LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Quarta Dominga da Quaresma, do Padre Antônio Vieira.
Edição de Referência:
Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.
SERMÃO DA QUARTA DOMINGA DA QUARESMA,
Na igreja da Conceição da Praia da Bahia, o primeiro que pregou na cidade o autor antes de ser sacerdote, ano de 1633.
Colligite quae superaverunt fragmenta, ne pereant[1].
§ I
O milagre dos pães, batalha campal entre pães e homens.
Como é uso antigo, e sempre praticado na guerra depois das batalhas, principalmente vitoriosas, tocar a recolher os exércitos, para que descansem os soldados, e sejam vistos, como em triunfo, e conhecidos os vencedores, assim o General supremo da Igreja militante manda hoje a seus apóstolos que recolham as relíquias e fragmentos dos cinco pães que venceram, para que se não perca no esquecimento a memória de tão ilustre combate: Colligite quae superaverunt fragmenta, ne pereant (Jo. 6, 12). — Este é, com novo e sublime pensamento, o sentido das palavras que propus, e este o primeiro reparo que podem fazer nele os doutos, por não dizer os críticos. A palavra superaverunt tem igualmente dois sentidos naturais: quando se fala de batalha, significa vencer; e quando de banquete ou convite, que é a matéria do presente Evangelho, quer dizer sobejar: logo, falando com propriedade, parece que havia eu de dizer sobejaram, e não venceram. Esta réplica pede uma razão, e eu a satisfarei com duas. Uma das maiores escolas de Marte que hoje tem o mundo é a nossa Bahia; e porque o Mestre único desta bem exercitada milícia, sobre querer autorizar com sua ilustríssima presença o auditório, advertiu que, sendo o dia de banquete, fossem proporcionadas as iguarias, que outra proporção lhe podia eu achar mais acomodada aos ouvidos, tão costumados ao som das caixas e trombetas, senão fazê-las também bélicas, marciais, e de guerra? Tais foram as vozes com que o profeta Isaías, tendo el-rei Baltasar convidado a mil príncipes do seu império, lhes tocou, não esperadamente, a rebate, e que trocassem os pratos com os escudos: Comedentes et bibentes: surgite príncipes, arripite clypeun[2].
Esta é a primeira razão com que não pode deixar a minha obediência de responder ao favor do oferecimento, que em todas as leis da cortesia devia eu aceitar, como mandado. A segunda, e que pertence à bem fundada dúvida dos críticos, não é, como não deve ser, minha, mas de um tão grande e judicioso intérprete, como é entre os antigos padres o sutilíssimo Eusébio Emisseno. As palavras do seu novo e maravilhoso comento são estas: Non sunt panes nisi quinque, manducantes autem plus millibus quinque: Os pães são somente cinco, os que comem são mais de cinco mil,. — Illi manducant, panes crescunt: Os homens comem; os pães crescem. — Certamen; fit inter panes et homines: Que é isto, senão uma batalha campal entre pães e homens? — E qual o fim dela? Milagroso, e que de nenhum modo se podia esperar: Vincunt panes, superantur homines: Os pães, sendo comidos, vencem: e os homens, que os cromem, são vencidos, — Isto disse com tão maravilhosa novidade, como é a do caso, o grande Emisseno, e isto é, com maior largueza, o que nós ouviremos em um só discurso; mas tal, que desde o princípio até o fim nos mostre em toda a narração do Evangelho os verdadeiros preceitos de Marte, e o que desde o tomar as armas, até o recolher os despojos, devem desejar os vencedores soldados.
Ave Maria.
§ II
O Conselho, leme das guerras terrestres. Por que não consultou Cristo a Judas ou a Pedro, mas a Filipe antes do milagre. Os dois acertos do voto de Santo André.
Colligite quae superaverunt fragmenta, ne pereant (Jo. 6, 12).
