo a ele, assim a fé não vê, mas vê-se; não vê, porque não vê os seus objetos; mas vê-se, porque se vê nos seus efeitos. Os seus efeitos são as obras conformes a ela: pelas obras se vê manifestamente, e sem obras como se pode ver?
O exemplo que alega S. Tiago da fé com obras é Abraão, que por isso se chamou Pater credentium (Rom, 4, 11): Pai dos que crêem. — E, não falando naquela façanha singular de sacrificar o próprio filho, nos deixou Abraão outra figura da fé com obras, menos árdua, mas igualmente significativa. Querendo casar a seu filho Isac, mandou ao mordomo de sua casa que lhe fosse buscar mulher, obrigando-o primeiro com juramento, que de nenhum modo fosse da terra de Canaã, mas de Mesopotâmia, sua antiga pátria, porque os cananeus eram totalmente idólatras, e os de Mesopotâmia tinham conhecimento do verdadeiro Deus. Este dote da fé — de que hoje ainda os príncipes católicos fazem menos conta — era o que Abraão principalmente buscava para seu filho. Partiu o mordomo, chegou à pátria de seu senhor, e, porque as jóias que levava para a esposa eram umas arrecadas e uns braceletes, sabendo por certos sinais de Deus que a esposa era Rebeca, encontrando-a fora de casa, lhe pendurou das orelhas as arrecadas, e lhe atou às mãos os braceletes. Assim o diz ele por formais palavras: Suspendi inaures ad ornandam faciem ejus, et armillas posui in manibus ejus[16].
Com este novo enfeite chegou Rebeca a casa, mas de tal maneira mudada, que mostrou as arrecadas, não nas orelhas, senão nas mãos: é mudança que consta expressamente do mesmo texto: Cum vidisset — Laban — inaures in manibus ejus[17]. — Pois, se a Rebeca lhe penduraram as arrecadas nas orelhas, por que as passou às mãos, e as mostrou nelas? Porque era esposa escolhida pelo dote da fé, e figura da verdadeira. As orelhas e os ouvidos são o sentido da fé: Fides ex auditu[18]; as mãos são o sentido e o instrumento das obras; e, ainda que a fé se recebe pelos ouvidos, não se mostra nem se vê senão nas mãos: Cum vidisset inaures in manibus ejus, — A fé que nos prega e ensina a Igreja Católica, ouve-se e recebe-se pelos ouvidos, como Rebeca recebeu as arrecadas nas orelhas; mas o ver-se e o mostrarse: Ostende mihi lidem tuam, ostendam tibi fidem meam — não se mostra nem se vê senão pelas mãos e pelas obras: Ex operibus.
Estava Cristo Senhor nosso, adorado de joelhos por rei, no pretório de Pilatos; as vozes que se ouviam das bocas dos que o adoravam, eram as de maior respeito e reverência: Ave Rex Judaeorum (Jo. 19, 3). — O mesmo S. João ao pé da cruz não pudera dizer nem ler no título dela outra verdade mais de fé. Mas quando isto se ouviu nas vozes, que é o que se via nas mãos dos mesmos adoradores? Umas mãos lhe batiam as faces com bofetadas: Dabant ei alapas (ibid.) — outras mãos lhe pisavam o rosto com punhadas: Colaphis eum ceciderunt (Mt. 26, 27). — Quem crera tão horrendo e mais que sacrílego atrevimento, se o não disseram os evangelistas? Mas, que diferença havia entre uma e outra afronta, ambas tão iguais? A diferença era que as bofetadas afrontavam e ofendiam a Cristo com as mãos abertas; as punhadas, com as mãos fechadas. E nota S. Mateus que os autores desta afronta foram os soldados do presídio romano, porque não só se havia de achar semelhante excesso de maldade na perfídia judaica, senão também na fé romana, que é a nossa. Com as mãos abertas ofende a Cristo o filho pródigo, com as mãos fechadas o rico avarento; com as mãos abertas o que esperdiça, com as mãos fechadas o que entesoura; com as mãos abertas o que dá o que não devera, com as mãos fechadas o que não paga o que deve; com as mãos abertas o que recebe a peita, com as mãos fechadas o que nega a esmola; com as mãos abertas o que rouba o alheio, e com as mãos fechadas o que não restitui o roubado. Olhe agora cada um para as suas mãos, e verá qual é a sua fé. Eu taparei os ouvidos ao que se diz, e só direi o que se vê com os olhos e se aponta com o dedo. Como estamos na corte, onde das casas dos pequenas não se faz caso, nem têm nome de casas, busquemos esta fé em alguma casa grande, e dos grandes. Deus me guie.
