LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de Ação de Graças, do Padre Antônio Vieira.
Edição de Referência:
Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.
SERMÃO DE AÇÃO DE GRAÇAS
Pelo felicíssimo nascimento do novo infante, de que a Majestade Divina fez mercê às de Portugal em 15 de março de 1695.
Ecce haereditas Domini, filii; merces, fructus ventris[1].
§ I
Por que quer a mesma Providência divina, nas mercês e favores que faz, que consideremos nelas não só a quem as faz, senão também a quem as não faz? Qual a causa da diferença tão notável, tão sensível e tão dura das preferências da benignidade divina para com Portugal? A fecundidade dos filhos, prêmio e paga dos merecimentos dos pais. O zelo da fé de el-rei no mar e na terra. A piedade e devoção da rainha
Quando as mercês e favores da providência e benignidade divina são tão singulares, que os favorecidos se avantajam com grande excesso aos que o não são, para que as mesmas mercês se recebam com a estimação que merecem, quer a mesma providência que nós consideremos nelas, não só a quem as faz Deus, senão também a quem as não faz. Todo o Salmo 147 gasta o profeta Rei em referir copiosamente os favores e privilégios particulares com que Deus enobreceu o povo que naquele tempo chamava seu; e a cláusula com que pôs o selo à narração destas mercês, foi dizer que as não fez tais a alguma outra nação: Non fecit taliter omni nationi[2]. — Abel e Caim ambos ofereceram o sacrifício ao Criador, e a maioria e excesso do agrado com que os olhos divinos aceitaram o de Abel, consistiu na exclusiva de um não, com que os não pôs no de Caim: Respexit Dominus ad Abel, et ad munera ejus; ad Caim vero, et ad munera illius non respexit[3]. — Assim elegeu a divina majestade em Israel a tribo real de Judá, e a excelência e soberania desta eleição, com que ficou mais acreditada e maior? Com outro não do mesmo Deus, que não elegeu a tribo de Efraim, posto que compreendia dez tribos: Elegit tribum Juda, tribum Ephraim non elegit[4]. — Finalmente, S. Paulo, querendo encarecer e subir de ponto a maior obra do amor e onipotência divina, que foi a Encarnação do Verbo, diz que não resplandeceu só em Deus se fazer homem, mas, sendo nove os coros dos anjos, em não se fazer anjo: Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit[5]. — Assim pesou a balança, e assim avaliou o juízo de S. Paulo o que fez Deus a uns pelo que não fez a outros: o que fez e concedeu aos filhos de Abraão, pelo que não fez e negou às jerarquias do céu.
Mas aonde caminha este meu discurso? E aonde o leva a verdade desta altíssima Providência? Debaixo dela caminhava o meu pensamento em direitura a Lisboa, para me achar presente às festas reais da nossa corte, pelo felicíssimo nascimento do novo príncipe, que Deus nos deu e Deus nos guarde; e, como talvez sucede aos navios que partem de cá, não sei que vento me derrotou a outro porto de Espanha. Achei-me logo na corte de Madri, a qual com muito verdadeiro coração desejara eu também ver divertida nos regozijos, que lá chamam, de semelhante felicidade à nossa. Mas, lastimado de ver o seu silêncio e orfandade, comecei a dizer dentro em mim: É possível que a Portugal dá Deus tão multiplicados filhos, e ao resto de Espanha, na união de tantos reinos, nenhum só filho? Assim é, Bahia; assim é, Lisboa; assim é, Portugal; para que no espelho desta diferença, e em uma monarquia tão grande, e tão vizinha, considerando o que Deus nos faz a nós, e não faz a ela; considerando o que a nós nos sobeja, e a ela falta; considerando o que Deus tão liberalmente nos concede, e o mesmo Deus por seus ocultos juízos lhe nega; conheçamos na mercê presente, sobre as passadas, quão devedores somos à providência e benignidade divina.
Ainda se não aquieta a minha admiração e a minha confusão juntas. De todos esses reinos, tão fiéis e católicos, não estão continuamente subindo ao céu tantas orações e sacrifícios? Todos eles não têm no mesmo céu tantos santos, tantos advogados e intercessores? Qual é logo a causa desta diferença, ou preferência, tão notável, tão sensível, e, por suas conseqüências, tão dura? No meio desta suspensão abri o livro dos oráculos de Davi, e, nas palavras que propus, me mostrou ele com o dedo, não só uma, mas duas causas, ambas fundamentais e certas, de tão admiráveis efeitos: Ecce haereditas Domini, filii; merces, fructus ventris[6]. — Ecce: eis aqui Portugal, de que falamos; e este reino não é a herdade de Deus: Haereditas Domini? — Sim. E a herança dessa herdade não é dos reis portugueses? Também, Pois, essa é a causa de Deus a confirmar e estabelecer com tantos filhos herdeiros: Ecce haereditas Domini, filii. — Mais. Não disse Deus que na décima-sexta geração do reino de Portugal, atenuada, poria nele os olhos de sua misericórdia, e olharia e veria: Respiciam, et videbo? — E eu não demonstrei na ocasião passada, com o texto de Ana, mãe de Samuel, que o olhar e ver de Deus, é dar filho, e filho varão: Si respiciens videris, dederisque servae tuae sexum virilem[7]? — Pois, estas são as vistas de Deus repetidas. Olhou Deus, e viu a primeira vez, e deu-nos o primeiro príncipe; olhou, e viu a segunda, e deu-nos o segundo; tornou a, olhar e ver, e deu-nos o terceiro; e agora olhou, e viu finalmente, e deu-nos o quarto. E esta é a primeira causa dos filhos.
A segunda está também apontada com o dedo nas palavras seguintes: Merces, fructus ventris: que o fruto da fecundidade o dá Deus por prêmio e paga do merecimento dos mesmos pais. Assim o entendem literalmente todos os expositores: Fructus ventris, id est faecunditas prolium, est merces et praemium justitiae ipsorum. — De sorte que a fecundidade dos filhos da parte de Deus é a promessa hereditária, com que Deus se obrigou aos reis de Portugal, a qual pertence tanto aos passados como aos futuros; e a mesma fecundidade da parte dos reis é o prêmio e a paga dos merecimentos, com que os mesmos reis servem e obrigam a Deus, a qual só pertence aos presentes. Torno a dizer, só aos presentes, e não é lisonja. Por quê? Porque de quantos puseram a coroa de Portugal sobre a cabeça, não houve um par a que tão propriamente pertencesse esta paga, como as duas majestades do rei e da rainha, que a providência divina nesta era uniu e nos deu por senhores. Ouçamos a Deus, quando nos deu a coroa. Disse Deus que fundava o seu império em Portugal, por ser singular na fé e na piedade: lide purum, pietate dilectum. — E em que par ou parelha dos nossos reis se viram tão concordes em grau sublime a fé e a piedade, como a fé no segundo Pedro, e a piedade na segunda Isabel? Quanto ao zelo da fé de el-rei, que Deus guarde, diga-o o ano presente no mar e na terra: no mar, nau para Guiné, com um príncipe batizado em Lisboa a conquistar novos reinos para a Igreja na África; nau para a China, a unir à mesma Igreja, já aberto, o maior império da Ásia; nau para o Maranhão e imenso rio das Almazonas, a converter a maior gentilidade da América; e todas estas naus, não guarnecidas de soldados a dominar novas terras, mas cheias e carregadas de mestres e missionários apostólicos, para escalar o céu e o povoar de almas. E quando todos estes lenhos cortados das raízes da cruz vão sulcando as ondas, já na terra, em vários noviciados e seminários, ficam plantados e crescendo outros discípulos, que sucedam àqueles mestres, todos sustentados a grandes despesas do mesmo rei, abertos os seus tesouros, e sem limite, nos erários reais. Se este Pedro fora o primeiro Pedro, a quem disse Cristo: Pasce oves meas[8] — não pudera fazer mais, como verdadeiramente não fez, quanto à extensão do mundo. Jacó e Labão dividiam e marcavam as ovelhas pelas cores; e as ovelhas do nosso Pedro, sem distinção ou exceção de cor, são de todas aquelas cores quantas pintaram os raios do sol no mapa universal do gênero humano. E quando este zelosíssimo e apostólico rei se emprega todo, e emprega tudo em acrescentar filhos e mais filhos à Igreja, como podia Deus faltar em lhe dar filhos?
