LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão do felícissimo nascimento da Sereníssima Infanta Tereza Francisca Josefa, do Padre Vieira
Edição de Referência:
Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.
SERMÃO DO FELICÍSSIMO NASCIMENTO DA SERENÍSSIMA INFANTA TERESA FRANCISCA JOSEFA.
Genuit filios et filias[1].
§ I
A primeira vez que em toda a Escritura Sagrada se lê o nome de filha. Set, o substituído.
Esta é a vez primeira que em toda a Escritura Sagrada se lê o nome de filha. E este nome, acrescentado à gloriosa descendência dos nossos augustíssimos monarcas, no felicíssimo e desejado nascimento da nova e sereníssima infanta Teresa Francisca Josefa, é a votiva solenidade de ação de graças, em que as vem render ao soberano Autor do ser e da vida, com tão universal, luzido e festivo concurso, toda a corte eclesiástica e política da nossa metrópole.
Fala o texto que propus do pai e geração de todos os homens. E diz que, depois de Adão gerara Set, gerou filhos e filhas: Postquam Adam genuit Seth, genuit filios et filias[2]. — Breve narração para tão grande assunto! Nesta brevidade, porém, temos reduzida a compêndio toda a história do nosso caso, do nosso tempo e dos nossos príncipes. Set quer dizer o substituído, porque, quando nasceu, disse Eva: Posuit mihi Deus semen aliud pro Abel, quem occidit Cain (Gên. 4, 25): Agora me substituiu Deus neste filho o meu Abel, que me roubou a morte: — Pois, se este filho era substituto de Abel, por que lhe chamastes Set? Se Deus vos substituiu nele o filho, também vós havíeis de substituir nele o nome, e chamar-lhe Abel, Assim o fez alta e discretamente aquele real e soberano juízo, que em tudo emenda os erros de Eva. Chamava-se João o primeiro primogênito que me levou a morte; pois chame-se também João o segundo primogênito, que muitos anos viva.
É o nosso príncipe Set, mas com o nome emendado e substituído. Depois de Set não parou ali a geração, Continua o texto, dizendo que nasceu ao mesmo pai, não só um filho, mas filhos: Genuit filios. — Assim se seguiu, uma após outra, a sucessão dos nossos dois belíssimos infantes, que já naquela idade temos com eleição de estado: o infante D. Francisco no hábito de cavaleiro de Malta, grão-prior do Crato; o infante D. Antônio, com a roupeta e barrete da Companhia de Jesus. Até aqui os filhos: Genuit filios. — E agora, que falta, ou que faltava? Faltava, para coroa deste formosíssimo corpo, uma filha; mas não faltou. Pedia-a o desejo, prometia-a a esperança, e finalmente a trouxe e deu o céu: Et filias.
Esta é a substância do tema, tão breve que não contém mais que duas palavras. A matéria ainda é mais breve, porque se reduz toda a um ponto, que é o de nascer. Mas a pessoa que nasce é tão grande, que para o discurso não sair do ponto e do tema, necessito de muita graça. Ave Maria.
§ II
A alegria do nascimento dos filhos, se são filhos. Razões por que, no conceito geral do mundo, não está bem avaliado o nascimento de filha. A má fortuna da filha de Jacó e da filha de Jefté. Maria, a restauradora do título de filha.
Não há coisa neste mundo mais alegre para os pais que o nascimento dos filhos, se são filhos. Este é o caráter da alegria. Jeremias: Natus est tibi puer masculus, et quasi gaudio laetificavit eum[3]. — Isaías: Antequam parturiret, peperit; antequam veniret partus ejus, peperit masculum[4]. — S. João, no Apocalipse: Cruciabatur ut pariat. Et peperit filium masculum, qui regnaturus erat super omnes gentes[5]. — Até os anjos, se o nascimento é de filho varão, folgam de o anunciar e ganhar as alvíssaras: assim anunciaram a Sara o nascimento de Isac, assim a Manué o nascimento de Sansão, assim a Zacarias o nascimento do maior dos nascidos. Mas se o nascimento é de filha, os oráculos não respondem, os profetas emudecem, e até as Escrituras não falam. Em suma, que no conceito geral do mundo não está bem avaliado o nascimento de filha, e parece que com razão. Falo confiadamente, porque bem sabem os ouvintes que é artifício nosso afeiar a dificuldade, para fazer mais formosa a solução.
A família mais abençoada de Deus, com toda a mão de sua onipotência aberta, abençoada em Abraão, abençoada em Isac e abençoada em Jacó, foi a deste grande homem, que, lutando com o mesmo Deus, saiu vencedor da luta. Teve Jacó doze filhos e uma só filha, e, sendo tão igual, ou sem igual a fortuna dos filhos, que todos doze foram patriarcas de outras tantas e numerosas tribos, bastou a filha, sendo uma só — e sem culpa — para cobrir de luto as cãs do pai, para tingir de sangue as mãos dos irmãos, e para pôr a risco de se perder e perecer em um só dia toda a família, sem ficar dela mais que a triste memória. Ainda foi mais lastimoso o caso de Jefté. Tinha só uma filha única, e, sendo ela tão obediente a seu pai, que voluntariamente se lhe ofereceu ao sacrifício, foi ele tão pouco ditoso em lograr esta imortal façanha da filha, que com as suas próprias mãos, e sem remédio, lhe tirou a vida.