O escudo desta portada, em um quartel tem as quinas, em outro as lises, em outro águias, leões e castelos; sem dúvida este deve ser o palácio em que mora a fé cristã, católica e cristianíssima. Entremos, e vamos examinando o que virmos, parte nor parte. Primeiro que tudo veio cavalos, liteiras e coches; veio criados de diversos calibres, uns com libré, outros sem ela; vejo galas, vejo jóias, vejo baixelas; as paredes vejo-as cobertas de ricos tapizes; das janelas vejo ao perto jardins, e ao longe quintas; enfim, vejo todo o palácio, e também o oratório, mas não vejo a fé. E por que não aparece a fé nesta casa? Eu o direi ao dono dela. Se os vossos cavalos comem à custa do lavrador, e os freios que mastigam, as ferraduras que pisam, e as rodas e o coche que arrastam são dos pobres oficiais, que andam arrastados, sem poder dobrar um real, como se há de ver a fé na vossa cavalheriça? Se o que vestem os lacaios e os pajens, e os socorros do outro exército doméstico masculino e feminino depende das mesadas do mercador que vos assiste, e no princípio do ano lhe pagais com esperança, e no fim com desesperações, a risco de quebrar, como se há de ver a fé na vossa família?
Se as galas, as jóias e as baixelas, ou no reino, ou fora dele foram adquiridas com tanta injustiça e crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas, se se espremeram, haviam de verter sangue, como se há de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as vossas paredes estão vestidas de preciosas tapeçarias, e os miseráveis, a quem despistes para as vestir a elas, estão nus e morrendo de frio; como se há de ver a fé, nem pintada nas vossas paredes? Se a primavera está rindo nos jardins e nas quintas, e as fontes estão nos olhos da triste viúva e órfãos, a quem nem por obrigação, nem por esmola satisfazeis ou agradeceis o que seus pais vos serviram, como se há de ver a fé nessas flores e alamedas? Se as pedias da mesma casa em que viveis, desde os telhados até os alicerces, estão chovendo o suor dos jornaleiros, a quem não fazíeis féria, e, se queriam ir buscar a vida a outra parte, os prendíeis e obrigáveis por força, como se há de ver a fé, nem sombra dela na vossa casa?
Mas passemos do púlpito ao confessionário. Se o confessor, quando com toda esta carga vos pondes a seus pés, puxa pelo quare do nosso texto e vos pergunta a razão por que não restituis, devendo tanto, a resposta e a teologia que trazeis muito estudada, é que, sem embargo das dívidas, deveis sustentar a vossa casa com a decência que pode o vosso estado, e que as vendas não dão para tanto. Bem. E os pais, de quem herdastes esse mesmo estado, e eram tão honrados como vós, não sustentavam a honra e a decência dele com menos pompa, com menos criados, com menos librés, com menos galas, com menos regalos? Mais. E o que gastais por outra via, não com a decência, senão com as indecências da casa e da pessoa? Quare? Que respondeis a isto? A maior galanteria é que ao outro dia, depois da confissão e desta escusa, ouve o mesmo, confessor sem sigilo, que aquela noite perdestes dois mil cruzados, e que pela manhã os mandastes em dobrões a quem os ganhou, porque é contra a pontualidade da fidalguia não pagar logo o dinheiro do jogo. Assim jogais com os homens, e assim com Deus, e esta é a vossa fé.
