LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários
em meio eletrônicoParte duodécima, do Padre António
Vieira
Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
PARTE DUODÉCIMA
DEDICADA À PURÍSSIMA CONCEIÇÃO DA VIRGEM MARIA,
SENHORA NOSSA.
LISBOA,
Na Oficina de MIGUEL DESLANDES,
Impressor de Sua Majestade.
Com todas as licenças necessárias.
Ano de 1699.
À custa de Antônio Leite Pereira.
LICENÇAS
DA RELIGIÃO
Eu, Alexandre de Gusmão, da Companhia de JESUS, Provincial da Província do Brasil, por comissão especial que tenho do N. M. R. P. Tirso Gonçalves, Prepósito Geral, dou licença para que se possa imprimir este livro, da Duodécima Parte dos Sermões do Padre Antônio Vieira, da mesma Companhia, Pregador de Sua Majestade, o qual foi revisto, examinado e aprovado por religiosos doutos dela, por nós deputados para isso. E, em testemunho da verdade, dei esta, subscrita com meu sinal, e selada com o selo de meu ofício. Bahia, aos 20 de junho de 1697.
Alexandre de Gusmão
DO SANTO OFÍCIO
Vistas as informações, pode-se imprimir a Parte Duodécima dos Sermões do Padre Antônio Vieira, da Companhia de JESUS, e, depois de impressa, tornará para se conferir, e dar licença que corra, e sem ela não correrá. Lisboa, 8 de agosto de 1698.
Estêvão
de Brito Foyos
Sebastião Dinis Velho
João Carneiro de Morais
João Munis da Silva
Fr. Gonçalo do Crato
DO ORDINÁRIO
Vistas as informações, pode-se imprimir a Duodécima Parte dos Sermões do Padre Antônio Vieira, da Companhia de JESUS, e, depois de impressa, tomará para se lhe dar licença para correr, e sem esta não correrá. Lisboa, 14 de agosto de 1698.
Fr. Pedro, Bispo de Bona
DO PAÇO
CENSURA DO ILUSTRÍSSIMO E
REVERENDÍSSIMO SENHOR
Dom Diogo Justiniano, Arcebispo de Cranganor, Do Conselho de Sua Majestade, etc.
SENHOR:
Manda-me Vossa Majestade ver o Duodécimo Tomo dos Sermões do Padre Antônio Vieira, digníssimo pregador de V. Majestade, glorioso timbre da Nação Portuguesa, mestre universal de todos os declamadores evangélicos, venturoso aluno da sempre esclarecida Companhia de JESUS, e que, entrepondo o meu juízo, diga o meu parecer sobre a estampa deste livro, que, sendo na promessa do autor o último dos seus Sermões, ainda não é o póstumo. Todas as composições deste grande homem parecem últimas, porque depois de qualquer delas não se pode esperar outra maior, nem ainda igual. A sua eloqüência, porém, vence de tal maneira a nossa admiração, que o vimos prorromper em doze partos iguais e tão perfeitos, que cada um deles, por consumado, pareceu o último, e, se a mão que escreveu estes discursos tivera atividade para, depois das cinzas, mover a pena, veríamos que, sendo na perfeição cada um dos seus tomos último, não poderia haver jamais último algum em os seus tomos, porque foi inexaurível a fecunda veia do seu gênio. Tudo o que dela correu, se pela perfeição foi último, o não ter último foi a sua maior perfeição. Dos Sermões do Padre Antônio Vieira só descubro em Jó alguma analogia, se bem que não é proporcionada a semelhança, porque no Padre Vieira foi a semelhança tão singular, que só nele se deve buscar o semelhante. Jó foi tão grande pregador que, confessando-se dentro na sua província a superioridade todos os seus contemporâneos, lhe reconheciam singularidade no talento para o ministério do púlpito, querendo que só a ele em todo o lugar se lhe levantasse a cadeira, como a mestre: In platea parabant cathedram mihi, ut magistro ac doctori[1] – disse Pineda. Este grande pregador, querendo deixar os seus sermões para exemplo da posteridade, desejou muito estampá-los no chumbo ou nas pedras: Quis mihi tribuat ut scribantur sermones mei? Sermones suas desiderat scribi in libra ad doctrinam posterorum[2] – escreveu Hugo. O Padre Antônio Vieira deixou aos seus sermões mais gloriosa estampa, pois no juízo dos homens tem a posteridade o papel mais perdurável para a leitura dos seus escritos, E teve maior fortuna nos Sermões que Jó, porque Jó teve muitos meses no ano a quem não corresponderam os seus discursos, porque se não igualaram ao número dos meses do ano os seus sermões: Ego habui menses vacuos[3]. – A estampa, porém, deste Duodécimo Tomo, forma dos escritos do Padre Vieira um ano inteiro, porque a cada mês do ano corresponde um tomo, e se nós, pelas matérias dos tomos, houvéssemos de contar os meses do ano, seria necessário acrescentar ao ano os meses, porque nos seus escritos há matéria para muito mais tomos.