E poderá haver exemplos em contrário, que desfaçam estes? Basta um, não só para desfazer e aniquilar esses, mas quantos são possíveis. Não tinha bem acabado de nascer o mundo, quando — quem tal imaginara! -estava já perdido e destruído. E desta tão súbita, tão universal, e tão imensa ruína, foi porventura causa alguma filha? Não: antes, é caso notável, posto que não notado, que a causadora de tantos males não fosse filha. E podia não ser filha? Sim, porque Eva não teve pai nem mãe. E foi tal a má fortuna desta não-filha, que bastou ela só para destruir o mundo. Pelo contrário, Joaquim e Ana tiveram uma filha, a qual entrou no mesmo mundo dotada de tanta graça, que ela, por ser filha, e a título de filha, o restaurou. Não é o pensamento meu, senão de toda a Igreja: Benedicta filia tu a Domino, quia per te fructum vitae communicavimus. — Cantava a Igreja os louvores da Mãe de Deus, e celebrando entre todos a glória de restauradora do mundo, não a atribui ao poder de Mãe, senão à bênção de filha: Benedicta filia tu a Domino. — Quanto vai de Maria a Eva, tanto vai de filha a não-filha: não-filha para destruir, filha para restaurar.
Outro exemplo da mesma Senhora. Profetiza-lhe seu pai Davi que será rainha: Astitit regina a dextris tuis[6]. — Profetiza-lhe, que sairá da sua pátria, e da casa de seu pai: Obliviscere populum muni, et domum patris tui[7]. -Profetiza-lhe e declara-lhe que o Esposo é o adorado de todo o mundo: Concupiscet rex decorem tuum, quoniam ipse est Dominus Deus tuas, et adorabunt eum[8] — e tudo isto debaixo de que nome? Não de rainha nem de esposa, senão de filha: Audi filia, et vide[9] —. Segue-se: Et inclina aurem tuam[10] — palavras em que se encerra o encarecimento dos mais elevados e sublimes espíritos que no heróico de uma filha se podem admirar. Tal filha, e tão filha que, sendo as bodas profetizadas não menos que do mesmo Deus, e pretendidas por ele, ela nem lhe deu ouvidos, nem admitiu no pensamento a menor inclinação a aceitar tão soberano estado, senão quando? Depois de seu pai lhe mandar que ouvisse e se inclinasse: Et inclina aurem tuam. — Busquem agora os pais em algum filho semelhante fineza.
§ III
De que modo desmente o engano do vulgo a nova e suspirada filha que só faltava à Casa Real para a última inveja do mundo. Por que não podia vir mais a tempo, nem mais em seu lugar a discretíssima menina?
Limpa assim do engano do vulgo, e franqueada a estrada ao nosso tema, vejamos quão sabiamente o interpreta nas circunstâncias de seu felicíssimo nascimento a nova e suspirada filha, que só faltava à casa real para a última inveja do mundo, e satisfação, também última, de toda a monarquia: Genuit filos et filias.
A primeira coisa que observam estas palavras, é que primeiro põe os filhos, e depois as filhas. E esta mesma foi a disposição e ordem que guardou a natureza, ou graça, no sucessivo nascimento dos príncipes. Primeiro os filhos e os irmãos, depois a irmã e a filha. Se Sua Alteza, que Deus nos deu, e ele nos guarde, tivera em seu arbítrio a oportunidade de nascer, não o pudera fazer com maior discrição, nem mais a tempo. Só o Senhor dos tempos pode tomar as medidas a estas conjunturas, ou a quem ele tratar como a seu próprio filho. Nasceu o Filho de Deus neste mundo, e diz S. Paulo que apareceu nele quando chegou a oportunidade do tempo: At ubi venit plenitudo temporis[11]. — E qual foi a oportunidade do tempo? Tardar o mesmo tempo, crescerem na tardança os desejos, e nascer o Filho desejado, e desejado de todos: Veniet desideratus cunctis gentibus[12]. — Se a nossa infanta nascera quando o nosso príncipe, não havia de ser tão aplaudido o seu nascimento. Se quando nasceu o infante D. Francisco, ainda havia de ter a alegria sua mistura de receio. Mas depois de estabelecida e confirmada com tantos fiadores a sucessão, veio desejada dos pais, veio desejada dos irmãos, desejada do reino, e também recebida, aplaudida e festejada de todos, como de todos desejada. Veio tanto a tempo, que não podia tardar mais, nem apressar-se menos. Já a natureza tinha copiado a el-rei, que Deus guarde, em três retratos; e não era razão que faltasse à rainha, nossa Senhora, o seu dentro do mesmo quadro. Nos três via-se e revia-se o pai; a mãe também se revia, mas não se podia ver, porque faltava neles — sem ser falta — aquela tão singular e prezada diferença, que só a mesma natureza pôs nas mães, e as mães só podem retratar nas filhas. Quando Estácio disse: Multum de paire decoris, plus de matre feras[13] — nem soube adular como cortesão, nem desejar como discreto. No homem a gentileza que passa a ser formosura é deformidade; por isso nos filhos se há de ver a gentileza dos pais, e nas filhas a formosura das mães. E para retratar a proporção e harmonia desta imagem, que em seu original foi divina, e na cópia em que estamos é mais que humana, como tanta jurisdição tenha nela o tempo, não podia vir mais a tempo, nem mais em seu lugar a discretíssima menina. Finalmente, a razão do mesmo tempo, e do mesmo lugar que elegeu para vir, se eu me não engano, toda consiste nesta disjuntiva: veio depois, e deixou entrar dantes os três irmãos, ou reverente, como menor, para lhes fazer cortesia, ou respeitosa, como dama, para que lhe fizessem corte: já dois o podem sustentar assim com a espada. E para estas cavalarias domésticas do gosto dos pais, não bastam só os filhos, se faltarem as filhas: Filios et filias.
