Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão Gratulatório e Panegírico, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões. Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO GRATULATÓRIO E PANEGÍRICO,

na manhã de dia de Reis, sendo presente, com toda a corte, o Príncipe nosso Senhor ao Te Deum Laudamus, que se cantou na Capela Real, em ação de graças pelo felicíssimo nascimento da Princesa Primogênita, de que Deus fez mercê a estes Reinos na madrugada do mesmo dia do ano de 1669.

Te Deum laudamus, te Dominum confitemur. Te aeternum Patrem omnis terra veneratur[1].

§ I

O hino de ação de graças de Portugal pelo nascimento da princesa primogênita. As saudades e memórias dos reis Dom João e Dona Luísa e as glórias de Raquel. Assunto do sermão: Quem louva a Deus? A quem louva? Por que louva?

A dois coros de louvores divinos — muito alto e muito poderoso Príncipe, e neste dia felicíssimo senhor nosso — a dois coros de louvores divinos, divididos em alternadas vozes, mas concordes em recíproca harmonia, cantam hoje a Deus este hino de ação de graças, no céu os anjos, e na terra os homens. A parte que toca ao coro dos homens é o verso que propus; a que pertence ao coro dos anjos é a que se continua no verso que se segue: Tibi omnes angeli, tibi caeli, et universae potestates[2]. — Este coro celestial e angélico, que nós não podemos ouvir nem acompanhar, ficará-pois Deus assim o quis — para os nossos gloriosíssimos reis, Dom João e Dona Luísa, que estão no céu, cuja glória acidental considero eu hoje mui crescida, no felicíssimo nascimento da primogênita de seus netos, novas e segundas primícias de sua real descendência. Sendo certo — como piamente devemos crer — que lá, desde esse trono de maior majestade, onde reinam estão nesta mesma hora lançando mil bênçãos sobre a recém-nascida infante, melhores e mais eficazes que as de Jacó sobre o primogênito de seus netos, o venturoso Efraim[3]. No céu ainda não tenho averiguado se se consentem saudades; mas, assim como a sepultura é a terra do esquecimento, assim o céu é a pátria da memória e das lembranças. A morte, ainda que esfria o sangue, não acaba os parentescos, nem a diferença da vida faz mudança nas obrigações do amor. Sonhou José, em sua primeira idade, que o sol, a lua, e onze estrelas o adoravam[4]. o sol era seu pai Jacó, a lua era Raquel, sua mãe, as onze estrelas de maior e menor grandeza eram os seus onze irmãos, desde Rúben a Benjamim. Cumpriu-se a verdade da profecia quando, reinando José no Egito, o adoraram seus irmãos e seu pai, mas não o adorou sua mãe, porque já era morta Raquel. Pois, se Raquel era morta, e não adorou a José com os demais, como viu José que sua mãe o adorava? Porque ainda que o não adorou nesta vida, adorou-o na outra; ainda que o não adorou no Egito, onde José estava, adorou-o lá desde o seio de Abraão — que era a bem-aventurança daqueles tempos — aonde estava Raquel[5]. — Raquel também na outra vida é mãe, Jacó também na outra vida é pai. E como a morte não tem jurisdição nas almas, lá amam os pais, e de lá adoram aos filhos; lá se gozam de seus bens, lá se alegram com suas felicidades, Renovam-se mais em semelhantes ocasiões as saudades e memórias dos nossos bons reis, e dizemos com sentimento: Oh! se viveram ainda hoje — como puderam ser vivos — que glória seria a sua em tão formoso dia, vendo as felicidades do filho e neta, do reino e vassalos, que tanto amaram! Mas o engano piedoso desta nossa consideração mais necessita de fé que de alívio. Demos o parabém a nossos reis, não lhes tenhamos lástima. De lá estão vendo melhor o que nós vemos, de lá estão gozando melhor o que nós gozamos, e lá estão louvando e dando graças a Deus, entre o coro do céu, muito melhore mais altamente do que nós o saberemos fazer neste nosso da terra.

O verso que pertence a este coro é o que propus: Te Deum laudamus, te Dominum confitemur: te aeternum Patrem omnis terra veneratur[6]. — As palavras são muito comuns para dia tão particular, e para assunto tão subido muito vulgares. Mas, se o artífice não estivera tão esquecido do exercício e da arte, sobre alicerces toscos bem se pode levantar alto e lustroso edifício: sobre a pedra fundamental dele — que é Te Deum laudamus — determino perguntar ou ponderar três coisas: Quem louva? A quem louva? E por Que louva? Quem louva somos nós, e toda a terra: nós: Laudamus; toda a terra: Omnis terra veneratur. — A quem louva é Deus, enquanto Deus e enquanto Senhor: enquanto Deus: Te Deum; enquanto Senhor: Te Dominum. — O por que louva é porque o Eterno Padre, enquanto Pai, fez hoje pai ao nosso príncipe, e, enquanto eterno, o começa também a fazer eterno: Te aeternum Patrem. — Não diz mais o cantochão das palavras, nem eu sei dizer mais do que elas dizem. O concurso do Evangelho e do mistério, em dia tão singular, nada desdizem da presente ação de graças, antes ajudam e acompanham. O Evangelho diz que ofereceram os reis ao rei nascido ouro, incenso e mirra: Obtulerunt ei aurum, thus et myrrham (Mt. 2, 11). — E o mistério foi que no incenso reconheciam a Cristo como Deus, no ouro como Senhor, na mirra como mortal: Auro regem, thure Deum, myrrha mortalem[7] — diz S. Gregório Papa. Se oferecem adorações de incenso, como a Deus: Te Deum laudamus; se oferecem tributos de ouro, como a Senhor: Te Dominum confitemur; se oferecem mirra de mortalidade, como a mortal, ao que é imortal e eterno: Te aeternum Patrem omnis terra veneratur. — Vamos ao que prometemos.

§ II

Primeira pergunta: Quem louva? Que obrigação tem toda a terra à princesa primogênita de Portugal, para vir dar graças a Deus pelo seu nascimento? Jafé e a ventura dos filhos últimos. Quem logrou a promessa feita por Noé a Jafé? Tubal, o primeiro português. Que quer dizer Tubal? O mistério por que os reis que foram adorar a Cristo eram somente três, sendo que as partes do mundo são quatro. A princesa primogênita de Portugal e a adoração dos três Reis Magos.

Começando pela primeira pergunta: Quem louva? — digo, ou torno a dizer, que louvamos nós, e toda a terra. E toda a terra? Parece que esta voz vem fora, de nosso coro: que louvemos nós — laudamus — muita razão é; mas toda a terra: Omnis terra veneratur? — Por quê? Que obrigação tem toda a terra à primogênita de Portugal, para vir dar graças a Deus pelo seu nascimento? Se Portugal não conhece esta obrigação, não se conhece: toda a terra tem a mesma obrigação de Portugal, porque Portugal é toda a terra. Portugal, quanto a reino, é parte de uma parte da terra na Europa; mas Portugal, quanto à monarquia, é um todo composto de todas as quatro partes da terra, na Europa, na África, na Ásia, na América. Fazer esta demonstração com os compassos geométricos em um mapa, ou esfera do mundo, é muito fácil; mas eu hei-a de fazer nas Escrituras Sagradas, porque parece dificultoso e para que saibamos os portugueses quantas obrigações devemos a Deus, e quão antigas.