Altamente disse Salomão que as guerras se hão de governar com o leme: Gubernaculis tractanda sunt bella[3]. — E qual será, não digo nas guerras navais, mas nas terrestres, o leme? Não há dúvida que é o conselho. Por isso os cultos da gramática militar dizem acertadamente que as batalhas se dão na campanha, mas as vitórias se alcançam no gabinete. Cristo, Redentor nosso, não perguntava para saber, senão para ensinar, e para ensinar que nos casos semelhantes ao presente, se há de tomar conselho, e de quem. Apontando primeiro para a grande multidão dos que o seguiam, perguntou a Filipe: Unde ememus panes, ut manducent hi (Jo. 6)? Donde compraremos pão para dar de comer no deserto a tanta gente? — Antes de ouvir a resposta, é muito de notar a quem Cristo fez a pergunta, e a quem a não fez. Parece que o consultado em primeiro lugar havia de ser Judas, como aquele que tinha cuidado do provimento e sustento do colégio, e era o tesoureiro das esmolas, de que sua pobreza se valia; e do mesmo modo parece que se não devia consultar Filipe, por ser entre todos os discípulos de Cristo o menos provecto nas ciências do seu estudo, segundo o que o mesmo Senhor lhe tinha dito: Tanto tempore vobiscum sum, et non cognovistis me? Philippe, qui videt me, videt et Patrem meum[4]. — Mas, assim na pessoa perguntada, como na que não perguntou, nos deu Cristo dois soberanos documentos. Não perguntou a Judas, por que era traidor; e de um ministro de pouca fé e verdade, talvez se podem dissimular os furtos da fazenda, mas os segredos da guerra, de que depende a conservação do Estado, por nenhum modo se lhe devem fiar. Consultou, porém, e perguntou Cristo a Filipe, porque era natural de Betsaida, e prático daquele país, de cuja experiência, em qualquer lavrador ou pastor rústico, depende muitas vezes o acerto das resoluções, mais que da agudeza e discurso dos sábios, que entendem, mas não adivinham. Porém, Filipe como se viu chamado a conselho, sendo que só se lhe perguntava o lugar donde se podia comprar o pão: Unde ememus panes — meteu-se a ministro, dificultando e impossibilitando a compra, e exagerando a soma de dinheiro necessário para ela: Ducentorum denariorum panes non sufficiunt eis, ut unosquisque modicum quid accipiat[5]. — E se o seu voto se seguira, sem dúvida morreria à fome toda aquela multidão de homens, como outras vezes acontece, pelo mal entendido zelo de ministros tão acanhados no ânimo, como Filipe o era na fé, Não há votos mais perniciosos na paz e na guerra, nem mais bem aceitos comumente aos que governam o leme, que os que, por poupar a fazenda, impossibilitam as ações, com que o que havia de ser trabalho é ociosidade, e o que havia de importar muito se resolve em nada.
De Filipe passou o Senhor a Santo André, o mais antigo de todo o aposto lado, e por isso com a principal qualidade de conselheiro, Mas também aqui se pode com razão duvidar, porque não consultou antes a S. Pedro. Direi: S. Pedro era tão destemido e arrojado, que ele só se atreveu a tirar pela espada, e investir com um esquadrão armado de soldados romanos; e homens de espíritos tão alentados são mais para desfazer as dificuldades na execução que para consultar se se devem ou não empreender. Duas partes teve o voto de Santo André, e a primeira de grande juízo e acerto. — Aqui há, disse, um moço que tem cinco pães: Est puer unus hic, qui habet quinque panes (Jo. 6, 9). — O voto verdadeiro há-se de fundar no que é, e no que há, ou seja muito, ou pouco; e não votos mui elegantes e discretos, mas fundados no impossível, que dizem o que fora bem haver e não há, e fora bem ser e não é. Na segunda parte reconheceu André a dificuldade e desproporção dos cinco pães para sustentar a tantos mil: Sed haec quid inter tantos[6]? — E também aqui acertou, como bom conselheiro de guerra, sem advertir porém qual era o general debaixo do qual militava. Considerando Cristo, Senhor nosso, esta mesma proporção do número, que há de haver dos combatentes de uma e outra parte, disse assim: Quis rex iturus comittere bellum adversus alium regem, non sedens prius cogitat, si possit cum decem millibus occurrere ei, qui cum viginti millibus venit ad se (Lc. 14, 31)? Que rei há? — diz o Senhor — o qual, sabendo que vem outro a acometê-lo com o exército de vinte mil soldados, não cuida primeiro, muito devagar, se pode sair só com dez mil a pelejar com ele em campanha? — Boa consolação, e tão necessária como animosa para os capitães mais versados na aritmética que na milícia, os quais dizem, quase hereticamente, que Deus sempre se costuma pôr da parte onde há mais mosqueteiros. Heresia muitas vezes condenada na Sagrada Escritura, onde se diz que tão fácil é a Deus vencer com poucos como com muitos: Non est differentia in conspectu Dei caeli liberare in multis, vel in paucis[7].