§ IV
Quanto deve Portugal a Deus por esta filha, e seu felicíssimo nascimento. A descendência de Set e a descendência de Caim. A restauração do mundo, por Noé, e a restauração de Portugal, por el-rei Dom Afonso Sexto, e a rainha Catarina.
Passando ao sólido das considerações de estado para a satisfação do gosto e amor paterno e materno, tanto importava que o felicíssimo nascimento que celebramos, fosse de filho como de filha, porque nos olhos do amor os meninos também são meninas. Mas para a conservação e aumento da casa real e da coroa, é necessária a inseparável união de ambos os sexos, como o pede e demonstra o tema. Não só filhos sem filhas, nem só filhas sem filhos, mas filhos e filhas na mesma geração: Genuit filos et filias.
Neste privilégio da natureza, ou nesta graça do Autor de ambas, se correspondem maravilhosamente as duas gerações sucessivas: a do senhor rei D. João, o quarto, que Deus tem, de gloriosa memória, e a de el-rei nosso senhor D. Pedro II, que o mesmo Deus nos guarde por muitos anos. A geração de el-rei D. João, multiplicada em filhos e filhas, a geração de el-rei D. Pedro até agora fecunda só de filhos, e já por esta nova mercê de Deus, fecunda de filhos e filha. E para que vejamos quanto devemos ao mesmo Deus por esta filha, e seu felicíssimo nascimento, ouçamos com assombro quão perigosa é a conservação dos reinos e do mundo onde falta a união destes dois sexos. Desde o princípio do mundo, como largamente descreve Santo Agostinho nos Livros De Civitate Dei, dividia-se todo o gênero humano em duas gerações: pela via e descendência de Set uma, outra pela de Caim. Os de Set chamavam-se propriamente filhos de Deus, e os de Caim, com a mesma propriedade, filhos dos homens; e pelos mesmos nomes os distingue o texto sagrado, quando diz: Videntes filii Dei filias hominum[14]. — Continuaram muitos anos havendo, de ambas as partes, filhos e filhas, até que, finalmente, prevalecendo a malícia contra a natureza, na geração dos filhos de Deus só nasciam filhos, e na geração dos filhos dos homens só filhas, de que dão a causa, ainda natural, graves autores. Mas em que vieram a parar estas duas fatais gerações, uma só com filhos, outra só com filhas? Porventura na perdição de algum reino? É nada. Na perdição de muitos reinos? É pouco. Na perdição de toda a Europa, de toda a África, ou de toda a Ásia? Não basta. O que se seguiu desta diferença — fosse natural, ou castigo — foi a perdição, destruição e assolação universal de todo o mundo, afogado e sepultado na inundação do dilúvio.
E teve toda esta universal ruína e perdição algum remédio? Maior maravilha, Reduzidas ambas as gerações a uma só geração, que foi a de Noé, este só homem, com três filhos e três filhas, metidos em uma arca, e nadando por cima do dilúvio, tiraram do fundo dele, e salvaram o mundo. Desembarquemos nós agora, não nos montes de Armênia, senão nas beiras do Tejo, e em Portugal, restaurado depois de perdido, e saibamos quem o restaurou. Um filho e el-rei D. João, ajudado e favorecido de uma filha do mesmo rei. É observação acreditada entre os historiadores que, quando na roda da fortuna fecham os reinos o circulo da sua duração, costumam muitas vezes acabar debaixo do mesmo nome que lhe deu princípio. Assim começou o império de Constantino com um Constantino e acabou em outro Constantino; e assim dizem também os nossos cronistas, começou o reino de Portugal em um Henrique, o conde, e acabou em outro Henrique, o cardeal. Mas enganaram-se duas vezes: a primeira, que o reino de Portugal não começou no conde D. Henrique, senão em seu filho, el-rei D. Afonso, o Primeiro; a segunda, que não a fortuna, senão a providência que Deus tem do nosso reino, é que ele acabe a roda da sua duração debaixo do nome que o começou, senão que, se acaso se perdeu, debaixo do mesmo nome se restaure. Assim se fechou a roda da sua duração e restauração debaixo do mesmo nome de Afonso: El-rei D. Afonso, o Primeiro, que o fundou, e o invicto rei D. Afonso Sexto, que o repôs outra vez, e restituiu à sua inteira e pacífica liberdade. Isto quanto ao filho de el-rei D. João: Genuit filios.
§ V
Por que Deus, para a conservação e firmeza das felicidades antigas de Jó, não só lhe dá filhos, mas filhos e filhas? As mulheres na conservação e aumento da Casa Real e da Coroa. Catarina, duquesa de Bragança, e Catarina, Rainha da Grã-Bretanha e a restauração do Reino.
