LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão gratulatório a S. Francisco Xavier, pelo nascimento do quarto filho varão,
que a devoção da Rainha nossa Senhora confessa dever a seu celestial patrocínio, do Padre Vieira
Edição de Referência:
Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.
SERMÃO GRATULATÓRIO A S. FRANCISCO XAVIER,
Pelo nascimento do quarto filão varão, que a devoção da Rainha nossa Senhora confessa dever a seu celestial patrocínio.
Quartus frater[1].
§ I
A significação das palavras do tema. Os números, sobrenomes dos reis. O que encerra o número ou sobrenome de quarto. O peso do nome de Jesus e de Maria. O nome e sobrenome do Redentor do mundo, e o nome e sobrenome do redentor e restaurador de Portugal, D. João, o Quarto. Por que silenciou o autor, no sermão antecedente, o nome de S. Francisco Xavier a cuja poderosíssima intercessão atribui a rainha todas as suas felicidades? A intercessão de Bersabé na coroação de Salomão. Assunto do sermão: as graças da presente mercê, alcançada de Deus por S. Francisco Xavier mais se devem ao mesmo Xavier que a Deus.
Estreito mapa para tão universal alegria! Pequeno tema para tão grande felicidade! Feliz e alegre a monarquia de Portugal, com o novo nascimento do quarto infante; felizes e alegres Suas Majestades, com o novo aumento do quarto filho; felizes e alegres Suas Altezas com a nova companhia do quarto irmão: Quartus frater. — Toda esta significação se encerra nestas poucas palavras. E significa mais alguma outra felicidade e alegria — ou dentro ou fora deste mundo — o mesmo número ou sobrenome de quarto? Sim, porque os números são os sobrenomes dos reis. E el-rei D. João, o Quarto, de gloriosa e imortal memória, que está no céu, já tinha o nome de D. João em um neto, o príncipe nosso senhor, que Deus guarde; e agora, com o novo nascimento do quarto infante, se lhe inteirou vivamente em ambos o nome e sobrenome de D. João, o Quarto.
Não requeria menos monte que dois Atlantes o peso de tão grande nome, Do peso do nome de Maria, posto aos ombros da Madalena, disse grave e elegantemente S. Pedro Crisólogo: Veniat Maria, venial materni nominis bajula[2]. — E, se passarmos às campanhas de Amalec, acharemos com maior exemplo, no soberano filho desta mesma mãe, repartido o seu nome e sobrenome entre os dois maiores heróis daquela idade, Josué e Moisés. O nome e sobrenome do Redentor do mundo, depois de o remir na cruz, foi Jesus Crucificado. Assim o nomearam os anjos, assim S. Paulo. Estava pois na campanha de Amalec Josué, pelejando na testa do exército, e Moisés, no cume do monte, com os braços abertos em forma de cruz orando, e significavam um e outro — como sentem comumente os santos padres — Josué, no seu nome, o nome de Jesus, e Moisés, com os braços em cruz, o sobrenome de Crucificado. E por que não representavam ambas as figuras ou só Josué ou só Moisés? Porque nenhum deles, posto que tão grandes heróis, era suficiente para sustentar só, senão divididos, o peso de tal nome e tal sobrenome: Quia neuter eorum par erat utrique substituendo cognomini — diz Orígenes. — Quase me não atrevo a aplicar a semelhança, e passá-la do nome e sobrenome do Redentor do mundo ao do redentor e restaurador de Portugal. Mas para um rei, a quem o mesmo Jesus, e na mesma cruz, não duvidou trespassar a sucessão do seu próprio império, facilmente me, perdoará a sua benignidade — na semelhança somente — a aplicação e divisão de todo o seu nome.
Agora, falando com os leitores do primeiro sermão de ação de graças, pelo mesmo nascimento do príncipe, cuja celebridade neste repito, duvido se me haverão perdoado passar nele em perpétuo silêncio, e não fazer menção alguma do intercessor, ou terceiro, que nos alcançou este quarto. É certo que talvez se deve mais o agradecimento à diligência de quem solicita, intercede e alcança as mercês, que à liberalidade, posto que soberana, de quem as faz. — Egredimini et videte, filiae Sion, regem Salomonem in diademate que coronavit ilium mater sua (Cânt. 3, 11): Saí às janelas, filhas de Jerusalém, e vede o rei Salomão coroado com o diadema de que o coroou sua mãe. — Quem coroou a Salomão, não há dúvida, como consta do texto sagrado, que foi seu pai Davi, o qual privou da coroa a Adonias, filho seu mais velho, e a deu a Salomão. Pois, se Davi foi o que lhe deu a coroa, por que diz o mesmo Salomão — cujas são estas palavras, no capítulo terceiro dos Cânticos — que o coroou não seu pai, senão sua mãe: In diademate quo coronavit ilium mater sua? — Porque, ainda que Davi foi o que coroou a Salomão, e lhe deu a investidura do reino, as diligências, os empenhos, e a intercessão de Bersabé, sua mãe, como tão valida e amada do mesmo Davi, foi a que lhe impetrou e conseguiu a coroa. E julgou o juízo de Salomão no tal caso, que mais devia a coroa à intercessão de sua mãe que à liberalidade de seu pai.
Toda esta demonstração não fere a outrem, senão a mim, pelo total silêncio já confessado, com que no sermão de ação de graças pelo felicíssimo nascimento do novo e quarto infante, nem uma só palavra falei em S. Francisco Xavier. Em S. Francisco Xavier, tomo a dizer, aquele grande oráculo e patrono singular da Rainha, nossa Senhora, a cuja poderosíssima intercessão atribui Sua Majestade todas as suas e nossas felicidades, e muito particularmente na sucessão, dantes tão suspirada, e agora tão multiplicada de príncipes naturais. Pois, se neste — que não quero chamar último, senão quarto príncipe — com prodigiosa fecundidade de todos sucessivamente varões, devemos novas e maiores graças, como no sermão próprio delas, e discorrendo por todas, em nenhuma achei lugar em que pôr a Xavier? Não foi descuido, ou desatenção minha, senão grandeza sua. Uma personagem tão grande não cabe em partes. Por isso me resolvi a fazer novo sermão, que fosse todo seu, e é este.
Mas, segundo a sentença que propus de Salomão, dela se segue uma terrível conseqüência. Salomão, no seu caso, julgou que mais devia a coroa à intercessão de sua mãe, que lha conseguiu, que à liberalidade de seu pai, que lha deu: logo, diremos nós no nosso caso que as graças da presente mercê, alcançada de Deus por S. Francisco Xavier, mais se devem ao mesmo Xavier que a Deus? A resposta desta dúvida demanda tanto fundo, que me não atrevo a embarcar nela sem pedir
primeiro a graça. Ave Maria.