Desta sentença de Cristo pode inferir, não digo o nosso temor, mas o nosso cuidado, que, ainda que os inimigos que nos infestam tenham dobradas bocas de fogo, nem por isso devemos recear ou desconfiar da vitória. Mas não é isto só o que aquela sentença significa, sendo a nossa guerra puramente defensiva. Quando Cristo diz que pode um rei esperar que com dez mil combatentes resista e prevaleça contra o que acomete com vinte mil, fala expressamente de batalha campal, e guerra em campanha, como se colhe claramente das palavras: Si possit cum decem millibus occurrere ei[8] — e nossa guerra, nas circunstâncias presentes, pode com dez mil resistir e defender-se, não só de vinte, senão de cem mil, porque na campanha peleja um homem contra outro homem de peito a peito, porém, os que se defendem cobertos e armados das suas fortificações, com uma muralha diante, ainda que sejam pigmeus, em respeito dos outros homens são gigantes. Assim o diz o profeta Ezequiel da confiança ou desprezo com que os soldados da cidade de Tiro zombavam, sendo pigmeus, de todos os seus sitiadores, mostrando-lhes os arcos e as palavras penduradas da altura dos muros, donde, comparados com os outros homens, eram gigantes: Sed et pigmaei, qui erant in turribus tuis per gyrum, ipsi compleverunt pulchritudinem tuam[9].
§ III
Como antecipa Cristo as graças antes de se dar a estrondosa batalha dos cinco pães comidos contra os cinco mil comedores. Os apóstolos e a ordem da batalha.
Mas que é o que ouço? São as trombetas e caixas da nossa guerra, do nosso Evangelho, que tocam a arma. Pede Cristo pães, e com eles nas mãos, e os olhos nos cinco mil homens, diz o evangelista que, levantando-os ao céu, deu as graças a Deus, antes de partir nem distribuir os pães: Et cum grafias egisset, distribuit discumbentibus[10]. — Esta antecipada ação nos obriga, posto que já com as armas nas mãos, a reparar nela, e a não passar em silêncio, sendo tão nova, e ainda encontrada com a razão. As graças dão-se depois da guerra, da batalha, e da vitória: então se canta o Te Deum, e se fazem as outras solenidades. Pois, se isto, segundo o pensamento que seguimos de Emisseno, era uma batalha entre os pães e os homens: Certamen fit inter panes et homines — como antecipa Cristo as graças antes de se dar a batalha? Porque era sua. Nas guerras de Cristo primeiro é o vencer que o pelejar. Arrebatado S. João nas visões do Apocalipse, ouviu uma voz que lhe dizia: leni, et vide (Apc. 6, 1): Vem, e vê. — Abriu os olhos, e viu sobre um cavalo branco um mancebo de gentil disposição, armado de arco e aljava: Ecce equus albus, et qui sedebat, super eum habebat arcam[11] — e não tinha bem admirado o ar e bizarria com que o cavaleiro do céu vinha saindo, quando viu que lhe punham na cabeça uma coroa: Et data est ei corona[12]. — Coroa? Logo, já tinha vencido. Mas como tinha vencido, se só trazia na mão o arco, e ainda não tinha disparado as setas? Porque este galhardo mancebo, como diz Santo Agostinho, era o Verbo Eterno, que saía do céu a conquistar o mundo; e nas conquistas e batalhas de Cristo, primeiro é o vencer que o pelejar, primeiro a vitória que a batalha: o mesmo texto o diz expressamente: Et exivit vincens, ut vinceret (Apc. 6, 2): Saiu vencedor para vencer: se vencedor, já tinha vencido; se para vencer, ainda não tinha dado a batalha. Mas isto mesmo era ser Cristo, que só ele, antes de pelejar, vence, e antes de dar a batalha, já é senhor da vitória. Por isso, estando ainda com os cinco pães nas mãos, antes do famoso e nunca visto combate, pondo os olhos na multidão que havia de ser vencida, e levantando-os juntamente com as mãos ao céu, dá as graças a Deus, como vencedor.