Dir-me-á, porém, em contrário a nossa corte, que, se em algumas casas particulares está a fé tão morta e tão corrupta, que nas casas de Deus está mais viva e mais inteira que em nenhuma parte do mundo, Assim se vê o demonstra em todos os templos de Lisboa, a qual muito à boca cheia pode dizer ao mesmo mundo: Ego estendam tibi ex operibus fidem meam[19]. — Eu tenho visto a maior parte da cristandade da Europa, e em nenhuma, entrando também nesta conta a mesma Roma, está o culto divino exterior tão subido de ponto, e cada dia mais. Seria lástima grande ver aqui desfazer e arruinar nos mesmos templos as fábricas antigas, de tanta formosura e preço, se depois se não vissem as mesmas ruínas gloriosamente ressuscitadas com tanto maiores riquezas da matéria, e tanto maiores primores da arte. Em nenhuma parte do mundo é tanta a cobiça de adquirir, como em Lisboa a ambição de gastar por Deus. Que igreja há nesta multidão de tantas, em um dia de festa, que se não pareça com a que viu descer do céu S. João: Tanquam sponsam ornatam viro suo[20]? — O ouro e os brocados, de que se vestem as paredes, são objeto vulgar da vista; a harmonia dos coros, suspensão e elevação dos ouvidos; o âmbar e almíscar, e as outras espécies aromáticas que vaporam nas caçoulas, até pelas ruas recendem muito ao longe, e convocam pelo olfato o concurso. É isto terra ou céu? Céu é, mas com muita mistura de terra, porque no meio desse culto celestial, exterior e sensível, o desfazem e contradizem também sensivelmente, não só as muitas ofensas que fora dos templos se cometem, mas as públicas irreverências com que dentro neles se perde o respeito à fé e ao mesmo Deus. Queres que te diga, Lisboa minha, sem lisonja, uma verdade muito sincera, e que te descubra um engano, de que tua piedade muito se gloria? Esta tua fé tão liberal, tão rica, tão enfeitada e tão cheirosa, não é fé viva. Pois que é? É fé morta, mas embalsamada.
§ VIII
O terceiro e último argumento de São Tiago: é necessário ajuntar o ver com o ouvir O exemplo dos Magos e dos filhos de Israel no deserto. A fé dos demônios e a fé sem obras. Em que são piores os demônios que os muitos cristãos? Se os demônios neste e no outro mundo tão observantes são das leis de Deus, porque crêem nele e tremem dele, nós, que o cremos com melhor fé, por que não tememos nem trememos de o ofender? Quão erradas são as contas dos que somam os futuros pelos presentes.
Passemos ao terceiro e último argumento de S. Tiago, que será também o último do nosso discurso. Tu credis quoniam unus est Deus; bene facis: et daemones credunt, et contremiscunt (Tg. 2, 19): Vós credes em um só Deus. Fazeis bem: isso mesmo é o que nós cremos, e o que ensina e canta a Igreja depois do Evangelho: Credo in unum Deum. — Mas não basta esse primeiro bem, que é bem crer, se não for acompanhado do segundo, que é bem obrar. Aquela estrela que apareceu aos Magos no Oriente, era muito resplandecente, muito formosa e muito certa e segura no caminho que lhes mostrava, como é a fé; mas, se eles se deixaram ficar nas suas terras, e a não seguiram até Belém, para onde os guiava, que importaria a sua vista, e entenderem o que significava? Tão magos e tão gentios ficariam como antes eram, É necessário ajuntar o ver com o vir: Vidimus, et venimust[21], — Melhor exemplo ainda. Quando os filhos de Israel, depois de saírem do cativeiro do Egito, e passarem o Mar Vermelho, caminhavam para a Terra de Promissão, levavam por farol daquela viagem uma coluna, a qual de noite era de fogo, que os alumiava, e de dia de nuvem, que lhes fazia sombra.