Quanto à filha do mesmo rei — et filias — é ponto que requer maior prefação. Restituiu Deus a seu antigo e felicíssimo estado aquele famoso rei dos idumeus, exemplo de ambas as fortunas, Jó; e diz o texto sagrado que, entre os outros bens, ou sobre todos eles, lhe foram também restituídos os filhos e as filhas, quase pelas nossas mesmas palavras: Et fuerunt ei septem filii, et Ires filiae[15], — Mas para a conservação e firmeza das felicidades antigas, que Jó tinha experimentado tão inconstantes, parece que era mais conveniente serem todos filhos varões, que cingissem a espada e embraçassem o escudo. Pois, por que lhe dá Deus a Jó, nesta universal restituição, também filhas? Orígenes, que ordinariamente é alegórico, neste caso quis ser político, e falou sabiamente: Job hoc et filios et filias dedit illi Deus; sic enfim desiderant omnium mentes: Deu Deus ao rei Jó filhos e filhas — diz Orígenes — porque assim o desejam todos os príncipes bem entendidos. — E por que, outra vez, o entendem assim? Vai a razão de um barrete teólogo, qual a não dera mais cabal o texto dos políticos. Tácito: Sic enim et filias dant foras, et filii intus accipiunt uxores: et per hoc et extrinsecus habent cognationem, et intrinsecus haereditate: Os reinos e os impérios conservam-se e sustentam-se em duas raízes: das portas adentro, com a sucessão dos reis naturais; das portas afora, com a confederação dos reis estrangeiros. — Pois por isso dá Deus àquele rei, tão favorecido seu, filhos e mais filhas; os filhos, para que não faltassem reis ao reino próprio; e as filhas, para que pudesse dar rainhas aos reinos estranhos. Os filhos para que, por meio da sucessão, se conservasse o domínio dos vassalos; as filhas para que, por meio dos casamentos, se conservasse a amizade dos aliados. Como nenhum reino se pode conservar sem reis amigos e sem reis herdeiros, nos filhos lhe deu os herdeiros, e nas filhas lhe deu os amigos.
Assim deu Portugal ao sereníssimo Carlos, rei da Grã-Bretanha, a sereníssima infanta D. Catarina, além de outros grandes motivos, para que, com a união destas reais bodas, Portugal, posto então em campanha na terra e no mar, e o poderoso e belicoso reino e nação inglesa se dessem também as mãos, como deram forte e felizmente nas últimas batalhas, e, com a mediação de embaixadores também ingleses, assim na vitória como na paz, tivesse tanta parte el-rei Afonso como a rainha Catarina, e tanto a rainha Catarina como el-rei Afonso. E se neste caso, com nova consonância e harmonia das coisas, das pessoas, e dos mesmos nomes, se neste caso, digo, um Afonso recuperou o direito de outro Afonso, também uma Catarina recuperou o de outra Catarina.
Quando el-rei D. Filipe Segundo, naquela catástrofe universal da nossa monarquia, veio a Portugal tomar posse dela, e uni-Ia à sua, ouvindo sermão na igreja da Companhia de Jesus de Évora, em um dia de S. Filipe e Santiago, o pregador tomou o tema do Evangelho, e sem que a presença da majestade lhe impedisse a confiança, como se falasse com o rei por seu próprio nome, disse: Philippe, qui videt me, videt et Patrem meum (Jo. 14,9): Filipe, quem me vê a mim, vê a meu Pai. — As palavras eram de Cristo, mas a alusão feria o direito da representação que estava vivo, mas violentado na sereníssima pessoa da senhora D. Catarina— nome sempre fatal e propício a nosso remédio — duquesa então de Bragança. Filipe, como varão — estando ambos no mesmo grau — dizia que preferia a Catarina como mulher; e Catarina, posto que mulher, como filha do infante D. Duarte, dizia que preferia a Filipe. E assim era, porque, sendo D. Duarte, e a imperatriz D. Isabel, irmãos, Filipe, posto que varão, representava a imperatriz, que era mulher; e Catarina, posto que mulher, representava ao infante, que era varão. Na tragicomédia destas duas representações, prevaleceu então a de Filipe, porque pleiteou armada; mas quando chegou o tempo decretado por Deus, levantando-se desarmada a razão, sentenciaram as armas por Catarina. E assim como na restauração do reino concorreram dois Afonsos, o primeiro com o direito, como fundador, e o sexto com a posse, como sucessor, assim concorreram também duas Catarinas: Catarina, duquesa de Bragança, sustentando o direito; e Catarina, rainha da Grã-Bretanha, introduzindo a posse. Tal foi um dos filhos, e tal uma das filhas do mesmo pai: Genuit filios et filias.
§ VI
As felicidades que trouxe consigo o felicíssimo nascimento da recém-nascida infanta. Como as deidades da terra, os reis de Espanha e Alemanha, imitaram a do céu no nascimento da nova princesa.
Mas quem dissera então o que hoje vemos, ou o que viu Lisboa no grande dia da Encarnação deste feliz ano? Todas aquelas guerras convertidas em paz, todas aquelas demandas desfeitas em amizade e concórdia, e todo aquele sangue herdado dos mesmos avós, e derramado na mesma pátria, vivo outra vez, e restituído às suas veias naturais, Estas são as felicidades que trouxe consigo o felicíssimo nascimento da nossa recém-nascida infanta, por isso tão festejado.
Era a primeira hora da tarde na vigília de S. Matias, quando deram sinal as torres, como sentinelas mais vizinhas ao céu, do felicíssimo parto. Os repiques quebravam os bronzes, as salvas com os trovões da artilharia, as trombetas, caixas e atabales, os vivas e aplausos públicos, tudo eram batarias de alvoroço e gosto, que os ouvidos davam aos corações. As lágrimas de alegria competiam com os risos da aurora; os parabéns, com as aleluias; as galas, com a primavera; as luminárias, com as estrelas; e quando el-rei, que Deus guarde, pelo nascimento desta filha fez que ardessem em palácio mil e seiscentas tochas, bem mostrou D. Pedro II que não só era herdeiro da coroa, senão também do amor do primeiro.