Da fé do rei — fide purum — passemos à piedade da rainha — pietate dilectum. — É admirável prerrogativa, neste singular composto de corpo e alma, tanta piedade e santidade, junta com tanta fecundidade. Sara foi santa, mas estéril Sara; Isabel foi santa, mas estéril Isabel; Ana, da lei antiga, santa, mas estéril Ana; e a Ana, precursora da lei da graça, mais que todas santa, mas igualmente estéril. Em todos estes exemplos, porém, como a esterilidade estava junta com a santidade, não podia a mesma santidade deixar de fazer a esterilidade fecunda. Assim foi em todas: Sara, primeiro estéril, mas, como era santa, depois tão fecunda, que deu a Abraão Isac, e nele a maior descendência; Isabel, primeiro estéril, mas depois, como era santa, tão fecunda, que deu a Zacarias o maior dos nascidos; Ana, a da lei antiga, estéril, mas como santa, tão fecunda que deu a Elcana Samuel, e tantos outros irmãos; Ana, finalmente, nas vésperas da lei da graça, santíssima, e igualmente estéril, mas quanto mais santa que todas, assim excedeu tanto a todas em fecundidade, que deu a Deus não menos que aquela Mãe, de quem o mesmo Deus se fez filho. Sendo, pois, o rei tão singular no zelo da fé, e a rainha na devoção e piedade, já Deus, em prêmio e paga destes reais e divinos obséquios, lhe devia e tinha prometido, não um só filho, senão a sucessão de muitos: Ecce haereditas Domini, filii; merces, fructus ventris.
A esta proposta do tema, mais larga do que eu quisera, segue-se falar conosco, e ponderar o que nestas mercês se encerra, para darmos a Deus as devidas graças. E porque nós não podemos dar graças a Deus sem Deus nos dar a sua, peçamo-la por intercessão daquela Senhora que é Mãe do mesmo Deus e da mesma graça. Ave Maria.
§ II
As três Graças dos gregos e romanos. A primeira Graça, a que faz mercês. Os filhos, frutos da natureza é da graça. A natureza e a graça, e as duas famosas matronas do povo de Deus: Ana e Raquel. Os caminhos que intentou Portugal, herdade de Deus, para o reparo da sucessão do reino, e os três caminhos dificultosos de Salomão. Os esforços de el-rei D. João para segurar a sucessão e união da coroa de Portugal no casamento de seus príncipes. As felicíssimas bodas de el-rei Dom Pedro e a escolha de Davi para rei de Israel.
Ecce haereditas Domini, filii; merces, fructus ventris.
Platão, e antes dele Homero, ou consideraram ou fingiram, que no mundo racional havia ou devia haver três Graças. Eles e os outros gregos, e depois os romanos, as pintaram em figura de outras tantas donzelas formosas e risonhas, as quais, dando-se as mãos entre si, faziam um círculo perfeito. O ofício da primeira Graça era fazer ou dar as mercês; o da segunda, aceitá-las; o da terceira, agradecê-las. Este mesmo número e ordem determino seguir no que disser.
Começando pela primeira Graça, à qual dissemos que pertence fazer as mercês e distribuí-las, na presente matéria do nascimento dos filhos, em que estamos, parece que contra este privilégio da graça tem legítimos embargos a natureza. O nosso tema chama aos filhos fructus ventris- e quem pode negar à natureza serem estes frutos seus? Assim é: são os filhos frutos da natureza, mas não só da natureza, senão da natureza e da graça, e muito mais da graça queda natureza. Toda a natureza sem a graça não pode gerar um só homem; e a graça, sem homem nem mulher, criou o primeiro homem, de que nasceram todos. São a natureza e a graça como aquelas duas famosas matronas, Ana e Raquel. Ambas careciam de filhos, ambas os desejavam muito, e ambas os procuraram por diferentes caminhos. A natureza, por boca de Raquel, pediu os filhos a seu marido Jacó: Da mihi liberos, alioquin moriar (Gên. 30, 1): Jacó, dai-me filhos, e se não morrerei de tristeza. — Ana, pelo contrário, que quer dizer graça, foi-se ao Templo, fez oração a Deus, e pediu-lhe com grandes instâncias lhe desse fruto de bênção. E como responderam Deus a Ana, e Jacó a Raquel? Deus a Ana concedeu-lhe logo o grande Samuel, e depois outros filhos; Jacó a Raquel respondeu que não era Deus: Num pro Deo ego sum (ibid 2)? Porventura sou eu Deus para vos dar filhos? — Para ter filhos não bastam Jacó e Raquel; são necessários Jacó, Raquel e Deus: Jacó e Raquel por parte da natureza, Deus por parte da graça. Os hebreus antigos tinham um provérbio muito discreto: diziam que Deus reservara para si três chaves: a da geração, a do sustento, a da ressurreição; a da geração no ventre, a do sustento na chuva, a da ressurreição na sepultura. Porque, ainda que Deus costuma ressuscitar poucas vezes, tanto depende do seu poder e de sua vontade o nascer como o ressuscitar.
Este conhecimento geral, e esta diferença da natureza e da graça, que é doutrina comum para todo o mundo, se repassarmos com a memória o que os olhos viram, e já não vêem, no espaço de tantos anos — os quais contarei depois — acharemos que foram um desengano ou pregão da Providência divina aos portugueses. Para quê? Para que o esquecimento das desconfianças passadas, e a alegria das glórias presentes não degenerem, como se pode temer, em ingratidão. Lembrem-se os que viviam então, e saibam os que não eram nascidos, quão duvidosa e vacilante esteve a sucessão da nossa coroa, e quão desesperadas, e quase mortas, as esperanças que hoje festejamos, tão copiosamente ressuscitadas. Já vimos que o reino de Portugal é a herdade de Deus. As herdades dos homens, para produzirem e darem fruto, esperam contingentemente que as regue a chuva do céu; porém, a herdade de Deus, diz o profeta, tem tal domínio e império sobre a mesma chuva, que usa e se serve dela todas as vezes que a há mister, a arbítrio da sua vontade: Pluviam voluntariam segregabis, Deus haereditati tuae[9]. — Mas esta mesma herdade, enquanto nossa, para os frutos da sucessão: filii, fructus ventris — esteve em todo aquele tempo tão seca e estéril, como se Deus se tivera esquecido de que era sua.
