Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão na Degolação de S. João Batista, do Padre Vieira 


Edição de Referência:

Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO NA DEGOLAÇÃO DE S. JOÃO BATISTA,

Em Odivelas, ano de 1653.

Misit Herodes, ac tenuit Joannem, et vinxit eum in carcere propter Herodiadem, uxorem Philippi fratris sui, guia duxerat eam... et decollavit eum in carcere[1].

§ I

O autor, e o uso dos antigos hebreus de não só saborearem as mesas com pratos regalados e esquisitos, mas também com problemas discretos e proveitosos. O problema apresentado pelo pregador ao banquete de El-Rei Herodes com os grandes de sua corte.

Uso foi dos antigos hebreus — de quem o tomaram os gentios mais sábios, gregos e romanos, e sem perigo da fé, antes com louvor dos costumes, o deverão imitar os cristãos — uso foi, digo, nos famosos convites, não só saborearem as mesas com pratos regalados e esquisitos, mas também com problemas discretos e proveitosos. Lembravam-se aqueles homens que eram racionais, e parecia-lhes coisa indigna de uma natureza tão nobre, que ficassem em jejum as potências da alma, quando tanto se estudava e despendia em dar pasto e delícias aos sentidos do corpo. Entre outros exemplos deste célebre costume — muito antes de Salomão compor para ele as suas parábolas — temos o das bodas de Sansão, o qual, com nome de problema, propôs na mesa aos convidados o enigmada sua vitória, dizendo: Proponam vobis problema[2]. — O mesmo digo eu, e farei hoje. Temos à mesa El-Rei Herodes com os grandes da sua corte, e assim como Herodias tomou por sua conta pôr nela o mais esquisito prato, eu quero que corra pela minha propor o mais proveitoso problema. O prato foi a cabeça do Batista, o problema não será indigno de que o mesmo Batista o pregasse.

Ave Maria.

§ II

O problema: quais mulheres são mais perniciosas aos homens: as próprias, como Herodias era de Filipe, ou as alheias, como Herodias era ou não era de Herodes. As duas coisas mais poderosas do mundo, o vinho e a mulher A mulher e os heróis e patriarcas do Testamento Velho.

Nesta grande tragédia do maior dos nascidos, fazem o primeiro e segundo papel dois homens, que também nasceram grandes: um Herodes, outro Filipe; um rei, outro seu irmão; um sem honra, outro sem consciência; um casado, mas sem mulher; outro com mulher, mas não casado. E de toda esta violência, de todo este escândalo, de todo este vitupério de um e outro, não foram duas mulheres a causa, senão uma só, e a mesma, a infame Herodias. A tanto se atreve um amor poderoso, a tanto se delibera uma ambição impotente. Era Herodias no mesmo tempo mulher de Filipe própria, e de Herodes alheia; ambos por ela infelizes, ambos por ela afrontados, ambos por ela, em diverso modo, perdidos. Nesta história se funda o meu problema, como o de Sansão na sua, e será este: Quais mulheres são mais perniciosas aos homens, se as próprias ou as alheias? Se as próprias, tomo Herodias era de Filipe, ou as alheias, como a mesma Herodias era ou não era de Herodes? Já sabeis que quem disputa problemas não tem obrigação de os resolver. E porque cada um deve seguir aparte que mais lhe contentar, todos devem atenção a ambas.

Mas antes que entremos na disputa, vejamos brevemente primeiro quão problemática é a matéria. Propôs-se em outro convite, que refere Esdras, aquela famosa questão: qual era a coisa mais poderosa do mundo; e uns filósofos disseram que a mulher, outros que o vinho. Não me detenho nas razões de cada um, mas só reparo na discrepância dos extremos e na concórdia dos votos. Em que simbolizam o vinho e a mulher, para se atribuir a ambos o maior poder? Simbolizam, disseram os mesmos filósofos, em que o vinho e a mulher, ambos rendem o domínio de tal sorte aos homens, que lhes tiram o juízo. Adão, o primeiro pai do gênero humano, e Noé, o segundo, ambos perderam o juízo: e quem lho tirou? Ao primeiro a mulher, ao segundo o vinho. E assim como o vinho para tirar o juízo a um homem, não importa que seja da sua vinha, ou da vinha do outro, assim também a mulher, tanto lhe pode tirar o juízo a alheia como a própria. Demos a Adão outro companheiro. Perdeu Adão o juízo, perdeu o mundo: e por quem? Por amor de Eva. Perdeu Davi o juízo e perdeu o reino: e por quem? Por amor de Bersabé. Bersabé era mulher alheia. Eva era mulher própria. Mas que importou que uma fosse própria e outra alheia, se ambas perderam a ambos?

O Espírito Santo, que não pode errar, diz que as mulheres fazem apostatar da fé, e idolatrar aos sábios: Mulieres apostatare faciunt sapientes (Ecle. 19, 2). — Não diz aos homens, senão aos sábios, que são aqueles homens que até sobre as estrelas têm domínio. Ditou este oráculo o Espírito Santo por boca de Salomão, e no mesmo Salomão, que foi o mais sábio de todos os homens, se viu provado. As mulheres gentias lhe depravaram o juízo de tal sorte, que o famoso edificador do Templo de Jerusalém, não só adorou os seus ídolos, mas também lhes edificou templos. E por que chegou a cair em tal cegueira um tal homem? Porque antes de adorar os ídolos, adorava as idólatras. Primeiro foram elas ídolos de Salomão, do que Salomão adorasse os seus ídolos. E, uma vez que as mulheres são ídolos, tanto monta que sejam próprias, como alheias. Que importa que o ídolo seja ou não seja meu, se eu o adoro? Raquel, quando ainda era gentia, furtou os ídolos de seu pai Labão; e qual dos dois era mais idólatra? Os ídolos que adorava Labão eram seus, os que adorava Raquel eram roubados; mas tão idólatra era Raquel adorando os ídolos alheios, como Labão os próprios. Daqueles ídolos, diz Davi que tinha olhos e não viam, ouvidos e não ouviam, boca e não falavam. Vede se será o mesmo nos ídolos que falam, que veem e que ouvem? Tanto importa que sejam próprios ou alheios, para vos fazer apostatar.