A esta coluna seguia todo o exército — que era de mais de seiscentas mil famílias, — de tal sorte que, quando a coluna fazia alto, e parava, todos paravam, e fixavam as suas tendas no mesmo lugar; e quando a coluna abalava e se movia, também o exército se punha em marcha, e ao mesmo passo e compasso iam caminhando, ou fossem montes, ou vales, sem mudar, ou variar a derrota. E que figurava, ou significava tudo isto? S. Paulo: Omnia in figura contingebant illis[22]. — Tudo era figura naquele tempo do que havia de ser neste nosso. O cativeiro do Egito significava o pecado; a passagem do Mar Vermelho, a água do Batismo, que, por virtude do sangue de Cristo, nos havia de pôr em graça; a Terra de Promissão, a pátria e bem-aventurança do céu, para onde todos caminhamos; e a coluna de fogo e nuvem, a fé que vai diante, e nos guia. Como coluna, porque ela é a coluna e firmeza da verdade; como de fogo, porque ela nos alumia; e como de nuvens, porque é luz juntamente clara e escura, enquanto nos manda crer muitas coisas que não vemos.
Agora pergunto: E se quando a coluna se movia e caminhava, parte do exército se deixasse ficar nos arraiais, chegariam estes à Terra de Promissão? Claro está, que de nenhum modo. Mais, e pior ainda. E se em lugar de seguir a coluna, lhe voltassem as costas, e tornassem para o Egito, conseguiriam o mesmo fim? Muito menos. Pois, estes são os que não acompanham a fé com boas obras, e, muito mais e pior, os que a contrariam com obras más. Em lugar de a fé os levar à Terra de Promissão, e ao céu, eles, com a mesma fé, se acharão no inferno. Enquanto negarem a fé só com as obras, e não com as palavras, não bastará esta culpa para que a Santa Inquisição da terra os condene e mande queimar na Ribeira; mas será não só bastante, senão certo e infalível, que por sentença do supremo Tribunal da Divina Justiça irão arder eternamente no fogo do inferno.
Isto é o que admirável e tremendamente infere S. Tiago: Tu credis quoniam unus est Deus: et daemones credunt (Tg. 2, 19): Contentai-vos somente com crer em Deus? Também os demônios crêem no mesmo Deus, e nem por isso deixam de ser demônios. — Oh! se Deus nos abrisse os olhos, como havíamos de ver todo este mundo, as ruas, as casas, e as mesmas igrejas cheias de demônios, os quais não vemos, assim como não vemos os anjos da guarda que nos assistem! E em que diferem os demônios de muitos homens? Só diferem em que os demônios são invisíveis, e os maus homens são demônios que vemos. Primeiramente, quanto à fé, o demônio não é gentio, nem turco, nem herege, nem ateu. Crê no mesmo Deus verdadeiro em que nós cremos: Et daemones credunt. — E se a melhor fé, e só verdadeira, é a dos cristãos, o demônio também é cristão. Assim consta de muitos lugares do Evangelho, em que os demônios confessaram a Cristo por Filho de Deus. Em que são logo piores os demônios que os homens, em que são piores que muitos cristãos? Porventura nas obras? Ainda mal, porque são tão semelhantes. O demônio com a sua fé é soberbo; e tu, cristão, com a tua, não só és soberbo, mas a mesma soberba. O demônio sente mais os bens alheios que as suas próprias penas; e tu a inveja mais te atormenta e abrasa com as felicidades que vês em quem devias amar, que todos os males que padeces em ti mesmo. O demônio procura derrubar, e fazer cair a quantos quer mal; e tu, com o poder do teu ofício, ou com a malignidade da tua informação e do teu conselho, a quantos tens derrubado e destruído?
O demônio favorece os maus e persegue os bons; e tu a quem persegues e a quem favoreces, se os piores e os mais viciosos, por que servem e ajudam os teus vícios, são os teus validos? O demônio é pai da mentira; e a tua adulação, o teu ódio, e a tua ambição, quando falou verdade? Os teus enganos, as tuas artes, as tuas máquinas, os teus enredos, que demônio houve jamais que tão sutilmente os inventasse? Quantos pecados cometes tu em que o demônio nunca pecou, nem pode? Ele não peca nos excessos da gula, porque não come; nem no luxo e monstruosidade das galas, porque não veste; nem nas intemperanças e torpezas da sensualidade, porque é espírito: e tu, escravo desse corpo vil, a quantas baixezas destas abates a tua alma, que Deus te deu igual aos anjos?