Assim trabalhavam por subir e chegar ao céu as nossas orações, os nossos suspiros e a nossa necessidade, debalde. Que meios não elegemos e empreendemos, que logo se não desvanecessem? Que caminhos não acometemos e abrimos, que logo se não fechassem? Pela terra, pelo mar e pelo ar os buscamos, e todos esses elementos se armaram contra nós, como se a terra se convertesse em pedra, o mar em regelo, o ar em tempestade.
Dizia Salomão que na terra, no mar e no ar achara três coisas muito dificultosas para ele: Tria sunt difficilia mihi (Prov. 30, 18). — Declarando logo que três coisas fossem estas, continuou dizendo que eram outros tantos caminhos. Mas que caminhos são, ou podem ser estes para o mais sábio dos homens, dificultosos? Viam colubri super petram (ibid. 19): O caminho da serpente sobre a pedra, que não deixa rasto, — Viam navis in medio maris (ibid.): O caminho da nau no meio do mar, cuja esteira confundem logo e apagam as ondas. — Viam aquilae in caelo (ibid): — O caminho da águia no ar, que ela rompe visivelmente e ele invisivelmente se torna a unir e fechar. — Tais foram os caminhos que intentamos para o reparo da sucessão do nosso reino. Primeiro apontarei o que todos viram, depois direi o que poucos sabem. O que todos viram, por onde começamos, foram as bodas de el-rei D. Afonso, ele felicíssimo, e elas pouco felizes. Este foi o caminho da terra, como o da serpente, mais rasteiro e arrastado do que à majestade e soberania da coroa portuguesa era devido. A este se seguiu o do mar, na armada de Sabóia, tão enfeitada, que para lhe dourar até os costados, fundiu o Tejo todas as suas areias. Mas já eu disse naquela ocasião, que ainda voltou mais rica do que partira, porque não trouxe o que ia buscar, Até aqui o que todos viram. O que muitos não sabem, é o caminho da águia no ar, do que eu falarei, não só como testemunha de vista, mas como quem lhe seguiu os passos.
Pelos anos de cinqüenta, como el-rei Filipe IV não tivesse mais que uma única herdeira, a princesa Maria Teresa de Áustria, entenderam os juízos mais sisudos, antevendo as conseqüências que hoje dão tanto cuidado, que devia casar dentro de Espanha. E diziam livremente os que de nenhum modo queriam que casasse fora: Porque no tendremos un rey con unos vigotes negros? — Aos ecos destas vozes, ajudadas de outras inteligências secretas, intentou el-rei, que está no céu, solicitar o casamento para o príncipe D. Teodósio. E a este fim, debaixo de outros pretextos, me enviou a Roma, com as instruções e poderes necessários, para que lá introduzisse e promovesse esta prática. Era embaixador na Cúria o duque del Infantado, e assistente de Espanha na Companhia o padre Pedro Gonzalez de Mendonça, seu tio, bom e doméstico intérprete. O prólogo desta negociação, sem o parecer, fazendo-me neutral ou interessado — como verdadeiramente era — por ambas as partes, foi lamentar-me, de religioso a religioso, do muito sangue espanhol e católico que se estava derramando nas nossas fronteiras, triunfando e fazendo-se mais poderosos os hereges com aquela diversão. E doía-me juntamente de que as campanhas de Flandres, pouco antes pacificadas, se haviam de passar a Espanha, e que aquela guerra seria tanto mais perigosa, quanto mais das portas adentro. Sobre esta primeira pedra do temor, tão bem fundado, em outra conversação do mesmo assistente, na qual se achavam dois grandes sujeitos, também castelhanos, da Companhia, Velasques, e Monte Mayor — os quais já eram da minha opinião — vindo à prática o casamento da princesa em Espanha, disse eu: Se as coisas estiveram no estado antigo, pouca dúvida podia haver na eleição do esposo. O sangue real da casa de Bragança é o mais unido à mesma princesa, porque ela e o duque de Barcelos são netos dos mesmos avós, e ele, sobretudo, pelas virtudes e qualidades pessoais, merecedor do maior império, como reconhecido e celebrado no mundo pelo príncipe mais perfeito de toda Europa. Todos assentiram com aplauso a uma e outra preferência do sangue e da pessoa, como ambas sem controvérsia. E eu, então, concedida esta evidente premissa, tirei da bainha o meu argumento, e lhe apertei os punhos com todas as forças, dizendo assim: Pois, se o primogênito de Bragança, só como duque de Barcelos, e filho de seu pai, é o mais digno de toda a Espanha, para que a princesa lhe dê a mão, quanto mais no estado presente, trazendo consigo por dote a Portugal, e tudo o que Portugal possui em a metade do mundo? Dizer que tudo isto se há de reconquistar, é pensamento fundado só no desejo, porque, tendo mostrado os portugueses que eles por si sós se podem defender, é certo que os êmulos de Espanha os hão de assistir e ajudar, como fizeram a Holanda, invencivelmente. Mas, quando a contrária apreensão tivesse alguma probabilidade, quanto sangue se havia de derramar, quantos tesouros se haviam de despender, quantos anos se haviam de esperar os fins dessa contingência? Não é melhor e mais seguro conselho, assim como tudo se perdeu em um dia, recuperar tudo em um dia, sem golpe de espada? Porventura foi mais decente a paz com os holandeses, dando-lhes o domínio de sete províncias, do que será a paz com os portugueses, não lhes dando coisa alguma, mas recebendo de contado quanto possuem dentro e fora do reino? Onde se deve muito notar que o que é Portugal só dentro em si, são partes e membros da mesma Espanha, com que ela e a monarquia se tornará a repor na sua total inteireza. Finalmente, com esta reunião, e Portugal restituído, ficará Espanha em muito mais poderoso e florente estado que quando o tinha sujeito porque ela agora o tem cingido e sitiado com os seus exercitos, e ele se defende com os seus em um cerco de cento e cinqüenta léguas, com soldados tão valentes, com capitães tão experimentados, com cabos tão famosos de uma e outra parte, e todas estas armas juntas, as suas e as nossas, no mesmo dia serão suas; e Espanha ficará tão estabelecida, tão forte, e tão formidável, que seja o amparo dos amigos, a reverência dos neutrais, e o terror de todos seus inimigos. Até aqui ouviam mudos os circunstantes, olhando uns para os outros. E, murmurando-se a verdade destas razões até chegarem às melhores cabeças da facção espanhola, eram geralmente aprovadas, e com muito particular empenho no voto do Cardeal de Lugo, em tudo eminentíssimo. Mas como a questão se havia de decidir, não no juízo do Capitólio Romano, senão em outro muito distante, onde a dor e a ferida estava ainda fresca, e o progresso das nossas armas não tinha amadurecido as verduras do pundonor, que depois humanou a experiência e a necessidade, não foi lá aceita a proposta. Assim ficou no ar a águia, e no ar a negociação; mas os que então lhe negaram os ouvidos, depois torceram as orelhas.