Finalmente, o mesmo homem que nos deu o exemplo com o seu problema, sem o dividirmos em dois sujeitos, e sem o declararmos por metáforas, é a maior prova do nosso. Teve Sansão duas mulheres, uma própria, outra alheia, porque uma era legítima e outra não. A alheia se chamava Dalila, a própria não tem nome na Escritura. E que lhe sucedeu com ambas? Tão alheia foi do seu amor a alheia como a própria, e tão própria para os enganos a própria como a alheia. Ambas o enganaram, ambas lhe foram infiéis, ambas ingratas, ambas traidoras, ambas cruéis, ambas inimigas. A própria o rendeu com lágrimas e carícias a que lhe descobrisse o segredo do seu enigma, e o revelou a seus competidores, e tomou por marido a um deles. A alheia, comprada por dinheiro, lhe roubou com as mesmas artes as chaves do tesouro de seus cabelos, os quais cortados, e enfraquecido Sansão, o entregou nas mãos dos filisteus. Estes foram os favos que tirou da boca daqueles dois leões o sábio e valente moço, o qual agora podia trocar o seu problema com o nosso, e perguntar, com maior razão, quais mulheres são mais perniciosas ao homem, se as próprias ou as alheias. Mas já é tempo que entremos na teia da disputa, e discorramos por uma e outra parte os fundamentos tão verdadeiros, como fortes, com que ambas se combatem ou se defendem.

§ III

As mulheres alheias. O matrimônio e o adultério. Para serem perniciosas as mulheres, alheias, basta serem alheias. A parábola do profeta Natã e o adultério de Davi. Paralelo entre El-Rei Davi e El-Rei Acab. As mortes violentas e as desgraças trazidas por Bersabé à casa de Davi.

Começando pelas mulheres alheias, qual era Herodias em respeito de Herodes, a razão, a experiência, as leis de todas as nações, ainda bárbaras, os escândalos particulares e públicos, a ruína das casas, a infâmia das pessoas, as mortes violentas na paz, o sangue correndo a rios nas guerras, a destruição de cidades, a assolação de reinos inteiros, enfim, a voz e consenso do gênero humano, continuado por todas as idades do mundo, tudo isto é um testemunho universal, e de maior autoridade que a de todos os escritores — também concordes na mesma opinião — o qual afirma, defende, e sem contradição pronuncia que as mulheres mais perniciosas aos homens são as alheias. As próprias são companheiras no matrimônio, as alheias são cúmplices no adultério; e, sendo o adultério pecado, e o matrimônio sacramento, mais parece sacrilégio que agravo a comparação por si só entre umas e outras, quanto mais o pôr em questão e em dúvida quais sejam mais danosas ao homem. O matrimônio foi instituído por Deus no estado da inocência; o adultério foi maquinado pelo demônio depois da natureza corrupta; o matrimônio, ainda antes de ser sacramento, sempre foi lícito, honesto e santo: o adultério sempre ilícito, sempre injusto, sempre abominável; e, sendo qualquer pecado o maior mal de todos os males, e este por sua malícia tão grave, que Jó, professor somente da lei da natureza, lhe chamou a máxima das maldades: Quae est iniquitas maxima (Jó 31, 28) — quando as mulheres alheias não foram ocasião e causa aos homens de outro mal, mais que o pecado, só por este, que sempre é inseparável do adultério, se lhes devia em grau superlativo, e sobre toda a comparação, o nome de perniciosas.

Para serem perniciosas, e causadoras de gravíssimos males as mulheres alheias, não basta serem mulheres — como indiscretamente dizem muitos, sem o respeito e reverência devida ao sexo de que todos nascemos — mas o que eu digo é que basta serem alheias. Alheia era aquela mulher que Davi tomou ocultamente a Urias, abusando do poder real, exemplo em que tem mais imitadores que no de suas virtudes. Mandou Deus ao profeta Natã que lhe fosse estranhar de sua parte um tão grande, e nele, tão novo excesso: e que fez o profeta? Para que o rei em terceira pessoa reconhecesse melhor a fealdade do seu pecado, representou-lhe o primeiro na parábola ou acusação de um poderoso, o qual tomara a um pobre uma só ovelha que tinha, para com ela agasalhar um peregrino que se viera hospedar em sua casa. O poderoso era Davi, o pobre, Unas; a ovelha, sua mulher Bersabé, e o peregrino, o mau apetite, que casualmente, e fora do que Davi costumava, se lhe introduziu no coração, e ele o recebeu como não devera. Mas, se o pecado era de adultério, por que o representou o profeta em parábola e figura de furto? Porque o furto e o adultério ambos têm o mesmo objeto, que é o alheio. É pensamento de S. Ambrósio em diferente caso, mas muito próprio do presente. Chama o santo doutor elegantemente à cobiça, luxúria de dinheiro: Aeris libido — e, prosseguindo na mesma metáfora, diz que os furtos são adultérios da cobiça: Aeris libido sic igne suo pascit animus, ut hoc solo a luxuria distet, quod haec farmarum adultera sit, avaritia terrarum. — Assim como o torpe pode ser torpe sem ser adúltero, assim o cobiçoso pode ser cobiçoso sem ser ladrão; mas quando chega a ser ladrão, logo juntamente é adúltero. E por quê? Porque assim o furto, como o adultério, têm por objeto o alheio: o adultério, a mulher alheia; o furto, a fazenda alheia. E assim como o tomar a mulher alheia é adultério da torpeza, assim o tomar a fazenda alheia é o adultério da cobiça.

Vede agora se se infere bem que, ainda que a mulher alheia não fora mulher, só por ser alheia seria causa de grandes males ao homem. E para que o mesmo caso que nos deu a semelhança de um e outro adultério, nos dê também a prova de um e outro, efeito, ponhamos em paralelo ao mesmo rei Davi com El-Rei Acab, e veremos as calamidades e desventuras a que ambos se condenaram, um porque tomou o alheio, outro porque tomou a alheia. Tomou Acab a vinha de Nabot: e que se seguiu desta violência? — para que não percamos o decoro ao nome real com lhe chamar furto. — Lá disse S. Paulo que um pequeno fermento corrompe toda a massa: Modicum fermentum totam massam corrumpit (1 Cor. 5, 6) — e tais são os efeitos do alheio, ainda que a massa, com que se ajunta ou mistura, seja uma monarquia inteira. Que comparação tinha a vinha de Nabot com o reino de Acab? Mas era alheia, posto que tão pequena. E como se Nabot com as vides da sua vinha lhe pusera o fogo, assim ardeu em um momento a casa de Acab, a coroa, o reino, a vida sua, e de sua mulher, a honra, a fama, o estado, a fuces são, e até os ossos de ambos. E se isto faz o alheio em matéria de tão pouco preço, que faria na mais preciosa, na mais prezada, na mais estimada de todas, e que o homem não distingue de si mesmo, qual é a mulher? Diga-o Bersabé — para que voltemos os olhos à outra parte do paralelo — diga-o Bersabé, que foi a Helena de Israel, e chore-o a casa de Davi, que foi a Tróia daquela Helena.