Mais. E não sou eu o que o digo, senão o mesmo S. Tiago na última cláusula que nos resta por ponderar: Daemones credunt, et contremiscunt: Os demônios crêem em Deus, e tremem dele — e tu, cristão, com a tua fé crês em Deus, mas não tremes nem temes. Grande lástima e miséria é que até o demônio te possa servir de exemplo, não só neste mundo, senão no mesmo inferno. Neste mundo, sendo maior o poder do demônio que o de todos os homens, nenhum demônio faz todo o mal que pode. A Jó tirou a fazenda, matou os filhos, martirizou a pessoa com tão esquisitos tormentos; mas nenhuma coisa fez sem licença de Deus. E quantas fazem e cometem os cristãos, não só sem licença, mas vedadas pelo mesmo Deus, estendendo os poderes que não têm, e executando o que não podem? Vamos ao inferno. Ali atormentam os demônios os condenados, mas a todos conforme o merecimento de cada um, sem perdoar nem estender o castigo, não digo em uma faísca de fogo, mas nem em um só átomo: e a justiça humana, com fé de cristã, a quantos culpados absolve, e a quantos inocentes condena? Pois, se os demônios, neste e no outro mundo, tão observantes são das leis de Deus, porque crêem nele e tremem dele, nós, que o cremos com melhor fé, por que não tememos nem trememos de o ofender? Apertemos bem este ponto. Crês, cristão, que hás de morrer? Creio. Crês que no dia do Juízo, e antes daquele dia, te há Deus de julgar na hora da morte? Creio. Crês que, se fizeres boas obras, hás de ir ao céu, e gozar de Deus por toda a eternidade, e se as fizeres más, por toda a mesma eternidade, e sem fim hás de arder no inferno? Creio. Pois, se crês todas estas verdades, e os demônios crêem e tremem: credunt et contremiscunt — tu, por que não temes e tremes de ofender a Deus? Dá cá a razão: Quare, quare?
A razão verdadeira nenhum entendimento a pode dar, porque a não há. A falsa e aparente, por mais que nós nos queiramos enganar, todos a vemos e experimentamos. O que crê a fé, é o futuro; o que leva após si a vida, é o presente: e pode mais conosco o pouco e breve presente, que o muito e eterno futuro, porque o presente consideramo-lo ao perto, e o futuro ao longe, As estrelas do firmamento todas são muito maiores que a lua, e, contudo, a lua parece-nos maior, e faz em nós contínuos e maiores efeitos, porque as estrelas estão longe, e a lua perto. Assim nos acontece com as coisas do outro e deste mundo. As do outro mundo, que são as que cremos por fé, representamo-las ao longe; as deste, porque as pode conseguir a vida, parece-nos que estão perto, e, no erro destas medidas, se enleia e nos perde o nosso engano. Mas, dado que a falsa apreensão deste longe e deste perto fora verdadeira, ainda a nossa conta seria muito errada, porque o certo, posto que ao longe, sempre está mais perto que o duvidoso. O duvidoso as mais vezes falta; o certo, ainda que tarda, sempre chega; e, assim como todas as coisas da fé são certas, assim todas as da vida são duvidosas.
Para mim não quero mais que esta razão. Os que se não satisfizerem dela, ouçam outra mais clara e mais sensível. As coisas da outra vida estão tão longe de nós quão longe está a morte; as coisas desta vida estão tão perto de nós, quão perto nós estamos de as alcançar: nós corremos após elas, a morte corre após de nós, e quantas vezes nos alcança primeiro a morte do que nós as alcancemos? Chegado a este ponto, e reconhecendo com os olhos os lugares desta real capela, naquele — que depois dos altares é o mais sagrado — com horror do que hei de pronunciar, não vejo depois de tão breve ausência o que ali costumava ver. Viam-se ali dois sóis, um levantado ao zênite, outro pouco distante do oriente; um coroado de raios, outro a quem tinha destinado a natureza, e prometia a esperança a mesma coroa. E quem havia de imaginar que este chegasse primeiro ao fim, e se escondesse no ocaso?