§ II
Os beneficios que se devem a Deus, e nada aos homens, e os benefícios que se devem maior aos homens que a Deus. A quem devia mais o povo de Israel a sua conservação: a Deus ou a Moisés? Por que a graça do nascimento do novo príncipe, não só se deve mais a Xavier que a Deus, senão só a Xavier O milagre do paralítico. O notável recado de el-rei Ezequias ao profeta Isaías. Que diferença há de meu Deus a Deus meu? Razões por que o que Deus concedeu ao grande José não o podia negar ao maior jesuíta.
Há benefícios de Deus em que todas as graças se devem a Deus, e nada aos homens. E há benefícios, também divinos, em que parece que as graças mais se devem aos homens que a Deus, Vamos por partes.
Os benefícios do primeiro gênero são aqueles que Deus faz por amor de si mesmo, como refere por boca de Isaías: Propter me, propter me faciam[3]. — E então faz Deus estes benefícios por amor de si mesmo, diz S. Dionísio Areopagita, quando ele é o autor, e ele o motivo, sem haver outrem fora de si que o mova ou provoque a isso: Quando ipse sui ipsius et sibi ipsi provocator et motor est. — Tal foi o benefício da criação do mundo, antes do qual não havia homem nem anjo que lhe pudesse pedir ou mover a que o criasse. Assim que todas as graças devidas a Deus por tão grande e universal benefício, são pura e meramente suas, sem haver nem poder haver quem tivesse parte nelas.
Os benefícios do segundo gênero são aqueles que Deus faz por intercessão e rogos de outrem, principalmente quando o mesmo Deus está deliberado, e empenhada sua providência ou justiça a fazer e executar o contrário. Pelo pecado da adoração do bezerro no deserto, provocado Deus da rebelião e idolatria daquele ingrato povo, tão poucos dias depois de o ter libertado do cativeiro do Egito com tantos prodígios, deliberou a sua justiça, a sua ira e o seu furor, como diz o texto, de o extinguir totalmente e sepultar no mesmo deserto. Enfim lhe perdoou Deus pelas orações e instâncias de Moisés; e dependeu tanto destas orações e da força delas a conservação do povo, diz Davi, que, tendo Deus já aberta a brecha nas muralhas, para assolação de todos, se a fortíssima resistência de Moisés se não opusera na mesma brecha à defensa, sem dúvida seria todo assolado e destruído: Et dixit ut disperderet eos, si non Moyses, electus ejus, stetisset in confractione in conspectu ejus[4]. — E no preciso destas circunstâncias, parece que as graças desta absolvição mais se devem aos fortíssimos embargos do advogado, que à sentença revogada do juiz, tão justa e tão justificada na causa, que, se não fora por eles, sem dúvida e sem remédio se havia de executar: Si non Moyses stetisset in confractione. — Note-se muito aquele si non. De maneira que, se Moisés não resistisse tão fortemente a Deus, sem dúvida havia Deus de destruir o povo. Logo, as graças de tamanho benefício mais se devem à resistência de Moisés que à desistência de Deus. A conseqüência não é menos que de Aristóteles: Propter quod unumquodque tale, et illud magis. — Quem foi aquele, por amor de quem perdoou Deus ao povo? Moisés. Moisés foi o propter quod, logo a ele lhe pertence o mais: et illud magis.
Já nesta conseqüência forçosa, e não forçada, segundo a estimação humana, ninguém estranhará dizer-se que as presentes graças-como se inferia-sejam mais devidas a Xavier que a Deus. Mas eu não me contento com esta resposta. E, restituindo a questão ao mesmo caso e nascimento do quarto irmão, novamente acrescentado aos nossos príncipes, mercê que a devoção da Rainha, nossa senhora, e o aplauso de todo o reino reconhece recebida do poderoso patrocínio do santo, por antonomásia seu, não duvido afirmar constantemente que as graças deste tão repetido favor, não só se devem a Xavier mais que a Deus, senão todas a Xavier. E por quê? Porque, dando todas as graças a Xavier, damos a César o que é de César, e não negamos nem tiramos a Deus o que é de Deus. E se não, vamos ao caso, e vejamos com que entrou nele Deus, e com que entrou Xavier. Deus entrou com dar os poderes a Xavier; Xavier entrou com aplicar a virtude dos mesmos poderes a nosso favor e benefício. Logo, a Deus, que é glorificado em seus santos: Gloriosus Deus in sanctis suis — não se lhe nega nem se lhe tira nada do que lhe pertence, que é toda a glória da liberalidade e magnificência com que deu ao seu santo os seus poderes. Prova? Sim, e em um dos maiores milagres de Cristo, Redentor nosso.
Estava o Senhor no concurso de uma província inteira, dentro em uma casa particular, e, não podendo romper pela multidão, nem entrar pela porta quatro homens que levavam um paralítico no seu leito, subiram por cima dos telhados, e, feita uma abertura capaz, por ela e por cordas desceram e puseram diante do divino Médico o enfermo, ou quase morto, sem sentido nem movimento, e o Senhor com duas palavras lhe restituiu a vida, a saúde, e as forças, tão inteiramente, que por seu pé, o que tinha vindo em oito, e com o mesmo leito às costas, foi admiração e pasmo aos que o viram, que eram todos. Mas esses, assim admirados e pasmados, que disseram ou fizeram? Glorificaverunt Deum, qui dedit potestatem talem hominibus (Mt. 9, 8): Glorificaram a Deus por haver dado tal poder aos homens. — De sorte que glorificaram e deram a Deus a glória, não da obra e benefício milagroso, senão de ter dado os poderes ao homem que a fez, tendo a Cristo por puro homem, como a palavra hominibus significa. Assim que tudo o que pertencia a Deus, era a glória de ter dado os seus poderes, e tais poderes: Qui dedit potestatem talem hominibus. — E por que não deram também as graças a Deus? Porque essas pertenciam ao homem obrador do milagre e benefício, assim como nós as devemos dar todas a Xavier.
O nascer, como disse Salomão de si, é igual nos príncipes, e nos que o não são; e o nascimento não é só milagre, senão milagre semelhante ao que acabamos de referir, porque, ainda que tiveram parte nele os homens, não o puderam conseguir senão das telhas acima. No nascimento, pois, do nosso príncipe, em que pleiteamos as graças entre Xavier e Deus, bastava a distinção de Deus ao homem, dos poderes à obra, e das graças à glória, para que, dando toda a glória a Deus, e todas as graças a Xavier, Xavier pacificamente, e sem questão, ficasse logrando a preeminência deste grande e novo direito. Mas não é este ainda o fundo da resposta, a que eu disse no princípio me temia arriscar. Qual é, pois, ou pode ser, sobre toda a novidade do que está dito? É que não só obrou Xavier na mercê que nos fez, com os poderes de Deus como de Deus, senão com os poderes e com o mesmo Deus, tudo como seu, e por isso com maior e absoluto direito a todas as graças. Vamos à Escritura, e abramos nela um novo e grande reparo.