De Tróia fingiram os poetas que fora fundada pelos deuses: Caelitum egregius labor[3], — Mas depois que nela entrou Helena, roubada a seu marido Menelau, por Páris,filho de El-Rei Príamo, não lhe valeu a divindade de seus fundadores para que não ardesse,deixando sepultada em suas cinzas a flor de toda a Ásia e Europa, consumi da no sítio de dez anos. Tão pernicioso é aos homens, e tão fatal pode ser aos mesmos reinos uma mulher alheia. A casa de Davi é certo que foi fundada pelo verdadeiro Deus, e com os mais altos e sólidos fundamentos de quantas houve, nem haverá no mundo, como aquela de cuja prosápia havia de nascer feito homem o Filho do mesmo Deus; mas tanto que nela entrou uma mulher tomada a seu marido, posto que não pública, senão ocultamente, este fogo oculto foi o que a abrasou e destruiu, como notou S. Crisóstomo: Nisi peccatorum scintillas occultasset, domus non conflagraret. — Que desgraças, que infortúnios não sucederam a Davi, e àquele grande herói, entre todos os da fama famosíssimo„ depois deste erro lamentável e tão chorado por ele? Mas nem os rios de lágrimas, que continuamente corriam dos mesmos olhos com que vira a Bersabé, bastaram a apagar o incêndio que com ela se ateou à sua casa, sendo a justiça do mesmo Deus, que a fundara, a que a um homem tão amigo, e tão do seu coração, castigou tão severamente.

Quatro eram as colunas principais sobre que se sustentava a casa real de Davi: Salomão, Adonias, Amon, Absalão; e, exceto o primeiro — que somente se conservou na promessa e juramento de Deus — todos os outros acabaram desastrada e tragicamente, porque Salomão matou a Adonias, Absalão matou a Amon, e, contra o preceito do mesmo Davi, Joab matou a Absalão. Deixo o primeiro filho, que lhe nasceu de Bersabé, morto por sentença divina antes de ter nome. Nem falo na desgraça de Tamar, viva para perpétua dor do pai, e epitáfio imortal de sua desonra. Afrontou-a seu próprio irmão Amon, com maior crueldade, que se a matara; mas não pararam aqui as mortes violentas e lastimosas na casa de Davi, porque, enquanto durasse no mundo a sua descendência, sempre a espada da divina justiça se veria tinta no seu sangue, em castigo e pena póstuma daquele pecado. É coisa que de nenhum modo se pudera crer, se assim o não dissera a mesma sentença: Quamobrem non recedet gladius de domo tua usque in sempiternum[4], -Ah! Rei Profeta, que se assim como víeis outros futuros, antevíreis os estragos que com aquela mulher, como nuvem prenhe de raios, trazíeis à vossa casa e sobre vossa pessoa, antes queríeis perder os olhos que pô-los nela!

Era Davi ungido por Deus; mas onde está a coroa? Lá a leva tiranicamente usurpada, e posta sobre a cabeça, o ímpio e rebelde Absalão, aclamado com trombetas, e seguido de todo o reino. Era o valente de Israel, que matava leões e gigantes, e vencia exércitos de filisteus; e agora vai fugindo pelos montes, de um moço, mais conhecido das damas pelos cabelos que dos soldados pela espada. Era o venerado, aplaudido e adorado das gentes; e agora apedrejado de Seroei, ouve os opróbrios, as injúrias, as calúnias, e as maldições de uma língua tão vil e infame, como ó mesmo que se atrevia a dizê-las. Era o mais rico monarca de quantos dentro e fora de Palestina acumularam tesouros; e agora, pobre, desterrado, faminto, vive das migalhas de Berzelai. Sobretudo, era aquele santo varão, cuja alma por suas virtudes era louvada em Deus: In Domino laudabitur anima mea[5] — e agora, pelo seu pecado, é Deus blasfemado nele: Quoniam blasphemare fecisti inimicos Domini[6]. — Há ainda mais desgraças? Há ainda mais afrontas? Há ainda mais castigos sobre Davi? Ainda. E os que na opinião dos homens são os mais afrontosos: Ecce ego suscitabo super te malum de domo tua, et tollam uxores tuas, et dabo proximo tuo, et dormiet cum uxoribus tuis in oculis solis hujus. Tu enim fecisti abscondite: ego autem fatiam verbum istud in conspectu omnis Israel[7]. — Se cuidas, Davi — diz Deus — que com todos estes castigos tens purgado a tua culpa, enganas-te. Nem a morte dos filhos, nem a usurpação da coroa, nem a perda do reino, nem o desterro, nem a pobreza, nem a miséria, nem as injúrias e infâmias com que te vês, não só perseguido, mas abominado de teus vassalos, são bastante satisfação ao teu pecado: Ecce ego suscitabo super te malum — ainda te resta por padecer outro mal maior que todos esses males, que é a pena de talião: Dabo exores tuas proximo tuo. — Assim como tu tomaste a mulher alheia, assim permitirei que tomem outros as tuas, e não com a mesma, senão com muito maior afronta: Tu enfim fecisti abscondite ego autem fatiam in oculis solis hujus, in conspectu omnis Israel: Porque tu tomaste a mulher alheia, secreta e escondidamente, as tuas ser-te-ão tomadas e profanadas à vista de todo o mundo, e nos olhos do mesmo sol.

§ IV

A maior circunstância do adultério de Davi: o casamento. O açoite de Deus sobre Faraó, e sobre todos seus vassalos, quando se quis casar com Sara. O castigo de Holofernes e do príncipe Siquém. A terrível maldição de Balaão aos arraiais e exércitos do povo de Deus.

Verdadeiramente que se não puderam pintar com cores de maior horror, os danos e calamidades de que são causa aos homens, aos reinos e ao mundo as mulheres alheias, ou uma só mulher alheia, que é mais. Mas ainda não está ponderada a maior circunstância do caso. Não diz o relatório da sentença de Deus, notificada pelo profeta, que foi condenado Davi a todos estes castigos porque tomou a mulher alheia, senão porque, tendo sido alheia, a fez sua casando-se com ela, Assim o pronuncia expressamente o texto: Uxorem illius accepisti in uxorem tibi[8] — e assim o torna a repetir outra vez com a mesma expressão: Et tuleris uxorem Uriae Hethaei, ut esset uxor tua[9]. — E assim o tinha já advertido na história e narração do caso. Misit David, et introduxit eam in domum suam, et facta est ei uxor; et displicuit verbum hoc coram Domino[10] — Onde se deve notar que este matrimônio, posto que nas leis cristãs seria ilícito e inválido, nas leis hebréias, porém, não tinha proibição alguma; e por isso o mesmo Davi, depois de reconciliado com Deus, teve sempre aquela mulher por legítima, e a tratou como tal. Pois, se Bersabé, quando Davi a tomou a Unas, sendo ele vivo, era alheia, e depois da sua morte, quando se casou com ela, já era própria, por que se fulminam todos os castigos contra Davi, não tanto pelo adultério quanto pelo casamento? E não tanto por tomar a mulher alheia quanto pela fazer sua? Teodoreto, fundado nos textos que alegamos, diz que deles se colhe que mais sentiu Deus o matrimônio de Davi com Bersabé do que o adultério: Tacite significar oratio, quod Deus magis succensuit ob matrimonium, quam ob prius commissum adulterium. — E do mesmo parecer é Procópio, a Glosa, e outros graves autores, com que mais se acrescenta a dúvida ou admiração de tão extraordinários castigos.