Isto fazia Lisboa; mas que fazia em Lisboa, Madri e Viena de Áustria? Em ambas estas grandes cortes as duas supremas cabeças da águia imperial e austríaca, a cesárea e a católica, festejavam por fé e de longe o mesmo nascimento. A católica, em el-rei Carlos Segundo, cuja vida Deus guarde por muitos e felizes anos, como padrinho; e a cesárea na imperatriz Leonor Madalena, que os mesmos anos logre tão excelsa dignidade, como madrinha. Destas duas majestades, pela via materna, mais próxima, como de irmãs, e pela paterna mais remota, como de primos, é real e imperial sobrinha a nossa também nascida infanta. Mas o amor, o agrado, a estimação e os soberanos aplausos, com que, depois de regenerada pela sagrada fonte do batismo, uma e outra majestade aceitaram e receberam o novo e sobrenatural parentesco, contraído com Sua Alteza, quem os poderá exprimir? E porque a expressão destes afetos se não podia compreender de longe, ao perto, e para os olhos do mundo, a cometeram toda à representação de seus embaixadores, ou, falando mais ao certo, à excelentíssima pessoa do magnífico marquês de Castel dos Rios, embaixador extraordinário, único e duplicado de ambas as majestades, Antes que passe adiante, o concurso do dia e do mistério me não permitem deixar em silêncio o admirável conselho desta duplicada eleição. O embaixador, que no dia da Encarnação trouxe a embaixada do céu a Nazaré, diz o evangelista S. Lucas que foi enviado por Deus: Missus est angelus Gabriel a Deo[16]. — Mas como em Deus há Deus Padre, Deus Filho e Deus Espírito Santo, em que Pessoa destas falou o Anjo, que foi embaixador? Falou na pessoa do Pai: Virtus Altissimi obumbrabit tibi[17] — e falou na Pessoa do Espírito Santo: Spiritus Sanctus superveniet in te[18]. — Ao meu ponto agora, e vejamos como as deidades da terra imitaram neste caso a do céu. Assim como a majestade do Padre e a majestade do Espírito Santo uniram e duplicaram as suas embaixadas em um só embaixador, que isso quer dizer angelus, assim as duas majestades da Espanha e Alemanha uniram e duplicaram as suas em um só embaixador, e o mesmo, com extraordinária autoridade e poderes de ambas. E para maior energia e elegância da semelhança, vejam-se os motivos do céu e da terra. O motivo da embaixada do céu foi para anunciar o nascimento do Filho: Quod nascetur ex te, vocabitur Filius Dei[19] — e o motivo da embaixada da terra, prevenir, assistir e festejar o nascimento de filha: Et filias.
§ VII
As demonstrações de magnificência, grandeza e riqueza do duplicado embaixador de Suas Majestades de Espanha e de Alemanha. O que quer dizer ao seu vice-padrinho e madrinha o agradecido silêncio da discretíssima menina. O anjo Gabriel, embaixador do altíssimo mistério da Encarnação. Se tantas conveniências havia para ser o embaixador não anjo, senão homem, por que foi anjo? O maior realce da embaixada da Encarnação.
Nas demonstrações de magnificência, grandeza, riqueza e real ostentação de duplicados e multiplicados triunfos, que puderam competir com os romanos, não só desempenhou a magnificência do duplicado embaixador a comissão de Suas Majestades, mas excedeu a expectação das nossas. Isto é o que cá trouxeram os ecos da fama; mas ainda que ela toda seja ouvidos e línguas: Totidem ora sonant, tot porrigit aures — o que eu considero é o que ela nem lá pode ouvir nem cá dizer. Na principal função da embaixada, quando o excelentíssimo substituto dos padrinhos estendeu a mão para aceitar em seu nome a filha, ou afilhada, o que em frase castelhana se chama sacar de pila, então, dando-lhe o parabém do novo e sobrenatural estado, a pôde saudar com as palavras do anjo, e dizer com toda a verdade: Ave gratia plena. — E a real menina, assim cheia de graça, se pudesse responder e falar, que diria? Não há dúvida que daria muitas graças ao marquês embaixador, pela liberalidade e grandeza com que desde o dia de seu nascimento até aquele, com tão extraordinárias demonstrações, tinha assistido e festejado sua vinda à luz do mundo, e muito particularmente pelo afeto alheio de toda a estranheza, e tão português, sem o ser, com que tudo tinha obrado. Até aqui diria o agradecimento natural, que nasce com os ânimos reais antes do uso de toda a outra razão.
