Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão de S. Antônio, na dominga infra octavam de Corpus Christi, com o Santíssimo Sacramento Exposto, do Padre Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

SERMÃO DE S. ANTÔNIO,

Na Dominga infra octavam de Corpus Christi, com o Santíssimo Sacramento exposto, em S. Luís do Maranhão, ano de 1653(*)

Homo quidam fecit coenam magnam[1].

Vos estis sal terrae, vos estis lux mundi[2].

§I

As duas memórias das maravilhas de Deus, o Santíssimo Sacramento do Altar e Santo Antônio, enlaçadas em uma mesma festa. As diferenças entre Santo Antônio e o Sacramento. Só onde está Santo Antônio está o Santíssimo Sacramento exposto, porque ele é a exposição e declaração das maravilhas do Santíssimo Sacramento. Assunto do sermão: Santo Antônio, sal e luz da ceia do Sacramento.

Admirável é Deus em si mesmo, e admirável em seus santos, e, por estas duas razões de admiração, duas vezes admirável neste grande dia. Davi diz que fez Deus uma só memória de suas maravilhas, e eu hoje sou obrigado a dizer que fez duas. A primeira memória das maravilhas de Deus é o Santíssimo Sacramento do Altar: Memoriam fecit mirabilium suorum, escara dedit timentibus se[3]. A segunda memória de suas maravilhas é aquela grande maravilha de todas as memórias do mundo, o nosso prodigioso português Santo Antônio. Ambas estas memórias se vieram a enlaçar neste dia. Todas estas maravilhas se vieram a encontrar e acumular nesta festa. E bem era necessária toda a graça da primeira, e toda a eloqüência da segunda, para satisfazer a tamanhas obrigações. Ora, eu, prevendo que tinha duas festas para pregar, e querendo reduzi-las, como costumo, a um só discurso, achei-as tão unidas ambas entre si, e os sujeitos delas tão semelhantes e parecidos, que mais trabalho me deu o podê-las distin­guir que havê-las de ajuntar. Se olhava para aquela custódia, e considerava as maravi­lhas do Santíssimo Sacramento, parecia-me que via as de Santo Antônio; se voltava os olhos, e os punha neste altar, e considerava as maravilhas e prodígios de Santo Antô­nio, parecia-me que estava vendo as do Santíssimo Sacramento. E, se não fora pelos acidentes, com ser um sujeito divino outro humano, quase me pudera persuadir que eram o mesmo. Elias era mestre, e Eliseu discípulo. Elias era senhor, e Eliseu servo; mas eram tão parecidos ambos nas maravilhas, que só na capa se distinguiam. Deu Elias a capa a Eliseu, e ficou Eliseu outro Elias. Assim o notou S. João Crisóstomo: Elias sursum, Elias deorsum, Não nego que Antônio é servo, e Cristo senhor; não nego que Antônio é discípulo, e Cristo mestre: Magister et Domine[4]mas quando olho para aquele Elias divino, e para este Eliseu, posto que humano, vejo-os nas mara­vilhas tão parecidos, vejo-os nos milagres tão equivocados, que só parece que se distin­guem na capa. Se Cristo daquele sacrário tirara a capa dos acidentes, e a lançara sobre Santo Antônio, quase pudéramos adorar nele outro Sacramento.

Outro Sacramento disse, e melhor dissera o mesmo Sacramento, porque, comparadas as maravilhas que se crêem daquela hóstia consagrada, com as maravilhas que se lêem e se vêem em Santo Antônio, só há de diferença entre umas e outras, que na Hóstia está o Sacramento com as cortinas cerradas, em Santo Antônio está o Sacramen­to com as cortinas corridas. Na Hóstia estão as maravilhas do Sacramento secretas, em Santo Antônio estão públicas. Na Hóstia estão escondidas, em Santo Antônio manifes­tas. Na Hóstia estão encobertas, em Santo Antônio patentes. Na Hóstia crêem-se, e não se vêem, em Santo Antônio crêem-se, e vêem-se. Finalmente, na Hóstia está o Sacra­mento com cortinas, em Santo Antônio sem cortina. O maná, figura maior do Sacra­mento, fora da Arca do Testamento, estava coberto com a cortina do Sancta Sancto­rum, que cobria todo o Propiciatório; mas dentro da Arca do Testamento não tinha cortina alguma. E quem é a Arca do Testamento? Já o Papa Gregório IX disse que era Santo Antônio. Só em Santo Antônio está o Sacramento sem cortina, só em Santo Antônio estão patentes e descobertas as maravilhas daquele sacrossanto mistério. Em qual daqueles altares cuidais que está o Sacramento propriamente exposto? Não está exposto naquele altar maior, senão neste. Exposto quer dizer manifesto e declarado. E o Santíssimo Sacramento naquela custódia está desencerrado sim, mas exposto não, porque não está manifesto nem declarado. Só onde está Santo Antônio está o Santíssi­mo Sacramento propriamente exposto, porque ele é a exposição e declaração das mara­vilhas do Santíssimo Sacramento. Valha-une Deus, quanta coisa tenho dito, antes de começar a dizer! Ora, por aqui há de ir o sermão, seguindo o caminho que nos abrir o Evangelho, posto que parece bem fechado. E pois havemos de falar do mistério onde Deus é mais admirável, e do santo onde Deus se mostrou mais admirável, recorramos pela graça à Mãe também admirável: Mater admirabilis. Ave Maria.

§, II

Por que o Sacramento do Altar; antes da vinda de Santo Antônio ao mundo era mesa sem sal e ceia sem luz? Santo Antônio, sal e luz da mesa do Santíssimo Sacra­mento. Por que na mesa do Sacramento não têm lugar o sentido do gosto e o sentido da vista? O milagre de Tolosa. A reverência do bruto, a irreverência do herege e a devassidão dos católicos. Vos estis sal terrae, vos estis lux mundi.

Vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo. Em dia em que Deus assenta­va consigo à mesa dos homens, em dia em que os homens renovam a memória suavíssima da Ceia de Cristo – Homo quidam fecit coenam magnam[5]muito a tempo vem o sal, e muito a tempo a luz: o sal para a mesa, a luz para a ceia. Mas estes a tempos só em tempo de Santo Antônio os logrou a Igreja. Enquanto Santo Antônio não veio ao mundo, o mistério do Sacramento do Altar era como 'mesa sem sal e como ceia sem luz – logo direi o porquê – mas, depois que Santo Antônio saiu ao mundo, e o assombrou e esclareceu com os prodígios de seus milagres, ele foi o sal daquela mesa: Vos estis sal – ele foi a luz daquela ceia: Vos estis lux. Mas, antes que eu diga como isto é, vejo que me dizeis todos que não pode ser. Dizeis que na mesa do Santíssimo Sacramento não pode haver sal nem pode haver luz, porque o sal é para o gosto, e a luz para a vista: e no mistério do Sacramento, nem tem lugar o sentido de gostar, nem tem lugar o sentido de ver. Não tem lugar o sentido de gostar, porque comemos o corpo de Cristo, mas não o gostamos. Não tem lugar o sentido de ver, porque comemos o corpo de Cristo, e não o vemos.

Na parábola do Evangelho de hoje, em que um príncipe chamou convida­dos para uma grande ceia que fizera: Homo quidam fecit coenam magnam – um dos convidados disse que não podia vir, e dois escusaram-se. A escusa de um foi: Juga botim emi quinque, et eo probare illa (Lc. 14, 19): que comprara cinco juntas de bois, e que as ia provar. A escusa do outro foi: Villam emi, et necesse habeo exire, et videre illam (ibid. 18): que comprara uma quinta, e que a ia ver. Toda esta história, como dizem comumente os santos padres, é uma alegoria do que passa no mistério da Euca­ristia. E, se tomarmos as palavras destes dois textos assim como soam na nossa língua, vede que admiravelmente dizem conosco. Um disse que ia provar: Eo probare – outro disse que ia ver: Necesse habeo videre – e ambos se escusaram do banquete com muita razão, porque na Ceia do Santíssimo Sacramento quem tem apetite de provar, ou quem tem curiosidade de ver, bem pode escusar-se de ir lá, porque naquela mesa secretíssima e sacratíssima, onde tudo é oculto e encoberto, não tem lugar o sentido do gosto, que é o que prova, nem tem lugar o sentido da vista, que é o que vê. E como não tem lugar naquela mesa nem o sentido do gosto nem o sentido da vista, pelo sentido do gosto fica excluído o sal, e pelo sentido da vista fica excluída a luz.

Tudo isto era assim antes de Santo Antônio vir ao mundo; mas, depois que Santo Antônio melhorou e ilustrou o mundo com suas maravilhas, já na mesa do Sacra­mento tem lugar o sal, porque também tem lugar o sentido do gosto; já na ceia do Sacra­mento tem lugar a luz, porque também tem lugar o sentido da vista. Antes de Santo Antônio aparecer no mundo, era o Sacramento só mistério da fé; mas depois que veio ao mundo Santo Antônio, já o Sacramento é também mistério dos sentidos. Disputando Santo Antônio com um herege obstinado sobre a verdade do Sacramento, depois que não valeram razões, Escrituras, nem argumentos contra a sua obstinação, veio a um partido, que todos sabeis: que ele fecharia a sua mula três dias sem lhe dar de comer, que ao cabo deles a traria à presença de Santo Antônio, quando estivesse com a Hóstia nas mãos, e que, se aquele animal assim faminto deixasse de se arremessar ao comer que ele lhe oferecesse, por adorar e reverenciar a Hóstia, ele então creria que estava nela o corpo de Cristo. Assim o propôs obstinadamente o herege, e assim o aceitou Santo Antônio, não só sobre todas as leis da razão, senão ainda parece que contra elas. O mistério da Eucaristia distingue-se de todos os outros mistérios que confessamos em ser ele por antonomásia o mistério da Fé. Os brutos distinguem-se dos homens em que os homens governam-se pelo, entendimento, e os brutos pelos sentidos. Pois, se o Santíssimo Sacramento é o mistério da fé, como deixa Santo Antônio prova dele no testemunho de um animal que se governa só pelos sentidos? Porque era Santo Antônio. Antes de Santo Antônio vir ao mundo, era o Santíssimo Sacramento mistério só da fé, e só podia testemunhar nele entendimento; mas, depois de Santo Antônio vir ao mundo, ficou o Sacramento mistério também dos sentidos, e por isso podiam já os sentidos dar testemunho nele: bem se viu nos mesmos dois sentidos de gostar e ver.

Amanheceu o dia aprazado, veio a mula faminta, e após dela toda a cidade de Tolosa, assim católicos como hereges, para ver o sucesso. Posto o bruto à porta da igreja, aparece Santo Antônio com a Hóstia consagrada nas mãos, e o herege, com os manjares do campo, naturais daquele animal, que tinha prevenidos. Mas, oh! poder da divindade e onipotência! Por mais que o herege aplicava o comer aos olhos e à boca do bruto, ele, como se fora racional, dobrou os pés, dobrou as mãos, e, metendo entre elas a cabeça, com as orelhas baixas, esteve prostrado e ajoelhado por terra, adorando e reverenciando a seu Criador. Vede se dizia eu bem que Santo Antônio é o sal e a luz da mesa do Santíssimo Sacramento, e sal para o sentido do gosto, e luz para o sentido da vista. O herege tentava aquele animal pelo sentido da vista e pelo sentido do gosto: pelo sentido da vista, pondo-lhe o comer diante dos olhos; e pelo sentido do gosto, quase metendo-lhe o comer na boca. Mas aqueles dois sentidos, posto que irracionais, estavam tão suspensos e tão satisfeitos no manjar divino, que tinham presente: o sentido do gosto com tal sabor, e o sentido da vista com tal luz, que nem quis ver com os olhos, nem tocar com a boca, o comer que o herege lhe oferecia. Confessando, porém, a mesma boca e os mesmos olhos, confessando o mesmo sentido de gostar e o mesmo sentido de ver, a verdade e presença real de Cristo no Sacramento. Julgai agora se éjá o Sacramento mistério dos sentidos. Até agora dizia a Igreja: Praestet fides supplementum sensuum defectui: Supra a fé o que falta aos sentidos – mas, à vista de Santo Antônio, mude o hino, e diga: Praestet sensus supplementum filei defectui: Supram os sentidos o que faltar à fé – porque a fé, que faltou ao herege, a supriram os sentidos do animal. O gosto, saboreado naquele sal: Vos estis sal – a vista, alumiada por aquela luz: Vos estis lux.