Cuidávamos que o nosso grande Davi, tão ousado, tão valente, e tão venturoso contra o gigante, depois de pendurar a vitoriosa espada no templo da paz, e ferrolhar as portas de Jano, entregasse o cetro laureado ao que já naquela idade era Salomão. Mas que é dele? Ele subiu aonde o levava a vida. que sempre concordou com a fé; e nós ficamos chorando em perpétua saudade o engano de medirmos os seus anos com os nossos desejos, e os espaços da sua vida com os da nossa esperança. Se retratássemos em um quadro a figura deste enigma, veríamos que em diferentes perspectivas os escuros faziam os longes, e os claros os pertos. Mas, se chegássemos a tocar com a mão a mesma pintura, acharíamos que toda aquela diversidade que fingem as cores, não é mais que uma ilusão da vista, e um sonho dos olhos abertos, e que tanto o remontado dos longes, como o vizinho dos pertos, tudo tem a mestria distância. Aquele néscio do Evangelho: Stulte — por isso era néscio, porque, quando a sua falsa esperança lhe prometia tantos anos, quantos eram os bens com que o tinha enganado a fortuna: Multa bona in annos plurimos[23] — nem os bens haviam de ser seus, senão alheios; nem os anos haviam de ser anos, ou dias, ou um só dia, senão os brevíssimos instantes da mesma noite, em que isto imaginava: Hac nocte animam tuam repetunt a te[24], — Assim empreste as vidas o Senhor delas até o preciso e oculto termo da sua providência, para que acabemos de nos desenganar quão erradas são as contas dos que somam os futuros pelos presentes, e que só são sisudos e sábios os que não medem a vida com a esperança, mas tratam só de a concordar com a fé, em que consiste à eterna.
[1] Qual de vós me argüirá de pecado? Se eu vos digo a verdade, por que me não credes (Jo. 8, 46).
[2] Obceca o coração deste povo, e ensurdece-lhe os ouvidos, e fecha-lhe os olhos, para que não suceda que veja com seus olhos, e ouço com seus ouvidos, e entenda com seu coração (Is. 6, l0).
[3] Não dizemos nós bem que tu és um samaritano, e que tens demônio (Jo. 8, 48)?
[4] Ofereceram sacrifícios aos deuses que eles desconheciam: vieram deuses novos e recentes, que seus pais não tinham adorado (Dt. 32,17).
[5] E disse: Estes sempre erram de coração (SI. 94, 10).
[6] Quarenta anos estive desgostado com esta geração, e disse: Estes sempre erram de coração (ibid.).
[7] Tocou-lhe o nervo da sua coxa, e logo este se secou: ele porém coxeava do pé (Gên. 32, 25.31).
[8] Estas coisas diz o Senhor Deus de Israel: Deixa ir o meu povo, para que me faça sacrifícios no deserto (Êx. 5, 1).
[9] Por que vos mandou Deus (Gên. 3, 1)?
[10] Por que me feres (Núm. 22, 28)?
[11] Porque dei crédito aos teus mandamentos (SI. 118, 66).
[12] Por boca de duas ou três testemunhas fique tudo confirmado (M. 18, 16).
[13] A fé, se não tiver obras, é morta em si mesma. Poderá logo algum dizer: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me tu a tua fé sem obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Tu crês que há um só Deus. Fazes bem, mas também os demônios o crêem, e estremecem (Tg. 2, 18 s).
[14] Aug. 1. de cognit. verae vitae, c. 7.
[15] Bern. Ser 24, in Caia.
[16] Eu lhe pendurei nas orelhas umas arrecadas para adorno de seu rosto, e lhe pus nas mãos uns braceletes (Gên. 24, 47).
[17] Tendo visto - Labão - as arrecadas nas suas mãos (Gên. 24, 30).
[18] A fé é pelo ouvido (Rom. 10, 17).
[19] Eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras (Tg. 2, 18).
[20] Como uma esposa ataviada para o seu esposo (Apc. 21, 2).
[21] Nós vimos, e viemos (Mt. 2, 2).
[22] Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura (I Cor, 10,11).
[23] Muitos bens para largos anos (Lc. 12, 19).
[24] Esta noite te virão demandar a tua alma (ibid. 30).