Mas eu serei o intérprete ou comentador do seu silêncio, sem me sair do dia nem do mistério. Elegeu Deus para a embaixada do altíssimo mistério da Encarnação ao anjo Gabriel, e do mesmo nome Gabriel parece se argúi que devera não ser anjo, Gabriel, como declarou o Concílio Efesino, significa Deus homo. Pois, se Deus se vinha fazer homem, e não anjo, homem, e não anjo, parece que devia ser o embaixador. Podia trazer a embaixada Adão, pois ele deu o motivo a Deus se fazer homem; podia vir por embaixador Abraão, ou Davi, pois eles eram os pais de quem vinha ser filho. Podia ser, com maior energia que todos, o profeta Isaías, e, abrindo o seu livro, mostrar à Senhora o famoso oráculo: Ecce Virgo Concipiet, et pariet Filium, et vocabitur nomen ejus Emmanuel[20]— e anunciar à mesma Virgem, que ela era a venturosa ali profetizada. Pois, se tantas conveniências havia para ser o embaixador não anjo, senão homem, por que foi Anjo? Porque era embaixador do mistério da Encarnação. O mistério da Encarnação era muito suspeitoso no céu, porque, revelado por Deus a Lúcifer, que se havia de fazer homem, e não anjo — o que depois ponderou S. Paulo: Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit[21] — esta desconfiança, e como desprezo, foi a ocasião das batalhas do céu, e de se perderem tantos príncipes de todas as hierarquias, e de estarem ainda vagas tantas cadeiras. Pois, para que conste ao mundo que já todas essas ocasiões de desgosto e discórdia se acabaram, e qualquer outra memória ou suspeita de menos sincero e verdadeiro amor estão totalmente mortas nos corações e sepultadas no esquecimento, venha por embaixador um anjo das maiores hierarquias, e mais empenhado nelas, o qual celebre, festeje e assista, e eficazmente concorra para o mesmo mistério da união de Deus com os homens, que causou a desunião dos anjos com Deus. De maneira que o maior realce da embaixada da Encarnação foi não ter o embaixador carne nem sangue. Se fora homem, obrara sem louvor, como interessado, e sem merecimento, como devido: mas, sendo anjo, e de estranha natureza, o não ser homem lhe acreditava a verdade, e o obrar como se o fora lhe qualificava a fineza.
§ VIII
Por que nasceu a infanta debaixo do predomínio e influência de uma das doze estrelas de que se coroa a Igreja, o apóstolo S. Matias? Qual seria a providência por que, havendo de ser apóstolo, não foi dos da primeira eleição, senão da segunda? Os dois nomes da princesa, e os primogênitos dos filhos e filhas de Santo Inácio.
Isto é o que quis dizer ao seu vice-padrinho e madrinha o agradecido silêncio da nossa discretíssima menina, saindo da matrícula da graça, e ficando a sua rubricada nos gloriosos nomes que dissemos. Quando estes excedem o número de dois, o primeiro e o segundo distinguem e determinam a pessoa; e esta precedência tem ao terceiro nome — que deixo e venero — o de Teresa e Francisca; e, como um é de santo, outro de santa, eles nos tornam por outro modo a lembrar o genuit filios et filias. — Ia sem dúvida o nascimento da nossa infanta fazendo-se com terra aos 3 de março, primeiro da Novena de seu Santo Xavier; mas porque é graça, e particular providência, o que notou Isaías: Antequam parturiret, peperit (Is. 66, 7) — antecipando-se o felicíssimo parto — outra Novena pontualmente — saiu à luz na vigília, como dissemos, de S. Matias, substituindo um apóstolo a outro apóstolo, como um irmão a outro, Set a Abel. Mas, suposto que nasceu debaixo do predomínio e influência de uma das doze estrelas de que se coroa a Igreja: In capite ejus corona stellarum duodecim[22] — que são os doze apóstolos, qual seria a providência por que, havendo de ser apóstolo, não foi dos da primeira eleição, senão da segunda? Os apóstolos da primeira eleição são os que Cristo, Senhor nosso, elegeu por sua própria pessoa, como aos doze na terra, e a S. Paulo descendo do céu; os da segunda eleição são os que elege o Sumo Pontífice e a Igreja, e assim foi S. Matias eleito por S. Pedro, e pela Igreja de Jerusalém; e por semelhante modo S. Francisco Xavier, nomeado pelo Sumo Pontífice apóstolo do Oriente, e antes disso, pela Igreja de Lisboa, absolutamente apóstolo, donde se derivou o mesmo nome, ganhado por ele, a todos os filhos de Santo Inácio, chamados em Portugal apóstolos. E poderei eu sobre este fundamento aplicar ao nosso santo patriarca o genuit filios et filias do nosso tema? Parece que não, porque Santo Inácio só instituiu religião de religiosos, e não de religiosas, Mas é necessário distinguir, Uma coisa é o instituto, outra o espírito: no instituto não tem Santo Inácio filhas, senão filhos somente; no espírito tem filhos e filhas: Genuit filios et filias, — Por sinal que nos dois nomes da nossa duas vezes bem fadada infanta se uniram, não acaso, senão com especial providência, o primogênito dos filhos em S. Francisco Xavier, e a primogênita das filhas na Santa Madre Teresa. O primeiro não é necessário que eu o prove; o segundo repete muitas vezes em seus admiráveis livros a santa madre. E é esta filiação e irmandade de espírito tão pública no mundo, que, chamando em Castela, por equivocação, aos padres da Companhia teatinos, aos religiosos de Santa Teresa, pela diferença da cor do hábito, chamam teatinos brancos.
§ IX
Os privilégios trazidos pela infanta debaixo dos nomes de Teresa Francisca. As três condições impostas por Cristo para o bom despacho de nossas petições no nome da nova princesa. Como conseguiram Bersabé e Natã a coroa de Israel para Salomão? A misteriosa arquitetura do Propiciatório, e a ciência de saber pedir Santa Teresa e São Francisco Xavier, os dois querubins do Sancta Sanctorum.