Oh! que grande passo este para parar aqui o sermão à vista deste bruto e deste herege! À vista deste herege, que dirá quem tem nome de católico? À vista deste bruto, que dirá quem tem o nome de homem? A reverência do bruto e a irreverência do herege, tudo é confusão nossa. O bruto venera sem conhecer, o herege não venera porque não conhece. Se o bruto venera o Santíssimo Sacramento sem conhecer, eu, que sou homem racional, que conheço, por que tenho tão pouca reverência? Se o here­ge não venera porque não conhece, e porque não crê, eu, que creio, e que conheço, por que tenho tão pouca reverência? Ah! Portugal! Ah! Espanha! que por este pecado te castiga Deus. Quem viu os templos dos hereges, e o silêncio e respeito que neles se guarda, pode chorar mais esta miséria. Nos templos dos hereges, ainda que exterior, há reverência, e falta o Sacramento; nos templos de muitos católicos há o Sacramento, e falta a reverência. Vede qual é maior infelicidade! Os dois sentidos que no bruto mos­traram maior reverência são os que em nós mostram maior devassidão. Os olhos, onde está o sentido do ver, a língua, onde está o sentido do gostar, que é o que fazem na presença do Santíssimo Sacramento? Que é o que falam aquelas línguas sacrílegas, quando deveriam venerar aquele Sacramento com a oração e com o silêncio? Que é o que olham, e para onde, aqueles olhos inquietos e loucos, quando deveram estar enle­vados naquela Hóstia de amor, ou pregados na terra, de modéstia e de confusão. Que fazeis, ó divino sal, e divina luz do Sacramento? Saboreai como sal estas línguas, alumiai como luz estes depravados olhos. Sarai estas línguas como sal, posto que línguas tão sacrílegas mais mereciam salmouradas; alumiai estes olhos como luz, posto que olhos tão descompostos mais mereciam ser cegos.

§ III

As maravilhas do Sacramento ao sabor deste sal e ao resplendor desta luz. A primeira maravilha do mistério do Sacramento: a ubiqüidade. A ubiqüidade de Santo Antônio e a Eucaristia. Por que razão Santo Antônio, quando milagrosamente se punha em dois lugares, em uni tinha o uso dos sentidos, como Cristo no céu, em outro estava dormindo, como Cristo no Sacramento.

Mas vamos vendo as maravilhas do Sacramento ao sabor deste sal e ao resplendor desta luz, e veremos quão merecidamente demos a Santo Antônio o título  de sal e luz desta mesa: Vos estis sal terrae, vos estis lux mundi. A primeira maravilha do mistério do Sacramento é que, estando Cristo verdadeira e realmente no céu, esteja, por milagre natural deste mistério, também verdadeira e realmente, e não só em um lugar da terra, senão em muitos lugares, sendo um só e o mesmo. Isto era o de que se assombrava antigamente o entendimento, e que era necessário à fé animar-se e esfor­çar-se muito para o crer. Mas, depois que Santo Antônio veio ao mundo, já o confes­sam e o sabem até os sentidos. Duas vezes estava Santo Antônio pregando, quando lhe ocorreu que tinha àquela hora obrigação de ofício no coro da sua religião, e, inclinan­do-se sobre o púlpito, como quem dormia, no mesmo tempo foi visto e ouvido no coro cantar o que lhe tocava. Também estava outras duas vezes pregando em Itália – como quem o tinha por exercício de cada dia – quando seu pai em Lisboa se viu em dois grandes trabalhos, um de fazenda, outro de vida. Torna-se a inclinar sobre o púlpito o milagroso pregador e piedoso filho, e no mesmo tempo aparece ao lado do pai, defen­dendo sua inocência, e livrando-o daquelas duas injustiças, que tão antigas são, não só naquele reino. Pois é certo que por injustiças tira Deus os reinos a umas nações e os passa a outras: Regnum a gente in gentem transfertur propter injustitias[6]. Mas dei­xemos de chorar as calamidades dos portugueses, e tornemos às glórias daquele grande português, cujas maravilhas chegam a fazer menos admiráveis as do mistério mais admirável, e a tirar o merecimento à fé pela evidência dos sentidos. Se os olhos vêem que Antônio está em Itália e em Espanha, em Pádua e em Lisboa, no púlpito e no coro, dentro da sua religião e fora dela, que muito é que creia a fé que está o mesmo Cristo em diferentes províncias, em diferentes cidades, em diferentes igrejas, e, ainda na mesma igreja, em diferentes altares? Se estas maravilhas obrou a onipotência de Deus no ser­vo, que muito que as obrasse no Filho?