Desafogado o mundo das águas do dilúvio, erma e despovoada toda a terra, dividiu-a toda Noé em três partes, e repartiu-a entre os três filhos que com ele se salvaram na arca[8]: uma parte deu a Sem, que era o primogênito; outra a Cam, que era o segundo; e a terceira a Jafé, que era o último; grande é na ordem da divina providência a ventura dos filhos últimos: tem Deus por brasão e honra de sua justiça fazer dos primeiros últimos, e de sua grandeza fazer dos últimos primeiros[9]. Assim sucedeu a Jafé: lançou-lhe a bênção seu pai Noé, e disse desta maneira: Dilates Deus Japhet: Filho meu Jafé, Deus te dê a ventura conforme o nome. — O teu nome de Jafé quer dizer dilatatio: dilatação — e tal será a tua bênção, porque Deus te dilatará tão estendidamente por toda a terra, que não só lograrás a parte que coube na tua repartição, senão também a de teus irmãos: dominarás as terras de Cam, e habitarás as de Sem: Dilatet Deus Japhet, et habites in tabernaculis Sem: sit servus ejus Chanaant. — Pois, se Cam havia de possuir só a sua parte da terra, e não a de Jafé nem a de Sem, e se assim mesmo Sem havia de possuir só a sua parte, e não a de Cam nem a de Jafé, por que razão havia de possuir a sua, e mais habitar a de Sem, e dominar a de Cam, e, por consequência, toda a terra? Porque o primeiro era repartição, o segundo foi bênção; o primeiro era distribuição da justiça, o segundo foi favor e privilégio da providência. Olhou a divina providência para Jafé com olhos tão benignos e liberais, que, limitando a seus irmãos certas e determinadas partes da terra, a ele só o quis estender e dilatar por todas as partes dela, sem termo nem limite: Dilatet Deus Japhet.

Bem está; mas sobre quem caiu esta bênção de Noé? Quem logrou esta promessa feita a Jafé? E em quem se cumpriu a grandeza de toda esta profecia? Cumpriu-se no primeiro português que houve no mundo, e na sua descendência, que somos nós[10]. O primeiro português que houve no mundo foi Tubal: sua memória se conserva ainda hoje, não longe da foz do nosso Tejo, na povoação primeira que fundou, com o nome de Caetus Tubal, e, com pouca corrupção, Cetúbal. Este Tubal, este primeiro português — como se lê no capítulo décimo do Gênesis[11] — foi filho quinto de Jafé — que também é boa a fortuna dos filhos quintos. — Filli Japhet: Gomer, et Magog, et Madai, et Javan, et Thubal[12]. — E, finalmente, neste filho quinto de Jafé, neste primeiro português, neste Tubal, se verificou a bênção de seu avô Noé, e se cumpriu a profecia e promessa feita a seu pai Jafé, porque só os portugueses, filhos, descendentes e sucessores de Tubal, são e foram — sem controvérsia — aqueles que, por meio de suas prodigiosas navegações e conquistas, com o astrolábio em uma mão, e a espada na outra, se estenderam e dilataram por todas as quatro partes do imenso globo da terra. Portugueses na Europa, portugueses na África, portugueses na Ásia, portugueses na América, e em todas estas quatro partes do mundo, com portos, com fortalezas, com cidades, com províncias, com reinos, e com tantas nações e reis tributários. Houve algum filho de Noé, houve alguma nação outra nas idades, por belicosa e numerosa que fosse, e celebrada nas trombetas da fama, que se dilatasse e estendesse tanto por todas as quatro partes da terra? Nenhuma. Nem os assírios, nem os persas, nem os gregos, nem os romanos. E por quê? Porque esta bênção, esta herança, este morgado, este patrimônio era só devido aos portugueses, por legítima sucessão de pais e avós, derivado seu direito de Noé a Jafé, de Jafé a Tubal, de Tubal a nós, que somos seus descendentes e sucessores.

Não posso deixar de confirmar esta bênção ou doação — por que me não ponham pleito — com uma escritura pública, e também sagrada. — Os patriarcas antigos, como eram alumiados com espírito de profecia, punham a seus filhos tais nomes, que neles significavam a boa ou má fortuna, sua e de seus descendentes). Assim o fez Adão nos nomes de Caim e Abel, assim Jacó nos nomes de José e Benjamim, assim José nos nomes de Efraim e Manassés[13]. Seguindo este estilo, Jafé houve de pôr nome àquele seu filho quinto, e chamou-lhe Tubal. Mas que quer dizer Tubal? Prodigioso caso! Tubal, como dizem todos os intérpretes daquela primeira língua — que era a hebraica — quer dizer orbis et mundanus: homem de todo o mundo, homem de todo orbe, homem de toda a redondeza da terra. Pois, de todo o mundo, de todo o orbe, de toda a redondeza da terra um homem? Sim, porque este homem era o primeiro fundador de Portugal, era o primeiro português, era o primeiro pai dos portugueses, aqueles homens notáveis, que não haviam de ser habitadores de uma só terra, de um só reino, de uma só província, como os outros homens, senão de todo o mundo, de todo o orbe, de todas as quatro partes da terra. E assim como o romano se chama romano, porque é de Roma, e o grego se chama grego, porque é de Grécia, e o alemão se chama alemão porque é de Alemanha, assim o português se chama mundanus, porque é de todo o mundo, e se chama orbis, porque é de toda a redondeza da terra. E como toda a terra é sinônimo de Portugal, e os portugueses são parte dominadores, parte habitadores de toda a terra, por isso, no dia felicíssimo em que o príncipe e corte de Portugal, em nome e representação de toda a monarquia, vem louvar e agradecer a Deus solenemente o feliz nascimento da sua primogênita, razão é, e obrigação, que à mesma ação de graças venha e concorra também toda a terra. Vimos nós, vimos todos os portugueses louvar a Deus: Laudamus? Pois venha também conosco toda a terra venerá-lo: Omnis terra veneratur.

No nascimento de Cristo, quando o vieram adorar hoje os reis do Oriente, cada um dos reis representava uma parte do mundo. O mundo naquele tempo constava só de três partes, porque ainda os portugueses lhe não tinham acrescentado e descoberto a quarta. Esse é o mistério por que os reis foram somente três. O primeiro cetro representava a soberania da Ásia, a segunda púrpura a potência da África, a terceira coroa a majestade da Europa: Tres Magi tres partes mundi significant: Asiam, Africam Europam — disse o Venerável Beda, Santo Tomás e Ruperto[14]. De maneira que no nascimento de Cristo, quando o mundo o vem adorar, um rei representa uma parte do mundo; mas no nascimento da nossa primogênita, quando Portugal vem adorar ao mesmo Cristo, um só príncipe representa todas as quatro partes. Mais tem hoje Cristo a seus pés em um cetro, do que teve naquele dia em três coroas. Se nesta madrugada houvesse de despachar Portugal correios de luz, a levar a feliz nova por toda a monarquia, não havia de ir uma só estrela, senão quatro estrelas: uma estrela para o Oriente, à Ásia; outra estrela para o Ocidente, à América; outra estrela para o Setentrião, à Europa; outra estrela para o Meio-dia, à África. Oh! que formosas estrelas! Oh! que alegres e festejadas novas para aqueles fidelíssimos vassalos, tão amantes do seu reino e do seu rei, espalhados por toda a terra! Mas, pois as estrelas não vão, nem eles podem vir tão depressa, vem em nome de todos eles, e como cabeça de todos, o nosso monarca em presença, com toda a sua corte, para que todos louvemos a Deus: Laudamus — e em representação, com toda a terra — em que tanta parte é sua — para que toda o venere: Omnis terra veneratur.

§ III

A quem louva? Por que louva Portugal e toda a terra a Deus enquanto Deus e enquanto Senhor? A sucessão de Portugal e a sucessão de Raquel. Porque razão, se Deus não dera sucessão a Portugal, nenhuma coisa lhe teria dado? Os benefícios de Deus a Abraão e a sucessão dos filhos. Assim como Deus, se não dera sucessão, não tinha que dar a Portugal, assim, tendo-lhe dado sucessão, já Portugal não tem que lhe pedir O sumo da felicidade humana, em que El-Rei Davi se reconhecia, depois de se ver com sucessão, sobre tantas outras mercês do céu. Semelhanças entre o príncipe D. Pedro e El-Rei Davi. A ação de graças de Portugal e os reis do Oriente.