Mas, antes que demos a razão deste caso, ponhamos à vista dele outro porventura mais admirável. Entra Abraão no Egito, tendo primeiro concertado com Sara que se nomeie, não por mulher, senão por irmã sua Chega a fama de sua formosura a El-Rei Faraó, e a fim de se casar com ela — como era lícito e usado naqueles tempos — manda que lha levem ao paço, e que a Abraão, como irmão seu, se façam grandes mercês. Executou-se assim, com aquela diligência com que os apetites dos reis costumam ser obedecidos; mas o castigo do céu ainda foi mais apressado, porque no mesmo ponto, sem ofensa da honestidade de Sara, veio o açoite de Deus sobre Faraó, e sobre todos seus vassalos: Flagellavit autem Dominus Pharaonem plagis maximis, et domum ejus, propter Sarai uxorem Abram[11]. — As pragas ou calamidades de que constou o açoite, que a Escritura chama máximas, foram estas: caiu de repente o mesmo Faraó mais morto que enfermo, com acerbíssimas dores, que, sem poder aquietar nem de dia nem de noite, o atormentavam mortalmente. Começaram a tumultuar e rebelar-se-lhe os vassalos, ateou-se peste em todo o reino, esterilizaram-se não só os campos, mas com prodígio inaudito, até os animais e homens, cessando totalmente em uns e outros a geração e uso dela, e tudo isto só porque Faraó teve intento de se casar com uma mulher alheia. Mas, se Sara dizia que era irmã de Abraão, e Abraão que era irmão de Sara, e Faraó o supunha assim, ignorando totalmente que fosse sua mulher, sobre que caía este açoute do céu com tantos e tão extraordinários castigos, e não por outra causa, senão por ser Sara mulher de Abraão: Propter Sarai, uxorem Abram?

Aqui vereis em um e outro caso, não só quão perniciosas são aos homens, sobre toda a imaginação as mulheres alheias, mas quão pouco basta para serem criminadas diante de Deus por alheias, ainda que o não pareçam. Bersabé, ainda que casada com Davi, tinha sido mulher de Unas; Sara, ainda que reputada por irmã, era mulher de Abraão: e, posto que Davi se casara com Bersabé, e Faraó se queria casar com Sara, ambas legitimamente, nem a Davi o livrou dos castigos o matrimônio, nem a Faraó o escusou a ignorância; a um, porque a mulher verdadeiramente era alheia; a outro, só porque o tinha sido. Sara, ainda que fosse irmã de Abraão, podia ser casada e mulher de outro; e Faraó foi culpado em não fazer naquele caso o exame devido. Bersabé, ainda que já era livre pela morte do marido, tinha sido alheia no tempo do adultério; e Davi foi culpado em continuar o amor de quem lhe fora ocasião do pecado. E estas circunstâncias e considerações, que no juízo dos homens parecem leves e veniais, no de Deus são graves, e tão pesadas, como mostraram os açoites com que as castigou.

Oh! quantos reis e quantos reinos se arruínam, quantos exércitos e quantas armadas se perdem; quantas fomes, quantas pestes, e quantos infortúnios e calamidades gerais se padecem, não pelas causas imaginadas, que vãmente discorrem os políticos, mas pelas injúrias que cometem os maiores, ou contra o próprio, ou contra o alheio matrimônio, não sendo necessário que as mulheres sejam de outrem, mas bastando que não sejam próprias! Por amor de Diria se perdeu o príncipe Siquém, e todo o seu estado; por amor de Judite se perdeu o general Nabucodonosor, e a potência formidável dos seus exércitos. E por quê? Não porque em Diria ou Judite se violasse a fé devida ao tálamo conjugal — porque Diria era donzela, e Judite viúva — mas bastou que não fossem mulheres próprias, para que, desarmadas de todo o outro poder, fossem ambas a ocasião, e cada uma só a causa de tamanhos estragos.

O intento de Nabucodonosor era sujeitar todo o mundo a seu império, e o poder que ajuntou e expediu para esta vastíssima empresa era tão superior a todas as forças do mesmo mundo, que não houve cidade tão forte, nem reino tão poderoso, nem nação tão belicosa, que se atrevesse a o resistir, sujeitando-se tudo sem guerra nem batalha, ou de perto, só com a vista, ou de longe, só com a fama de tão insuperável potência. Sai porém Judite de Betúlia, e, não violentada, ou tomada por força, mas solicitada por amor e por rogos, ela só, e com a espada do mesmo general Holofernes, lhe cortou a cabeça; ela só, com um só golpe, degolou todo o seu exército, desarmou todo o seu poder, aniquilou todas as suas vitórias, emudeceu toda a sua fama, e a converteu em desprezo, confusão e afronta de toda a monarquia de Nabucodonosor.

Não era tão poderoso como Nabuco o príncipe Siquém, mas de maior título que Holofernes, com soberania de estado. Vivia nas suas terras e à sua sombra, como peregrino e estrangeiro, Jacó, pai de Diria; pediu-lha por mulher Siquém, tendo-lhe feito primeiro um daqueles agravos que costuma desculpar o amor e sarar o matrimônio; ofereceu-lhe por dote quanto pedisse; veio em condições tão ásperas e dificultosas como o mudar de religião, e circuncidar-se primeiro, não só ele, mas todos seus vassalos. E que se seguiu daqui? Um engano verdadeiramente injusto, mas um castigo, se merecido, atroz, e um exemplo por todas as suas circunstâncias temeroso e horrendo. No mesmo tempo em que todos voluntariamente se tinham ferido, e no dia em que as dores da circuncisão são mais insuportáveis, como nota o texto, dois irmãos de Dina, Simeão e Levi, moços que nenhum deles chegava a vinte e dois anos, entram armados pela cidade, matam ao príncipe e a seu pai, e a todos os siquemitas miseravelmente presos, e sem se poderem defender por causa das feridas e força das dores, levam cativas todas suas mulheres e filhos, assolam a cidade, despojam as casas, devastam os campos. Este foi o desastrado e lastimoso fim daquele príncipe, e de todo o seu estado e vassalos, não tanto por sossegar da sua paixão, quanto por se apressar na mesma cegueira. Que mais podia desejar Jacó que casar sua filha com o príncipe da terra em que vivia? Mas porque Siquém, como poderoso, não quis esperar pela bênção do matrimônio, incorreu tão miseravelmente a maldição que leva consigo toda a mulher que não é própria. Com esta maldição quero dar fim à primeira parte do problema, e para que todos acabem de conhecer quão grande maldição é, e de todos os modos a temam, sobre os dois casos de uma só mulher, acrescento outro de muitas.