Primeiro que tudo, mandou o Senhor a seus doze apóstolos, como a outros tantos sargentos maiores de batalha, que dividissem os cinco mil soldados em cem esquadras, cada uma de cinquenta; e, porque a batalha havia de ser comendo ao modo e ao uso com que se punham à mesa os hebreus, os fizessem recostar sobre o feno, de que havia muito naquele deserto. Se o pão se houvesse de dar juntamente a tanta multidão de homens famintos de três dias, qual seria o tumulto e labirinto? Por isso mandou que se dividissem e pusessem primeiro em ordem. Multidão desordenada é confusão; com ordem, é exército. Desordenada serve só de levar despojos ao inimigo; com ordem, na mesma ordem, e em si, leva já segura a vitória. Esse é o respeito por que Salomão, pintando um exército formidável e terrível, não o encareceu pelo numeroso dos combatentes, ou pelo luzido das armas, senão pela ordem de todo ele: Terribilis ut castrorum acies ordinata[13]. — Ordenada e disposta assim a campanha, então repartiu Cristo aos doze apóstolos os cinco pães, lançando-lhes primeiro a sua bênção, e, divididos em igual proporção com os homens, saíram os pães ao combate por todos os modos novo: eles cinco, e estes cinco mil.
Agora se verá a muita razão que teve Santo André, e a pouca fé com que disse: Quid haec inter tantos[14]? — Quanto à razão: os mesmos que haviam de comer se podiam rir ou chorar dos poucos bocados de pão, com que os apóstolos queriam tapar tantas bocas. Quando Josué e Caleb tomaram de explorar a Terra de Promissão, disseram que não havia que temer na conquista, porque os filhos de Israel aos amorreus os podiam comer a bocados, como pão: Neque timeatis populum terrae hujus, qui sicut panem ita eos possumus devorare[15]. — Devorar, disseram, e engolir, que é muito mais fácil que comer, zombando da dificuldade do pão, em que não há osso nem espinha. O mesmo podiam dizer neste caso os cinco mil comedores, não havendo para a sua fome pão, senão tão pouco para tantos. Nem lhes falta o exemplo da Escritura, muito mais próprio e encarecido aos mesmos pães que haviam de ser comidos. Estando em campo, ou tendo inundado todos os campos, contra os hebreus, o exército dos madianitas, cujo número compara o texto sagrado não menos que às areias do mar, sonhou um soldado que via cair e rodar do céu um pão, o qual, dando no mesmo exército, o desbaratava todo, e destruía; e, contando o sonho a um companheiro, inspirado este por Deus disse com espírito profético: Non est hoc aliud, nisi gladius Gedeonis (Jz. 2, 14)[16]: Isso que viste, não é outra coisa senão a espada de Gedeão. — E assim foi, podendo dizer os cinco pães daquela batalha, em que agora entravam, não só o mesmo, mas com maior propriedade, e mais ajustada a todas suas circunstâncias, porque o pão que descia do céu, segundo a versão que refere Abulense, não só era um, senão canistrum panis[17] — que vem a ser a cesta em que trazia o menino os cinco pães: Est puer hic qui habet quinque panes[18]. — Os Setenta Intérpretes lêem: mensa panis, mesa de pão; e tal era a que os cinco mil divididos esperavam assentados já, ou recostados à mesa: discumbentibus — e todos, sem discrepância, que era pão de cevada: hordeaceus — e assim o diz o Evangelho: Ex quinque panibus hordeaceis. — Finalmente, Vatablo, com novo reparo: Strepitus panis — e Caetano: Tremor panis: estrondo e tremor de pão. — Pois, se o pão era um, ou tão pouco que o trazia um menino em uma cesta, como se chama estrondo e tremor de pão: Strepitus et tremor panis? — Porque tão estrondosa e tão formidável havia de ser esta batalha dos cinco pães comidos contra os cinco mil comedores, de que eles se riam ou choravam de ser tão pouco pão contra tantos homens.