Mas satisfaçamos a uma dúvida curiosa, que com razão pode vir a todos, neste modo de milagres de Santo Antônio. Todas as vezes que Santo Antônio esteve no mesmo tempo em diferentes lugares, por que razão se inclinava, como dormindo, sobre o púlpito? É certo entre os filósofos que, suposto o primeiro milagre de estar um ho­mem presente em dois lugares, pode em ambos eles obrar diferentes ações. E é filosofia esta provada, com a experiência, em S. Francisco Xavier, o qual, navegando nos mares da Índia, e desaparecendo o batel da nau com sete homens por espaço de três dias, estava o santo na nau e mais no batel, e em ambas as partes falava e obrava tudo o que era necessário para o remédio dos perdidos. Pois, se Santo Antônio podia estar pregan­do no púlpito, e mais cantando no coro, se Santo Antônio podia estar pregando em Itália, e mais advogando por seu pai em Portugal, por que razão, quando estava falando e acordado em uma parte, estava sempre calado, e como dormindo, na outra? Porque Santo Antônio nestes milagres obrava à moda de Cristo no Sacramento, e Cristo no Sacramento está dormindo. – Comedite, amici, et bibite, et inebriamini, charissimi. Ego dormio, et cor meum vigilat (Cânt, 5,1 s): Comei, amigos, bebei, caríssimos, que eu durmo. Este texto entendeu S. Bernardo e São Gregório Niceno do Santíssimo Sacramento, e bem o provam as palavras antecedentes: Comedite et bibite. Diz, pois, Cristo que comam e que bebam, e é de advertir que aos que manda comer chama amigos: Comedite, amici – e aos que manda beber chama caríssimos: Bíbite et inebri­amini, charissimi – porque neste Sacramento nem todos os que têm licença para comer e comungar a Hóstia têm também autoridade para beber o cálix. Os que têm licença para comer são os leigos, e a estes chama-lhes amigos, porque todos os que hão de comungar têm obrigação de ser amigos, e por isso antes do sacramento da Comunhão precede o da penitência, em que nos reconciliamos com Deus nos fazemos seus ami­gos. E os que têm autoridade para também beber são os sacerdotes, e a estes chama-lhes caríssimos, porque, para os sacerdotes tomarem o cálix, não só é necessário que tenham com Deus qualquer amizade, senão uma amizade muito particular, muito fami­liar e muito afetuosa. Mas não está aqui a dúvida. O que faz a dificuldade são as palavras que se seguem: Ego dormio, et cor meum vigilat: Bebei amigos, e comei caríssimos: eu durmo, e o meu coração vigia. Que conseqüência é dizer que comam sua carne e bebam seu sangue, e acrescentar logo que dorme: Ego dormio? Muito grande conseqüência, porque Cristo no Sacramento está dormindo. Ora, vede.

Um homem dormindo e acordado distingue-se em que o homem acordado tem uso de seus sentidos, e o que está dormindo tem sentidos, mas não tem uso deles. Assim está Cristo no céu e no Sacramento. No céu tem o uso dos sentidos, fala, vê, ouve, com os sentidos corporais. No Sacramento temos sentidos tão perfeitos como no céu, mas não tem o uso deles. E a razão é, como dizem os teólogos, porque, como Cristo está na Hóstia pelo modo sacramental, a que chamam ubi definitivo, todo em todo, e todo em qualquer parte, não tem a organização dos sentidos, e extensão que hão mister para obrar. E como Cristo no Sacramento não tem uso dos sentidos, com toda a propriedade se diz que está dormindo debaixo da cortina dos acidentes: Ego donnio. E acrescenta: Et cor meum vigilat: que, ainda que dorme com os olhos, vigia com o coração – porque, ainda que Cristo no Sacramento nos não vê com os olhos exteriores do corpo, está-nos vendo e vigiando sempre com os olhos interiores da alma e da divindade. Ah! cristãos, que se daquela Hóstia não só nos está Cristo vendo, mas vigiando, vede lá como estais nas igrejas! E como Santo Antônio era um santo eucarístico, um santo em que Deus depositou as maravilhas do Sacramento, por isso, quando milagrosamente se punha em dois lugares, em um tinha o uso dos sentidos, como Cristo no céu, em outro estava dormindo, como Cristo no Sacramento: Ego dormio. Estes foram os primeiros sabores que gostaram os sentidos daquele sal, estes os primeiros resplendores que receberam daquela luz: Vos estis sal, vos estis lux – mas não foram só estes.

§ IV

A segunda maravilha do mistério do Sacramento: a ressurreição final. Santo Antônio e o poder de ressuscitar os mortos. A Eucaristia e a ressurreição. Se a voz de Santo Antônio, se o toque de suas mãos, se a aplicação de suas relíquias ressuscita tantos mortos, que muito faz a fé em crer que o corpo de Cristo, ou Cristo com todo o corpo fará o mesmo? As ressurreições do dia do Juízo e as ressurreições de Santo Antônio.

Outra grande maravilha do Santíssimo Sacramento é que no dia do Juízo todos havemos de ressuscitar em virtude sua. No dia do Juízo hão de ressuscitar todos os nossos corpos, tão perfeitos e inteiros como hoje vivem. E quem há de dar esta virtude de ressuscitar a tantos corpos, depois de feitos ou desfeitos em cinzas? O corpo de Cristo sacramentado que comungamos. Assim o disse e prometeu o mesmo Senhor: Qui manducat moam cornem, et bibit meum sanguinem, habet viram aeternam: et ego resuscitabo eum in novissimo die[7]. Entenderam-no tanto assim os cristãos da primitiva Igreja, que costumavam enterrar os defuntos, uns com o Santíssimo Sacramento no peito, outros na boca, em fé ou esperança de que, por virtude daquele divino Sacramento havia de ressuscitar todos. Donde judiciosamente Tertuliano chamou ao divino Sacramento semen resurrectionis: semente da ressurreição – porque o mesmo é comungar, que semear cada um de nós dentro em si mesmo aquela virtude divina e onipotente, que no dia do Juízo nos há de tirar outra vez da terra vivos, renascidos e ressuscitados.

Isto se viu claramente no sepulcro de Cristo. Diz o evangelista que se abri­ram então as sepulturas, e que ressuscitaram e foram vistos em Jerusalém muitos cor­pos de santos: Monumento aperta sunt, et multa corpora sanctorum, qui dormierant, surrexerunt, et venerunt in sanctam civitatem, et apparuerunt multis[8]. Pois, se res­suscitaram, por que não ressuscitaram no dia da Ressurreição de Cristo, senão no da sua sepultura? Porque no da sua sepultura foi seu corpo santíssimo lançado à tetra, e como semeado, e sendo, como diz Tertuliano, semen resurrectionis, então naturalmen­te, como efeito ou fruto natural, saíram logo muitos ressuscitados, sem esperarem pelo dia da Ressurreição, não ressuscitando porque Cristo ressuscitou, senão porque seu corpo santíssimo – passemos de uma metáfora a outra – foi então comido e comunga­do. Eu, diz o mesmo Senhor, estarei três dias no coração da terra, assim como esteve outros tantos Jonas no ventre da baleia: Sicut Jonas fuit in ventre ceti tribos diebus, et tribos noctibus, sic erit Filius hominis in corde terrae[9]. De maneira que no mesmo tempo esteve Cristo sepultado e comido: sepultado no coração da terra três dias, em respeito de sua ressurreição, que foi ao terceiro dia depois de ressuscitado, e comido como Jonas no ventre da baleia, em respeito da nossa ressurreição futura, que há de ser no dia do Juízo, depois de comido por nós e comungado: Qui manducat meam cantem, habet vitam aeternam, et ego resuscitabo eum in novissimo die. Assim notaram, sobre o mesmo texto, com breve e admirável propriedade, S. Jerônimo, dizendo: Mo­numento aperta sunt in signum futurae resurrectionis – e, com maior largueza de todo o sentido universal, Santo Ambrósio: Monumentorum reseratio quid aliud, nisi claus­tris mortis effractis, resurrectionem significat mortuorum. O mesmo confirmam San­to Hilário, Beda, Teodósio e Ruperto.