Renascida pois Sua Alteza, como Teresa e como Francisca, debaixo deste signo de Gêminis, que lhe posso eu prognosticar ou desejar mais que uma felicidade em que estejam juntas todas? Posso mais? Não. E pode haver uma felicidade a que estejam resumidas todas as felicidades? Sim. Se for um privilégio de Deus, assinado em branco, de conceder tudo o que lhe pedirem. E este privilégio trouxe a nossa infanta da pia debaixo dos nomes de Teresa Francisca, por serem dois, e conformes, e santos. No capítulo dezoito de S. Mateus, promete Cristo Senhor nosso, que seu Padre dará tudo o que lhe pedirem, debaixo de três condições: primeira, que quem pedir não há de ser uma só pessoa, senão duas; segunda, que hão de ser conformes,e não diferentes no que pedirem; terceira, que hão de ser santas. Vai o texto: Si duo ex vobis consenserint super terram, de omni re quamcumque petierint, fies illis a Patre meo, qui in caelis est[23]. — Que haja de conceder Deus por este privilégio tudo o que lhe pedirem, as mesmas palavras o dizem, sem exceção alguma: De omni re quamcumque petierint, fiet illis. — Que não haja de ser uma só pessoa a que pedir, senão duas: Si duo. — Que hão de ser concordes entre si na mesma petição: Consenserint. — E onde está que hão de ser santos? No ex vobis: — Si duo ex vobis consenserint. — Falava Cristo com os apóstolos, e disse: Se dois de vós — excluindo do privilégio os que não fossem deles. — Expressamente Eutímio: Non simpliciter dixit: Si duo consenserint — sed duo ex vobis, hoc est, similes vobis virtutem colentes. — E se hão de ser duas pessoas, e concordes, e do mesmo espírito, e esse apostólico, onde se podiam estas achar e ajuntar senão em Santa Teresa de Jesus e em S. Francisco Xavier, também de Jesus?
Mas como Teresa e Xavier são dois tão grandes validos de Deus, que cada um sem o outro pode alcançar o que quiser, parece-me que os vejo ambos em grandes cumprimentos, não sobre qual há de levar a glória do despacho, senão sobre qual a há de renunciar, e dar toda um ao outro mais gloriosamente. Se buscarmos, porém, na Escritura Sagrada uma figura deste caso, creio que a acharemos em Bersabé e Natã. Tendo-se levantado Adonias, filho de Davi, mais Velho que Salomão, com o reino, que remédio teria Bersabé, que era sua mãe, e o profeta Natã, para que Davi nomeasse a coroa em Salomão? As palavras que o profeta disse a Bersabé foram estas: Ingredere ad regem David, et adhuc ibi te loquente, ego veniam post te, et complebo sermones tuos (3 Rs. 1, 13 s): Entrai, senhora, a el-rei, propondo-lhe o vosso requerimento, e eu entrarei após vós, e, conformando as minhas palavras e razões com as vossas, conseguiremos sem dúvida o que pedimos. — E assim foi. De sorte que nem Bersabé sem Natã, nem Natã sem Bersabé, senão Bersabé e Natã juntos, conseguiram o que pretendiam. E quem é Bersabé mãe, senão Teresa, a santa madre? E quem é o profeta Natã, senão Francisco Xavier, tão grande profeta? Se Teresa e Xavier conformes fizerem a mesma petição, ainda que seja necessário, não só fazer, senão desfazer reis e reinos, ao que ambos pedirem há de pôr Deus o fiat: In quacumque re fiet.
E não só tem Sua Alteza em Santa Teresa e S. Francisco Xavier quem lhe alcance de Deus o que pedirem, senão quem saiba eleger o que hão de pedir. Este é um laço em que caem os juízos humanos, e com que atam as mãos à liberalidade de Deus, para que lhe não conceda o que pedem. Até a S. João e a São Tiago, sendo tão validos seus, negou Cristo o que pediam, porque não souberam o que pediam: Nescitis quid petatis[24]. — O bom despacho das petições em Deus não consiste só em pedir, senão em saber pedir. No famoso templo de Jerusalém, dentro das cortinas do Sancta Sanctorum, era o lugar do oráculo divino, chamado Propiciatório. A um e outro lado dele estavam dois querubins com as asas estendidas para diante, e, olhando um para o outro, tinham os rostos voltados para o mesmo Propiciatório: Respiciantque se mutuo versis vultibus in propitiatorium[25]. — E que significava a misteriosa arquitetura deste antigo sacrário? O Propiciatório era o trono onde a Majestade divina despachava as petições de graça, respondendo, ou mais própria e decentemente, anuindo às súplicas dos que oravam, concedendo propício o que pediam. Os dois querubins de um e outro lado eram os santos validos de Deus, que pedem, não para si, senão para os que têm debaixo da sua proteção, que por isso tinham as asas estendidas, e olhavam para si e para Deus, porque em tudo o que pediam se conformavam com o divino beneplácito, Mas por que não eram serafins, ou outros espíritos angélicos da suprema hierarquia, senão querubins? Porque os querubins, entre todos, são os mais eminentes na sabedoria; e o acerto de conseguir de Deus propício o que se pode não está só no pedir, senão na ciência de saber pedir. Da dificuldade desta eleição, e da contingência deste acerto aliviam a inocência da nossa infanta S. Francisco Xavier e Santa Teresa, tomando à sua conta o pedir e o que hão de pedir para Sua Alteza. Mas como isto é o que faziam os querubins para os que tinham debaixo da proteção das suas asas, parece que desfaz toda a harmonia da semelhança competir só o nome de querubim a Xavier, e não a Santa Teresa, pela diferença de sexo feminino. Mas para que até aqui nos acompanhe o genuit filios et filias, sendo Teresa filha, e Xavier filho do espírito de Santo Inácio, é de saber o que nem todos sabem, que dos dois quembins do Propiciatório, um tinha rosto de mulher, e outro rosto de homem: Cherubim sexu fuisse distinctos, unum marem, alterum faeminam — dizem Rabi Salomão, e Arias Montano, eruditíssimos intérpretes do Testamento Velho.