Agora me consintam os portugueses que lhes tire uma espinha da garganta, porque vejo que estão notando a el-rei, de que quisesse neste contrato desfazer o que tinha feito, e tornar a unir o que tinha desunido. Mas é porque até agora calei uma cláusula do projeto, sem a qual eu também não havia de aceitar a comissão. A cláusula é que, no tal caso, a cabeça da monarquia havia de ser Lisboa, e deste modo se conseguia para o nosso partido a segurança, e para o governo da monarquia a emenda. O erro que tem causado muitos em Espanha, como ponderam os melhores políticos, é estar a Corte em Madri. Por isso el-rei Filipe, o Segundo, quando veio e viu Lisboa, logo a sua prudência determinou e prometeu passar a corte para ela. E a esse fim se começou a edificar aquela parte de palácio, que chamam o Forte. Tendo Espanha tanta parte dos seus domínios no Mar Mediterrâneo, tanta no Mar Setentrional, e tantas e tão vastas em todo o mar Oceano, havia de ter a corte onde as ondas lhe batessem nos muros; e, dependendo todo o manejo da monarquia da navegação de frotas e armadas, e dos ventos que se mudam por instantes, que política pode haver mais alheia da razão, que tê-la cem léguas pela terra dentro, onde os navios só se vêem pintados, e o mar só na água, pouca e doce, que o inverno empresta ao Manzanares? Mas assim haviam de preceder todas estas violências da razão e da natureza, para que mais maravilhosamente se lograssem os frutos da graça. Vejamo-lo, não com outros nomes, senão os próprios de ambas.
Comunicou Deus ao profeta Samuel, que entre os filhos de Jessé tinha escolhido um rei, que muito o havia de servir; e, não lhe revelando qual era, mandou que o fosse ungir. Para esta unção encheu o profeta uma redoma do óleo sagrado, conforme a cerimônia e rito da lei antiga, e na casa de Jessé fez vir diante de si um por um os filhos, segundo a ordem das suas idades, Veio em primeiro lugar Eliab, mancebo bizarro: inclinou-lhe o profeta sobre a cabeça a redoma, mas o óleo não correu. Aqui havemos de ouvir agora o comento de S. Basílio de Selêucia, que é singular. Cornu invergens propheta rejectaneum, ut ungeret cogebat, sed oleum fluere recusabat, ne cum errante propheta faceret, et fluxa natura sursum detinebatur gratiae legibus obsecuta. — Quer dizer que, inclinando Samuel a redoma, o óleo, sendo líquido e pesado, não correu para baixo, contra o movimento da natureza, porque a graça o detinha e suspendia para cima. — E a causa desta suspensão era não ser Eliab o rei escolhido por Deus, nem ser decente que o óleo sagrado concorresse com o erro do profeta, que não sabia nem acertava qual fosse. Excluído com este milagre o primogênito, veio o segundo filho, Abinadab, e também o óleo não quis correr sobre a cabeça deste; veio o terceiro, chamado Sarna, e nele e nos demais continuou o mesmo prodígio. Chegou, finalmente, Davi, que, era o último filho, e à primeira inclinação do profeta correu o óleo da unção, e se derramou todo sobre a sua cabeça, até se esgotar a redoma.
Esta foi a famosa história, na qual quem haverá que não esteja vendo a nossa, obrando a mão de Deus invisivelmente o que sucedeu à de Samuel? Quis el-rei D. João segurar a sucessão e união da coroa no casamento do seu primogênito, D. Teodósio, como em Eliab, mas não correu o óleo sobre D. Teodósio. Quis o reino segurá-la no casamento de el-rei D. Afonso, como em Abinadab, mas não correu o óleo sobre D. Afonso. Tomou-se por último remédio o casamento de Sabóia, como em Sarna, mas não correu o óleo sobre aquele príncipe, Assim se fecharam todos os caminhos que intentamos: pelo ar, com a águia voando; pela terra, com a serpente arrastando; pelo mar, com a nau navegando; mas na terra, no mar e no ar, suspendeu a graça o óleo, fechou a redoma e os caminhos, porque eram errados: Ne cum errante propheta faceret. — Desde o ano de cinqüenta até o de oitenta e sete, se verificou em nós a praga ou lamentação de Davi: Errare fecit eos in invio, et non in via[10] — porque tão longamente andamos errando, como os filhos de Israel pelo deserto, sem acertar com a Terra de Promissão, onde Deus tinha depositado a nossa felicidade. Nós a buscávamos lá em Castela, em França e em Itália, e ela estava escondida em Alemanha. Uniu-se, enfim, Alemanha com Portugal, celebraram-se as felicíssimas bodas, e em el-rei D. Pedro, o último filho de el-rei D. João, como Davi de Jessé, derramou Deus a graça e o óleo da unção, que havíamos mister, com tanta abundância, e tantas vezes, como já estamos contando, e celebrando a quarta.
§ III
A segunda graça: a que recebe os benefícios. A segurança da sucessão nos três príncipes de Portugal, e a parábola da vinha. Sêneca e a culpa dos que se apóiam sobre uma só âncora. Os quatro infantes de Portugal e a firmeza da base assentada sobre número quadrado. A fábula de Gerião e o auxílio do glorioso infante de Portugal morto em Milão. Por que razão fundou Deus a Sinagoga, assentando-a sobre uma irmandade, e a Igreja sobre duas? De que modo lograram as venturosas majestades das rainhas de Castela e Grã-Bretanha o fruto da gloriosa fecundidade de Portugal?
Depois da primeira graça, que faz as mercês e reparte os benefícios, segue-se a segunda, que tem por ofício recebê-los. Diz Aristóteles que tudo o que se recebe, se recebe ao modo de quem o recebe. E há modos de receber que diminuem e apoucam o mesmo que recebem: isto é, receber com as mãos abertas e com os olhos fechados. No caso em que estamos, não se há de dizer que nasceu a Portugal um infante, e aos seus reis um filho, e ao seu príncipe um irmão, Pois como? Há-se de fazer tão particular menção do número como da pessoa. Na pessoa é um, mas no número, sobre os que por mercê de Deus logramos, para Suas Majestades é o filho terceiro, e para Sua Alteza o irmão segundo. E dar Deus um segundo irmão ao príncipe de Portugal, é confirmar-lhe a herança mais em duas vidas, porque os irmãos são os fiadores da sua. Ana, mãe de Samuel, pediu a Deus um filho, e Deus deu-lhe três: Visitavit Dominus Annam, et concepit, et peperit tres filios[11]. — Pois três, quando pede um? Sim, Não só foi excesso de liberalidade no dar, senão o seguro do que dava. O primeiro filho foi o despacho da petição; o segundo, e o terceiro, foi a confirmação da mercê em outras tantas vidas. A mesma vida humana, a sua fragilidade e inconstância, é a razão e necessidade destes remédios. Coisa maravilhosa é que o morgado de Abraão se continuasse sem quebra até Cristo, correndo neste intervalo dois mil e trezentos anos. Não morriam estes homens? Morriam; mas como cada um tinha outro que lhe sucedesse, sendo os herdeiros mortais, fizeram imortal a herança. Sem estes reféns da mortalidade, se o herdeiro é um só, tão arriscada tem a herança como a vida.