Com isto ser assim, e o prometer Cristo tão claramente, houve muitos que negaram esta verdade ao Santíssimo Sacramento, não só daqueles hereges que negam o Sacramento, nem só daqueles que negam a ressurreição, mas de outros, que, confessando a ressurreição e o Sacramento, não querem entender que a ressurreição haja de ser por virtude sua. Porém, depois que Santo Antônio saiu ao mundo, e o alumiou com os raios de sua luz, não são necessários argumentos para provar e facilitar esta verdade: bastam os sentidos, que o experimentaram, para o persuadir. Assim como no dia do Juízo hão de ressuscitar os mortos de todas as quatro partes do mundo, e de todos os elementos, e de todos os gêneros de mortes, assim Santo Antônio, como se a sua voz tivesse a virtude da trombeta do anjo, que se há de ouvir no dia do Juízo, não há parte do mundo, nem elemento, nem gênero de morte de que não tenha ressuscitado muitos: uns afogados no mar, outros abrasados no fogo, outros despedaçados no ar, outros sepultados na terra; uns de mortes naturais, outros de mortes violentas; uns de mortes dilatadas, outros de mortes repentinas. Enfim, não houve gênero nem invenção de morte de que Santo Antônio não tenha ressuscitado muitas vidas. Pois, se a voz de Santo Antônio, se o toque de suas mãos, se a aplicação de suas relíquias ressuscita tantos mortos, que muito faz a fé em crer que o corpo de Cristo, ou Cristo com todo o corpo fará o mesmo? Basta o aceno de um dedo de Antônio para ressuscitar mortos, e a virtude de todo o corpo de Cristo não ressuscitará, tendo-o prometido?

Só dirá algum incrédulo – que isto de ressurreições tem muitos – dirá algum incrédulo que não se faz bom argumento das ressurreições do tempo de Santo Antônio para as ressurreições do dia do Juízo, porque muito maior maravilha é ressuscitar um homem depois de muitos centos de anos morto, do que ressuscitá-lo quando acaba de morrer. Não argúis bem. Tanto obra é da onipotência ressuscitar um morto de um dia, como um morto de cem anos. E, se de uma ressurreição a outra há alguma vantagem, maior maravilha é ressus­citar um morto de um dia que um morto de muitos anos. Cristo ressuscitou três mortos: Lázaro, o filho da viúva de Naim, e a filha do príncipe Jairo. A filha do príncipe Jairo era morta de poucas horas, porque ainda estava na cama; o filho da viúva era morto de mais tempo, porque já ia na tumba a enterrar; Lázaro era morto de muito mais tempo ainda, porque já estava sepultado e penetrado da corrupção. E qual ressurreição destas foi mais famosa e admirada? A do sepultado de muitos dias, a do que ia na tumba a enterrar, ou a da que estava ainda na cama, onde tinha expirado? O mesmo evangelista o notou, escrevendo só desta última ressurreição: Exiit fama haec in universam terram illam[10]. De sorte que, quando a morte era de menos tempo, tanto mais celebrada foi a ressurreição. Tomais a razão por um exemplo. Se um rei tomou uma cidade a outro rei, qual é maior maravilha: tomar-lha a tomar daí a dez ou vinte anos, ou tomar-lha outra vez no mesmo dia? Não há dúvida que esta. Assim o entendeu Davi, como grande capitão, da vitória e despojos de Siceleg, os quais tomou a recuperar no mesmo dia em que lhos tinham tomado os amalecitas, dizendo e aclamando todos: Esta sim que é vitória digna de Davi: Dixeruntque: Haec est praeda David (1 Rs. 30, 20). Tal foi também a de Abraão, vencendo na mesma noite os quatro reis gentios vencedores, descativando a Lot, e tomando-lhes a tomar todos os despojos da vitória que tinham alcançado naquele dia (Gên. 14). Enfim, que em serem os mortos ressuscitados depois de mais ou menos tempo, se há diferença ou vantagem, a têm só aquelas ressurreições em que os mortos são tirados, e como arrancados das mãos da mesma morte, quando ainda as têm ensanguentadas, e mal acaba de os despojar da vida. Assim que por esta parte não tem que se negar às ressurreições de Santo Antônio as consequências que delas tiram os sentidos para as do Santíssimo Sacramento no dia do Juízo.

A dificuldade que tem este ponto é a que eu agora direi. No dia do Juízo é certo que hão de ressuscitar todos; mas é também certo que não comungaram todos, porque não comungaram os meninos, nem os hereges, nem os gentios, nem os que foram antes da vinda de Cristo. Logo, não havemos de ressuscitar todos no dia do Juízo em virtude do Santíssimo Sacramento que comungamos. Nego a consequência, porque basta que o merecimento do benefício esteja em alguns, para que Cristo sacramentado o comunique a muitos; assim disse aos apóstolos, que eram somente alguns, que o mesmo cálix que se dava a eles se comunicaria a muitos: Qui pro vobis et pro multis effundetur[11]. Antes, é tal a liberalidade de Cristo no Sacramento, que basta que seja devido o benefício a um, para que o estenda a todos. Por isso os teólogos, com S. João Crisóstomo, chamam ao mesmo Sacramento extensão da Encarnação, porque a divindade comunicada na Encarnação a uma só humanidade, no Sacramento a estende Cristo, e comunica a todos os homens: In me manet, et ego in illo[12]e assim o fez Santo Antônio no mesmo gênero de ressurreição. Andavam folgando em um rio de Itália dez meninos, arrebatou-os a corrente, e morreram todos. Um pai, porque tinha recebido o seu por orações de Santo Antônio, veio pedir ao santo que lhe tornasse a dar o seu filho. Estava nesta oração, quando entra dançando pela igreja, não só aquele menino, senão os outros nove ressuscitados. Pois, se um só era o por quem se orou, como ressuscita Santo Antônio a todos? Porque basta que haja merecimento em algum, para que Santo Antônio, ao modo do Santíssimo Sacramen­to, estenda o benefício a todos. Assim estendeu a ressurreição a todos os dez meninos mortos, sendo que a oração do pai para um só a pedia. E se isto viram os olhos em Santo Antônio, por que o não crerá a fé no Santíssimo Sacramento? Creia-o a fé, e ajude-se, se lhe é necessário, dos sentidos, que, saboreados e alumiados com estas maravilhas, publi­cam que é Santo Antônio o sal e a luz daquela mesa: Vos estis sal, vos estis lux.