§ X
Que graças poderão pedir a Deus S. Francisco Xavier e Santa Teresa para quem veio ao mundo dotada de quanto o mesmo mundo pode dar?
Descanse logo nas faixas e mantilhas reais a nossa grande infantinha, e deixese embalar sem cuidado do que há de pedir a Deus, porque isso pertence aos dois vigilantes querubins, que, nos nomes que recebeu com a graça batismal, tomaram também por sua conta, como se fossem outros anjos da guarda, a sua proteção e tutela. Mas eu não vejo o que S. Francisco Xavier nem Santa Teresa hajam de pedir neste mundo para quem veio a ele dotada de quanto o mesmo mundo pode dar. Como nasceu a infanta Teresa Francisca? Nasceu filha de el-rei D. Pedro Segundo de Portugal, e da rainha Maria Sofia Isabela, nossos senhores. Nasceu neta de el-rei D. João, o Quarto, e do sereníssimo príncipe Filipe Vilhelmo, eleitor palatino, ambos de imortal memória. Nasceu sobrinha da senhora rainha de Inglaterra, da senhora rainha de Castela, da senhora rainha de Polônia, e da senhora imperatriz da Alemanha. Nasceu irmã dos príncipes D. João, D. Francisco, D. Antônio, galhardíssimo ternário em que vivem e crescem as três graças disfarçadas em trajo varonil. E, finalmente, com digna cláusula de tal catálogo, nasceu última descendente da sereníssima e real casa de Bragança, de que descendem todos os príncipes soberanos e potentados da Cristandade. Quando el-rei D. Filipe Terceiro veio a Portugal, ofereceu ao duque D. Teodósio de Bragança que pedisse o que quisesse, e ele respondeu: — Os reis nossos avós deixaram tão dotada a casa de Bragança, que não têm que pedir. O mesmo digo eu desta sua venturosa bisneta, S. Francisco Xavier e Santa Teresa não têm que lhe desejar nem pedir neste mundo, e assim só lhe poderão pedir as felicidades do outro. A maior felicidade ou fortuna deste mundo, como ele chama, é reinar; mas reinar neste mundo, e não reinar no outro, é a maior infelicidade e a maior desgraça. Pedirão, pois, e alcançarão de Deus, com toda a dobrada força do seu patrocínio, que, depois de lograr Sua Alteza neste mundo, por muitos e felizes anos, tudo o que com ele acaba, trocando uma coroa por outra, logre no céu, com grandes aumentos de glória, o que há de durar por toda a eternidade. Amém.
Finis, laus Deo.
[1] Gerou filhos e filhas (Gên. 5, 4).
[2] Depois que Adão gerou a Set, gerou filhos e filhas (Gên. 5, 4).
[3] Nasceu-te um filho macho — e julgou que com isto lhe dava motivo para se alegrar (Jer. 20, 15). Este versículo não se aplica de nenhum modo ao que Vieira pretende provar, pois seu sentido completo é o seguinte: Maldito seja o homem que levou a nova ao meu pai dizendo:: Nasceu-te, etc. (ibid.).
[4] Antes que tivesse dor de parto, pariu; antes que chegasse o seu parto, deu à luz um filho varão (Is. 66, 7).
[5] Sofria tormentos por parir. E pariu um filho varão, que havia de reinar sobre todas as gentes (Apc.12, 2.5).
[6] Apresentou-se a rainha à tua destra (SI. 44, 10).
[7]Esquece-te do teu povo, e da casa de teu pai (ibid. 11).
[8] Cobiçará o rei a tua beleza, porque ele é o Senhor teu Deus, e adorá-lo-ão (ibid. 12).
[9] Escuta, ó filha, e vê (ibid. 11).
[10] E inclina o teu ouvido (ibid.).
[11] Mas quando veio a plenitude do tempo (Gal. 4, 4).
[12] Virá o desejado de todas as nações (Ag. 2, 8).
[13] (Stat. Syl. 2).
[14] Vendo os filhos de Deus as filhas dos homens (Gên. 6, 2).
[15] Teve também sete filhos e três filhas (Jó 42, 13).
[16] Foi enviado por Deus o anjo Gabriel (Lc. 1, 26).
[17] A virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra (ibid. 35).
[18] O Espírito Santo descerá sobre ti (ibid.).
[19] O que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus (ibid.).
[20] Eis que uma virgem conceberá, e parirá um filho, e será chamado o seu nome Emanuel (Is. 7, 14).
[21] Em nenhum lugar tomou aos anjos, mas tomou a descendência de Abraão (Hebr. 2, 16).
[22] E uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça (Apc. 12, 1)
[23] Se dois de vós se unirem entre si sobre a terra, seja qual for a coisa que eles pedirem, meu Pai, que está nos céus, lha fará (Mt. 18, 19)
[24] Não sabeis o que pedis (Mt. 20, 22).
[25] Estarão olhando um para o outro com os rostos virados para o propiciatório (Êx. 25, 20).