Desejou El-Rei dos moabitas, Balac, amaldiçoar os arraiais e exércitos do povo de Deus — os quais ordinariamente se perdem, e têm infelizes sucessos, porque vão carregados de maldições — e o meio que para isso tomou, foi rogar por seus embaixadores ao profeta Balaão — profeta e feiticeiro juntamente — que os quisesse amaldiçoar. As instruções destes embaixadores iam acompanhadas de outras de ouro e prata, que também são boa parte da maldição. Mas, como Deus, uma, outra e três vezes provocado com os sacrifícios do mau profeta, lhe não permitisse amaldiçoar o seu povo, ele, que tinha os olhos postos na propina, se desculpou com o rei de o não poder servir, como desejara; porém, que, em lugar da maldição que lhe pedia, lhe daria um conselho tão efetivo como ela. Também não é coisa nova haver conselhos que sejam maldições, e tão vendidos e comprados como se foram oráculos de profetas. Qual foi pois o conselho de Balaão? Foi que o rei não saísse em campanha com exércitos de homens armados e ordenados, senão com tropas de mulheres mandadas à desfilada, porque, tanto que estas chegassem a se avistar com os capitães e soldados do exército de Israel, logo eles se lhes renderiam, sem dúvida, debaixo das condições que quisessem. — E, cometido este grave pecado — diz Balaão — o mesmo Deus que agora me não consentiu que eu amaldiçoasse o seu povo, fará nele tal estrago, que vós, ó Balac, vos deis por mui satisfeito, e não lhe desejeis maior maldição. — Este foi o conselho do mau profeta; e, se aconselhou como mau, também como profeta adivinhou o sucesso. Saem as madianitas em demanda dos arraiais de Israel, chegam primeiro à vista, e depois à fala, e não com outros feitiços que lhes desse Balaão, senão com os da sua presença, de tal maneira prenderam e sujeitaram os capitães e soldados israelitas que, se Deus não acudira com pronto e exemplaríssimo castigo, o exército, a jornada, a Terra de Promissão, e tudo se perdera. Foram degolados naquele dia vinte e quatro mil, que a tantos tinha já corrupto a peste das moabitas. Fazia horror a imensa mortandade, e corria o sangue a rios; não se guardou respeito à dignidade, nem foro à qualidade, nem exceção a pessoa, e só houve de diferença que os que a Escritura chama príncipes, os mandou Deus enforcar em forcas altas, com os rostos voltados ao sol, para que fossem mais conhecidos, e a sua infâmia mais pública. Foi boa maldição esta? Pois esta é a que nos particulares arruína as casas, e no comum as repúblicas, para que os príncipes, e os que o não são, se acautelem e temam, para que ninguém possa duvidar, e fique assentado por conclusão que as mulheres mais perniciosas aos homens são as alheias.

§ V

As mulheres alheias e o Monte das Maldições, Que comparação ou semelhança têm os trabalhos e vexações, posto que tantas e tão várias, padecidas pelos hebreus na sua história, com as imensas e quase infinitas que o gênero humano tem padecido, efeito tudo do pecado da primeira mulher? Tertuliano e as mulheres de seu tempo.

Entrando na segunda parte do nosso problema, à vista da maldição com que acabei a primeira, lembra-me que, quando se promulgou a lei na Terra de Promissão, foi com tal cerimônia, que as maldições que na mesma lei se fulminam contra os quebrantadores dela, se publicaram desde o Monte Hebal, o qual por isso se chamou o Monte das Maldições, e do mesmo modo as bênçãos e felicidades, que se prometem aos que aguardarem, se publicaram desde o Monte Garizim, ao qual, pela mesma causa, chamaram o Monte das Bênçãos. Suposto, pois, que segundo o merecimento dos autos, nenhuma injúria faremos às mulheres alheias em lhes chamarmos o Monte das Maldições, parece que às próprias e legítimas lhes é devido o nome de Monte das Bênçãos, pois estas acompanham sempre o sacramento do matrimônio, e sabemos que em sua primeira instituição, ainda antes de ser sacramento o abendiçoou Deus, lançando sua bênção a Adão e Eva: Masculum et feminam creavit eos, benedixitque illis Deus[12]. — Mas porque Eva correspondeu tão mal às obrigações de seu estado, que em lugar de ajudar o marido à conservação do morgado, que ambos receberam em dote, não só o destruiu e perdeu a ele, mas com ele a todos nós, como herdeiros que havíamos de ser seus, posto que ainda não éramos. Todos os trabalhos e calamidades que padecemos na vida, toda a corrupção e misérias a que estamos sujeitos na morte, todos os males, penas e tormentos, que depois da morte nos aguardam, ou em tempo, ou em toda a eternidade, tiveram seu princípio e trazem sua origem desde o pecado, por isso chamado original. De toda esta infelicidade foi causa uma mulher, e que mulher? Não alheia, mas própria, e não criada em pecado, mas inocente, e formada pelas mãos do mesmo Deus. Nota Teodoreto que todas as maldições ameaçadas e prometidas no Monte Hebal, se cumpriram e executaram no povo e gente hebréia, parte na destruição e excídio de Jerusalém por Tito e pelos romanos; parte pelos macedônios, em tempo de Alexandre Magno; parte por Nabucodonosor, no cativeiro de Babilônia; e parte multiplicadamente pelos assírios, na invasão de Senaquerib, na de Salmanasar, e nas dos outros reis inimigos.

Mas que comparação ou semelhança têm os trabalhos e vexações, posto que tantas e tão várias, padecidas pelos hebreus na sua história, com as imensas e quase infinitas, que o gênero humano tem padecido, padece, e há de padecer até o fim do mundo, efeitos tudo daquele primeiro pecado, e daquela primeira mulher nascida inocente, e sem ele? Todas as dores, todas as enfermidades, todos os desgostos e infortúnios particulares e gerais, todas as fomes, pestes e guerras, toda a exaltação de umas nações, e cativeiro de outras, todas as mudanças e transmigrações de gentes inteiras, das quais, ou só ficou a memória dos nomes, ou também eles com elas se perderam, todas as destruições de cidades e reinos, todas as tempestades, terremotos, raios do céu e incêndios, e todo o mesmo mundo afogado e sumido em um dilúvio, que outro princípio ou causa tiveram, senão a intemperança e castigo daquela mulher, não tomada ou roubada a outrem, senão própria, e dada pelo mesmo Deus ao homem: Mulier, quam dedisti mihi[13]?