§ IV
O estrépito e estrondo da batalha. A multiplicação dos pães e a ciência do partir Por que não nos cresce o pão em casa? Os cinco pães milagrosos e a maior vitória de Sansão. Por que depois da batalha se recolheram somente doze alcofas? A vitória de Cristo e o desinteresse.
Assim se começou o combate, cuidando todos que havia de acabar em um momento, sendo tantos os gastadores, e tão pouco o que se havia de desbastar. Mas, depois que os apóstolos, começando pela primeira, acabaram pela última das cem esquadras, então, comendo todos, se ouviu o estrépito ou estrondo da marcha, e pareceu que a terra e todo o deserto tremia: Strepitus et tremor panis. — Passou a admiração a espanto, e a primeira e mais que admirada foi a natureza. — Eu, dizia a natureza, também sei, e posso fazer do pouco pão muito pão; mas isto, quando mais apressadamente, em três meses. Háse de arar a terra, há-se de semear e gradar o trigo, há de regá-lo o céu, há de amadurecer o sol, hão de colhê-lo suando os segadores; posto em paveias na eira, depois de calcado e limpo, há de ser moído, depois amassado e levedado, depois finalmente cozido, até que se possa comer. Mas isto, quando menos, como dizia em três meses, e ordinariamente desde as neves de dezembro até às calmas de agosto. Mas em um momento, crescer das mãos à boca! Santo Agostinho diz que crescia nas mãos de Cristo; S. Crisóstomo, que nas dos apóstolos; S. Hilário, que nas dos que comiam; e tudo era, mas principalmente nestes últimos, porque, partido o pão que a cada um coube, enquanto a mão direita o partia, e levava à boca, já na esquerda ficava outro tanto, que se podia tomar a partir, e desta maneira, quanto mais partiam os comedores, tanto mais cresciam os pães comidos. Oh! se o mundo soubesse entender e aprender esta traça de multiplicar o pão! Parvuli petierunt panem, et non erat qui frangeret eis — diz Jeremias (Lam. 4,4): Pediram pão os pequenos, e não havia quem lho partisse. — Partisse, diz, porque a falta de não haver pão, é porque não há quem o parta e reparta. Grande prova no mesmo Evangelho. Neste milagre, como veremos, sobejaram doze alcofas de pão; em outro semelhante, sete: e por que menos pão naquele que neste?