Temos satisfeito à primeira pergunta, e já sabemos quem louva. Segue-se a segunda: A quem louva? Digo que louva Portugal e louva toda a terra a Deus, enquanto Deus e enquanto Senhor: enquanto Deus: Te Deum — enquanto Senhor: Te Dominum. — Deus é nome de liberalidade, Senhor é nome de poder: chama-se Senhor porque pode, e chama-se Deus porque dá. E por isso louvamos a Deus enquanto Deus e enquanto Senhor, neste dia em que deu sucessão a nossos príncipes, porque lhes deu Deus o que só Deus pode dar.

Carecia Raquel de filhos, e era esta dor para ela a maior de todas as dores, como verdadeiramente é[15]. Todos os profetas, nas suas cominações, quando querem encarecer muito uma grande dor, chamam-lhe dor como dor de parto. — Davi: Ibi dolores ut parturientis[16]. — Isaías: Quasi parturiens dolebunt[17]. — Jeremias: Dolores ut parturientem[18]. — Mas, posto que a dor do parto seja tão encarecida nas sagradas letras, ainda há outra maior. E qual é? A dor de não ter essa dor, a dor de não ter filhos. A dor de parto é dor da mãe; a dor de não ter filhos é dor da mãe e mais do pai, ou dos que o desejam ser, e não são. A dor do parto é dor de uma hora, a dor de não ter filhos é dor de toda a vida; antes, na mesma morte é maior dor, porque hão de deixar por força os bens, e não têm a quem os deixem. A dor do parto, como ponderou Cristo, é dor que se converte em alegria[19]; a dor de não ter filhos é dor sem consolação, sem alívio, sem remédio, Finalmente, a dor do parto é dor com que pode a vida; a dor de não ter filhos é dor que mata. Estes são os termos por onde Raquel explicou a sua dor: Da mihi liberos, alioquin moriar[20]: Jacó, dai-me filhos, senão hei de morrer. — Que responderia Jacó? Nunquid Deus ego sum? Raquel, sou eu porventura Deus? — Discreta resposta! De maneira que Raquel diz a Jacó que lhe dê filhos, e Jacó responde a Raquel que não é Deus. Como se dissera Jacó: Dizei-me que vos dê filhos, porque desejais ser mãe, e eu digo-vos que não sou Deus, porque só Deus os pode dar; só Deus os pode dar, porque é Senhor, e só Deus os dá, quando é servido, porque é Deus, Para ter filhos não basta só Jacó e Raquel: é necessário Jacó, Raquel, e mais Deus. É verdade que Deus não dá filhos sem Jacó e Raquel, que por isso instituiu o vínculo sagrado do matrimônio; mas também é verdade que Jacó e Raquel, sem Deus, não podem ter filhos, porque reservou Deus só para si esse poder, como Senhor: Te Dominum — e reservou só para si essa data, como Deus: Te Deum. — E quando Deus concede hoje ao nosso príncipe o que negou a Jacó, e à nossa princesa o que negou a Raquel, razão e obrigação temos de lhe render infinitas graças: de o louvar como Deus: Te Deum laudamus — e de o confessar como Senhor: Te Dominum confitemur.

Grandes mercês de sua liberalidade enquanto Deus, grandes e maravilhosos favores de seu poder enquanto Senhor tinha Deus feito aos nossos príncipes, e ao nosso reino, até este dia; mas é tanto maior mercê, e tanto mais relevante favor o que hoje nos fez, na sucessão que lhes deu, que em comparação deste soberano benefício, em todas essas mercês, sem esta, nenhuma coisa lhes tinha dado, e em todos esses favores, e outros ainda maiores, sem este nenhuma coisa lhes podia dar. Parece que digo muito: se o não provar, não me creiam.

Apareceu Deus a Abraão, satisfeito do bem que o serviu, e disse-lhe: Ego protector tuus, et merces tua magna nimis[21]: Eu desde este dia te tomo debaixo de minha proteção, e sabe que te hei de fazer grandes mercês. — Mercês a mim? — respondeu Abraão: Domine Deus, quid dabis mihi? Deus e Senhor meu, que tendes vós que me dar a mim, ou que podeis dar-me? — Esta é a energia literal das palavras. Porém, eu hei de mostrar a Abraão que se implicou nelas. Nas primeiras palavras: Domine Deus — confessais que é Senhor e Deus; nas segundas: Quid dabis mihi — dizeis que não tem que vos poder dar? Se não tem que vos poder dar, não é Senhor e Deus; e se é Senhor e Deus, dar-vos-á como Deus o que pode como Senhor. Mas não argumentemos de possível, senão de facto. — Sabeis, Abraão, o que vos pode dar Deus? Pode vos dar tudo o que vos deu. Deus deu a Abraão grandes riquezas, deu-lhe honra, prodigiosas vitórias, deu-lhe fama, e, sobretudo, deu-lhe a Terra de Promissão e a coroa de Israel, que era uma monarquia de doze reinos. Pois, se Deus vos deu tanto, e vos pode dar muito mais, como dizeis a Deus: Senhor, que me haveis de dar, ou que podeis dar-me? O mesmo Abraão se explicou, e me explicou: Domine Deus, quid dabis mihi? Ego vado absque liberis[22]: Deus e Senhor meu, que me haveis vós de dar? Ou que me podeis dar, se eu não tenho filhos? — Quando Deus fez aquela promessa a Abraão, Abraão não tinha filhos, nem esperança de os ter, porque Sara era de noventa anos, e ele ainda mais velho; e por isso diz resolutamente a Deus que não tem que lhe dar, porque tudo o que Deus dá ou pode dar nesta vida, se não deu filhos, é como se o não dera. E por quê? Porque o que se me dá a mim para outrem, não se me dá a mim. Esta é a ênfase e alma daquele mihi[23]. Conheço que sois Senhor no poder, e que sois Deus na liberalidade: mas mihi? A mim, que não tenho filhos? Mihi? A mim, que nem esperança tenho de os ter? Nenhuma coisa me pode dar vossa liberalidade, nenhuma coisa tem que me dar vosso poder, porque tudo, quanto me derdes a mim não é para mim, senão para os estranhos, que o hão de lograr: e isso é dá-lo a eles, e não a mim"". Se vós, Senhor, me tivéreis dado filhos, podereis me dar muito; mas, como não me fizestes em seu tempo esta mercê, já agora, por minha incapacidade, não tendes que me dar, porque, nos filhos que me negastes, me tendes já tirado quanto me derdes.

Eis aqui, Portugal, por que eu digo que, se Deus nos não dera sucessão, por mais mercês que nos tenha feito, nenhuma coisa nos tinha feito, nenhuma coisa nos tinha dado, nem tinha que nos dar. Seja prova desta pura verdade a memória do tempo passado. Tirou-me Deus o reino por tantos anos; tirou-me o império, a soberania, a liberdade: o império trocou-se em sujeição, a soberania em vassalagem, a liberdade em cativeiro. E quando nos tirou Deus tudo isto? Quando nos deu um rei sem sucessão: se o rei, naquela infeliz batalha, tivera sucessor, perdera-se o rei, mas não se perdera o reino; mas, porque Deus, por nossos pecados, queria tirar ao rei e ao reino tudo o que lhe tinha dado, por isso lhe não deu sucessão. Não pudera agora suceder o mesmo? Não pudera ser um irmão como outro irmão? Sim, pudera. E nesse caso, em todas as mercês que Deus nos fez, nenhuma coisa nos tinha feito; e em todas as felicidades que nos deu, nenhuma coisa nos tinha dado: antes, pudéramos dizer com Abraão que nem tinha que nos dar: Domine Deus, quid dabis mihi? Ego vado absque liberis.

Alegremos o discurso, que parece ia sendo triste para dia tão de festa. Vede o que digo agora. Assim como Deus, se não dera sucessão, não tinha que nos dar, assim hoje, que nos tem dado sucessão, já não temos que lhe pedir. O maior auge que se pode imaginar de fortuna é chegar um rei e um reino a tais circunstâncias de felicidade, que não tenha mais que pedir a Deus: e tal é o ponto altíssimo em que hoje se vê Portugal e seu príncipe. O fiador deste segundo pensamento é tão abonado como o do primeiro.