Na parábola da vinha, indo os criados do senhor dela receber os frutos, rebelaram-se contra eles os cavadores, ferindo e matando, Então o pai de famílias tomou por expediente mandar lá seu próprio filho, entendendo que lhe teriam diferente respeito: Verebuntur filium meum[12]. — Mas o uso da enxada, assim como caleja as mãos, endurece também as testas. Foi tão contrário o discurso daquela vilania rebelada, que disseram assim: Hic est haeres, venite, occidamus eum, et habebimus haereditatem[13]. — De maneira que quando o filho é único, e um só, e não tem quem lhe suceda, nem à pessoa se lhe guarda respeito: Verebuntur — nem falta quem se lhe atreva à própria vida: Occidamus eum — e uns e outros querem para si a herdade: Et habebimus haereditatem. — Por isso o nosso texto, falando desta mesma herdade, de que aos nossos reis pertence a herança, não só lhe promete filho, senão filhos: Ecce haereditas Domini, filii. — E para que entenda a segunda graça, como recebedora, o muito que nesta última mercê de Deus tem recebido, considere que, crescendo os filhos, cresce com eles a segurança.
Consolava Sêneca a um anojado pela morte de um amigo — que é o maior parentesco — e dizia-lhe assim discretamente: Se o amigo que perdestes é um dos que tínheis, consolai a perda do que vos faltou com os que ficaram. Mas se ele era não só um, senão único, não choreis só a vossa perda, senão a vossa culpa: Quare tu ad unam anchoram stabas? Por que estáveis vós sobre uma só âncora? — Quando as coisas dependem do próprio alvedrio, estar sobre uma só âncora, não só desgraça, mas culpa; porém, quando dependem só da mão de Deus, é providência muito para estimar e agradecer da mesma graça divina. Enquanto Deus, depois de nos levar o primeiro, nos deu só o segundo príncipe, estávamos sobre uma só âncora; mas depois que lhe sucederam tão felizmente um e outro infante, já estamos sobre três. Na antiga Lusitânia reinou antigamente um príncipe chamado Gerião, o qual tinha dois irmãos do mesmo nome, tão unidos todos três entre si, que deram ocasião à fábula de viverem em uma só alma, que informava os três corpos. Diziam mais, que esta união os fazia tão fortes que, chegando à Espanha o domador de todos os monstros do mundo, não deram menos trabalho a Hércules as três cabeças destes irmãos, que as sete da famosa hidra.
Mas, deixada esta fábula, em que parece profetizou ou pintou a passada Lusitânia a fortuna que ela e nós havíamos de gozar presente, para que o nosso príncipe estime quanto deve o nascimento do novo irmão, e quanto importa ou pode importar a seu tempo um tal companheiro e fiador, não só para o reparo da vida, senão para a conservação do estado, ouçamos um famoso oráculo da sabedoria divina: Frater qui adjuvatur a fratre quasi civitas firma[14]. — Os Setenta Intérpretes, ainda mais expressamente: Frater a fratre adjutus, quasi urbs munita et excelsa: Um irmão ajudado de outro irmão — diz o Espírito Santo — são como uma cidade, no sítio levantada por natureza, e nos muros bem fortificada pela arte. — Uma cidade sem fortificação, por qualquer parte pode ser invadida e entrada. Mas os muros que mais fortemente a cercam e a defendem, não são os que se fabricam de mármores ligados, senão de corações unidos. Perguntados os espartanos por que não muravam as suas cidades, respondiam: — Sim, muramos, e os nossos muros — apontando para os peitos — são estes. — E se este valor lhes infundia o serem moradores da mesma cidade, quanto mais se fossem filhos do mesmo pai e da mesma mãe, ajudado cada par um do outro: Frater a fratre.
Assim o entenderam tão política como militarmente os que especularam o modo compendioso e fácil com que acudir à restauração de Portugal, e a desfazer e afogar nas mesmas faixas do seu nascimento. Estava militando em Alemanha o infante D. Duarte, e antes de se tocar caixa contra os que chamavam rebelados, despacham-se correios secretos, com ordens, aonde se não podiam mandar, de que o infante seja logo preso. E por que, ou para quê? Para que um irmão se não ajuntasse com o outro irmão, e, divididos, se não pudessem ajudar nem defender, e conservar a empresa começada. Não se temeram tanto de toda a união do reino, como de que chegassem os dois irmãos a ser frater qui adjuvatur a fratre. — Entenderam que, preso o infante, com os muros do castelo de Milão tinham posto em cerco a Portugal, e que o novo rei, desacompanhado de seu irmão, com todas as forças do reino se não podia defender. Mas quando eles, com uma divisão, os quiseram separar, eles, com outra divisão, se souberam unir.
Dizia discreta e fortemente Quintiliano, em uma declamação, que a irmandade é uma alma dividida pelo meio: Quid est aliud fraternitas, quam divisus spiritus? — E que fazia a alma dos dois irmãos assim partida em duas ametades? A ametade livre do rei estava presa em Milão com a do infante, e a ametade presa do infante estava livre em Portugal com a do rei. Tão livre que, sucedendo no mesmo tempo suspirar a falta de Cartagena e a necessidade de Potosi por cavadores etíopes, houve arbítrios em Madri que o infante se trocasse por Angola, e a sua liberdade por muitos cativeiros. Mas como esta notícia chegasse aos ouvidos do real prisioneiro, teve ele indústria para minar os muros do castelo, e por debaixo da terra escrever uma carta, que de Veneza veio a Haia, corte de Holanda — onde eu a li — e da Haia passou a Lisboa. E que continha aquela carta? Dizer e protestar a Sua Majestade o generoso infante, que nem um torrão de terra conquistada com o sangue dos portugueses se desse pela sua liberdade nem pela sua vida, Assim estava desde a sua prisão defendendo as terras da África, e avaliando em tanto preço as gotas do sangue português, duzentos anos antes derramado nelas! Que seria, se chegássemos a o ver na testa dos nossos exércitos, e nas nossas restituídas campanhas, ganhadas também com o sangue, não só dos soldados, senão dos reis seus avós, nas veias do irmão e nas suas o mesmo?