Dirá, porém, algum entendimento crítico, que a causadora de tantos males foi aquela mulher fatal, primeira e universal origem do gênero humano, e não alguma particular, e do tempo presente, que são as de que falamos. Mas ouça quem assim o imaginar, ao antiquíssimo e doutíssimo Tertuliano. Fala há mais de mil e quatrocentos anos com qualquer das mulheres casadas do seu tempo, e diz assim: Et Evam te esse nescis[14]? E cuidas tu que, por nasceres tão longe da primeira mulher, não és tão Eva como ela? — Vivit sententia Dei super sexum istum in hoc saeculo, vivat et reatus necesse est: Posto que haja tantos séculos que morreu aquela Eva, vive contudo em toda a mulher a sentença com que Deus a condenou em todo o mesmo sexo, e assim viverá para sempre, e será imortal nele, isto é, em ti, o castigo da mesma culpa. — Tu es diaboli janua: Tu és a porta por onde entra o diabo ao homem. — Tu es arboris illius resignatrix: Tu és a que abriste a porta à morte, que naquela árvore estava encerrada e oculta. — Tu es divinae legis prima desetrix: Tu és a primeira que desprezaste e quebraste a lei divina. — Tu es quae eum suasisti, quem diabolus aggredi non valuit: Tu és a que te atreveste a persuadir o homem, a quem o demônio não foi ousado a acometer por si mesmo. — Tu imaginem Dei hominem tam facile elisisti: Tu, a que tão facilmente não só apagaste, mas deformaste e afeaste a imagem soberana que Deus nele tinha impressa. — Propter tuum meritum, id est, morrem, etiam Filias Dei mori habuit; et adornari tibi in mente est supra pelliceas tuas tunicas? Finalmente, pelo teu nascimento, isto é, pela morte merecida por ti, houve de morrer o Filho de Deus; e tu, com este triste e formidável espelho diante dos olhos, não te pejas nem envergonhas de buscar e inventar novas e preciosas galas com que ornar indecentissimamente as peles ou sambenito da penitência de que ele te vestiu? — Tudo isto, que só na primeira Eva se podia verificar, aplica Tertuliano às de seu tempo, posto que menos vãs que as do nosso, não duvidando chamar a cada uma, não outra, senão a mesma antiga Eva, nem ressuscitada, senão a mesma que em cada uma delas ainda vive, e necessariamente viverá sempre: Vivai et reatus necesse est.

§ VI

As mulheres próprias. A mulher de Jó, uma das coisas mais notáveis da Escritura Por que razão o demônio, destruindo tudo o que pertencia a Jó, lhe reservou viva a mulher, cuja vida não estava excetuada por Deus. O que fez e o que disse a mulher de Jó.

Uma das mais notáveis coisas da Escritura é a vida da mulher de Jó. Tinha Deus concedido ao diabo que naquela grande casa pudesse fazer ou desfazer contra ele tudo o que seu ódio, sua astúcia e maldade julgasse conveniente para o vencer, exceto somente a vida do mesmo Jó: Verumtamen animam illius serva[15] — Começou pois o demônio matando e degolando tudo quanto havia na mesma família: os bois, que eram quinhentas juntas, e as jumentas outras tantas, pelos sabeus; os camelos, que eram de três mil, pelos caldeus, divididos em três esquadras; as ovelhas, que eram sete mil, por raios caídos do céu; mortos juntamente todos os pastores e criados, que guardavam estes grandes rebanhos, exceto somente um, que levasse as tristes novas, até que chegou o último, dizendo que juntos todos os sete filhos e três filhas do mesmo Jó, convidados à mesa do seu primogênito, batidos os quatro cantos da casa por um fortíssimo pé de vento, e caindo sobre todos, juntamente ficaram mortos e sepultados nas suas ruínas. Mas o que é mais digno de nota em tão comum e universal estrago, é que entre tantas mortes ficasse contudo viva a senhora da casa, a mãe dos filhos, e a mulher do pai? Que morram todos os gados, tantos, e de todo o gênero; que morram os criados e guardas destas riquezas naturais, que eram os tesouros daquela idade, grande golpe foi da ira e astúcia do demônio mas todo contra a grandeza da casa, e opulência da numerosa família; porém, que morrendo todos os filhos e filhas, até o mesmo primogênito, que era o que mais de perto e mais interiormente tocava à pessoa do mesmo Jó, o demônio contudo lhe reservasse viva a mulher, cuja vida não estava excetuada por Deus, não podendo ser para alívio e consolação do mando, qual seria a causa desta singular indulgência na impiedade de tão cruel e empenhado inimigo? S. Basílio, S. Crisóstomo, os dois Gregórios, e todos os santos padres, comumente dizem, por uma parte, que a fortaleza e constância de Jó era uma coluna, um muro e uma torre de diamante; e que, assim como o demônio se não atreveu a acometer a Adão por si mesmo, senão pela primeira Eva, assim agora entendeu que, para derrubar aquela torre, para arrasar aquele muro, e para dobrar e torcer aquela coluna de diamante — que seria mais que desfazê-la em pó — não poderia por si mesmo; e por essa razão deixara viva a Jó a sua segunda Eva, para que por meio dela perseguido o quebrantasse, ou persuadido o rendesse, que são os dois modos, um duro, outro brando, com que o demônio – diz o grande Gregório — forte e suavemente costuma conseguir o que intenta: Diabolus duobus modis impugnat: tribulatione, ut frangat, persuasione, ut molliat[16] — e como Jó, pelo pacto que tinha feito com seus olhos: Pepigi foedus cum oculis meis, ut ne cogitarem quidem de virgine[17] — estava já livre e superior a todos os combates das mulheres alheias, ou não suas, só lhe ficava este da própria, que, como lhe chama Crisóstomo, é a lança mais forte do demônio, e o tiro mais certo de todas as suas armas. Mas vejamos o que fez e o que disse.