Sitiado em Jerusalém el-rei Ezequias por um exército dos assírios poderosíssimo, recebeu uma embaixada do rei, que era Senaqueribe, na qual lhe persuadia ou mandava que se entregasse, oferecendo condições, não só indecentes à majestade real, mas blasfemas contra a divina. E como o estado ou aperto da cidade era alheio de toda a esperança de a poder defender, mandou Ezequias as mesmas condições por escrito ao profeta Isaías, com um recado, no qual lhe rogava muito orasse por ele ao Deus seu: Si quo modo audiat Dominus Deus tuus[5]. — Esta palavra Deus tuus: Deus vosso — a qual duas vezes se repete no mesmo recado, é muito enfática, porque Ezequias não era gentio, senão fiel e muito pio, e adorava o mesmo Deus verdadeiro de Isaías, a quem também ficava fazendo orações. Pois, se o Deus do profeta e o Deus do rei era o mesmo, por que não diz Ezequias orai a Deus, ou orai ao nosso Deus, senão ao Deus vosso: Deus tuus? — Porque Deus, ainda que o mesmo, por muito diferente modo era Deus do profeta que Deus do rei. Do rei era seu Deus, do profeta era Deus seu. E que diferença há de Deus seu a seu Deus? Muito grande. Santo Agostinho dizia: O Deus! utinam possem dicere meus! Ó Deus! e que ditoso seria eu, se ao nome de Deus pudesse acrescentar o possessivo meus! — Meu Deus quer dizer que Deus me possui a mim; Deus meu quer dizer que eu o possuo a ele, Meu Deus quer dizer que Deus me tem sujeito a seu mandar; Deus meu quer dizer que eu o tenho sujeito a meu querer. Quem isto pode dizer, verdadeiramente possui tão inteiramente a Deus, que pode usar dele como de coisa sua. Por isso o rei chamou ao Deus de Isaías Deus seu: Deus tuus — e por isso Isaías — em admirável prova de Deus ser seu — sem fazer oração a Deus, respondeu de repente aos embaixadores do rei que seria vencedor, e o modo com que o seria: Venerunt servi regis ad Isaiam, et dixit ad eos Isaías[6]. — Entre a embaixada do rei e a resposta do profeta não houve meio, como que ele usasse da vontade e da onipotência de Deus, sem a consultar, como sua.
Deus é Deus de todos os homens; mas nem todos os homens são os seus, senão aqueles que muito intimamente ama e estima. Tais eram os apóstolos, dos quais disse o evangelista: Cum dilexisset suos[7]. — Do mesmo modo todos os homens são de Deus, mas Deus não é seu de todos, senão daqueles que, subidos ao supremo grau do amor e da união são já possuidores nesta vida do mesmo Deus. Tal era Xavier, como ele mesmo confessava nos seus colóquios com Deus. Quid mihi est in caelo, et a te quid volui super terram (SI. 72, 25)? Porventura, Deus meu, ou na terra ou no céu, quero eu ou tenho outra coisa senão a vós? Pars mea — id est, possessio mea — Deus, in aeternum (ibid. 26): Todos os meus bens sois vós, nem possuo, ou tenho de meu outra coisa. — Por esta alienação de tudo o mais possuía e dominava Xavier a Deus, e a tudo o que é de Deus, como sujeito a ele, e propriamente seu. Por isso mandava os mares e os ventos; por isso ressuscitava os mortos; por isso lhe eram presentes os futuros; por isso parava o sol e os orbes celestes. E ninguém me estranhe a palavra dominava, porque, depois que Deus permitiu à pena dos seus cronistas que dissessem dele: Obediente Domino voci hominis[8] — o que Deus concedeu ao grande Josué, não o podia negar ao maior jesuíta. E porque Xavier, em todas as mercês maravilhosas que de sua mão recebe o mundo, não só obrava como intercessor, senão como Senhor, ou certamente possuidor de tudo o que é de Deus, e do mesmo Deus mais seu que tudo, não há dúvida que na glorificação da mercê presente, deixada a Deus toda a glória, a ele se devam todas as graças.
§ III
Quão devidas são a Francisco Xavier todas as graças pelo nascimento do novo infante. As dificuldades do quarto filho. Os termos ou intervalos da providência divina na geração dos filhos. A esterilidade natural que aos terceiros partos se segue, confirmada no céu e nos elementos. A SSma. Trindade, e a razão fundamental do limite posto por Deus à fecundidade do número ou parto terceiro. Os trabalhos e perigos de Jafet, terceiro filho de Noé, e os sofrimentos da rainha de Portugal depois do terceiro parto. A tempestade do lago de Genezaré entre a terceira e quarta vigia.
Já sabemos como devemos gratificar a S. Francisco Xavier a mercê presente. Mas, para que saibamos quão devidas lhe são todas as graças pelo nascimento do novo infante, é necessário que comecemos — o que porventura se não considera — desde o nascimento do terceiro até chegar ao quarto: Quartus frater.
Segundo os termos ou intervalos da providência divina, é coisa notável, e notada na História Sagrada, ou pararem os partos no terceiro filho, ou degenerarem depois deles as gerações, ou ser muito dificultosa a passagem para chegar ao quarto. Naquela Arca, em que Deus, afogado no dilúvio o mundo, guardou para a conservação e continuação dele a propagação do gênero humano, não houve mais que três filhos, Sem, Cam, e Jafet. Na fecundidade de Ana, com quem Deus se mostrou tão liberal, posto que milagrosa, que diz o texto sagrado? Visitavit Dominus Annam, et concepit tres filios et duas filias (1 Rs. 2, 21): Visitou Deus a Ana, e concebeu e pariu três filhos e duas filhas. — De maneira que os filhos varões foram somente três; e o sexo masculino, que ela tinha pedido: Si dederis servae tuae sexum virilem[9] — logo parou no terceiro parto, e degenerou ao feminino. E, posto que a providência divina vigia sobre os reinos e reis com maior cuidado: Sunt maxima curae regna Deo — não deixa de se observar neles esta mesma regra. De Judas, aquele primeiro rei em que se continuou a série dos que precederam a Davi, e depois dele até Cristo, diz o texto sagrado que lhe nasceram de sua mulher três filhos, e nota que, nascido o terceiro, parou nela a fecundidade, e não passou ao quarto: Tertium quoque peperit, quo nato, parere ultra cessavit[10]. — Até nos mesmos elementos, sendo eles quatro, deixou Deus como estabelecida a mesma lei. O primeiro, que é a terra, fecundo em todos os gêneros das vidas, também três: vegetativa, sensitiva e racional; o segundo, que é a água, fecundo nos peixes; o terceiro, que é o ar, fecundo nas aves; mas o quarto, que é o fogo, totalmente estéril e infecundo.