Sem lograr este desejo, acabou aquele heróico príncipe a vida; e aos dois irmãos, que a distância dos lugares não pôde separar, separou finalmente a morte. Na ausência de tão fiel companhia, parece que se cumpriu então ficar el-rei verdadeiramente só. Assim o ponderei nas suas exéquias, em que tomei por tema: Mortuus est frater ejus, et ipse remansit solus[15]. — Disse estas palavras Jacó, falando dos dois irmãos José e Benjamim, filhos seus e de Raquel. Mas, assim como era falso ser morto José, que no mesmo tempo vivia, e governava o Egito, assim se não verificou em el-rei, como em Benjamim, o ficar só sem ele. Por quê? Porque voou de Milão ao céu o glorioso infante, não esquecido de quem era, e daquele mais alto castelo ajudou fortemente a seu irmão. Na batalha de Barac, diz a Escritura Sagrada que se pelejava da terra, e juntamente do céu: De caelo dimicatum est[16] — sendo as estrelas de lá um bem ordenado exército: Stellae manentes in ordine suo[17]. — Assim sucedeu dali por diante. Meteu a justiça da causa o bastão na mão ao belicoso infante, e governando as estrelas, ele infundia nelas os seus espíritos, e elas os influíam tão eficazmente nos portugueses que pelejavam na terra, que no mesmo tempo restauraram na África Angola, e na América Pernambuco, e em Portugal, já restaurado, o defendiam gloriosamente com maior e mais certo desengano das armas ofensivas.
À vista deste exemplo de irmandade, me arrependo muito do que pouco há disse, que Portugal se sustenta hoje sobre três âncoras, sendo certo que são quatro, e a mais segura no céu, enchendo este perfeito número o príncipe primogênito, que o mesmo céu nos deu e arrebatou tão brevemente. Grande prognóstico de perpetuidade, não só para a esperança, senão para a fé! Fundou Deus neste mundo duas repúblicas: a primeira em uma só nação, que foi a Sinagoga; a segunda em todas as nações, que é a Igreja, e o fundamento sobre que assentou ambas foi a irmandade. A Sinagoga, sobre Moisés e Arão, irmãos; a Igreja sobre Pedro e André, irmãos, e sobre João e Jacó, também irmãos. E por que razão a Sinagoga em uma irmandade, e a Igreja em duas? A Sinagoga em dois irmãos, e a Igreja em quatro? Porque a Sinagoga havia de durar muito, e a Igreja sempre, e a perpetuidade deste sempre nos promete a firmeza de uma base sobre o número quadrado, o qual se aperfeiçoou e encheu no nascimento felicíssimo do último infante, que celebramos.
Já eu aqui me despedira da segunda graça; mas sei que anda na boca das gentes, e também na estampa dos livros, que quando reinar um rei de certo nome, lhe há de suceder na coroa um infante de Portugal. Portugal é tão pouco ambicioso, e está tão cheio de si, que se contenta com o seu. Fiquem estes contos para as fadas, que os cantem ao nosso infante quando lhe embalarem o berço e animarem o sono. A verdade maravilhosa é — para que não sejamos ingratos a Deus — que há poucos anos tínhamos a sucessão por um fio, por falta de um príncipe, e agora os podemos repartir, e dar reis a muitos reinos. Eu, porém, o que só quisera, entretanto, é que os nossos deram neles às duas majestades de suas augustíssimas irmãs, não só afilhados, mas filhos. Na morte dos inocentes de Belém, alega o evangelista S. Mateus o texto do profeta, em que Raquel chorava os seus filhos: Rachel plorans filos suos[18] — sendo certo que os meninos de Belém não eram filhos de Raquel, senão de Lia, sua irmã. Mas por isso mesmo lhes chama filhos seus, porque os filhos dos irmãos também são filhos próprios. Assim pode dar El-Rei, Nosso Senhor, à majestade da senhora rainha da Grã-Bretanha, sua irmã, não só um afilhado, senão um filho. E a Rainha, Nossa Senhora, à majestade da senhora rainha de Castela, também irmã sua, outro. E por este modo, ambas as venturosas majestades, sem as dores, que não padeceram, lograrão em lugar de dor, com suma alegria, o fruto desta gloriosa fecundidade de Portugal e sua: Filii, fructus ventris.
§ IV
A terceira e última graça. a que agradece as mercês e benefícios recebidos. As públicas e naturais demonstrações com que na Bahia se ouviu a nova do felicíssimo parto do novo infante de Portugal. O agradecimento e o perfeito círculo que as três Graças fazem, dando-se as mãos entre si. A natural filosofia dos rios, no tributo que vão pagar ao mar, e o agradecimento das divinas mercês, O banquete do deserto e a prodigiosa fecundidade da gratidão nos benefícios divinos. Davi e a esterilidade da ingratidão. Como devemos aumentar ou podemos esterilizar a fecundidade que celebramos. O agradecimento do segundo pai do mundo, Noé, e a ingratidão do primeiro, Adão. Os vinte e dois herdeiros de el-rei Dom Manoel, e o desengano da mortalidade humana, posto que fecunda.
Somos chegados, finalmente, à terceira e última graça, à qual pertence agradecer as mercês e benefícios recebidos; mas o nosso agradecimento se antecipou de maneira a esta terceira graça, que as nossas se têm já muito desempenhado, ou começado a desempenhar na segunda. Já tinha dito Sêneca elegantemente, e disse depois com maior elegância S. Bernardo, que a primeira parte do agradecimento, e as primícias que mais agradam e satisfazem a quem faz o benefício, é o gosto, a alegria, e a estimação com que o mesmo benefício se abraça, aceita e recebe. As palavras do santo são estas: Danti rependi quidquam gratius ab accipiente non potest, quam si gratum habuerit, quod gratis accepit. — Isto é o que fizeram já as nossas públicas e naturais demonstrações, naquele solícito e cuidadoso repente com que na Bahia se ouviu a nova do felicíssimo parto, em que a divina liberalidade tinha acrescentado à prosápia real mais um penhor de firmeza, no repetido nascimento do novo infante. Os aplausos de grandes e pequenos, os parabéns que todos se davam, as alvíssaras com que se premiaram as primeiras notícias, o cuidado e receio interior de que se despiram os corações e as galas de que se vestiram por fora; as luminárias, os repiques, as salvas das fortalezas e artilheria, com que até as pedras e os bronzes, ou sentiam ou mostravam a alegria; enfim, as festas gerais, decretadas para maior aparato e crédito do mesmo contentamento: tudo isto, e o mais que se não pode explicar, junto, foram um descomposto tumulto, e uma concertada harmonia dos corações, com que o agradecimento, saindo fora de si pelas portas de todos os sentidos, com todos se encontrava, e manifestava em todos.
Mas isto aonde e quando? A circunstância do lugar e do tempo acredita muito este novo modo de gratificar. Deu o anjo a nova do nascimento do Salvador aos pastores, e eles, que fizeram? Foram a Belém, viram o que tinham ouvido, e então, tornando para o seu gado, vinham cantando louvores, e dando graças a Deus: Reversi sunt pastores glorificantes et laudantes Deum (Lc. 2, 20). — Se nós pudéramos também ir a Belém, quero dizer, à nossa corte, e ser testemunhas da sua alegria, não lhe daria vantagem a nossa, como nem ao que ela obrou nos pastores. Mas nota neles o evangelista duas propriedades, que em nós são grandes diferenças. A primeira, que eles estavam na mesma região: Pastores erant in regione eadem[19]. — A segunda, que receberam a nova do nascimento no mesmo dia: Quia natus est vobis hodie[20]. — Porém, que nós, estando noutra região tão distante, e recebendo a nova tanto tempo depois, nem por isso glorifiquemos e louvemos menos a Deus? Ninguém diga que a terra do Brasil é ingrata. O agradecimento é filho do amor, e o amor ordinariamente o tempo o esfria e a distância o apaga; porém, o nosso agradecimento, como filho de amor mais nobre, qual deve ser o dos reis e da pátria, nem o tempo, com tantos mares em meio, bastou a lhe esfriar o contentamento, nem as distâncias, tão remontadas, para não ver e festejar as causas dele quanto merecem.