Estava Jó coberto de chagas, ou de uma só chaga, que desde os pés até à cabeça o cobria e atormentava, não em sua casa, ou na cama, mas no desamparo e miséria quase incrível a que o demônio o tinha reduzido de um muladar público, ajudando a correr com uma telha o pestífero e hediondo humor que das fendas manava; quando chega a própria mulher, e em lugar das lágrimas e das lástimas com que se devia compadecer de um homem, e tal homem, quando não fora seu marido e rei, tendo-o conhecido em tão diferente estado, quais foram as palavras que lhe disse? Adhuc tu permanes in simplicitate tua? Benedic Deo, et morere[18]. — É primor, ou cortesia sagrada da língua hebreia, não se atrevendo a pronunciar maldições de Deus, em lugar da palavra maledicere: amaldiçoar, dizer totalmente a contrária: benedicere. — É possível pois — diz a infame e cruelíssima mulher, conservada viva pelo demônio, que dentro nela falava — é possível que, ainda posto em tal lugar, que não tem nome a língua para o pronunciar decentemente, nesse ecúleo de dor, de afronta, de miséria, de desamparo, a que nunca reduziu a fortuna o mais vil escravo do mundo, é possível que ainda aí te não desenganas? Esta é a gratificação da tua inocência, este o prêmio das que tu chamavas boas obras? Pois, se tu com elas ofendeste a Deus, e ele assim tas paga, por que não acabas já de as conhecer? Por que não acabas de as amaldiçoar, e ao mesmo Deus ofendido? E por que não acabas de acabar a triste e miserável vida, entregando o corpo neste mesmo sepulcro hediondo aos bichos, e a alma sacrílega e obstinada sepultando-a no inferno? — Este é o sentido, como discorre com todos os padres Olimpiodoro, daquelas breves palavras, e esta a segunda Eva, tanto mais injuriosa a seu marido de que a primeira a Adão, como dizia Tertuliano. Mas ainda nos textos sagrados temos outra comparação mais horrível, de uma mulher não alheia mas própria, e de um homem não menos santo e grato a Deus que Jó.

§ VII

A mulher de Tobias. Como em duas palavras condenou Ana todas as virtudes de Tobias e todos os atributos de Deus? Se Tobias não padeceu nenhum dos trabalhos de Jó, como foi a sua tentação e a sua paciência semelhante e de igual exemplo à de Jó?

Ouvindo Tobias, que era cego, a voz de um animalzinho balando, pouco usada na pobreza e abstinência de sua casa, advertiu, como pio e Justo, que acaso não fosse furtado: Videte, ne furtivus sit[19]. — E esta só palavra exasperou e feriu tanto o coração de Ana, sua mulher, que irada, não só contra Tobias, mas ímpia e injuriosa contra o mesmo Deus, respondeu desta sorte, diz o texto, ao marido: Manifeste vara facta est spes tua, et eleemosynae tuge modo apparuerunt (Tob. 2, 22): Agora sim, que já apareceram manifestamente quais são as vossas esmolas e obras de piedade, e, o que mais é, a vossa esperança em Deus. — Oh! ira de mulher, quão facilmente concebes o fogo! Oh! língua de mulher, quão facilmente abrasas a terra e mais o céu! Em duas palavras condenou Ana todas as virtudes de Tobias e todos os atributos de Deus. De Tobias as esmolas, as sepulturas dos defuntos, e a todas as obras de misericórdia, em que, deixando o necessário à própria vida, acudia não só aos próximos vivos, mas também aos mortos. Em Deus, arguindo de falsa a esperança do marido, condenou a justiça, a providência, e o prêmio dos santos, E, como Tobias o era, e o maior daqueles tempos, sentiu tanto a injúria que sua mulher fazia a Deus, e ficou tão envergonhado e corrido de ter uma mulher, que debaixo de verdadeira fé assim afrontava as virtudes humanas e divinas, que, levantando as mãos ao céu, porque os olhos não podia, pediu a Deus humilde e instantemente lhe tirasse a vida: Et nunc, Domine, secundum voluntatem tuam fac mecum, et praecipe in pace recipi spiritum meum: expedit enim mini coagis mori quam vivere[20].

Esta foi a resposta de Tobias, da qual dá a razão o texto, não menos admirável. Refere toda a causa que Tobias teve para fazer a Deus uma petição tão extraordinária, como a de lhe pedir a morte, e diz que o intento da parte de Deus foi: Ut posteris daretur exemplum patientiae ejus, sicut et sancti Job (Tob. 2, 12): Para que os vindouros tivessem outro exemplo de paciência em Tobias, assim como os passados o haviam tido no santo Jó. — Mas Jó perdeu a riqueza dos gados de todo o gênero, em que era mais rico e opulento que todos os orientais. Jó perdeu os filhos e filhas, mortos e sepultados de um só golpe no mesmo dia. Jó, sendo rei, perdeu a coroa, a obediência dos vassalos, e o uso dos próprios membros, com tão excessivas dores, sem família, sem casa, sem cama, no último desamparo, na imundícia, nos ascos, e na suma afronta de um muladar público. E, se nenhum destes trabalhos padeceu Tobias, como foi a sua tentação e a sua paciência semelhante, e de igual exemplo à de Jó? Porque o fino da tentação de ambos, e o que mais vivamente lhes penetrou os corações, foi a crueldade e impiedade de uma e outra mulher própria, não desumanas contra seus maridos, mas atrevidas e blasfemas contra o mesmo Deus, Não diga logo Tertuliano, nem cuide alguém que disse muito em chamar Evas a todas as que descenderam daquela primeira, porque, ainda que foi a causa original de tantos trabalhos e misérias em seus filhos, foi tão fiel e demasiadamente amiga de seu marido, que, não podendo comer uma maçã sem lhe dar a metade, ela, sem querer, o perdeu, e ele, querendo, se perdeu a si mesmo, por não entristecer, como diz Santo Ambrósio, nem se mostrar menos grato às suas delícias: Ne delicias suas contristaret.

§ VIII

A razão por que as mulheres próprias são ou podem ser mais infaustas e mais perniciosas ao homem que as alheias. Sendo hoje as mulheres uma só, e por isso livre o homem dos inconvenientes de muitas, qual é ou será a razão, ou razões, por que do vínculo do matrimônio forme tantos laços a natureza ao homem, e lhe seja tão dificultoso no matrimônio o guardar a devida fé a uma mulher, e própria? Conclusão.