Este insigne homem, verdadeiramente, Senhor, foi um monstro daqueles de quem diz o sagrado texto que eram da geração dos gigantes: Vidimus monstra quaedam de genere giganteo[4] – pois em tudo foi um monstro o Padre Antônio Vieira. Nas especulações gigante, sem ter a profissão das cadeiras. Nas Teologias expositivas gigante, como se para ele só fossem as Escrituras. No zelo da honra de Deus gigante, como se à sua conta só estivesse a reformado mundo. No amor do próximo gigante, como se as missões fossem só para o seu talento. Nas políticas gigante, como se as razões de estado foram somente a ocupação dos seus estudos. Na honra da pátria gigante, desejando de reino mudá-la em império. Na emulação de muitos gigante, mas tão singular que, ainda vencidos, os opostos ficavam gloriosos, porque eram de tão desmarcado monstro vencidos. Nos infortúnios do mar e da terra gigante, porque superior a toda a desgraça, e maior que toda a fortuna. No conhecimento do mundo gigante, porque meteu debaixo dos pés as suas promessas. Finalmente, gigante nos passos, pois correu quase toda a Europa, atravessou grande parte da América, pisou na África não pequena parte, e para que à Ásia não tivesse a desgraça de lhe faltar a presença de tão grande homem, se lá não chegou a sua voz, lá se lhe ouviu o seu eco, porque para em tudo ser gigante, a cuja presença rendesse o mundo as venerações devidas ao seu talento, se converteu nos seus escritos, para que ao mesmo tempo que no sepulcro está emudecida a sua voz, atroe em todas as quatro partes do mundo o seu brado. E em matérias tão diferentes, ser o talento igual para tudo, esta foi uma das monstruosidades do juízo do Padre Antônio Vieira.
Príncipe houve que na urna das suas cinzas pôs os seus escritos, e mandou levantar um mausoléu tão grande, que de todo o seu domínio se pudesse ver o seu túmulo de todos aqueles a quem chegou a notícia dos seus discursos. Mais faz V. Majestade ao Padre Antônio Vieira, porque depois da sua morte, por benefício da estampa, lhe faz V. Majestade as honras com tal real magnificência, que em todas as quatro partes do mundo se pode ver a pirâmide da sua memória; e se a sorte invejosa no-lo quis roubar ao nosso hemisfério, escondendo nos desertos da América este tesouro, V. Majestade o desenterra, para lhe mandar fabricar a sepultura em todo o mundo, porque só toda a terra é adequado túmulo para homem tão raro.
O português, no parecer do Padre Vieira, é homem de todo o mundo[5]: todo o mundo lhe deu o ser, porque todo o mundo é o seu berço, toda a terra a sua pátria, e, se tudo se resolve no seu princípio, não será novidade que em todo o mundo se veja a resolução do Padre Antônio Vieira, quando todo o mundo, para a estimação, deu o ser a este português ilustre.
Mais se conhece o português, dizia o Padre Vieira, pelo lugar aonde morre que pelo lugar aonde nasce[6]: e para que o Padre Vieira fosse conhecido como singular entre todos os portugueses, era justo que pelos seus escritos vivesse em todo o mundo, para assim morrer em toda a terra.