Só com o céu parece que dispensou o Criador, aparecendo no quarto dia da criação, e no céu também quarto, o sol fonte da luz, de quem a recebem os outros astros para o governo universal do mundo e dos tempos. Mas tão fora esteve de ser isto dispensação daquela lei, ou exceção daquela regra, que antes foi a maior confirmação dela. Por quê? Porque, precedendo no terceiro dia a maior de todas as fecundidades, que é a das plantas, tudo o que no seguinte apareceu no céu não foi produzido por ele, ou parto seu, senão uns fragmentos ou pedaços da luz criada no primeiro dia, os quais foram postos no céu, não como filhos próprios e naturais, senão alheios e peregrinos; e por isso não disse Deus ao céu germinet, ou producat. – O que diz o texto é: Posuit in firmamento caeli (Gên. 1, 17): que pôs no firmamento do céu o que estava já produzido. Com que no mesmo firmamento ficou perpetuada a esterilidade natural que aos terceiros partos se segue, nem com o céu dispensada.
E, se quisermos inquirir curiosamente a razão fundamental deste limite posto por Deus à fecundidade do número, ou parto terceiro, posto que não sempre observado, senão em casos maiores, acharemos que a causa mais conatural de tão notável providência não está menos radicada que na essência do supremo exemplar e eficiente de todas as coisas criadas, Deus enquanto trino. Diz Aristóteles, e com ele Santo Tomás, que o modo de obrar segue naturalmente o modo de ser. E qual é o modo de ser da virtude divina em si mesma, ou, como falam os teólogos, ad intra? A primeira pessoa, que é o Padre, é fecunda, e gera o Filho; a segunda, que é o Filho, é também fecunda, e, juntamente com o Padre, produz o Espírito Santo; mas no Espírito Santo, que é a terceira, pára e cessa de tal sorte a divina fecundidade, posto que infinita e imensa, que não pode gerar nem produzir outra que seja a quarta. Daqui se infere que, se a providência e onipotência divina, obrando fora de si, e ad extra, conservasse no modo de obrar a proporção do modo de ser, toda a natureza criada ficaria totalmente estéril no parto terceiro, sem jamais passar ao quarto; mas como à propagação do mundo era necessária esta passagem, para que nela desse a necessidade alguma satisfação à natureza, ou lhe pagasse algum tributo, talvez entre um e outro extremo, não só estende a mesma providência os intervalos do tempo, mas os carrega de tais trabalhos e perigos, que só por mercê de Deus quase milagrosa se pode escapar do meio deles, e, depois de terceiro parto, chegar ao quarto.
Dos três filhos de Noé, que dissemos, o terceiro era Jafet, de que nós descendemos. E como Deus os tinha guardados na Arca, e debaixo de chave, para a propagação do gênero humano, seguro estava nos segredos da sua providência que, sendo ele o terceiro filho, lhe havia de suceder o quarto e os demais. Mas de que modo, e quando? Por meio dos trabalhos, perigos e horrores do dilúvio, depois de flutuar muitos meses metido vivo, e como morto, naquele ataúde escuro, batido por todas as partes das montanhas das ondas, sem leme, sem farol, sem piloto, até que, por mercê do céu, chegou a salvamento, e tomou porto em terra.
E quem, à vista deste espelho, se não lembra ainda agora com horror do que padeceu a saúde da rainha, nossa senhora, quase naufragaste no largo intervalo do terceiro ao quarto parto, na nova qualidade do mal, no rigor e freqüência dos sintomas, no descaimento das forças, no lento e habituado do calor, de cuja espécie só se duvidava, e, sobretudo, na desconfiança sempre mal declarada dos médicos, aonde o perigo ameaça às supremas cabeças? O amor, depois da perda, vê-se na dor, antes dela no receio. E tal era a tristeza e desconsolação de todo o reino no receio daquela adorada e arriscada vida, em cuja respiração se sustentava a de todos. Do reino passavam estes lastimosos ecos às mais remotas partes da monarquia, onde muito antes tinha levado ou trazido a fama a das virtudes pessoais, reais e heróicas, com que todos estes vassalos se gloriavam de o ser de tão soberana senhora. E assim como na tempestade da Arca se aguardavam com suspensão as novas que traria o corvo ou a pomba, assim, suspensos nós entre temor e esperança, em aparecendo ao longe navio de Portugal, subidos às torres mais altas, com os instrumentos que acrescentam a vista, palpitando entretanto os corações, vigiávamos se trazia bandeira, e de que cor: o temor receando que fosse da cor do corvo, para se cobrir de luto e de tristeza; e a esperança, confiando em Deus que fosse a de pomba, com o raminho verde da oliveira, para se vestir de gala e alegria.
Mas, passando da tempestade da Arca à da barquinha dos apóstolos na tormenta do lago de Genezaré, também aqui, para maior propriedade, era a passagem entre os dois últimos quartos náuticos e militares, por outro nome vigias, isto é, entre o terceiro e o quarto: circa quartam vigiliam[11] — diz S. Marcos. — Estavam pois os apóstolos no sumo da aflição, como aqueles a quem mais doía o trabalho e o perigo; e porque a tempestade, por ser da sua mais particularmente Senhora, era também cordialmente mais sua. Oravam instantemente ao céu, mas cuidavam que Deus os não ouvia, e que passava de largo: Volebat praeterire eos[12]. — E, sendo que nesta ocasião até o maior de todos os apóstolos duvidou e foi repreendido de pouca fé: Modicae lidei, quare dubitasti[13]? — só a fé, que sua majestade tinha no seu santo nunca vacilou, e sempre esteve constante. É verdade que também ele por algum tempo parece que se ausentou e escondeu; mas, enfim, a perseverança da mesma fé o descobriu e achou tão propício, como se alegre e risonho lhe respondera com aquelas palavras divinas, e por isso suas: Qui me invenerit inveniet vitam, et hauriet salutem[14]. — Duas coisas lhe trouxe o seu santo, quando, enferma, só parece que necessitava de uma, que era a saúde; mas na saúde que lhe trouxe para si, lhe trouxe também a vida para o novo filho. A saúde fácil, como bebida: hauriet salutem — e a vida difícil, como achada: inveniet vitam — e tão difícil, como até agora ponderamos, havendo de ser esse filho o quarto: Quartus frater.
§ IV
Os três privilégios do casamento do infante. O parto de Deus, segundo as palavras de Isaías. Diferenças entre parir e parturir A certeza de um filho varão. O prodigioso nascimento no dia quinze de março. Que dizer do nascimento de um menino, assistido não só com a mão do Senhor, senão com o mesmo Senhor duas vezes todo?