Naquele eram mais os pães, e menos os comedores, porque eram os pães sete, e quatro mil os comedores; neste os pães eram cinco, e os comedores cinco mil: logo, lá, onde os pães eram mais, e os comedores menos, haviam os pães de crescer mais; e cá, onde os pães eram menos, e os comedores mais, haviam os pães de crescer menos. E por que não foi assim, senão pelo contrário? Pela razão expressa e infalível que tenho dito. Onde os pães eram sete, e os comedores quatro mil, foi necessário que os pães se partissem e repartissem menos; e onde se partiram e repartiram menos, também cresceram menos; porém no nosso caso, em que os pães eram menos, e os homens mais, foi necessário e forçoso que os pães se partissem e repartissem mais, e por isso cresceram mais. Não vos cresce o pão em casa, porque o não sabeis partir e repartir com os que carecem dele. Se o partísseis e repartísseis, ele cresceria, assim como cresceu, sendo tão pouco, e os comedores tantos nesta batalha. Nas outras guerras, uns vivem, outros morrem, e dos vivos são vencedores os mais valentes, e vencidos os mais fracos; aqui nenhum morreu, porque os comidos só matavam a fome dos comedores, mas os mesmos comedores, ficando sem fome, mais alentados e inteiros, foram os vencidos; e os poucos pães comidos, desbaratados e feitos em pedaços, os vencedores: Vincunt panes, superantur homines. — Uma das maiores vitórias que viu o mundo, e na realidade a maior de todas, foi a de Sansão, quando ele, sendo um só, venceu e matou a mil: Percussi milie viros (Js. 15, 16). — Tal foi a vitória de cada um dos cinco pães; eles só cinco, e cinco mil os vencidos. Mas porque a vitória tanto é mais gloriosa quanto menos proporcionados os instrumentos, o mesmo Sansão ponderou na sua que vencera os mil homens com uma queixada: In mandibula delevi eos, et percussi mille viros[19]. — Assim o fizeram também, ou fez cada um dos cinco pães: porque cada um venceu a mil, e não com queixada alheia: In mandibula pulli[20] — senão com as mesmas queixadas dos que os comiam: Illi manducant, panes crescunt: vincunt panes, superantur homines[21].
Vencida a batalha, e nenhuma tão gloriosamente como esta, mandam os generais tocar a recolher os soldados vencedores; e assim mandou Cristo a seus discípulos que, em sinal da vitória, recolhessem as relíquias e fragmentos dela, para que se não perdessem: Colligite quae superaverunt fragmenta, ne pereant (Jo. 6, 12). — Fizeram-no assim os apóstolos, e admira-se com razão S. João Crisóstomo que recolhessem cheias doze alcofas, nem mais nem menos: Quia nec plus nec minis fecit superfluum esse. — Doze, e só doze! Bem, porque eram doze os apóstolos. Mas por que não treze, para que chegasse também a Cristo a sua? Porque era Cristo o general. As alcofas tecem-se de palmas, as palmas significam as vitórias; as alcofas cheias de pão, os despojos delas; e o general de sublimes pensamentos, qual Cristo, da vitória só quer a honra; dos interesses dela, nada para si, tudo para os seus soldados. Assim o fizeram generosamente, sem conhecimento do verdadeiro Deus, um Agesislau, um Alexandre, um Vespasiano, e, dos que o conheceram antes de ser homem, Davi, Josué, Jefté, Gedeão, Sansão e Judas Macabeu, dos quais disse, com não menos levantado pensamento, S. Bernardo: Nemo eis communicavit in gloria, — Vendo os vencidos o milagre, e parecendo-lhes ação verdadeiramente real a de um capitão, que não só não mata os homens à fome para comer ele, mas mata a fome aos homens para os vencer, que resolveram entre si? Resolvem e determinam todos de aclamar a Cristo por rei, ainda que ele o repugnasse: Ut raperent eum, et facerent eum regem (Jo, 6,15). — Entendeu-lhe o Senhor os pensamentos, e, para última prova do seu desinteresse, deixando-os com o título de rei quase na boca, se retirou só para o monte: Fugit iterum in montem ipso solus[22].
§ V
O que nos diz o milagre dos pães.