Depois de morto, levantaram em Roma para as exéquias de Túlio duas urnas: uma para as lágrimas dos que tinham ouvido as suas vozes e lido os seus escritos, outra para as cinzas em que se resolveu tanta eloqüência. Para o Padre Antônio Vieira duas urnas é pouco túmulo, porque lhe contaremos as piras pelos corações aonde viverá a sua saudade. A vida eterna que mereciam as suas prendas se eternizará na nossa dor, para viver perpetuamente nas saudades dos nossos suspiros.
Nos seus doze tomos nos deixou doze fontes para as nossas lágrimas por uma tal perda, mas em cada uma destas fontes multiplicou Deus, como no deserto de Helim, as palmas: Duodecim fontes, et septuaginta palmae[7] – porque em cada um dos tomos se vêem multiplicados os triunfos do Padre Vieira. E se não foi novidade haver setenta palmas em doze fontes, menor admiração será em doze tomos, fontes perenes da eloqüência, levantarem-se ao Padre Antônio Vieira setenta triunfos. E se cada tomo contém quinze sermões, multiplicando pelos sermões as palmas, serão quinze os triunfos do Padre Vieira em cada tomo. Cada uma das fontes do deserto, na opinião de Hugo, eram os sermões dos pregadores: Sunt praedicatores duodecim fontes Helim[8]. – No Padre Vieira as fontes da sua erudição não foram doze sermões, mas doze tomos, porque, se nos outros pregadores não passou de doze o número dos sermões mais célebres; no Padre Antônio Vieira foram doze os tomos dos seus sermões.
Absalão, para a sua memória, ainda vivo, levantou um arco triunfal para perpetuar depois da morte a sua lembrança, e nele gravou a sua mão, para eternizar o seu nome: Hoc erit monimentum nominis mei. Vocavitque titulum nomine suo, et appellatur Manus Absalom[9]. – O Padre Antônio Vieira para a sua mão levantou doze pirâmides, porque em doze tomos erigiu a lembrança do seu nome, aonde, nos deixou os admiráveis partos da sua pena. A sua mão será sempre o seu título, porque viverá eternamente na sua pena a memória do seu nome. E se para a mão de tão grande príncipe, em Absalão bastou um triunfo, para a pena de Antônio Vieira foram necessários doze tomos, para lerem as idades futuras os vôos do seu juízo nos triunfos do seu nome.
Doze pedras mandou Josué levantar em o Jordão, e se estas doze pedras, no parecer de Hugo, eram a memória de doze pregadores: Duodecim lapides sunt duo-decim praedicatores[10] – quem não vê nos doze tomos do Padre Vieira clamar um só pregador mais que os doze de Josué nas doze pedras do Jordão? Porque nestas a estabilidade proporcionava a voz a distância; no Padre Antônio Vieira se lhe ouve em todo o espaço a voz, porque em todo o mundo, pela volubilidade dos tomos, lhe responde o eco.
As doze pedras do racional, que também na sentença de Hugo são as vozes dos pregadores, mais propriamente são os doze tomos deste pregador insigne, não só porque todas foram preciosas, mas porque no peito do Sumo Sacerdote tiveram toda
a estimação, pois no juízo do Vaticano foi o Padre Antônio Vieira aquele orador evangélico, em quem a verdade da doutrina católica fez irrepreensível a sua ciência[11].
Aquelas doze estrelas que coroavam a mulher do Apocalipse, no comento de Hugo, significam as vozes dos ministros do Evangelho, mas com maior propriedade simbolizam os doze tomos deste admirável homem, porque de semelhante argumento não tem a Igreja Católica de outros doze tomos mais rica coroa.
Antigamente, diz o sagrado texto, que era o sermão precioso: Sermo pretiosus[12] – porque era raro, diz Laureto: Quia rarus. O Padre Antônio Vieira com o seu engenho pôde tirar ao sermão o ser raro, pois nos deixou doze tomos, mas não pôde fazer, com todo o seu engenho, que não fosse precioso o sermão, porque em tão grande número soube unir o precioso e mais o raro.