Mandou Deus recontar a Davi, por boca do profeta Natã, as mercês que lhe tinha feito, e notificar-lhe também as que de novo lhe determinava fazer, e todas se reduziam a estas três. A primeira, que, sendo filho último da casa de seus pais, o pusera no trono real de Israel, de que tinha privado a El-Rei Saul, e o confirmaria nele: Thronus tuus erit firmus jugiter: misericordiam autem meam non auferam ab illo, sicut abstuli a Saul[24]. — A segunda, que, assim como lhe tinha dado maravilhosas vitórias, lhe daria também paz universal com todos seus inimigos: Omnes inimicos tuos interfeci a facie tua et requiem dabo tibi ab omnibus inimicis tuis. — A terceira, que lhe daria filho herdeiro, que sucedesse em sua casa, para que o mesmo cetro se perpetuasse por longos anos na sua descendência: Suscitabo semen tuum post te, quod egredietur de utero tua, et firmabo regnum ejus24 . — Ouvida, Davi, esta tão grandiosa relação, como príncipe tão pio e religioso que era[25], fez o que faz hoje o nosso príncipe. Vai-se à Capela Real — porque naquele tempo, como notou Abulense, estava a Arca do Testamento em palácio, em um lugar separado e consagrado a Deust — prostra-se diante do divino Propiciatório, e, depois de confessar com humildes reconhecimentos as mercês que da mão de Deus tinha recebido, chegando à do filho sucessor, disse assim: Sed et hoc parum visum est in conspectu tuo, nisi loquereris de domo servi tui in longinquum: ista est enim lex Adam, Domine Deus. — E como se foram poucas nos olhos de vossa divina liberalidade as mercês tantas e tão grandes que me tendes feito, Senhor, ainda sobre todas elas, fostes servido de me dar sucessor e herdeiro, em que minha casa se conserve e perpetue, porque esta é a única consolação daquela dura lei da mortalidade, com que os filhos de Adão nascemos. — Quid ergo — ouvi agora a consequência e conclusão de Davi — quid ergo addere poterit Deus adhuc Davi, ut loquatur ad te? Depois desta última mercê que me fizestes, Senhor, já Davi não tem que vos pedir. — Notável dizer de um homem rei e santo! E onde está, Davi, aquele Domine Deus que agora acabaste de confessar? É Senhor, e já não tem que pedir o servo ao onipotente Senhor? É Deus, e já não tem que pedir a criatura ao infinito Deus? — Nesta vida não — diz Davi. — Não fala dos bens da graça, como santo; fala dos bens da fortuna, como rei: e destes achou Davi que já não tinha nesta vida que pedir a Deus: Quasi diceret — comenta o mesmo Abulense — cum tanta bona mihi dederis atque promiseris, nihil manes quod ego petere possim[26]. — Tal era o sumo da felicidade humana, em que aquele grão-rei se reconhecia, depois de se ver com sucessão, sobre tantas outras mercês do céu.

Antes desta última felicidade, em todas as outras suas, sempre Davi tinha alguma coisa que pedir a Deus; e, se não, vamos subindo um pouco pelos degraus da sua fortuna, que são os mesmos da nossa. Antes de Davi ser rei, ainda que era o último filho da casa de seus pais, animado do sangue real que lhe pulsava nas veias, podia pedir a Deus que lhe desse o reino. Depois de Davi estar sublimado ao trono real, adorado, obedecido e confirmado nele: Thronus tuus erit firmus jugiter — vendo-se cercado por todas as partes de tantos e tão poderosos inimigos, podia pedir a Deus que o livrasse do tumulto das armas e opressões da guerra, e lhe desse paz e descanso, Depois de Davi possuir o reino quieto e pacífico, e se ver reconhecido e respeitado de todos seus inimigos: Requiem dabo tibi ab omnibus inimicis tuist — podia ainda pedir a Deus que lhe desse sucessão, para que o reino, e essas mesmas felicidades, se perpetuassem em sua casa e na posteridade de seus descendentes. Mas, depois de Deus lhe conceder esta última graça, e lhe dar sucessor à coroa para depois de seus dias: Suscitabo semen tuum post te, quod egredietur de utero tuot — vendo-se Davi com reino, com paz e com sucessão, parou o desejo, fez alto a fortuna, e resolveu Davi, com ela e consigo, que já não tinha nesta vida que pedir a Deus: Quid addere poterit adhuc Davi, ut loquatur ad te?

Não fazia conta de aplicar o caso, por ser tão semelhante; mas quero que me entendam todos, por que não haja alguma ingratidão que possa ter escusa com Deus nem com os homens. O príncipe D. Pedro, nosso senhor, que Deus guarde — como Davi em tudo — era o último filho da real casa de seus pais: o primeiro degrau da sua fortuna foi pôr-lhe Deus na mão o cetro de Portugal, e assentá-lo no trono real, não depois da morte, senão em vida do rei, bem assim como Davi em vida de El-Rei Saul. Quando Sua Alteza tomou as rédeas do governo estava o reino oprimido e carregado de tributos, as províncias e campanhas fervendo em armas, os vassalos, dentro e fora, no mar e na terra, padecendo os trabalhos e opressões da guerra. Aqui subiu sua fortuna o segundo degrau. Vem uma paz, e outra paz, não buscadas, senão trazidas a Portugal; cessam as armas, levantam-se os tributos — como também os tirou Davi: Tulit David frenum tributi de manu Philistiim[27] — respira o reino, descansam os povos, colhem-se as novidades e frutos da terra em tanta abundância, recolhem-se os comércios e riquezas do mar em tantas frotas, em tantos tesouros. Tens mais que desejar? Tens mais que pedir a Deus, Reino de Portugal? Ainda tínhamos que desejar, ainda tínhamos que pedir, porque nos faltava a última e maior felicidade de todas, que era a sucessão. Tinha-nos dado Deus o reino, tinha-nos dado a paz; mas paz sem sucessão é guerra; reino sem sucessão é despojo. Bem o experimentamos, e bem lamentavelmente, no caso de El-Rei D. Sebastião. Tínhamos naquele tempo reino, tínhamos naquele tempo paz; mas a paz, para ser maior guerra, foi guerra de poucos dias; e o reino, para ser maior despojo, foi despojo de sessenta anos. A paz foi guerra. de poucos dias, porque em poucos dias nos vimos sujeitos, sem resistência; o reino foi despojo de sessenta anos, porque sessenta anos estivemos cativos, sem liberdade e sem honra. No mesmo perigo, na mesma contingência, no mesmo receio estávamos até este dia, posto que tão assistidos de felicidades. A sucessão real, ainda que entronizada, estava no último fio; o baixel, ainda que tremulando vitoriosas bandeiras, estava sobre uma só amarra. Faltava-nos segundo fiador para a vida, faltava-nos segunda âncora para a segurança, e tudo isto nos nasceu hoje. Já temos a sucessão em duas vidas, já temos o galeão sobre duas amarras. Esta foi a altíssima mercê que hoje nos fez o céu, este o último auge a que hoje vemos subida a nossa fortuna, por uma parte tão necessária, e por outra tão excessiva, que nem Deus sem ela — em sentença de Abraão — tinha que nos dar, nem nós com ela — em sentença de Davi temos que pedir.