Assim o provou o sucesso, em cujas circunstâncias mostrou bem Xavier que ele era o que obrava, mas com os poderes, não só de Deus, mas do Deus seu. E começando pela do felicíssimo parto, foi coisa notável que primeiro se soube publicamente que era nascido o novo príncipe, do que precedesse notícia alguma de que estava para nascer, e se oferecessem a Deus as orações tão necessárias naquela hora, sinal manifesto de entrar ali o concurso dos poderes divinos. Conta ou revela Isaías, como quem nos segredos de Deus é o maior profeta dos maiores, que, falando uma vez o mesmo Deus consigo, disse desta maneira: Numquid ego, qui alios parere fatio, ipse non pariam (Is. 66, 9)? Basta que, sendo eu o autor da fecundidade, e que faço sair à luz todos os que nascem, não terei também um parto que seja propriamente meu? — Ora, não há de ser assim. Primeira, ou ultimamente, o nascido do meu parto será um filho varão, e o parto tão apressado, tão fácil e tão feliz, que se diga dele: Antes de parturir pariu: Ante quam parturiret, peperit; ante quam veniret partus ejus, peperit masculum (ibid. 7). — A nossa língua não tem palavra que responda ao parturir, e em dia tão festivo permita-se-me ludere in verbis[15] — e dizer que parturir é rir no parto. Tal é o parto da aurora, mãe do sol, o qual nasce alegrando o mundo, e ela o pare rindo. E tal foi o do nosso belo infante ao rir, não só de uma, mas de duas auroras, uma no céu, outra na terra, se não quisermos acrescentar a terceira do Oriente, festejando as maravilhas do seu apóstolo. Não podia ele obrar senão como Deus, pois exercitava os seus poderes. Só o mundo mistura o riso com dor: Risus dolore miscebitur[16]. — As mercês de Deus são puras, e alheias de toda a tristeza, e mais em casos tão alegres como o de nascer. Nasceu Eva de Adão, e por tal modo, que parecia inevitável a dor, havendo ele de sofrer que se lhe arrancasse uma costa do lado. Mas, como a mão de Deus era a que obrava aquele parto — que assim lhe chama Santo Agostinho — foi com tal tento e recato, que primeiro adormeceu a Adão com um sono tão profundo, que nem por sonhos pudesse sentir dor: Immisit soporem in Adam: tulit unam de costis ejus[17].
Assim obra Deus parecendo-se consigo, e assim Xavier parecendo-se com Deus: Deus no parto, que chamamos seu, evitando totalmente a dor; e Xavier no que também atribuímos a seus poderes, tirando-lhe o tempo das dores. Houve em um e outro parto dois privilégios notáveis. O primeiro, na dispensação de uma lei; o segundo, na moderação e reparo de outra. Na sentença da primeira mulher condenou-a Deus a ela e a todas a duas penas: uma, que parissem os filhos com dor: In dobre parles filios[18]- outra, que estivessem sujeitas ao varão: Et sub viri potestate eris[19]. — E como dispensou Deus a primeira, e moderou e reparou a segunda? A primeira dispensou-a, fazendo que o parto, que chamou seu, fosse sem dor: Antequam parturiret, peperit[20]. — A segunda moderou-a e reparou-a, fazendo que o filho fosse varão: Peperit masculum[21] — porque no tal caso já o varão fica sujeito e debaixo do poder da mulher, tendo obrigação de a obedecer e reverenciar como mãe.
Além destes dois privilégios, houve no nascimento do nosso infante outro terceiro. E foi que as mães antes do parto não sabem se há de ser filho ou filha, e a rainha, nossa Senhora, por instinto ou inspiração do seu santo, soube certamente que havia de ser varão: masculum. — Assim consta que o declarou Sua Majestade à sereníssima rainha da Grã-Bretanha, afirmando que lhe havia de dar afilhado, e não afilhada. E para mim não foi menor prova desta mesma presciência o voto ou devoto propósito, com que Sua Majestade determinou, que tanto que o que trazia em suas entranhas se pudesse pôr em pé, o havia de vestir do hábito de S. Francisco Xavier. E daqui se infere que supunha a rainha, nossa Senhora, que havia de ser filho, e não filha? Sim. Porque, se o hábito houvesse de ser de Santo Agostinho, S. Bernardo, S. Domingos, ou S. Francisco, bem o podia vestir filha, como o vestem as filhas destes santos patriarcas; mas havendo de ser de Xavier e da Companhia, não o podia vestir, senão sendo filho: Peperit masculum.
A outra circunstância deste prodigioso nascimento foi ser no dia de quinze de março, e na madrugada dele. Este dia, como consta do capítulo vinte e três do Levítico, era o da mais solene festa, assim pela memória e agradecimento da liberdade particular do cativeiro do Egito, como pela significação da universal e futura do cativeiro do gênero humano e redenção do mundo. As palavras do Levítico são: Mense primo, quarta decima die mensis ad vesperum. Phase Domini est: et quintadecima die mensis hujus, solemnitas azymorum Domini est[22]. — O primeiro mês, que se chamava Nisã, responde ao nosso março, e os dias naturais naquele tempo começavam ao pôr-do-sol no princípio da noite, e acabavam ao pôr-do-sol outra vez no fim do dia, como Deus os tinha instituído no primeiro dia da criação: Factum est vespere et mane, dies unus[23] . — Daqui se segue que o nosso infante, nascendo pela madrugada, nasceu quase ao meio-dia daquele dia. E, segundo as duas figuras do cordeiro pascal e pão asmo, saiu à luz deste mundo entre os dois maiores prodígios e mistérios da divindade humanada, que foram a instituição do Santíssimo Sacramento, e a morte de Cristo na cruz. Porque o primeiro foi instituído à segunda hora da noite, que foi a da ceia; e o segundo sucedeu, conforme o nosso contar, às três da tarde do dia, que foi a da morte, Computando agora estas horas que passaram no intervalo de um mistério a outro, consta pontualmente que foram dezenove: as nove antecedentes ao nascimento do infante, e as dez seguintes a ele, Mas com que propriedade no mesmo cômputo? Verdadeiramente admirável. Como se no número das mesmas horas nos dissera S. Francisco Xavier, e nos apontara com o dedo, nas nove, os nove dias da sua novena, e na décima, os dez dias das suas sextas-feiras; e em ambos a hora de cada um deles, em que Sua Majestade, com tão constante e confiada devoção e fé — inda contra o parecer dos médicos, nas mesmas vésperas do parto — mereceu ao seu santo o felicíssimo nascimento de tão estimada prenda.