Assim, sem sair da segunda graça nem entrar na terceira, a quem pertence o agradecer, só com o agrado e estimação da mercê recebida, temos já pago e respondido aos ecos da boa nova, com o melhor e mais sincero tributo do agradecimento. E para que este passe finalmente à terceira graça, resta só que as nossas graças, com humilde e fiel reconhecimento ao primeiro e sobrenatural princípio donde nasceram, se refiram todas a Deus. Este é aquele perfeito círculo, que as três Graças, como dizíamos, fazem, dando-se as mãos entre si, querendo significar que todas nascem da primeira, e todas tornam a ela. Nascem dela, porque dela as recebe a segunda, e tornam a ela, porque a ela as refere e agradece a terceira. Todos os rios quantos regam o mundo, ou mais ou menos caudalosos, ou mais ou menos distantes, sempre estão correndo ao mar, sendo que nele se afogam, e perdem o nome. E por que correm todos ao mar? Porque todos naturalmente tornam, e vão, buscar o princípio donde nasceram: Ad locum unde exeunt, flumina revertuntur[21] — diz Salomão. E qual é a teologia que nesta natural filosofia encerra e está sempre ensinando a natureza de dia e de noite? Santo Tomás: Redeunt flumina, id est, beneficia per gratitudinem ad suam principiam, unde exierunt, puta, ad datorem Deum: — Os rios — diz o Doutor Angélico — são os benefícios divinos, os quais vão buscar o seu princípio, que é Deus; e donde saíram por origem, tomam por agradecimento: Redeunt per gratitudinem. — Aqui temos o círculo das três Graças em uma só água, e a mesma. Sai a água do mar, penetra por baixo da terra até às fontes; das fontes rebenta aos rios, e nos rios, correndo, torna a buscar o mar. A primeira carreira é secreta, e não se vê donde sai, e assim são os benefícios divinos; a segunda é manifesta e pública, e assim devem ser, e são, as graças que damos a Deus.
E tem algum interesse este tributo de agradecimento, que os rios vão pagar ao mar? Sim, e muito grande. É de graças, mas não de graça. O mesmo Salomão o disse: Revertuntur ut iterum fluant (Ecl. 1, 7): Tornam os rios agradecidos ao mar, para tornar a correr. — Não param para correr, correm para não parar. E que nos quer Deus ensinar neste mesmo espelho? Diga-o o mesmo comentador, como tão excelente intérprete dos segredos divinos: Ut iterum fluant: quia gratitudo de datis provocar liberalitatem Dei ad nova danda: Correm os rios para tornar a correr, porque é tão grato a Deus o nosso agradecimento dos seus benefícios, que provoca sua divina liberalidade a que nos dê outro de novo. — De maneira, que as mercês de Deus, antes do agradecimento, são dádivas; depois do agradecimento são dívidas: antes do agradecimento nós somos devedores a Deus das mercês que nos faz; depois do agradecimento as mesmas graças que damos a Deus fazem a Deus devedor nosso, e devedor de novas mercês, porque fica obrigada a sua liberalidade a no-las fazer de novo, multiplicando-as. Daqui se entenderá o mistério com que Cristo, Senhor nosso, no banquete do deserto, trocou a ordem das graças: Accepit panes, et cum gratias egisset, distribuit discumbentibus (Jo. 6, 11): Tomou o Senhor os pães nas mãos, e, dando primeiro as graças a Deus, então os distribuiu aos convidados. — Parece que as graças se haviam de dar depois de comer, e não antes. Mas assim convinha e importava que fosse. Os pães eram cinco, e cinco mil os que haviam de comer deles; e, para multiplicarem tanto, era necessário que precedessem as graças, e que o mesmo agradecimento os aumentasse. Tão fecunda é a gratidão dos benefícios divinos!
E, suposto que todo o nosso discurso é fundado em uma fecundidade, que com razão chama-mos prodigiosa, razão terá também alguém de perguntar, ou por curiosidade ou por receio, se pode ou poderá haver alguma ação ou omissão da nossa parte, que faça estéril a beneficência divina. Respondo que sim, e é conseqüência do que acabamos de dizer. Porque, assim como a gratidão tem eficácia para fecundar a mesma beneficência em Deus, assim a tem igualmente a ingratidão para a esterilizar. Até esta notável advertência não passou por alto a Davi: Retribuebant mihi mala pro bonis, sterilitatem animae meae (SI. 34, 12): Eu — diz Davi — semeei benefícios, e colhi ingratidões: esterilidade da minha alma. — A primeira parte desta sentença não tem dificuldade; mas a segunda muito grande. Semear benefícios, e colher ingratidões, é monstruosidade da agricultura, que cada dia experimentam os que semeiam ou plantam em tão má terra como a de Adão e seus filhos. Até Deus disse de sua vinha: Expectavi ut faceret uvas, et fecit labruscas[22]. — Porém, que ponha Davi esta esterilidade em si: Sterilitatem animae meae! — esta é a maravilha. Se pusera a esterilidade nas almas, e más almas dos ingratos, bem estava; mas na sua, que fazia os benefícios? Muito notável coisa é, mas certa. E por quê? Porque o ingrato não só esteriliza os benefícios, senão também o benfeitor: esteriliza os benefícios, porque os paga com ingratidões; e esteriliza o benfeitor, porque, vendo o benfeitor que se pagam com ingratidões os seus benefícios, cessa, e não os quer continuar. Isto que Davi diz de si, é o que faz Deus. Antes própria e verdadeiramente de Deus é que o disse o profeta, e não de si. Estas palavras são do Salmo 34, o qual todo é de fé que fala de Cristo. E da sua alma diz o mesmo Cristo: Sterilitatem animae meae! — porque o ingrato — comenta Hugo Cardeal — quanto é da sua parte, faz estéril a alma do mesmo Cristo: Animam Christi, quantum est in se, sterilem facit. — Note-se o quantum in se, porque a alma de Cristo, ainda neste caso, não é estéril, mas é esterilizada: da sua parte não é estéril, porque sempre está pronta para fazer bem; mas da nossa é esterilizada, porque a nossa ingratidão a esteriliza: Sterilem fecit.