A este Deus tão bom vimos louvar como Deus, e a este Senhor tão liberal vimos confessar como Senhor, e vêm também conosco os reis do Oriente, ou nós com eles. Canta a Igreja neste dia como os reis haviam de oferecer a Cristo seus dons, e, acrescentando à harpa de Davi duas vozes suas, como se a letra fora composta para o nosso coro, diz assim: Reges Arabum et Saba dona Domino Deo adducent. Virão os reis do Oriente, e oferecerão seus dons a Cristo, como a Deus e como a Senhor: Domino Deo. — E que dons são ou haviam de ser estes? Isaías, comentando a Davi, diz que haviam de ser ouro e incenso: o ouro, em tributo, como a Senhor: o incenso em adorações, como a Deus[28]: Omnes de Saba venient, aurum et thus deferentes. — Os sucessores destes mesmos reis do Oriente, que hoje vieram ao presépio de Cristo, e os senhores do comércio destas mesmas drogas ricas, que lhe ofereceram, da Arábia, da Pérsia, da índia, são os reis de Portugal. E, pois, herdamos as suas coroas, bem é que paguemos também a Deus os seus tributos. Assim o fazemos hoje, e muito melhor. Eles ofereceram o incenso, e nós o cheiro; eles ofereceram o ouro, e nós o preço. O mais precioso daquele ouro, e o mais cheiroso daquele incenso, eram os louvores que juntamente deram a Deus, como acrescenta o mesmo profeta: Aurum et thus deferentes, et laudem Domino annuntiantes. — Também vieram com Te Deum laudamus. Assim que em louvores lhe oferecemos o incenso, como a Deus, e em louvores lhe tributamos o ouro, como a Senhor; e assim o ouro como o incenso, trazidos também de Sabá. De Sabá quer dizer de conversione: da conversão. E que é o que acabamos deverem todo este discurso, senão uma conversão admirável de todas as coisas em Portugal? O cativeiro convertido em liberdade, a vassalagem convertida em reino, a guerra convertida em paz, e, sobretudo, a esterilidade convertida em sucessão. Este é, pois, o poderosíssimo Senhor, reparador de tantas ruínas, a quem vimos louvar como Deus: Te Deum laudamus. Este é o liberalíssimo Deus, autor de tantas felicidades, a quem vimos confessar como

Senhor: Te Dominum confitemur.

§ IV

Por que louva Portugal? Por que razão o beneficio da geração, da sucessão e dos filhos pertence por atribuição particular e propriíssima só à Pessoa do Eterno Padre? O que fez o Eterno Padre enquanto Pai a Portugal. A fecundidade divina e a fecundidade dos príncipes de Portugal. A geração do Unigênito de Deus e a geração da primogênita de Portugal. Razões por que, para ser inteira a graça, e própria do Eterno Padre, havia de nascer a Portugal primogênita, e não primogênito? A princesa de Portugal e os azares ou lesares dos primogênitos. A primogênita de Portugal e a estrela do Oriente. As qualidades da princesa recém-nascida.

Temos ponderado quem louva, e a quem louva. Resta a última pergunta: Por que louva? Este porquê já está respondido em comum, mas não está dito nem ponderado em particular. Digo que louvamos em particular a Deus, porque o Eterno Padre, enquanto Pai, fez hoje pai ao nosso príncipe, e, enquanto eterno, começa hoje a o fazer eterno: Te aeternum Patrem. — Mas por que razão — começando pela primeira parte deste ponto — por que razão pertence mais este benefício à Pessoa do Eterno Padre, que à do Filho ou do Espírito Santo? Eu o direi. Entre as três pessoas da Santíssima Trindade, o Espírito Santo, é pessoa infecunda: não gera nem produz; por isso não há quarta pessoa. O Filho é pessoa fecunda: produz, mas não gera: por isso o Espírito Santo é produzido, e não gerado. Só o Padre Eterno, por propriedade particular e nocional sua, tem fecundidade para produzir gerando; por isso só a Pessoa do Padre tem filho. E porque só a Pessoa do Padre pode gerar e ter filho, essa é a razão por que o benefício da geração, da sucessão, e dos filhos, pertence por atribuição particular e propriíssima só à Pessoa do Eterno Padre. Texto expresso de S. Paulo: Hujus rei gratia flecto genua mea ad Patrem, ex quo omnis paternitas in caelis et in terra nominatur[29]: Por esta causa — diz S. Paulo, como se falara por nós e conosco neste dia — por esta causa me prostro de joelhos diante do Padre, porque dele procede toda a paternidade, assim no céu como na terra. — De maneira que não há paternidade, nem ser de pai, ou no céu, ou na terra, que não seja derivado do Eterno Padre. No céu, porque o Eterno Padre se faz Pai a si mesmo, e tem filho Deus; na terra, porque o Eterno Padre faz aos homens pais, e lhes dá filhos homens. — Pater nitas in caelo est generatio Filii, paternitas in terra est generatio hominum, quae omnis a Dei paternitate manat; omnes enim ab eo habent vim generandi, ut sint et nominentur patres[30] — disse, comentando a S. Paulo, o Doutor Máximo, S. Jerônimo. Assim que ao Eterno Padre deve hoje o nosso príncipe o ser pai.

Mas porque este benefício e graça, que nos outros pais é comum, na soberania de tal pai tivesse também prerrogativas soberanas, que fez o Eterno Padre? Fez que não só lhe devesse o nosso príncipe a fecundidade da sucessão, senão também a semelhança da fecundidade. Fez que fosse pai em tempo, ao modo — quando pode ser-com que ele é pai sem tempo. Uma das grandes diferenças que há entre a fecundidade divina e a fecundidade humana, e entre uma e outra geração, é esta. A fecundidade humana ordinariamente obra com dilação de tempo, e com tanta dilação muitas vezes, que ainda quando há geração e filhos, vem depois de muitos anos. Não assim a fecundidade divina: no mesmo ponto em que a primeira Pessoa da Trindade ab aeterno é constituída pessoa, logo juntamente é pai, logo juntamente tem filho, sem demora nem precedência de tempo, só com prioridade de origem. Computemos agora, pelo dia do nascimento da nossa primogênita, o dia de sua geração, e acharemos fisicamente que foi prontíssimo, e que sem vagares de dilação nem intervalos de tempo, logo logo nos fez Deus a mercê que desejávamos. E por que tão prontamente? Porventura para nos livrar das suspensões da dúvida, dos receios da incerteza, dos cuidados da esperança, e ainda de outros pensamentos? Essa só razão bastava, mas não foi só por essa, senão que quis o Eterno Padre-quando cai na proporção do criado ao incriado — que a fecundidade dos nossos príncipes fosse mui semelhante à sua fecundidade, e a geração da nossa primogênita mui parecida à do seu Unigênito. O seu Unigênito gerado sem prioridade de tempo; a nossa primogênita gerada sem dilações de tempo[31]. Nem façam dúvida os três dias que contamos sobre os nove meses, porque esse é o estilo particular que a natureza observa nos partos reais e heróicos). Na formação dos partos vulgares gasta a natureza nove meses, e menos muitas vezes; mas nos partos, não só reais, mas heroicos — ou seja providência ou majestade — parece que põe a mesma natureza mais arte e mais cuidado, e tarda na formação e perfeição deles, até entrar no mês décimo. Assim o disse de si mesmo El-Rei Salomão: Decem mensium tempere coagulatus sum[32]. — Assim o príncipe dos poetas, da mãe do seu Augusto: Matri longa decem tulerunt fastidia menses. — E assim — o que é mais — São Damasceno, contando os dias da geração e nascimento temporal do Primogênito do mesmo Padre: Novem menses complens, decimam attingens, nascitur.