Que figura nos parece agora que fará neste mundo um príncipe, que entra nele acompanhado de um e outro lado daquelas mesmas insígnias, com que no mesmo mês e no mesmo dia se representou o mesmo Cristo ao mundo antes de vir a ele, nos dois maiores troféus da sua onipotência, o seu Sacramento e a sua cruz? Tremo de considerar na matéria, porque, em qualquer aplicação dela, quase periga a reverência de tão soberanos mistérios. No presépio nasce Cristo humilde entre dois animais, porque vinha a fazer de animais homens; e no Tabor aparece glorioso entre Moisés e Elias, que foram vistos em majestade: Visi in majestate (Lc. 9, 31). — Mas que majestade é a de Moisés comparada com a do Sacramento, e a de Elias com a da cruz? Se no nascimento do Batista diziam consigo os montanheses: Quis, putas, puer iste erit? Etenim manus Domini erat cum illo[24] — que diremos nós do nascimento deste prodigioso menino, assistido não só com a mão do Senhor, senão com o mesmo Senhor duas vezes todo?
§ V
O que se pode conjecturar com fundamento do lugar e número em que a providência colocou o novo infante na ordem sucessiva de seus irmãos. O que mais estimam os príncipes em si, e o que mais estima neles o mundo. Os exemplos das sagradas letras. Os frutos da quarta novidade, e o quarto infante de Portugal. Os efeitos do espírito de Elias em Eliseu, e do espírito de Xavier no novo príncipe. O mistério do bezerro de ouro, que surgiu por ocasião do nascimento de Eliseu, e os felicíssimos auspícios do novo infante para a evangelização da parte ainda idólatra da Ásia.
Mas não quero prognosticar mais grandezas, que as que cabem no meu tema, posto que tão pequeno: Quartus frater. — Atrever-me-ei a dizer deste quarto irmão o que disse Nabucodonosor, quando, além dos três que não quiseram adorar a sua estátua, viu passeando na fornalha, como em um jardim, e entre as labaredas, como entre flores, outro quarto, que lhe pareceu semelhante ao Filho de Deus: Et species quarti similis Filio Dei[25]? — Mas Nabucodonosor era gentio, e parecerá espécie de gentilidade dizer tanto. O que só farei é que, imitando os santos padres, os quais, fundados naquele grande texto: Omnia in mensura, et numero, et pondere disposuisti[26] — dos números em que a sabedoria e providência divina dispôs todas as coisas, coligem as inteligências e mistérios que nelas se encerram. Tomado, pois, o peso e a medida ao lugar e ao número em que a mesma providência colocou o novo infante na ordem sucessiva de seus irmãos: Quartus frater- vejamos do mesmo lugar e de mesmo número o que se pode e se deve conjecturar com fundamento.
O que mais estimam os príncipes em si, e o que mais estima e celebra neles o mundo, para cujo governo nasceram, é serem sábios na paz, e valorosos na guerra. E destas duas virtudes tão excelentes e verdadeiramente reais, nos oferece a História Sagrada dois famosos exemplos no mesmo nascimento de filhos, e no mesmo número de quartos. Salomão foi rei pacífico, e o mais sábio de todos os homens; e o mesma Salomão, filho de Davi, e quarto filho. Judas, tronco da tribo real, foi ele, e a mesma tribo, o mais valoroso e belicoso de todos; e o mesmo Judas, filho de Rúben, e filho quarto. Mas porque estas eminências, posto que tão altas — como as do Monte Apenino — se não levantam da terra, de nenhum modo se podem igualar ao que eu conjecturo e espero do nosso quarto príncipe, e do muito mais que S. Francisco Xavier nos promete nele. Já não me fundo em exemplos das sagradas letras, senão em lei expressa do mesmo Deus.
No capítulo 19 do Levítico, mandava Deus que os frutos da primeira, segunda e terceira novidade das árvores se não tocassem, e que todos no quarto ano, e na quarta novidade se oferecessem e sacrificassem a ele: Quarto autem anno omnis fructus sanctificabitur laudabilis Domino[27]. — A razão natural era porque só na quarta novidade estão os frutos perfeitos e sazonados, e por isso dignos de se oferecerem e sacrificarem ao Criador. E se Deus queria que se observasse esta lei na geração das árvores, quanto com maior direito nas árvores da geração? Estava a portuguesa no tronco real, não só estéril mas quase seca, e quando pelo peregrino enxerto, tão venturoso como augusto, depois do primeiro, segundo e terceiro fruto, se vê enriquecida do quarto, como pode deixar este de se consagrar todo a Deus? Ninguém cuide que prognostico às faixas do novo infante a púrpura eclesiástica, antes me lembro, e lembrados devemos estar, que junta esta púrpura com a real na nossa nação, lhe foi causa da sua mais lamentável fatalidade, Tertuliano chegou a dizer que nem os cristãos podiam ser Césares, nem os Césares cristãos: Si christiani Caesares esse possent, aut Caesares christiani. — Mas esse foi um dos erros em que caiu aquele profundo entendimento. O que eu quero dizer é que as virtudes do nosso novo príncipe serão tão cristãmente reais, e tão regiamente cristãs, que, não contente com a observância dos preceitos da lei de Cristo, remontando-se o seu espírito aos ápices altíssimos dos conselhos evangélicos, não só será um real e sublime exemplo da perfeição religiosa, mas consumadamente santo.
Estes foram os impulsos inspirados por S. Francisco Xavier, com que, desde as entranhas maternas, à semelhança do grande precursor, o determinou Sua Majestade vestir, não da púrpura em que eu falava, mas do hábito do mesmo apóstolo, para que com ele recebesse o mesmo espírito, e seja um Xavier segundo. Agora peço atenção. Pediu Eliseu a seu mestre Elias que nele se dobrasse o seu espírito: Fiat in me duplex spiritus tuus[28] — não porque pedisse ou desejasse que o espírito de Elias fosse dobradamente maior nele, Eliseu, mas para que, multiplicado o mesmo espírito, sendo singular em cada um, fosse dobrado em ambos. Respondeu Elias que pedia uma coisa muito dificultosa: Rem difficilem postulasti[29]-mas enfim lha concedeu, e o modo deste trespasso, ou multiplicação do mesmo espírito, foi lançar Elias o seu hábito sobre Eliseu, como mais expressamente declaram os Setenta Intérpretes: Et tulit melotem Eliae, quae ceciderat super eum. — E como o poder e vontade de Xavier está sempre certa para ouvir as orações e santos desejos da rainha, nossa Senhora, e nenhum pudesse ser mais santo que desejar ao filho o seu espírito, assim como Elias infundiu e dobrou o seu em Eliseu por meio dos seus vestidos, assim, com semelhante bênção do céu, quando a seu tempo o belíssimo infante, por conselho e inspiração do mesmo Xavier, se lhe presentar vestido da roupeta e barretinho, que lhe vestirão nascendo, não há dúvida que o santo — pagando também nisso a sua mãe — o enfeitará por dentro de todas as jóias e graças do seu apostólico espírito.