O número de doze, em quem se compreende toda a obra deste orador admirável, diz Laureto, é número supérfluo, porque é superabundante: Numerus duodecimus est superfluus, quia superabundans[13], – O Padre Antônio Vieira com os seus sermões soube fazer o número doze escasso, porque para o nosso desejo é ainda diminuto o número de doze tomos.
O redundante do número de doze, diz o mesmo autor que para todos é afortunado: Feliz illa redundantia – mas, se falar do número de doze em ordem aos tomos do Padre Antônio Vieira, é para nós desgraçado este número, porque para a nossa lição desejáramos mais livros, e só então se daria por satisfeita a nossa curiosidade, quando para cada instante tivéssemos para o nosso ensino um tomo. Aonde chegou a voz de doze apóstolos, repartida em doze bocas, chegou a voz deste apóstolo, dividida em doze tomos[14]. Esta voz e aquela voz correram o mesmo espaço, porque uma e outra se ouviu em todo o mundo, mas aquela foi voz de doze em doze, e esta foi voz de doze em um. Uma voz em cada um dos doze não pregou em todo o mundo, nem a voz de um só se ouviu em toda a terra. Do Padre Antônio Vieira ouviu-se em todo o mundo a mesma voz, porque foi a mesma em cada um tomo, e pregou com a mesma em cada um livro. Nos apóstolos ouvia cada um a sua voz, mas só ouviam esta aqueles a quem eles pregavam; deste apóstolo todos ouviram a mesma voz e a mesma língua, tanto os que ouviam, como os que não ouviam: os que ouviam, porque na sua língua articulava; os que não ouviam, porque no seu idioma o leram.
Aos doze apóstolos custou-lhes a vida a sua pregação, e a este apóstolo não custou menor preço a sua pregação que a sua vida. Morreu com este último tomo nas mãos o Padre Antônio Vieira; mas se este perfeito religioso na vida foi um sermão vivo, ou pelo heróico exemplo das suas virtudes, ou pela singular resolução do seu desengano, como o não havia de colher a morte entre mãos com os seus Sermões? Se cada um morre como vive, o Padre Vieira, para morrer como viveu, devia morrer como morreu.
Justamente este seu último tomo devia ser o seu Benjamim, porque foi o seu último parto. Mas, se para o Padre Antônio Vieira este tomo foi o seu ditoso filho: Benjamin, id est, filias dexterae[15] – por que o tresladou do desterro para a pátria, para nós foi e sempre será filho infeliz, porque o levou da vida para a morte.
O duodécimo filho de Jacó foi para a mãe o filho da sua dor, porque a deixou morta: Filius doloris[16]; para o pai, contudo, foi o seu filho ditoso, porque o deixou vivo: Filius dexterae. O Benjamim do Padre Antônio Vieira foi este tomo, porque foi o seu duodécimo filho; mas, ainda que foi filho da sua dor, porque a sua geração lhe custou a vida, foi também filho da sua bênção: Filius dexterae – porque nele satisfez a palavra dos seus doze tomos. E é coisa que pode causar grande novidade que, prometendo o Padre Antônio Vieira em anos tão avançados uma obra que, segundo a sua direção, ao menos pedia doze anos, assim medisse a sua vida pela sua obra, que acabou a obra e mais a vida. Cícero, na morte de César, dizia que tivera este imperador uma notável desgraça, e fora que, vivendo para a idade muito, para o seu préstimo vivera pouco: Vixisti aetati satis, parum certe reipublicae. Para tudo viveu muito o Padre Antônio Vieira, porque se para a vida contou noventa anos, para o préstimo não foi menor a sua idade, antes mediu a sua idade pelo seu préstimo, porque desde a puerícia viveu para servir a nossa admiração.