§V

A terceira maravilha do mistério do Sacramento: ser vida para uns e morte para outros. O pão do Sacramento pão de duas faces, e o milagre de Santo Antônio para dar vida ao pai. De como o Sacramento, à luz de Santo Antônio, sempre é pão de vida e nunca de morte. O Sacramento e a flor. Se Cristo diz nove vezes que o Sacra­mento é pão de vida, por que não diz uma vez que é pão de morte?

Outra maravilha se crê vulgarmente do Santíssimo Sacramento, em que é mais necessário o sal e a luz porque verdadeiramente é tal, que não só causa algum dissabor ao gosto, e grande horror à vista, senão ainda à imaginação. Não debalde era cerimônia da ceia do cordeiro, figura deste Sacramento, que se comessem com ele algumas amarguras: Cum lactucis agrestibus[13]. E que amargura, que dissabor, que horror é este do Santíssi­mo Sacramento? E a amargura misturada com doçura, mas amargura enfim, e grande amargura: Mors est malis, vita bonis: com este manjar ser vida para uns e morte para outros. Aquela Hóstia que recebemos é um papel fechado em que vem escrita a nossa sentença, ou de vida, ou de morte. Vede se pode haver mesa mais temerosa que esta. Na mesa da Proposição havia uns pães que estavam diante do Propiciatório, os quais no texto hebreu se chamam panes facierum: pães de faces. Tal é o pão do Sacramento do Altar, pão de duas faces: uma benigna outra temerosa; uma amável, outra terrível; uma de mise­ricórdia, outra de justiça; uma de vida, outra de morte. E pão que de uma face me convida com a vida, de outra me ameaça com a morte; pão que, sendo triaga, pode ser veneno, e não sei se me há de dar saúde, ou me há de matar, vede se pode parecer desabrido.

Mas sabeis por que atribuís àquela mesa estes dissabores? É porque comeis aquele pão sem o seu sal, e porque vos chegais àquela ceia sem a sua luz, que é Santo Antônio. Tocai esse pão naquele sal, e vede-o àquela luz, e logo conhecereis que Cristo no Sacramento sempre é pão de vida, e nunca de morte. Ia o pai de Santo Antônio a justiçar com sentença definitiva de morte, por se lhe imputar que havia tirado a outro homem a vida; e quando ia passando junto à Sé de Lisboa, aparece no adro dela Santo Antônio, pede à justiça que pare, manda abrir a sepultura, onde estava sepultado o morto; diz-lhe o santo que se levante, e que testemunhe diante de todos se era aquele homem o que o matara. Levantou-se o morto com assombro de todos, e disse que não era aquele homem o seu matador. Então replicaram as justiças a Santo Antônio que lhe perguntasse quem era o matador, mas o santo respondeu que ele viera dar vida ao inocente, e não dar morte a culpados. Pois, se Santo Antônio, quando vem dar vida, tem por ação indigna de sua pessoa dar também morte, ainda que a vida seja a bons, e a morte a maus, por que havemos nós de cuidar que Cristo no Sacramento seja morte dos maus, quando é vida dos bons? Não há tal coisa. Cristo sempre é vida, e nunca morte. É verdade que quando chegamos a comungar – e isto é só o que quer dizer Santo Tomás, que por isso eu dizia que Santo Antônio é exposição do Sacramento – é verdade que, quando chegamos a comungar, os bons recebem a vida, e os maus incorrem morte, mas dessa morte não é causa o Sacramento. Os bons recebem a vida, porque o Sacra­mento lha dá; os maus recebem a morte, porque eles mesmos se matam a si. De sorte que da vida que recebem os bons não são causa os bons, senão o Sacramento, e da morte que incorrem os maus não é causa o Sacramento, senão os maus.

Amanhece a branca flor, cheia do orvalho doce que destilou nela a aurora, chega a beber a abelha e leva mel; chega a beber a aranha e leva veneno. Mas donde nasce este veneno e este mel? O mel não nasceu da abelha, senão da flor; o veneno não nasceu da flor, senão da aranha. Nem mais nem menos. Está aquele Sacramento feito um favo de vida e de doçura. Chega o justo e chega o pecador àquele manjar divino: o justo leva vida: Vita bonis; o pecador leva morte: Mors est maus. Mas donde nasceu esta morte e esta vida? A vida não nasceu do justo, senão do Sacramento; e a morte não nasceu do Sacramento, senão do pecador. De sorte que o Santíssimo Sacramento sem­pre para todos é vida, e nunca morte.