Mas não para aqui, e só nesta semelhança, o meu pensamento, antes o que nele parece dificultoso: Rem difficilem postulasti — se confirma admiravelmente pelo sucesso e escritura seguinte. Assim como disse S. Paulo; Adimpleo ea quae desunt passionum Christi in carne mea[30] — assim diz o Eclesiástico, no cap. 48, que as coisas que o espírito e zelo de Elias tinha intentado, e não pôde conseguir e executar, porque foi arrebatado ao céu, essas acabou depois, e tiveram seu complemento em Eliseu: Elias quidem in turbine tectus est, et in Eliseo completus est spiritus ejus[31]. — Isto posto, saibamos agora que intentou o zelo e espírito de Xavier, e não pôde levar ao cabo, porque o céu o arrebatou como a Elias. É coisa certa e manifesta que Xavier acabou a vida na ilha de Sanchão, às portas da China, onde ele queria entrar, por ser a fonte das idolatrias do Oriente, e não pôde. Ó segredos da providência divina! Entre a conceição e nascimento do nosso infante chegam as novas a Portugal de que as portas da China, fechadas a Xavier, se abriram de par em par à pública pregação do Evangelho. E quem poderá negar que o concurso de tais e tão remotas circunstâncias de tempo a tempo, e de pessoa a pessoa, seja um prodigioso argumento de que este menino, sendo herdeiro do espírito de Xavier, como do seu hábito, será em maior idade o Eliseu que dê glorioso fim e complemento àquela grande empresa, intentada e não conseguida pelo seu amado Elias: In Eliseo completus est spiritus ejus?
Ainda não está posta a coroa a esta famosa figura, que quase se pode chamar profética. Afirma Santo Epifânio que no dia em que nasceu Eliseu, um dos bezerros de ouro que fabricou Jeroboão, mugiu lamentavelmente, e foi o mugido tão forte, como se fosse um trovão, que se ouviu em toda Jerusalém. Para inteligência deste prodígio, devem supor os que o não sabem que Jeroboão, criado de Roboão, rei das doze tribos, se levantou com a maior parte delas, e com o título também de rei fez a sua corte em Siquém; e para que os novos súditos, vindo a Jerusalém, onde estava o templo do verdadeiro Deus, se não unissem outra vez a seu legítimo senhor, fundiu dois bezerros de ouro como o do deserto, os quais, por seu mandado, todos adoravam. E um destes bezerros é o que mugiu no nascimento de Eliseu, como adivinhando-o, e doendo-se lastimosamente de que aquele menino, então nascido, havia de ser o destruidor de toda a idolatria: Qua voce significabatur illa die natum esse infantem, qui vítulos aureos, caeteraque idola everteret, — Eu lhe chamei menino, e a declaração do bruto oráculo- que é do santo -lhe deu mais propriamente o nome de infante: Natum infantem. — Mas se os ídolos de ouro e os bezerros eram dois, por que mugiu um só? Porque ao outro já a espada de Elias lhe tinha cortado a cabeça, e as vozes de seu zelo o tinham emudecido; e o segundo, que ele ainda não pudera vencer, ficava para triunfo de Eliseu. Pode haver caso mais próprio da nossa conjectura? Chamemos a Xavier Elias, e ao infante nascido — a quem ainda não sabemos o nome — demos-lhe o de Eliseu, e está declarado o mistério de ser um só bezerro o que mugiu. O outro, ou a outra ametade da idolatria da Ásia, já Xavier a tinha derrubado, emudecido e convertido à confissão da verdadeira fé. A da China, que é o outro bezerro já meio rendido, como é de tantos milhões de gente, guarda a sua última vitória para o nosso infante, não mugindo tristemente no seu nascimento, mas berrando e chamando por ele, como desejoso e faminto.
§ VI
O infante D. Henrique e o caminho marítimo das índias. Se a providência divina fiou e encarregou os princípios da celestial conquista da Ásia a um infante de Portugal, os fins dela, já tão facilitados, por que os não fiará a outro? Quão grato é à divina aceitação o devoto e religioso oferecimento de Suas Majestades, no quarto fruto da mãe, e no quarto filho de ambos. Os beneficios de Deus a Abraão pelo oferecimento e sacrifício de seu filho Isac. Agradecimentos do pequeno Xavier ao grande.
E se a alguém lhe parecer demasiada esta minha esperança, e que, tendo tanto de admirável, ainda tem mais de dificultosa, é porque não tem lido as nossas crônicas, ou se esquece delas. Esta navegação, estas viagens, este caminho marítimo para a Índia, China, e toda a Ásia, havia-o antigamente? Não, nem rasto ou pensamento humano de tal caminho; antes, os mais doutos e sábios entendimentos o tinham por impossível. Quem foi pois o que intentou e conseguiu esta tão notável e nunca imaginada empresa? É certo que o infante D, Henrique, filho de el-rei Dom João, o Primeiro, de Portugal, e irmão de el-rei Dom Duarte. Desterrou-se da corte na flor da idade este heróico príncipe, foi-se viver entre o ruído das ondas nas praias mais remotas do reino; e dali, por meio dos seus fortíssimos argonautas, rompendo mares, vencendo promontórios, descobrindo novas terras, novos céus e novos climas, com imensos trabalhos e horrendos perigos, e com igual constância de quarenta anos, enfim, mostrou ao mundo o que o mesmo mundo não conhecia de si, e não possibilitou somente, mas facilitou aquele natural impossível. Era governador da Ordem Militar de Cristo, instituída por el-rei seu pai contra os infiéis, e a estes fez novas guerras; era insigne cosmógrafo e matemático, e a esta ciência acrescentou a prática do que só tinha escuras opiniões, ou não tinha chegado a ter suspeitas; era, sobretudo, varão de elevado espírito, vida santa, e pureza, como dizem as histórias, virginal; e, ao passo que ia descobrindo novas gentes bárbaras e idólatras, o zelo ardentíssimo de as converter à fé lhe ministrava novos espíritos, e Deus, a quem tanto servia e agradava, maiores impulsos para prosseguir a empresa. E se a providência divina fiou e encarregou os princípios desta celestial conquista a um infante de Portugal, os fins dela, já tão facilitados, por que os não fiará a outro? Se um terceiro filho de El-rei D. João, o Primeiro, foi o que lançou a primeira pedra no edifício já tão levantado da Igreja oriental, o filho quarto de el-rei D. Pedro, o Segundo, do mesmo sangue real, e de pais tão zelosos da propagação da fé e piedade cristã, por que não será aquele para quem Deus tenha guardado o fechar as abóbadas do mesmo edifício, e levantar nelas por remate o troféu do Crucificado, com as cinco triunfantes divisas, que o mesmo Senhor, e da mesma cruz, nos mandou pintar nas nossas bandeiras?