Neste admirável exemplo nos ensina a terceira e última Graça como devemos conservar, ou podemos perder; como devemos aumentar, ou podemos esterilizar a mesma fecundidade que celebramos. E por que não pareça caso singular, saibamos que assim o tem Deus estabelecido por lei universal desde o princípio do mundo. Toda a sucessão e gerações do gênero humano, primeiro criado, e depois restaurado, fundou Deus sobre dois grandes homens: Adão quando o criou, e depois se perdeu; e Noé, quando, depois de perdido, o restaurou. E por que o perdeu Adão e o restaurou Noé? Leiam-se no texto sagrado os procedimentos de um e outro. Adão nem por obra, nem por palavra, nem por oferecer sacrifício a Deus, ou lhe dobrar o joelho, nem por movimento, inclinação, ou sinal algum se lhe mostrou agradecido; mas sempre e em tudo duro, desconhecido, ingrato. E como castigou Deus esta ingratidão? Com o dilúvio, em que todos os filhos de Adão ficaram sepultados. Noé, pelo contrário, tanto que desembarcou da Arca com os animais, a primeira coisa que fez foi levantar altar a Deus, e sacrificar-lhe as vítimas que já trazia separadas, e sem parelha, em ação de graças por todos. E como premiou Deus este agradecimento de Noé? Com a perpétua conservação de seus descendentes, e promessa de não haver mais dilúvio, confirmada com o arco que ordinariamente vemos nas nuvens, quando começam os primeiros orvalhos da chuva. De sorte que nas Escrituras e nas nuvens deixou Deus dois perpétuos monumentos, um do castigo da ingratidão, outro do prêmio do agradecimento: nas Escrituras, o dilúvio, como sepultura de todos os filhos de Adão, e por epitáfio nela: Delebo hominem, quem creavi[23]; nas nuvens, a conservação e seguro de todos os filhos de Noé, como arco triunfal do agradecimento, e nele por inscrição: Nequaquam ultra maledicam terrae propter homines[24]. — Não houve jamais, nem pode haver tal triunfo, como o daquela inscrição em um arco levantado entre o céu e a terra, porque nele triunfou, e está sempre triunfando o agradecimento. De quem? Não só da onipotência, senão também do alvedrio divino. Da Onipotência, porque não pode Deus fazer o contrário; e do alvedrio, porque nem o pode querer, ainda que tenha grandes razões para isso.
Em suma, que os tesouros da beneficência divina têm duas chaves: uma de ouro, que os abre, outra de ferro, que os fecha. A de ouro, que os abre, é o agradecimento, que os alcança, aumenta e conserva; a de ferro, que os fecha, é a ingratidão, que, depois de recebidos, os corrompe, destrói e perde. Assim perdeu Adão, por ingrato, e afogou no dilúvio a geração de todos seus descendentes; e assim conservou Noé, por agradecido, a sua, e a conserva, e há de conservar para sempre. Não quisera agora fazer reflexão sobre nós, mas é obrigação de todo este discurso. Lembremo-nos do agradecimento do segundo pai do mundo, e não nos esqueçamos da ingratidão do primeiro. Estas mercês, de que damos as graças à divina misericórdia, já sabemos como as havemos de conservar. Mas temamos também como se podem perder. Faz horror à imaginação, e treme de o pronunciar a língua. No primeiro príncipe que Deus nos concedeu, e tão brevemente levou para si, nos antecipou o exemplo do que ele não permita, e pode suceder a todos os que nos tem dado e pode dar, ainda que sejam muitos mais. Justo Lípsio, com advertência singular entre todos os reinos e reis do mundo, põe diante dos olhos a todos, como tremendo espelho de desengano, o reino de Portugal, e o mais feliz de todos os seus reis, el-rei D. Manuel. Refere os seus três casamentos, e o grande número de filhos e netos, com que deixou tão fundada — diz — e estabelecida a sucessão da coroa, que não só entrada, mas nem resquício algum havia, por onde outra família pudesse aspirar a ela; e, contudo, conclui assim: Viginti duo erant, qui Philippum regem anteibant, et successione legitime arcebant; et tamen quo fata vocabant, venit, et successit. Praemortui omnes illi sunt: qui, nisi ut unum facerent totius Hispaniae caput? — Tinha el-rei D. Manuel vinte e dois herdeiros, os quais precediam a el-rei Filipe li de Castela, e o excluíam da sucessão; mas ele enfim sucedeu, porque todos os vinte e dois morreram antes, e nele vivo ficou toda Espanha debaixo de uma só cabeça.
Ecce haereditas Domini, filii; merces, fructus ventris[25]. — Dentro nestas mesmas palavras nos está dando vozes o desengano do que é a mortalidade humana, posto que fecunda. Ecce: eis-aqui, Portugal, em ti o maior exemplo. Haereditas: esta é a herdade que se recuperou, porque se perdeu. Domini: Este é o mesmo Senhor que a tornou a dar, porque a tinha tirado. Filii: estes são os filhos do mesmo tronco, que, sendo sete vezes mais do que hoje temos, a não puderam conservar, Mas bom ânimo, porque a conservação está na nossa mão, se a quisermos merecer. À nossa gratidão no presente, à nossa memória do passado, e às nossas vidas e obras para o futuro, tem Deus prometido por prêmio os frutos da mesma fecundidade: Merces, fructus ventris.
[1] Eis aqui a herança do Senhor, os filhos; seu galardão, o fruto do ventre (SI. 126, 3).
[2] Não o fez assim a toda a outra nação (SI. 147, 20).
[3] Olhou o Senhor para Abel, e para os seus dons; para Caim porém, e para os seus dons não olhou (Gên. 4, 4 s).
[4] Escolheu a tribo de Judá, e não escolheu a tribo de Efraim (SI. 77, 67 s).
[5] Em nenhum lugar tomou aos anjos, mas tomou a descendência de Abraão (Hebr. 2,16).
[6] Eis aqui a herança do Senhor, os filhos; seu galardão, o fruto do ventre (SI. 126, 3).
[7] Se tu te dignares de olhar, e se deres à tua escrava um filho varão (1 Rs. 1, 11).
[8] Apascenta as minhas ovelhas (Jo. 21, 17).
[9] Chuva liberal porás à parte, Deus, para a tua herança (SI. 67,10).
[10] E os fez andar errando fora do caminho, e por onde o não havia (SI. 106, 40).
[11] Visitou o Senhor a Ana, ela concebeu, e pariu três filhos (1 Rs. 2, 21).
[12] Hão de ter respeito a meu filho (Mt. 21, 37).
[13] Este é o herdeiro; vinde, materno-lo, e ficaremos senhores da herança (Mt. 21, 38).
[14] O irmão que é ajudado por seu irmão é como urna cidade forte (Prov. 18, 19).
[15] Seu irmão morreu, e ele ficou só (Gên. 42, 38).
[16] Do céu se pelejou (h. 5, 20).
[17] As estrelas persistindo na sua ordem (ibid.).
[18] Raquel chorando a seus filhos (Mt. 2, 18).
[19] Naquela mesma comarca havia uns pastores (Lc. 2, 8).
[20] Porque hoje vos nasceu (ibid. 11).
[21] Os rios tornam ao mesmo lugar donde saem (Ecl. 1, 7).
[22] Esperei que ela desse boas uvas, em lugar das labruscas que só produziu (Is. 5, 4).
[23] Destruirei o homem que criei (Gên. 6, 7).
[24] Não amaldiçoarei mais a terra por causa dos homens (Gên. 8, 21).
[25] Eis aqui a herança do Senhor, os filhos; seu galardão, o fruto do ventre (SI. 126, 3).