Mas poderá replicar a curiosidade — por não dizer a ingratidão — de algum ouvinte mau de contentar, que, para esta graça ser inteira e própria do Eterno Padre, havia de ser primogênito o de que nos fez mercê, e não primogênita, porque o mesmo Padre — a quo omnis paternitas in caelis et in terra — assim no céu como na terra só tem primogênito: primogênito no céu, o Verbo; primogênito na terra, Cristo. Agradeço o reparo pela resposta, ou aferida pelo reparo: ouvi o que a muitos parecerá novidade. Digo que foi graça própria e propriíssima do Eterno Padre dar-nos no primeiro nascimento primogênita, e não primogênito, porque em Deus, assim no céu como na terra, assim no divino como no humano, primeiro é a primogênita que o primogênito. Falo pela boca das Escrituras Sagradas, e pelos termos de que usam os autores canônicos de um e outro Testamento, Comecemos pelo céu. O Eclesiástico, no capítulo 24: Ego ex ore Altissimi prodivi, primogenita ante omnem creaturam[33]. — Eis aqui a primogênita. S. Paulo, no capítulo primeiro aos colossenses: Qui est imago Dei invisibilis, primogenitus omnis creaturae. — Eis aqui o primogênito. De sorte que já temos em Deus primogênita e primogênito. E qual é primeiro: o primogênito ou a primogênita? Primeiro é a primogênita, porque a primogênita é a sabedoria essencial: o primogênito é o Verbo, sabedoria pessoal e nocional; e em Deus — como ensinam todos os teólogos — primeiro é o essencial que o nocional. Por isso primogênita tem antes, e o primogênito não tem antes. A primogênita tem antes: Primogenita ante omnem creaturam; o primogênito não tem antes: Primogenitus omnis creaturae. — Uma e outra sabedoria em Deus são ab aeterno, antes de todo o criado, mas a sabedoria essencial com prioridade virtual antecedente: ante. Não me detenho em distinguir estas prioridades e virtualidades, porque falo entre doutos, e todos sabem que no divino e eterno, entre antes e depois não cabe tempo. Passemos à terra. Na terra também Deus e o Padre têm primogênito e primogênita, e, ainda com mais rigoroso nome, filho e filha[34]. O filho é Cristo: Misit Deus Filium suum — a filha é Maria Santíssima: Audi, filia, et vide. — E qual foi primeiro: o Filho ou a Filha? Não, há dúvida, quanto à humanidade, que a Filha foi primeiro, e o Filho depois.

E por que, ou para que foi primeiro a Filha que o Filho? Para que, quando viesse o Filho, achasse já quebrada a cabeça, e pisado o veneno da serpente: Ipsa conteret caput tuum. — Coisa é vulgar na História Sagrada, e advertida comumente dos padres, que os primogênitos, se são filhos, pela maior parte saem mordidos ou abocanhados da fortuna, e tocados de seu veneno, e trazem consigo não sei que desar ou azar da natureza. Por isso geralmente temos deles que foram reprovados, ou menos queridos de Deus, que é o maior azar de todos. O primogênito de Adão, Caim, desgraciado[35]; o primogênito de Abraão, Ismael, desgraciado[36]; o primogênito de Isac, Esaú, desgraciado[37]; o primogênito de Jacó, Rúben, desgraciado[38]; o primogênito de Davi, Amnon, desgraciado[39]; o primogênito de Jó, não lhe sabemos o nome mais que pela desgraça[40], a qual foi tanta, que de um golpe em sua casa, acabou ele, a casa, e todos seus irmãos. E como este é o fado comum dos primogênitos, e costuma nascer com eles ou segui-los a desgraça, para desfazer este azar, e tirar este tropeço à má fortuna, sai hoje diante, com particular providência, a nossa primogênita, franqueando e deixando o passo livre ao venturoso irmão que embora vier, para que, sendo o segundo no lugar, seja, sem estorvo, o primeiro na felicidade. — Quam pulchri sunt gressus tui in calceamentis, filia principis[41]! Oh! que formosos são vossos passos, filho do príncipe! — E por que formosos seus passos? Porque os soube adiantar ao perigo do irmão, quebrando-lhe o azar de primogênito. E por isso sinaladamente in calceamentis, porque, com esses passos adiantados, calcou, pisou, e meteu debaixo do pé toda a má fortuna. Com tão bom pé, e com tão airosos passos, entra hoje no teatro do mundo, a fazer o primeiro papel, a nossa galharda princesa: Quam pulchri sunt gressus tui in calceamentis, filia principis!

Mas para que busco eu satisfações à nossa primogênita, se ela traz consigo a satisfação? Vidimus stellam ejus in Orientem, et venimus adorare eum[42]. — Tanto que os Magos viram a estrela no Oriente, logo, como sábios, vieram adorar o rei nascido: Ubi est qui natus est res? — Porque o nascimento da estrela era sinal certo do nascimento do rei. Quando a estrela apareceu no Oriente, ainda o rei não era nascido, nem concebido ainda; mas do nascimento da estrela que já nascera, inferiram com evidência o nascimento do rei que havia de nascer. Nasceu a estrela? Pois após ela nascerá logo o rei. É majestade do sol trazer diante o luzeiro. São Crisóstomo e Santo Agostinho, fundados no texto[43]: A bimatu et infra, secundum tempus quod exquisierat a magis — dizem que nasceu a estrela dois anos antes. Não é necessário tamanho intervalo. Hoje vemos a estrela no Oriente; daqui a um ano — fiquem todos avisados — viremos adorar ao rei nascido. Galante coisa é por certo que quiséssemos nós, contra todas as leis do céu e da terra, que o sol nascesse primeiro que a aurora, e o fruto primeiro que a flor! Hoje amanheceu em púrpuras a aurora, após ela sairá o sol: hoje desabotoou em mantilhas a belíssima flor, após ela se seguirá o fruto, que sempre o fruto vem pegado no pé da flor. Nasceram à fecunda Rebeca dois partos de um ventre, e o segundo, que era Jacó, saiu pegado no pé do primeiro[44]. O primeiro parto é a flor do segundo, e o segundo, como fruto, sai pegado no pé da flor. Virá o segundo e felicíssimo parto, após o primeiro; antes, digo que no primeiro já tem começado a vir, porque a flor é parto incoado do fruto. Assim o entenderam aqueles discretos lavradores, bem ensinados da natureza, quando disseram: Egrediamur in agrum, et videamus si flores fructus parturiunt[45].

Deixem nossos desejos fazer a Deus, que ele sabe melhor fazer do que nós sabemos desejar. Lá diz o evangelho dos nossos maiores: Na casa de bênção, primeiro é a filha que o varão. — Filha era do infante Dom Duarte, e não filho, a sereníssima senhora Dona Catarina; e nesta filha sustentou Deus a esperança, e depositou o remédio de Portugal. Enquanto não vier o primogênito, já temos herdeira; como o primogênito lhe tomar a vanguarda, batalhará Europa sobre quem a há de levar por senhora. É estrela deste dia, que andarão após ela não só um rei, senão muitos. E quanta razão terão todas as coroas do mundo de a pretender para rainha, pois é princesa de tantas partes, como já hoje começamos a ver! Muito benigna, muito discreta, muito vigilante, muito liberal, e, sobretudo, muito favorecida do céu. Tão benigna, e de tão real condição, que em nove meses que esteve tão de portas adentro com a Rainha, nossa senhora, nunca lhe deu a menor moléstia. Tão discreta, e de tão alta eleição, que escolheu o melhor e maior dia do ano, e mais sem ninguém lho ensinar, porque nunca houve em Portugal exemplo semelhante, Tão vigilante e diligente, que, sendo hoje dia feriado, madrugou às duas horas depois da meia-noite, e espertou toda a casa. Tão liberal e grandiosa que, para fazer a maior mercê aos vassalos, sem esperar memoriais, lhes deu de reis a si mesma. Finalmente, tão favorecida do céu, e da mesma Mãe de Deus, que, fazendo a rainha, que Deus guarde, aquela tão devota novena pela felicidade de seu nascimento[46], porque o último dia foi dedicado à Senhora da Estrela, nos deu esta estrela por senhora: Vidimus stellam ejus. — Esta é a primogênita que hoje nasceu a Portugal; esta é a princesa que hoje nasceu para o mando, tão digna do pai, a quem se deu, como do Pai que a deu: Aeternum Patrem.

§V

O que fez o Eterno Padre enquanto eterno. Os dias acrescentados de que fala El-Rei Davi. A posteridade da sucessão e a eternidade de Deus. O nascimento dos filhos e o relógio de El-Rei Acás. O estilo de contar que segue Moisés nos anos dos antigos patriarcas. A sucessão e a mirra, reparo da mortalidade.