Este é o quarto irmão dos nossos príncipes: Quartus frater — e este o quarto da árvore real, que Deus mandava lhe fosse consagrado nas outras árvores: Omnis fructus quarto anno sanctificabitur Domino. — A palavra sanctificabitur não declara quem há de consagrar e oferecer a Deus este quarto fruto da árvore, ato em que grandemente resplandeceu, não só a real urbanidade, senão a ciência, e sempre bem acordada atenção da rainha, nossa Senhora. Escrevem as cartas que, quando Sua Majestade quis oferecer e consagrar a Deus o seu quarto fruto no hábito de S. Francisco Xavier, pediu a el-rei, que Deus guarde, o seu consentimento, obséquio não só devido, mas em prudente teologia necessário, pelo domínio maior que o pai tem sobre o filho, ainda que seja alcançado por orações da mãe. Porque Samuel foi alcançado por orações de Ana, diz S. João Crisóstomo que Ana se podia chamar não só mãe, senão mãe e pai de Samuel: Nequaquam aberraverit, qui hanc mulierem pueri simul et matrem et pairem appelarit, cujus deprecatio effecit ut Samuel nasceretur[32]. — Mas, ainda no tal caso, o direito paterno precede ao materno, e no concurso de ambos, quando é filho o que se sacrifica, consiste a perfeição do oferecimento. Esta faltou no sacrifício de Isac, porque Abraão não se atreveu a pedir o consenso de Sara. E, contudo, não passando o sacrifício a outro efeito mais que o da vontade, sendo esta só de um dos pais, daqui se infere quão grato seria à divina aceitação o devoto e religioso oferecimento de Suas Majestades no quarto fruto da mãe, e no quarto filho de ambos. Pelo oferecimento de Abraão, sendo só seu: Quia fecisti hanc tem[33] — lhe prometeu Deus o aumento de sua casa, que foi o maior do mundo, a perpetuidade de sua descendência, a vitória de todos seus inimigos, e, sobretudo, a bênção de todas as gentes, que propriamente se cumpriu e vai cumprindo na fé e conhecimento do verdadeiro Deus em todas as gentilidades. E, assim como já prognosticamos, com tanto fundamento, a fé e conversão que resta das orientais aos felicíssimos auspícios do novo infante, assim podemos confiar que, pelo sacrifício e oferecimento que dele tem feito a Deus a piedade e voto de seus gloriosos pais, na real casa e prosápia de Suas Majestades se verifiquem todas as outras feitas à de Abraão.
E para eu dizer uma palavra, posto que não ouvido, à prodigiosa infância do mesmo príncipe, se a mesma palavra for tão venturosa que Sua Alteza a seu tempo a leia, o que só lhe protesto é que, quando se vir vestido do hábito, e revestido do espírito de Xavier, todas as suas ações sejam referidas a ele, e não a si. Confiado Eliseu na virtude do vestido que tinha recebido de Elias, quis que o Jordão se lhe abrisse, para que ele, como o mesmo Elias, o passasse a pé enxuto. Mas o rio não obedeceu. E que fez então Eliseu, quase desconfiado? Exclamou com alta voz: Ubi est Deus Eliae (4 Rs. 2, 14)? Onde está o Deus de Elias? — E tanto que o Jordão ouviu o nome de Elias, logo se dividiu. Invoque, pois, o discípulo ao mestre, o filho espiritual ao pai, o pequeno Xavier, ao grande, que, como Deus, que lhe deu os poderes, é seu: Deus Eliae — assim quer que depois de se darem ao mesmo Deus todas as glórias, o mesmo príncipe, e todos, dêem a Xavier todas as graças.
[1] Como curiosidade, notamos que essas palavras da epístola de S. Paulo aos Romanos, que Vieira aplica ao quarto irmão dos príncipes reais de Portugal, na realidade não tratam de um quarto irmão, mas de Quarto, cristão contemporâneo de S. Paulo: Saúda-vos Caio, meu hospedeiro, e toda a igreja. Como também Erasto, tesoureiro da cidade, e Quarto, irmão (Rom. 16, 23).
[2] Venha Maria, venha a portadora do nome de minha mãe (S. Pedr. Crisól.).
[3] Por amor de mim, por amor de mim o farei (Is. 48,11).
[4] E disse que os destruiria, se Moisés, seu escolhido, se não houvesse posto em meio ante ele (SI. 105, 23).
[5] O Senhor teu Deus é certo que de algum modo terá ouvido (Is. 37. 4).
[6]Os servos do rei foram ter com Isaías, e Isaías lhes respondeu (Is. 37, 5 s.).
[7] Como tinha amado os seus (Jo. 13, 1).
[8] Obedecendo o Senhor à voz de um homem (Jos. 10, 14)
[9] Se deres à tua escrava um filho varão (1 Rs. 1,11).
[10] Pariu ainda terceiro filho, nascido o qual, não tornou mais a parir (Gên. 38, 5).
[11] Junto da quarta vigília (Mc. 6, 48).
[12] Queria passar-lhes adiante (ibid.).
[13] Homem de pouca fé, por que duvidaste (Mt. 14, 31)?
[14] Aquele que me achar achará a vida, e alcançará a salvação (Prov. 8, 35).
[15] Jogar com as palavras.
[16] O riso será misturado com a dor (Prov. 14, 13).
[17] Infundiu o Senhor Deus um profundo sono a Adão, e tirou uma das suas costelas (Gên. 2, 21).
[18] Tu em dor parirás teus filhos (Gên. 3, 16).
[19] E estarás sob o poder de teu marido (ibid.).
[20] Antes que tivesse dor de parto, pariu (Is. 66, 7).
[21] Deu à luz um filho varão (ibid.).
[22] No primeiro mês, no dia quarto do mês, sobre a tarde, é a páscoa do Senhor; e no dia quinze deste mês é a solenidade dos asmos do Senhor (Lev. 23, 5 s).
[23] E da tarde e da manhã se fez o dia primeiro (Gên. 1, 5)
[24] Quem julgais vós que virá a ser este menino? Porque a mão de Deus estava com ele.
[25] E o aspecto do quarto é semelhante ao do Filho de Deus (Dan. 3, 92).
[26] Todas as coisas dispuseste com medida, conta e peso (Sab. 11, 21).
[27] No quarto ano, porém, todo o seu fruto será santificado e consagrado em honra do Senhor (Lev. 19, 24).
[28] Seja dobrado em mim o teu espírito (4 Rs. 2, 9).
[29] Dificultosa coisa pediste (ibid. 10).
[30] Cumpro na minha carne o que resta a padecer Jesus Cristo (Col. 1, 24).
[31] Elias foi envolto num redemoinho, mas o seu espírito ficou todo em Eliseu (Eclo. 48, 13).
[32] Chrys. hom. I de fede Annae.
[33] Já que fizeste esta ação (Gên. 22. 16).