Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão da quarta dominga da quaresma, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DA QUARTA DOMINGA DA QUARESMA,

Na Matriz da Cidade de S. Luís do Maranhão, ano de 1657.

Ut autem impleti sunt, collegerunt et impleverunt duodecim cophinos fragmentorum.[1]

§1

Se Deus criou primeiro o corpo que a alma, por que não tratará o pregador do corpo alguma vez? A maior pensão com que Deus criou o homem: o comer. Assunto do sermão: Como conseguir pão, e muito pão, sem trabalho?

Bem me podeis ouvir hoje desassustadamente, porque vos hei de pregar muito à vontade. É justo que entre tantos discursos tristes metamos também algum menos funesto, para desenfastiar a quaresma. Queixa-se de mim o corpo que todos os domingos passados preguei somente da alma. Deus, assim como criou as almas, também criou os corpos, antes os corpos primeiro: pois, por que se não tratará também do corpo alguma vez? Sou contente. O sermão de hoje todo será do corpo, e para o corpo. Nos passados tratamos de como havemos de alcançar os bens espirituais; hoje ensinaremos como se hão de alcançar, e ainda acrescentar os temporais.

A maior pensão com que Deus criou o homem é o comer. Lançai os olhos por todo o mundo, e vereis que todo ele se vem a resolver em buscar o pão para a boca. Que faz o lavrador na terra, cortando-a com o arado, cavando, regando, mondando, semeando? Busca pão. Que faz o soldado na campanha, carregado de ferro, vigiando, pelejando, derramando sangue? Busca pão. Que faz o navegante no mar, içando, amainando, sondando, lutando com as ondas e com os ventos? Busca pão. O mercador, nas casas de contratação, passando letras, ajustando contas, formando companhias? O estudante nas Universidades, tomando postilas, revolvendo livros, queimando as pestanas? O requerente nos tribunais, pedindo, alegando, replicando, dando, prometendo, anulando? Busca pão. Em buscar pão se resolve tudo, e tudo se aplica a o buscar. Os pobres dão pelo pão o trabalho, os ricos dão pelo pão a fazenda; os de espíritos generosos dão pelo pão a vida, os de espíritos baixos dão pelo pão a honra, os de nenhum espírito dão pelo pão a alma; e nenhum homem há que não dê pelo pão e ao pão todo o seu cuidado. Parece-vos que tenho dito muito? Pois ainda não está discorrido tudo.

Tirai o pensamento dos homens, e lançai-o por todas as outras coisas do mundo: achareis que todas elas estão servindo a este fim ou pensão do sustento humano. A este fim nascem as ervas, a este fim crescem as plantas, a este fim florescem as árvores, a este fim produzem e amadurecem os frutos, a este fim trabalham os animais domésticos em casa, a este fim pascem os mansos no campo, a este fim se criam os silvestres nas brenhas, a este fim os do mar e os dos rios nadam em suas águas; enfim, tudo o que nasce e vive neste mundo, a este fim vive e nasce. Que digo eu, o que vive e o que nasce? Os elementos não são viventes, e a este mesmo fim cansamos e fazemos trabalhar aos próprios elementos. O fogo, nas forjas e nas fornalhas; a água, nas levadas e nas azenhas; o ar, nas velas e nos moinhos; a terra, nas vinhas e nas searas; e até o sol, e a lua, e as estrelas não deixamos estar ociosas desta pensão, porque o que todos aqueles orbes celestes fazem, andando em perpétua roda, e voltando sem nunca descansar, é produzir e temperar com suas influências o que há de comer o homem. Há mais para onde subir? Ainda há mais. Subi do céu acima, até o mesmo Deus, e achareis que ele é o que mais ocupado está que todos em nosso sustento, porque todas as outras coisas cada uma trabalha em si, e Deus, ainda que sem trabalho, obra em todas.

De maneira, senhores, que a ocupação do céu e da terra, e de todo este mundo, a maior pensão, o maior cuidado, e o maior trabalho dos homens, é buscar o pão para a boca. Pois, isto porque todos trabalham, hei de ensinar hoje o modo com que se possa alcançar sem trabalho. Todos os homens querem ter pão, e muito pão: dois alvitres lhes trago hoje para isto: um para terem pão, outro para terem muito. Esta será a matéria do sermão. Como é toda do corpo, parecerá a alguém que não é necessário pedir graça para ele; antes é o contrário: nenhumas matérias têm mais necessidade de graça que aquelas que têm mais de corpo. Peçamo-la ao Espírito Santo, por intercessão da Senhora. Ave Maria.

§II

O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. Seguir a Cristo, único meio seguro de ter pão, e muito pão, sem nunca haver de faltar As provas das Escrituras Sagradas.