Comumente os homens grandes, para as suas empresas lhes falta nos últimos anos o que perderam nos primeiros, e aquelas fábricas, que delineia a alteza do seu espírito, ficam informes, porque lhes faltam as forças primeiro que se acabem as empresas. O Padre Antônio Vieira, como não só foi grande, mas também único, as suas empresas foram iguais às suas forças, porque prometeu doze livros, e acabou doze tomos. Não foi daqueles de quem dizia Cristo que, principiando a abrir os fundamentos para a torre, não puderam acabar o edifício: Hic homo coepit aedificare, et non potuit consummare[17] – porque principiou e acabou a sua fábrica pondo com este Duodécimo Tomo a coroa à sua obra.
Venturoso filho, que em anos tão crescidos ainda achou forças no pai, para que pudesse gerar obra tão estupenda! Abendiçoado filho, que, sendo filho da velhice, tem o vigor da mocidade! E se o duodécimo filho de Jacó aliviou em o pai a saudade da mãe, nós com a mãe, a quem ficou entregue este duodécimo filho, aliviaremos as saudades do pai, pois em ventre tão fecundo, ainda do pai morto poderemos esperar geração em a mãe viva; e aquelas grandes obras que o autor no prólogo da sua Primeira Parte nos diz que se acham forjadas em os seus escritos, como na tenda de Vulcano, mas ainda imperfeitas, porque já as forças as não podem bater para as aperfeiçoar, veremos nós que, depois da morte do Padre Antônio Vieira, têm elas com toda à perfeição o seu nascimento, porque, ainda que a mãe é mais velha que o filho, contudo tem mais forças que o filho a mãe. Nem se pode esperar menos da ditosa mãe do Padre Antônio Vieira, sendo esta a Companhia de Jesus, porque só aqui pode ter o Padre Vieira companhia.
Em duas sepulturas enterrou Abraão a Sara em o campo de Hebron: –Sepelivit eam in spelunca duplici[18] – porque nesses dois sepulcros, diz Hugo, enterrou o contemplativo da alma do morto, e a vida ativa do corpo do vivo: Spelunca duplex, vita activoruni et contemplativorum – e na sepultura de Hebron, que quer dizer companhia: Hebron, societas – costuma ter companhia o morto, cuja alma contempla com a vida ativa do vivo, para que a atividade do vivo publique as contemplações da alma do morto.
Na companhia o vivo faz sociedade ao morto, e o morto tem companhia no vivo, porque no vivo fica ressuscitado o morto. E, se o morto na companhia é ressuscitado no vivo, teremos, em tantos vivos da Companhia, ressuscitado o Padre Antônio Vieira depois de morto. Já não é para admirar aquele grande segredo que todos ignoravam no tempo do Senhor Rei Dom João o IV, digníssimo pai de V. Majestade, vendo todos as incansáveis diligências com que o Padre Antônio Vieira renunciou as maiores dignidades, só por se conservar e viver na Companhia, porque sabia que, se fora desta grande e generosa mãe havia de ser ressuscitado no último dia, como todos os homens, antes deste dia era bem que este grande homem ressuscitasse, e, para ser ressuscitado antes da ressurreição comum, só em Hebron imediata à sua morte podia ter logo a ressurreição.
Esta ressurreição que depois da morte esperamos ver no Padre Antônio Vieira antes do dia do juízo, por meio das suas obras, não só firma na Companhia de Jesus o seu complemento, mas também no singular cuidado com que V. Majestade, e a Rainha, nossa Senhora, se aplicaram para a conservação dos escritos de um vassalo que neste século nenhum príncipe o teve maior, e só Deus sabe quando V. Majestade o terá igual. Aplicou V. Majestade, e a Rainha, nossa Senhora, a consideração à fragilidade caduca de uma vida, a quem a inveja da sorte quis acabar com vários infortúnios, se bem todos pequenos para um ânimo tão grande, e por isso todos foram pequeno despojo para o seu triunfo; e, para que no pó de tão heróicas cinzas não tivessem parte os metais de tão soberana estátua, procuraram Vossas Majestades preventivamente o reparo para a conservação do trabalho dos seus estudos.