Aqui acaba o Evangelho, e eu também tenho acabado o sermão. Mas, se é verdade, como é o que diz Santo Agostinho, que os milagres, depois de entendidos, falam: Habent miracula, si intelligantur, linguam suam — ainda que o evangelista se nos calou, não deixa o milagre de falar. Ouçamos-lhe duas palavras. Em Cristo, sabedoria eterna, pedir conselho: Unde ememus panes[23]? — diz que sem conselho nenhuma coisa façamos, porque nenhum homem é tão sábio que não esteja sujeito a errar. Em ser errado o dos apóstolos, por não recorrerem aos poderes de Cristo: Sed haec quid inter tantos[24]? — diz que ele deve ser o oráculo, a quem em todas as nossas dúvidas e dificuldades devemos recorrer. Em o Senhor dar as graças antes da mercê recebida: Et cum grafias egisset[25] — diz que, ao menos depois de as receber, não sejamos desconhecidos e ingratos. Em partir e repartir o pão para o multiplicar: Distribuit discumbentibus[26] — diz que a melhor traça de acrescentar os nossos bens é socorrer com eles aos pobres. Em, finalmente, não querer Cristo nada para si, senão tudo para os seus: Collegerunt duodecim cophinos[27] — que é o que diz? Sem dúvida que nos diz o Senhor o que lá disse Abraão a outro rei sobre os despojos de uma vitória: Da mihi animas, caetera tolle tibi (Gen 14, 11): Tudo o mais vos dou, dai-me as almas. — Exortar este só ponto é o que aqui cabia; mas porque fio mais do bom juízo com que os que me ouvem o poderão considerar, do que das razões com que eu posso persuadir, acabo com desejar a todos nesta vida a graça, e na outra a glória: Ad quam nos perducat, etc.
[1] Recolhei os pedaços que sobejarem, para que se não percam (Jo. 6, 12).
[2] Os que comem e bebem: Levantai-vos, príncipes, arrebatai o escudo (Is. 21, 5).
[3] As guerras devem ser governadas com os lemes (Prov. 20,18).
[4] Há tanto tempo que estou convosco, e ainda não me tendes conhecido? Filipe, quem me vê a mim, vê também a meu pai (Jo. 14, 9).
[5] Duzentos dinheiros de pão não lhes bastam, para que cada um receba à sua parte um pequeno bocado (Jo. 6, 7).
[6] Mas isto o que é, para se repartir entre tanta gente (Jo. 6, 9)?
[7] Diante dos olhos do Deus do céu não há diferença entre o grande número e o pequeno (1 Mac. 3,18).
[8] A ver se com dez mil homens poderá ir a encontrar-se (Lc.14, 31).
[9] E até os pigmeus, que estavam à roda das tuas torres, completaram a tua formosura (Ez. 27, 11).
[10] E, tendo dado graças, distribuiu-os aos que estavam assentados (Jo. 6, 11).
[11] E vi um cavalo branco, e o que estava montado sobre ele tinha um arco (Apc. 6, 2).
[12] E lhe foi dada uma coroa (ibid.).
[13] Terrível como um exército bem ordenado posto em campo (Cânt. 6, 3).
[14] Mas isto o que é, para se repartir entre tanta gente (Jo. 6, 9)?
[15] Nem temais a gente desta terra, porque como pão assim os podemos tragar (Núm. 14, 9).
[16] Isto não é outra coisa senão a espada de Gedeão (Jz. 7, 14).
[17] Abul. quaest, 16.
[18] Aqui está um menino que tem cinco pães (Jo. 6, 9).
[19] Com uma queixada eu os derrotei, e matei mil homens (Jz. 15, 16)
[20] Com a queixada de um potro (ibid.).
[21] Os homens comem, os pães crescem; os pães vencem, e os homens são vencidos (Eus. Emisseno).
[22] Tornou-se a retirar para o monte ele só (Jo. 6, 15)
[23] Com que compraremos nós o pão (Jo. 6, 5)?
[24] Mas isto o que é para se repartir entre tanta gente (ibid. 9)?
[25] E, tendo dado graças (ibid. 11).
[26] Distribuiu-os aos que estavam assentados (ibid.).
[27] Encheram doze cestos (ibid. 13).