Isto fez o Eterno Padre enquanto Pai. E enquanto eterno, que fez? Fez que o nosso príncipe comece também hoje a ser eterno, por benefício da sucessão. Os pais homens, ainda que sejam príncipes, todos são mortais; mas por meio da vida dos filhos se imortalizam, e por meio da posteridade da sucessão se fazem eternos. Fala El-Rei Davi de si mesmo, e diz assim no Salmo 60: Dies super dies regis adjicies; annos ejus usque in diem generationis et generationis (SI. 60, 7): Vós, Senhor, acrescentareis dias sobre dias do rei, e, por meio destes dias acrescentados, os seus anos durarão de século em século e serão eternos. — Dificultoso texto. É certo que Deus tem decretado a cada homem o número dos dias da vida, com um termo e um limite tão preciso, que de nenhum modo podem crescer nem passar adiante: Constituisti terminos ejus, qui praeteriri non poterunt[47]. — Pois, se o número dos dias decretados de nenhum modo pode passar adiante nem crescer, como diz Davi a Deus que acrescentará dias sobre dias do rei: Dies super dies regis adjicies? — Que dias acrescentados são estes? São os dias dos filhos, acrescentados sobre os dias do pai. E, por meio deste acrescentamento de dias adias, os anos dos pais, que pela mortalidade humana eram finitos, pela posteridade da sucessão vêm a ser eternos: Annos ejus usque in diem generationis et generationis. — Ajunta-se uma geração com outra geração, e uma vida com outra vida, e desta união de vidas a vidas sucessivamente continuadas, se tece o fio daquela eternidade, que faz os anos eternos. Sim, mas esses anos acrescentados são dos filhos, e não são do pai. Sim, são do pai, que assim o diz o texto: Dies super dies regis adjicies: annos ejus: anos seus, porque assim os anos do pai, como os dos filhos, todos são do pai.

Mas esta composição de anos com anos, e esta união de dias a dias, corno se faz, e quando? Faz-se no dia do nascimento do filho, porque no dia em que nasceu o filho torna o pai a renascer. Antes de o filho nascer, vai a vida do pai caminhando para o ocaso; mas no dia em que nasce o filho, torna a vida do pai a nascer, e pôr-se no Oriente. Prometeu Deus a El-Rei Ezequias que lhe acrescentaria os anos da vida[48]: pediu Ezequias sinal, eo sinal foi este: Que o sol voltasse ao Oriente, e que a sombra subisse dez linhas no relógio de El-Rei Acás. A duração da nossa vida mede-se pelo curso do sol. Pois, se o curso do sol é a medida da vida humana, e Deus queria acrescentar a vida ao rei; parece que o sol havia de ir adiante, e não tomar atrás; parece que havia de caminhar ao ocaso, e não voltar ao Oriente, Este é o mistério e a extremada pintura do que vou dizendo. O modo natural com que Deus acrescenta os anos aos homens, é unindo a vida dos filhos à vida dos pais, e renascendo outra vezos pais no nascimento dos filhos; e, por isso, a vida dos pais, que, seguindo o curso do sol, vai caminhando ao ocaso, pelo milagre natural do nascimento dos filhos torna de repente atrás, e se põe outra vez no Oriente. A traça daquele relógio de El-Rei Acás era uma escada fabricada com tal artifício, que a sombra do sol em cada hora ia descendo um degrau. Esta escada, ou a sombra dela, é a nossa vida: de degrau em degrau vai descendo sempre, e caminhando para o ocaso. Mas a vida dos pais, no dia do nascimento dos filhos torna outra vez a subir a escada, e a se repor de novo no primeiro degrau. Tal é, com natural maravilha, o estado em que neste venturoso dia se acha a vida, que Deus guarde, do nosso felicíssimo príncipe. Ontem à tarde ia pondo sua alteza os pés nos degraus vinte e um da vida; hoje, com o nascimento da belíssima sucessora, está outra vez reposto no primeiro degrau dela, para começar a viver de novo. Ontem ia subindo o nosso sol para o zênite dos anos, compasso lento; hoje, com o nascimento da nova aurora, desfazendo subitamente as linhas, que tão felizmente tinha andado, amanhece segunda vez renascido em novo e recíproco Oriente. Demos logo o parabém nesta duplicada felicidade, a nosso augustíssimo monarca, não só do nascimento da sua primogênita, senão também do seu nascimento, pois hoje nasce outra vez nela e com ela, hoje dá novo princípio à vida com a sua vida, e hoje começa a contar aqueles felizes e continuados anos, que por meio de sua real sucessão hão de ser eternos.

Conta Moisés, no livro do Gênesis, os anos das vidas dos antigos patriarcas, e é muito digno de ponderação o estilo de contar que segue, porque faz duas contas: uma, dos anos que tinham quando lhes nasceu o primogênito, e outra dos anos que tinham quando morreram. Ponhamos o exemplo em Set, filho de Adão: Vixit Seth centum et quinque annis, et genuit Enos[49]: Viveu Set cento e cinco anos, e gerou a seu primogênito Enos. — Esta é a primeira conta. — Et facti sunt dies Seth nongentorum duodecim annorum, et mortuus est (ibid. 8): E viveu Set novecentos e doze anos, e morreu. — Esta é a segunda conta. Pois, se para ficarem em memória, e sabermos os anos que viveram os patriarcas, bastava só esta segunda conta, por que fez Moisés também a primeira? Por que faz uma conta dos anos em que morreram, e outra dos anos em que lhes nasceram os filhos? Porque os homens que são pais têm duas vidas: uma vida que acaba, outra vida que continua. A vida que acaba conta-se no dia da morte do pai; a vida que continua conta-se do dia do nascimento do filho. Porque no dia do nascimento do filho, a vida do filho ata-se com a vida do pai, e destas duas vidas assim atadas — atando-se também entre si as que lhe sucedem — de muitas vidas, que não são perpétuas, se vêm a fazer uma vida perpetuada. S. Paulo chamou judiciosamente à morte desatadura da vida: Tempus resolutionis meae[50]. — A morte é desatadura da vida, e o nascimento é atadura das vidas, porque na morte do pai desata-se uma vida, no nascimento do filho atam-se duas. Ata-se a vida do filho com a vida do pai, e destas, atadas uma na outra, seguindo-se vidas a vidas, e anos a anos, os anos do pai, que em si mesmo eram mortais e finitos, na sucessão dos filhos se fazem imortais e eternos. Este é o atributo daquela eternidade que o Eterno Padre, por meio da real sucessão começa a comunicar hoje ao nosso renascente príncipe, fazendo-o, sem interposição de morte, fênix de multiplicadas e mais felizes vidas, para que, assim como enquanto Pai o fez pai, assim enquanto eterno o faça eterno: Te Aeternum Patrem.

A mirra, que é o último obséquio que hoje ofereceram os reis a Cristo, não significa simplesmente o mortal, senão o mortal imortalizado, porque a morte mata os corpos, e a mirra, depois de mortos, preservando-os da corrupção, os faz imortais. Este foi o pensamento — diz S. Máximo[51] — com que os Magos sabiamente dedicaram a Cristo a mirra, como a reparador da sua e nossa mortalidade, professando o mistério no tributo: In myrrha, qua exanima solem corpora conservari, praefiguratur carnis nostrae reparatio. — Mas, se a mortalidade se repara deste modo pela mirra, muito melhor se repara pela sucessão, porque a mirra imortaliza o mortal depois da morte, e a sucessão imortaliza e eterniza o mortal com novas e continuadas vidas. Razão é logo que no dia em que teve princípio esta felicidade, nós todos, e toda a terra conosco, demos imortais e eternas graças ao Eterno Padre pela imortalidade e eternidade do nosso príncipe, pois, com os primeiros penhores da felicíssima sucessão, assim como enquanto Pai o fez pai, assim enquanto eterno o começa a fazer eterno: Te Aeternum Pairem omnis terra veneratur. — Acabou-se o verso do nosso coro, e eu tenho acabado.