E se não, diga-o o mesmo Cristo. Lede o capítulo sexto de S. João, que é onde Cristo fala do Sacramento, e achareis que nove vezes se chama pão de vida: Panis enim Dei est, qui de caelo descendit, et dat viram mundo. Ego sum panis vitae. Ego sum panis vivus, qui de caelo descendi. Panis quem ego dabo, caro mea est pro mundi vita. Si quis manducaverit ex hoc pane, vivet in aeternum. Nisi manducaveritis carnem Filii hominis, non habebitis vitam. Qui manducat meam carnem, et bibit meum sanguinem, habet vitam aeternam. Sicut misit me viveras Pater; et ego vivo propter Patrem; et qui manducat mie, et ipse vivet propter me. Qui manducat hunc panem, vivet in aeternum[14]. Pois, se Cristo diz nove vezes que é pão de vida, por que não diz uma vez que é pão de morte? Porque Cristo é suma Verdade, e não podia dizer o que não era. Disse tantas vezes que era pão de vida, porque dá vida; não disse que era pão de morte, porque não dá morte. O que somente disse acerca da morte foi que era pão de não morte: Hic est panis qui de caelo descendit, ut si quis ex ipso manducet, non moriatur. Non sicut manducaverunt palres vestri manna, et mortui sunt[15]. Tão longe está aquele divino mistério de dar vida e morte, que antes o fim para que foi instituído é para dar vida, e para impedir a morte: Ut si quis ex ipso manducet, non moriatur. Bem assim como neste caso fez Santo Antônio, o qual, ao morto, que ressuscitou, deu vida, e ao pai, que ia para morrer, impediu a morte. Podendo dizer com galharda aplicação: Ego vivo propter Patrem, et ipse vivet propter me[16]. Vede agora se fica bem clara aquela mal entendida verdade à vista daquela luz: Vos estis lux. Vede se fica bem saboreado aquele mal entendido dissabor à vista daquele sal: Vos estis sal.

§ VI

Outras maravilhas do mistério do Sacramento: que sendo carne, seja meio para Deus comunicar espírito, pureza e entendimento. Que muito que o Santíssimo Sacramento faça esses milagres com a substância, se Santo Antônio os faz com os acidentes? Santo Antônio, santo sacramentado. A maior de todas as maravilhas encerradas no Sacra­mento e a maior de todas as maravilhas escondidas em Santo Antônio.

Finalmente, por que não nos detenhamos mais, grande maravilha é do Santíssimo Sacramento que, sendo carne, seja meio para Deus comunicar espírito: Ego sum panis vivus. Verba quae ego locutus sum vobis, spiritus et vita sunt[17]. Grande maravilha do Santíssimo Sacramento que, sendo carne, seja remédio contra as tentações da carne, e faça os homens castos e puros: Frumentum electorum, et vinum germinais virgines[18]. Grande maravilha é do Santíssimo Sacramento sendo carne, que tanto cega e precipita o entendimento, seja pão que dá juízo., que dá siso e entendimento: Cibavit illum pane vitae et intellectus[19]. Mas que muito é que a fé creia todas essas maravilhas de Cristo sacra­mentado, se os sentidos as vêem em Santo Antônio? Que muito que o Santíssimo Sacra­mento faça estes milagres com a substância, se Santo Antônio os faz com os acidentes? Todas estas maravilhas que faz o Sacramento, não as faz com os acidentes de pão, senão com a substância do corpo de Cristo. Mas estas, mesmas maravilhas fá-las Santo Antônio não só com a substância, senão com os acidentes de seu corpo. Se a carne de Cristo no Sacramento dá espírito, Santo Antônio, só com um assopro, por ser alento da sua carne, deu espírito. Estava um noviço tentado a deixar a religião, assoprou-lhe Santo Antônio no rosto, dizendo: Accipe Spiritum Sanctum[20] – e ficou confirmado na vocação. Se a carne de Cristo no Sacramento é remédio contra as tentações e apetites da carne, a túnica de Santo Antônio, por ser tocada na sua, tirou as tentações da carne. Era um religioso mui molestado de tentações desonestas, deu-lhe Santo Antônio a sua túnica, para que a vestisse, e no ponto que a vestiu não sentiu mais tentação. Se a carne de Cristo no Sacramento dá juízo e entendimento, o cordão de Santo Antônio, por cingir com ele a sua carne deu juízo e entendimento. Estando o santo pregando, havia na igreja um doido que inquietava o auditório; lançou-lhe o santo o seu cordão ao pescoço, e no mesmo ponto, recuperou o entendimento, e ficou sisudo. Quem não dirá, à vista desta semelhança de maravilhas, que é Santo Antônio um santo sacramentado? Pois ainda falta a mais admirável de todas.

A mais admirável de todas as maravilhas do Santíssimo Sacramento é que dentro de uma quantidade tão pequena esteja toda a humanidade e divindade de Cristo, e que estejam estas grandezas tão grandes escondidas, e tão encobertas, que de nenhum modo apareçam, nem se possam ver nem sentir: In cruce latebat sola deitas, at hic latet simul et humanitas – diz Santo Tomás. Mais disfarçado e mais encoberto está Deus no Sacramento do que esteve na cruz, porque na cruz esteve escondida a divindade, mas a humanidade esteve patente. No Sacramento a humanidade e divindade, tudo está escondi­do. Em Santo Antônio – não o quero dizer com nome tão grande – naquele fradinho menor, que ali vedes, havia grandes grandezas humanas e grandes grandezas divinas, As grandezas divina eram as suas virtudes, as grandezas humanas eram as suas letras e a sua ciência admirável. E todas estas grandezas não só estavam reduzidas e resumidas a um sujeito tão pequeno, mas estavam tão encobertas, tão escondidas e tão sumidas dentro nele, que – enquanto Deus as não descobriu – nenhum sentido humano as podia conhecer, nem descobrir, nem ainda conjecturar. Veio Santo Antônio ao Capítulo Geral, que cele­brava em Assis o padre São Francisco, e, acabado o capítulo, repartiram-se os prelados por todas as províncias da Cristandade, pedindo cada um os religiosos que lhes parecia os podiam ajudar. No cabo ficou só o santo, enjeitado e desestimado de todos, porque nin­guém o quis levar consigo. Vede quem é o mundo, ainda onde não há nem devia haver mundo, que é a religião. Mas isto não é maravilha nos homens; em Santo Antônio o foi, e a maior de todas. Se em Santo Antônio se conheceram as suas virtudes, é certo que todos o haviam de querer levar por santo; se em Santo Antônio se conheceram as suas letras, é certo que todos o haviam de querer levar por letrado. Mas estavam estas maravilhas todas tão sumidas e escondidas em Santo Antônio, que, sendo tão letrado, parecia idiota; sendo tão grande santo, não parecia virtuoso.