Mas já é tempo de darmos a razão por que as mulheres próprias sejam ou possam ser mais infaustas, como diz Sêneca, e mais perniciosas ao homem que as alheias. Notável foi a variedade com que Deus desde o princípio, ou deu, ou negou as mulheres aos homens. A Adão deu uma só mulher: Masculum et feminam creavit eos[21]. — A Abraão, Isac e Jacó concedeu depois, como já tinha permitido a Lamec, que tivesse muitas mulheres; Jacó teve quatro, e duas delas irmãs; Davi teve mais de vinte; Salomão, seu filho, só rainhas, e essas com pompa e estado real, sessenta; e, finalmente, a todos os hebreus permitiu Moisés o libelo de repúdio, para que, deixando uma, pudessem tomar outra, permissão que Cristo emendou, restituindo o matrimônio à sua antiga singularidade e pureza, como fora instituído por Deus em Adão e Eva. Deste último estado, que é hoje o somente lícito na lei cristã, inferiram os apóstolos que, suposto ele, melhor era não casar: Si ita est causa hominis cum uxore, non expedit nubere[22]. — Respondeu Cristo aprovando o sentimento dos discípulos, que nem todos o entendam assim: Non omnes capiunt verbum istud, sed quibus datum est[23] — palavras que, se todos se conformassem com elas, se acabaria brevemente o mundo, mas não é ele tal que mereça tão honrado e santo fim. Sendo o matrimônio antigamente só contrato, o mesmo Cristo o fez sacramento, para lhe aliviar o peso e as pensões com a força e virtude da sua graça. Mas, ainda assim, sendo hoje a mulher uma só, e por isso livre o homem dos inconvenientes de muitas, qual é ou será a razão, ou razões, por que do vínculo do matrimônio forme tantos laços a natureza ao homem, e lhe seja tão dificultoso no matrimônio o guardar a devida fé a uma mulher, e própria? A familiaridade doméstica, o trato contínuo, o domínio comum de todos os bens, e o serem como duas almas em um só corpo, como o mesmo Deus lhes disse: Erunt duo in carne una[24] — parece um concurso de causas, que todas conformemente influem união, paz e contentamento, mas de todas, e de cada uma delas, nasce a mesma dificuldade. O trato doméstico e comum de todos os dias descobre, pouco e pouco, os defeitos que causam o desagrado. O ser a mulher a mesma, sem a variedade que remediava o repúdio, é a ocasião do fastio. Enfastiavam-se os hebreus do maná, posto que continha todos os sabores, porque sempre viam o mesmo: Nihil aliud respiciunt oculi nostri nisi man[25]. — A união, que ao princípio do matrimônio eram cadeias de ouro, continuadas as faz o tempo de ferro. Com os anos as mesmas coisas deixam de ser as mesmas, porque a mocidade se faz velhice, a formosura fealdade, a saúde doenças e achaques de toda a vida, que, na obrigação de se tolerarem e sofrerem até à morte, são um cativeiro inseparável, que só nela tem o fim.

Todas estas coisas juntas, e cada uma por si em um coração humano, que não é de bronze, fazem nele, por uma certa força natural, e quase sem querer a vontade, os mesmos efeitos que no bronze a continuação do tempo. E não há dúvida que de todas estas causas, divididas ou juntas, se compõe aquela fortíssima, com que a mulher, mais como própria que como mulher, é tão perigosa e perniciosa ao homem; mas, sobre todas, a principal, e por si só poderosa a fazer toda a diferença do nosso problema, é ser a mulher lícita, e a alheia vedada. O ser Herodias mulher alheia, e vedada por Deus, e por isso ilícita, era o que o Batista pregava: Non licet, non licet tibi[26] — e, como se em lugar destas palavras lhe afearem o adultério, o confirmassem no motivo cego e ímpio do apetite, obedecendo em muitas coisas ao que ouvia e ensinava o pregador, nesta só, com a mesma admoestação de que era ilícita, se endurecia e obstinava mais. Entre Eva e Adão, em tão poucos dias ou horas quantas se conservaram no Paraíso, nenhuma destas causas, que dependem da continuação e do tempo, teve lugar; mas bastou a proibição do fruto vedado, sendo um só, e por vedado ilícito, para que fosse mais insofrível a satisfação e contentamento daquele felicíssimo estado, que a lícita concessão e faculdade de comerem de todas as outras árvores, sendo a multidão e a variedade dos gostos delas quase infinita. Tal é a fome, que não pode suportar o apetite em um só gosto ilícito e vedado; e tal o fastio, que não pode evitar a variedade, posto que infinita, de todos os concedidos e lícitos, Isto é o que na mesa de Herodes, desde um prato, está pregando a grandes brados a cabeça e língua muda do Batista, prometendo a Filipe, posto que neste mundo ofendido e afrontado, a facilidade da salvação, com que no venturoso roubo se viu livre da mulher própria, e segurando a Herodes, no infelicíssimo logro da alheia, a certeza que hoje está, experimentando dos tormentos eternos, na diferença somente de ser a mesma mulher, ou lícita por própria, ou ilícita por alheia.



[1] Herodes, como se tinha casado com Herodias, sendo esta mulher de seu irmão Filipe, mandou prender e meter em ferros no cárcere a João... e o degolou no cárcere (Mc. 6, 17. 27).

[2] Propor-vos-ei um problema (Jz.14,12).

[3] Senec. in Troa.

[4] Por esta razão não se apartará jamais a espada da tua casa (2 Rs. 12, 10).

[5] No Senhor se gloriará a minha alma (SI. 33, 3).

[6] Deste lugar a que os inimigos do Senhor blasfemem (2 Rs. 12, 14).

[7] Eu suscitarei da tua mesma casa o mal sobre ti, e tomarei as tuas mulheres, e dá-Ias-ei a um teu próximo, e ele dormirá com as tuas mulheres aos olhos deste sol. Porque tu fizeste isto às escondidas, mas eu farei estas coisas à vista de todo Israel (2 Rs. 12, 11 s).

[8] Tomaste para ti a que era sua mulher (ibid. 9).

[9] Por teres tomado a mulher de Urias heteu, para ser tua mulher (ibid. 10).

[10] Enviou Davi, e a fez trazer para o palácio, e tomou-a por sua mulher; mas isso foi desagradável aos olhos do Senhor (2 Rs. 11, 27).

[11] O Senhor, porém, afligiu a Faraó e a sua casa com grandíssimas pragas por causa de Sarai, mulher de Abrão (Gên. 12,17).

[12] Macho e fêmea os criou e os abençoou (Gên. 1, 27).

[13] A mulher que tu me deste (Gên. 3, 12).

[14] Tertul. de habit. mulieb. cap. I, lib. II.

[15] Mas guarda a sua vida (Jó 2, 6).

[16] Gregor lib. 3, cap. 6.

[17] Fiz concerto com os meus olhos de certamente não cogitar nem ainda em uma virgem (Jó 31,1).

[18] Ainda tu perseveras na tua simplicidade? Louva a Deus, e morre (Jó 2, 9).

[19] Vede, não seja furtado (Tob. 2, 21).

[20] E agora, Senhor, trata-me segundo a tua vontade, e manda que o meu espírito seja recebido em paz, porque é melhor para mim morrer do que viver (Tob. 3, 6).

[21] Macho e fêmea os criou (Gên. 1, 27).

[22] Se tal é a condição de um homem a respeito de sua mulher, não convém casar-se (Mt. 19, 10).

[23] Nem todos são capazes desta resolução, mas somente aqueles a quem isto foi dado (ibid. 11).

[24] Serão dois numa só carne (ibid. 5).

[25] Nossos olhos não vêem senão maná (Núm. 11, 6).

[26] Não te é lícito, não te é lícito (Mc. 6,18).