Os reis da Pérsia, para se não perderem as obras heróicas dos seus vassalos, costumavam antigamente mandá-las lançar nos arquivos públicos; aqui se conservaram, mas não se comunicavam aqui a todos, porque toda a posteridade não podia ler o livro do seu depósito. Vossa Majestade, e a Rainha, nossa Senhora, com mais superior impulso, mandam vir da América os escritos do Padre Antônio Vieira, e, para os conservarem em arquivo comum para todos, em todo o mundo hão de lançar as suas notícias, para que todos os homens possam ler as obras de pena tão rara, e saberão que, se Portugal das suas minas desenterra preciosas pedras, também tem depósitos, onde conserva sujeitos, em quem, quando lhe é necessário, desenterra tesouros.
Tesouro foi o Padre Antônio Vieira, e tesouro de toda a riqueza, porque nele não depositou Deus coisa que não fosse preciosa, e tão preciosa que, sendo os seus Sermões tão únicos, ele os julgava como de nenhum valor, em comparação do preço que se devia ao demais que conservava no tesouro do seu engenho. Falando o Padre Antônio Vieira das preciosas pedras dos seus escritos, em uma carta familiar escrita com toda a confiança, dizia que não sabia qual furor o arrebatara nos primeiros anos, para abrir alicerces a grandes palácios, os quais vieram a acabar nas pobres choupanas dos seus doze tomos[19]. Se estes são pobres tugúrios da sua eloqüência, quais serão os edifícios da sua idéia, em cuja suntuosidade tivesse o Padre Antônio Vieira Capitólio condigno do seu juízo? Se tanta singularidade no dizer, e tão única no amplificar, era no conceito do Padre Antônio Vieira indigno teatro para o seu nome, qual será o carro capaz para o seu triunfo?
Os primeiros partos dos autores costumam ser o frontispício do seu talento; mas como o Padre Antônio Vieira foi autor único em todos os seus escritos, bastam as suas choupanas para dar a conhecer os seus palácios, porque, para a suspensão de todos, bastam os abortivos partos do seu engenho. Para o conhecimento dos pigmeus não basta ainda todo o corpo, mas para os gigantes basta um dedo; e como o Padre Antônio Vieira foi gigante desmarcado em todo o gênero de escritura, basta o seu dedo para o conhecimento da sua eloqüência.
Estas razões, Senhor, me obrigam a dizer a V. Majestade que esta obra merece a real atenção de V. Majestade, que é o que basta para explicar a sua grandeza, e que V. Majestade não só se sirva de conceder a licença que justamente se pede, mas de mandar aos religiosos da Companhia que, assim como nos comunicaram as notícias das choupanas, assim nos dêem o incomparável gosto de podermos admirar as idéias dos palácios de um arquiteto que não teve igual; e, se de muitos deles se não achar mais que o fundamento, alicerces do Padre Antônio Vieira por si só bastam, como se foram máquinas grandes. Se na sua Clavis Prophetarum falta alguma guarda para poder abrir em algum capítulo dos profetas, do Padre Antônio Vieira não há chave que não seja mestra para poder abrir a fechadura de toda a dificuldade; e se ao último tomo desta célebre obra, segundo me disseram, faltam só duas disputas, melhor é que duas disputas nos faltem do que, pela falta de duas disputas, ficarmos perdendo a dois tomos, que forçosamente devem ficar sem a última mão, porque só a lima do Padre Antônio Vieira pode aperfeiçoar condignamente a guarda da sua chave.
Posso afirmar a Vossa Majestade, pela notícia que deu em Roma quem teve a fortuna de ver esta grande obra, e, pelas conferências que tive na mesma corte sobre a matéria do seu argumento, que, enquanto não aparecerem estes dois livros, ainda está o mundo por saber quem é o Padre Antônio Vieira, e qual foi a singularíssima compreensão com que Deus dotou a sua agilidade, porque tudo o que se tem visto das suas obras é um corpo sem alma a respeito desta grande empresa, e, depois que se comunicar à notícia pública, verão todos tal diferença dos outros escritos a este comento que, ou Antônio Vieira no comento é outro, ou as demais obras não são parto do seu juízo. E se o mundo pasmou no que já viu, sendo tudo isto, sem comparação alguma, menor que uma só regra da Clavis Prophetarum, vêm a ser estes livros, sem controvérsia alguma, superiores a todo o gênero de escritura.