O que mais me admira neste caso é que nem S. Francisco conhecesse o que nele havia. Que os outros religiosos o não conhecessem, ainda que muitos eram santos, passe; mas S. Francisco, aquele serafim, que não penetrasse o que estava escondido em Santo Antônio? Daqui infiro eu que soube encobrir Santo Antônio as suas maravilhas muito mais do que Cristo no Sacramento encobriu as suas. Provo: porque as maravilhas que estão encerradas no Sacramento via-as muito bem S. Francisco. E quando S. Francis­co, com os seus olhos de serafim, pôde ver e penetrar as maravilhas que estão escondidas no Sacramento, não pôde ver nem penetrar as maravilhas que estavam escondidas em Santo Antônio. E por quê? Porque as de Santo Antônio estão mais escondidas. Julgai agora se é Santo Antônio sal e luz da mesa do Santíssimo Sacramento. Sal, pois, provado em si, a nenhuma coisa sabe, senão a Sacramento: Vos estis sal; luz, porque, visto o Sacramento nele, tudo o que há no Sacramento fica alumiado e descoberto: Vos estis lux.

§ VII

Conclusão: façamos também nossas as maravilhas de Santo Antônio. A histó­ria do homem do Maranhão que abusara impiamente do santo e do Santíssimo.

Mais tinha que ir por diante, mas acabo com pedir a todos, com todo o afeto que devemos a este nosso santo, e que nós devemos a nós mesmos, que, pois Deus o fez tão maravilhoso, que façamos também nossas as suas maravilhas. Aproveitemo-nos de­las, e não as desperdicemos. Muitos cuidam que se aproveitam das maravilhas de Santo Antônio, empregando a valia deste santo para o remédio das coisas temporais, e isto é desperdiçá-las. Se vos adoece o filho, Santo Antônio; se vos foge o escravo, Santo Antô­nio; se mandais a encomenda, Santo Antônio; se esperais o retomo, Santo Antônio; se requereis o despacho, Santo Antônio; se aguardais a sentença, Santo Antônio; se perdeis a menor miudeza da vossa casa, Santo Antônio; e, talvez, se quereis os bens da alheia, Santo Antônio. Homem houve no Maranhão, menos há de cinco anos, que, tendo induzi­das duas testemunhas para lhe jurarem falso em matéria de liberdade ou cativeiro, no dia em que houveram de jurar, mandou dizer uma missa a Santo Antônio, para que jurassem contra a verdade; e, porque juraram como iam instruídos, veio o pleiteante a este mesma igreja dar as graças ao Santíssimo Sacramento e a Santo Antônio. Há tal barbaria como esta? Há tal maldade? Basta, monstro do inferno, indigno de caráter de cristão e do nome de homem, que, não contente de roubar a liberdade a estas duas criaturas, mais livres que tu, pois não nasceram, como tu, vassalos do teu rei, a primeira lição que lhes deste da doutrina cristã foi ensinar-lhes a dizer em juízo um falso testemunho contra si mesmos, sujeitando-se a si e a toda a sua descendência a perpétuo cativeiro; e para fazeres a Deus cúmplice nesta tua maldade, lhe ofereceste o sacrifício do corpo e sangue de seu Filho, e tomaste por medianeiro desta perdição de tua alma o santo, a quem o mesmo Deus deu o oficio de reparar todas as perdidas! Mas, para que saiba o mundo, e tome exemplo neste tão escandaloso caso do rigor com que o castigou a divina justiça, andando o mesmo homem à caça de cativeiro de índios no Rio das Almazonas, eles lhe tiraram a vida às frechadas, morrendo sem sacerdote nem sacramentos, com tão pouca esperança de sua salvação, antes, com manifesta e clara evidência da condenação eterna, aquele que, não só com tal cobiça, injustiça e crueldade, mas com um sacrilégio tão estólido, inaudito e bárbaro, tinha abusado impiamente do santo e do Santíssimo.



(*) Transferiu-se da sexta-feira para o domingo.

[1] Um homem fez uma grande ceia (Lc. 14, 16).

[2] Vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo (Mt. 5,13 s).

[3] Deixou memória das suas maravilhas, deu sustento aos que o temem (SI. 110, 4 s).

[4] Mestre e Senhor (Jo. 13, 13).

[5] Um homem fez uma grande ceia (Lc. 14, 16).

[6] Um reino é transferido de uma nação para outra, por causa das injustiças (Eclo. 10, 8).

[7] O que come a minha carne, e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia (Jo. 6, 55).

[8] Abriram-se as sepulturas, e muitos corpos de santos, que eram mortos, ressurgiram, e vieram à cidade santa, e apareceram a muitos (Mt. 27, 52 s).

[9] Assim como Jonas esteve no ventre da baleia três dias e três noites, assim estará o Filho do homem no coração da terra (Mt. 12, 40).

[10] Correu esta fama por toda aquela terra (Mt. 9, 26).

[11] Que será derramado por vós e por muitos (Mt. 26, 28; Lc. 22, 20).

[12] Esse fica em mim, e eu nele (Jo. 6, 57).

[13] Com alfaces bravas (6. 12, 8).

[14] Porque o pão de Deus é o que desceu do céu, e que dá vida ao mundo. Eu sou o pão da vida. Eu sou o pão vivo que desci do céu. O pão que eu darei é a minha carne, para ser à vida do mundo. O que come deste pão viverá eternamente. Se não comerdes a came do Filho do homem, não tereis vida em vós. O que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna. Assim como o Pai, que é vivo, me enviou, eu vivo pelo Pai, assim o que me come a mim, esse mesmo também viverá por mim. O que come deste pão viverá eternamente (Jo. cap. 6).

[15] Aqui está o pão que desceu do céu, para que todo o que dele comer não morra. Não como os vossos pais, que comeram o maná, e morreram (Jo. 6, 50. 59).

[16] Eu vivo pelo Pai, e esse me8mo também viverá por mim (ibid. 58).

[17] Eu sou o pão vivo. As palavras que eu vos disse são espírito e vida (Jo. 6, 51.64).

[18] Pão dos escolhidos e vinho que gera virgens (Zac. 9, 17).

[19] Sustentou-o com pão de vida e de inteligência (Eclo.15, 3).