§ VI

Os três dias notavelmente grandes que teve Portugal neste século, e pelos quais deve infinitas graças a Deus. Oração final.

Estas são, em breve suma — corte, nobreza, e povo venturosíssimo de Portugal — as mercês e felicidades, por que neste ilustríssimo e real congresso nos ajuntamos todos em solene ação de graças, a louvar e glorificar ao supremo Autor de todos os bens, neste ditosíssimo e tão desejado dia, coroa de todos os que temos visto, tendo visto tantos, e tão grandes. Três dias notavelmente grandes teve Portugal neste século tão cheio de novidades, em anos a que todos quase somos presentes. O primeiro foi o dia da Aclamação; o segundo, o dia das Pazes; o terceiro, este dia, sobre todos feliz, do nascimento da nossa primogênita. No dia da Aclamação, deu-nos Deus o reino duvidoso; no dia das Pazes deu-nos o reino seguro; no dia de hoje dá-nos o reino perpetuado. No primeiro dia deu-nos o reino que foi, no segundo o reino que é, neste terceiro o reino que há de ser. No primeiro dia deu-nos o reino de nossos pais, no segundo dia deu-nos o reino para nós, neste terceiro dá-nos o reino para nossos descendentes. Os passados já não podem gozar este bem, porque foram; os futuros ainda o não podem gozar, porque não são; nós somos só os que o gozamos, porque somos tão venturosos, que vivemos nesta era. Não sejamos ingratos a um Deus tão bom, que, sem merecimentos nossos, antes, sobre tantas ofensas, nos faz tão singulares favores. Já que nos ajuntamos a o louvar, louvemo-lo muito de coração, e louvemo-lo todos. Assim como o sol e a lua louvam a Deus: Laudate eum, sol et luna[52] — louvem a Deus hoje os nossos soberanos planetas, e reconheçam o fruto da sucessão como benignidade das influências divinas. Assim como as estrelas louvam a Deus: Laudate eum, omnes stellae[53] — louve a Deus o belíssimo luzeiro, que hoje amanheceu nos nossos horizontes, esclarecendo e alumiando com a mesma luz, a que sai, este seu e nosso hemisfério. Assim como os reinos louvam a Deus: Regna terrae, cantate Deo[54] — louve a Deus o reino de Portugal, pois, entre todos os do mundo, se vê dele tão amado, tão favorecido, tão sublimado. Assim como toda a terra louva a Deus: Omnis terra adoret te, et psallat tibi[55] — louvem a Deus todas as partes da terra de nossa monarquia, e lembrem-se, pois se não podem esquecer, dos trabalhos, das perdas, das opressões, das ruínas que padeceram por falta de sucessão.

Mas porque todos os louvores humanos são limitados, e as mercês que nos fazeis, Senhor, são infinitas, louvai-vos vós mesmos a vós, infinito Deus, e aceitai em ação de graças também infinitas, o infinito merecimento desse sacrifício sacrossanto que hoje vos oferecemos, pois o instituístes para suprir os defeitos de nosso agradecimento, com nome de sacrifício de louvor: Sacrificium laudis honorificabit me[56]. — Nesse sacrifício de louvor vos louvamos, enquanto criaturas vossas, como a nosso Deus: Te Deum laudamus — nesse sacrifício de louvor vos confessamos, enquanto servos vossos — como a nosso Senhor: Te Dominum confitemur — nesse sacrifício de louvor vos reverenciamos, enquanto filhos vossos e vos reverenciaremos eternamente como a nosso Pai: Te aeternum Patrem omnis terra veneratur.



[1] Louvamos-te, ó Deus, e te confessamos nosso Senhor: toda a terra o adora, ó Pai eterno (primeiro verso do Hino de ação de graças).

[2] A ti louvam os anjos, a ti louvam os céus e as forças do universo.

[3] Gên., cap. 28.

[4] Gên., cap. 37.

[5] Crisol. Ser 121. Vide Maldon. ad illud Luc. 23: Hodie mecum eris in paradiso.

[6] Louvamos-te ó Deus, e te reconhecemos como Senhor: toda a terra o adora, ó Pai eterno.

[7] Greg. Homil. 10 in Mat.

[8] Gên. Cap. 9. Vide S. Amb. de Noé e Arca, cap.33.

[9] Príncipe D. Pedro, filho último d’El-Rei D. João.

[10] Fatia Epit. p. 1, cap. I. Brito et alii.

[11] Gên. Cap. 10.

[12] Princípe D. Pedro, filho quinto.

[13] Constat ex toto lib Genesis. Ambr. Teod. et alii. De benedict. Patriarc Euseb. IC. De praepatat. 2. Hieron. Damasc August. Euch. Abul. Genbr. Belarm.Gleastr. Sanct. Pagn. Et alii.

[14] Bed. hîc. Rupert. lib. 2. in Mat. D Thoin Catena.

[15] Gên. cap. 50.

[16] Salmos, 47.

[17] Isaí. cap. 13.

[18] Jerem. cap. 9.

[19] João, cap. 16.

[20] Gên. cap. 30. Nunquid Deus ego sum, autvice, et parte Dei fungor? Comel. Hîc.

[21] Gên. cap. 15.

[22] Gên. cap. 17.

[23] Quid dabis mihi: quae mercês ista tua homini cui prolem denegas; Bened. Terd. hîc.

[24] 2 Reis 7.

[25] Abul. hîc. q. II. Ut daret gratiarum actiones Deo, introivit um domum, ubi erat Arca, quia illa erat in quodam loco segregatio domus sua.

[26] Abul. ibid.

[27] 2. Reis, 8.

[28] Isaí. cap. 60.

[29] Ad Ephes. 3.

[30][30] S. Hyeronym. hîc.

[31] Sapie nt 7. De decimo mense incoato intelligit ortum. Salom. Bengus de numeris n. 45.

[32] Virg. Eclog. 4 Accipiendum Poetam de decimo mense inchoato, ait Lacerd. Damas. Lib. 4 de Fide c. 15.

[33] Ecclesiast. 24. De sapientia essentiali interpretantur S. Gregor. Naz. Tert. Hier. Cornel. Jans. Corn. Alapid. Caiet. Tirin. Menoch. Salaz. Oliveri. Bona t. Gordon. Et alii. Quam expositionem solum agnoscit litteraleJanten. Salaz. Gero literalissimam apellat. Eam optime intelliges in sententia comuníssima PP. Et TT. qui integram Dei esentiam constituunt in intelectivo radicali a qua tamquam a radice, et principio virtual distincto emanat, et prodit sapientia essentialis, ut primum attributu. August. Cyril. Damas. Basilius, Vasq. Molin. Salas, Fonsec. et alii.

[34] Ad Gal. 4. Psalm. 44. Mariam Patris Primogenitam vocat S. Lauret. Justin. Simon. Cass. et RR passim. Gen. 3.

[35] Gên. cap. 4.

[36] Gên. cap. 16.

[37] Gên. cap. 25.

[38] Gên. cap. 49.

[39] 2 Reis, 3.

[40] Jó I.

[41] Cânt. 7.

[42] Mat. 2.

[43] Chrys. Homil. 7. in Matth. August. serm. 7. de Epiphan.

[44] Gên. cap. 25.

[45] Cân. 7.

[46] Novena que fez a Rainha visitando nove igrejas de Nossa Senhora.

[47] Jó 14.

[48] Isai. 38. S. Hier. Cyril. Procep. Aym. Lyran. Hugo Adam. Cornel. Sanch. Et alii.

[49] Gên. cap. 5.

[50] 2 Ad Timoth. 4.

[51] S. Maxim. homil. 3. in Matth.

[52] Psalm. 148.

[53] Ibidem.

[54] Psalm. 67.

[55] Psalm. 65.

[56] Psalm. 49.