Seus naufrágios tem tido esta obra primeiro que tenha aparecido na luz da estampa. Um no furto, que já se lhe intentou fazer, e sem dúvida se efetuará, se V. Majestade, com sua real atenção, não fizera restituir ao Padre Baltazar Duarte, como a procurador do Padre Antônio Vieira, o tesouro que nos roubavam de Portugal; outro naufrágio foi o juízo que muitos fizeram desta empresa, sem saberem nem o que ela é, nem o que ela contém. E para V. Majestade evitar segundo furto, e impor perpétuo silêncio a quem fala sem saber o que diz, deve mandar logo publicar esta obra, ordenando que, enquanto se estampa este tomo, se prepare a impressão para estes dois livros, e para tudo o mais que do Padre Antônio Vieira escreveu a pena ou ditou o juízo. E porque não sei se V. Majestade se servirá de me continuar a mercê de me mandar ver as demais obras, assim como foi servido que eu revisse o Undécimo e Duodécimo Tomo, supondo ser esta a última vez que, por escrito, fale nas obras do Padre Antônio Vieira, peço a V. Majestade que, por sua real grandeza, me permita o ter deixado correr a pena para dizer em tanto papel tão pouco; porque assim ao menos, se não digo o que devo, profiro o que posso. E, concluindo com o meu juízo, acabo dizendo que de tão grande homem, não há letra que se possa perder, nem sílaba que se não possa estampar. Este é o meu parecer. Vossa Majestade mandará o que for servido. Lisboa, 5 de setembro de 1698.
D. Arcebispo de Cranganor
Que se possa imprimir, vistas as licenças do Santo Ofício e Ordinário, e, depois de impresso, tornará à mesa para se conferir e taxar, e sem isso não correrá. Lisboa, 12 de setembro de 1698.
Marchão Ribeiro Oliveira
Está conforme com seu original. Lisboa, S. Elói, 7 de dezembro de 1699.
Francisco de S. Maria
Visto estar conforme com seu original, pode correr. Lisboa, 11 de dezembro de 1699.
Dinis
Carneiro
Munis
Fr. Gonçalo
Pode correr.
Fr P Bispo de Bona
Taxam este livro em doze tostões. Lisboa, 14 de dezembro de 1699.
Duque P. Roxas
Marchão
Pereira
Oliveira
Costa
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
[1] Preparavam-me uma cadeira na praça pública – como a mestre e a doutor (Jó 29, 7).
[2] Quem me dera que as minhas razões fossem escritas (Jó 19, 23)! – Deseja que seus sermões sejam escritos em livro, para doutrina da posteridade (Hugo).
[3] Eu tive meses vazios (Jó 7, 3).
[4] Vimos certos monstros da raça dos gigantes (Núm. 13, 34).
[5] No Sermão do Te Deum.
[6] No Sermão de Santo Antônio, pregado em Roma.
[7] Doze fontes e setenta palmeiras (Êx. 15. 27).(8)
[8] Hug. in 4 Josue, § Moraliter.
[9] Este será um monumento do meu nome. E deu o seu nome a esta coluna, que se chama a Mão de Absalão (2 Rs. 18, 18).
[10] Hugo ubi sup.
[11] Ob sanctitatem doctrinae — disse em um breve, do P. Vieira, Clemente X.
[12] 1 Rs. 3,1.
[13] Sylva, Allegor, verb. 12.
[14] Os padres da Companhia em Portugal se chamam apóstolos.
[15] Benjamim, isto é, filho da mão direita (Gên. 35, 18).
[16] Filho da dor (ibid.).
[17] Este homem principiou o edifício, e não pôde acabá-lo (Lc. 14, 30).
[18] Gên. 23, 19.
[19] Escrita ao doutor Sebastião de Matos e Sousa. da Congregação do Oratório.