Propõe-nos hoje a Igreja aquele famoso milagre, tão famoso como sabido, em que, com cinco pães e dois peixes em um deserto, deu Cristo de comer a cinco mil homens, afora mulheres e meninos, e sobejaram doze alcofas de pão. Duas coisas fez Cristo neste milagre: deu pão, e deu muito; deu pão, porque todos comeram à vontade: Manducaverunt, et saturati sunt[2] - e deu muito, porque a todos sobejou: Et tulerunt duodecim cophinos fragmentorum[3]. - Estas duas coisas que fez Cristo naquele milagre são as que vos prometi sem milagre: alvitre para ter pão, alvitre para ter muito. Vamos ao primeiro.

Mas que alvitre vos parece que será este? Que meio vos parece que se pode dar, para um homem em toda a sua vida ter o pão certo, sem nunca lhe haver de faltar? Será porventura ajuntar mais? Trabalhar mais? Lavrar mais? Negociar mais? Desvelar mais? Poupar mais? Mentir mais? Adular mais? Alguns cuidam que estes são os meios de ter pão, mas enganam-se. Sabeis qual é o meio seguro de ter pão, sem nunca haver de faltar? É seguir a Cristo. Assim lhes aconteceu a estes cinco mil homens: porque seguiam a Cristo, tiveram pão no deserto. Se cinco mil homens, com mulheres e filhos, entrassem de repente em uma grande cidade, não haveria prontamente que lhes dar a comer, quanto mais em um deserto? Em um deserto, porém, se achavam estes homens, sem casa, sem venda, e sem dinheiro para comprar o mantimento, ainda que o houvesse, e, sobretudo, com fome de três dias; mas porque seguiam a Cristo, tiveram que comer todos, sem lhes faltar nada. Senhores meus, que tão desvelados andais todos, e tão esfaimados por ter de comer, e por deixar de comer a vossos filhos, segui e servi a Cristo, e eu vos seguro, de sua parte, que nem a vós nem a eles lhes faltará pão.

Ora, porque este ponto, em que estamos, assim como é muito para desejar e para aceitar, não é fácil de persuadir, eu vo-lo quero mostrar evidente, por todos os meios com que se pode uma coisa fazer certa. A Escritura Sagrada divide-se em livros historiais, sapienciais, salmos, profetas, evangelhos, epístolas canônicas. Com textos de todas estas escrituras hei de provar primeiramente o que digo, logo com figuras do Testamento Velho, depois com exemplos, ultimamente com a experiência. Dai-me atenção.

§III

De que modo todas as Escrituras estão dizendo conformemente que o meio mais certo e mais seguro de ter pão, e de nos não faltarem os bens temporais, é seguir a Cristo e servir a Deus. Por que não encaminhar a cobiça pelos caminhos da fé para assegurar os interesses que pretendemos?

Começando pelos livros historiais, no capítulo vinte e seis do Levítico diz Deus: Si in praeceptis meis ambulaveritis, et mandata mea custodieritis, dabo vobis pluvias temporibus suis, et terra gignet germen suum, et pomis arbores replebuntur, et comedetis panem vestrum in saturitate. Comedetis vetutissima veterum, et vetera novis supervenientibus projicietis (Lev. 26, 3 ss. 10): Se guardardes a minha lei e os meus preceitos, dar-vos-ei a chuva a seu tempo, e os frutos de todo gênero serão tantos, que quando colherdes os novos, para os recolher lançareis fora dos celeiros e das adegas os velhos. - Quod si non audieritis me, nec feceritis omnia mandata mea, dabo vobis caelum desuper sicut ferrum, et terram aeneam. Consumetur incassum labor vester, non proferet terra germen, nec arbores poma praebebunt (ibid. 14, 19 s): Pelo contrário, se me não ouvirdes, nem guardardes meus mandamentos, o céu será para vós de ferro, e a terra de bronze: ará-la-eis, e trabalhareis debalde, porque as sementeiras não nascerão, e as árvores não darão fruto. - Isto mesmo repete Deus no livro do Deuteronômio, e em muitos outros lugares dos historiais.

Nos sapienciais: Non affliget Dominus fame animam justi (Prov. 10, 3): Não afligirá Deus com fome a alma do justo. - Parece que havia de dizer: Não afligirá o Senhor com fome o corpo do justo - mas não diz senão a alma, porque a fome e a pobreza aflige o corpo e mais a alma: ao corpo, com a falta do comer, e à alma com o cuidado donde há de vir. E Deus tem tanto cuidado e providência com os que o servem, que não só os sustenta com tal abundância, que lhes livra o corpo da fome, mas com tal certeza que lhes livra a alma do cuidado.

Nos Salmos diz assim, Salmo trinta e três:  Tibete, Dominum omnes sancti ejus, quoniam non est inopia timentibus eum. Divites eguerunt et esurierunt; inquirentes autem Dominum non minuentur omni bono (SI. 33, 10 s): Temei a Deus todos os que o servis, porque os que o temem ele os livrará da pobreza. Os ricos empobrecerão, e padecerão fome; porém os que servem e temem a Deus, e o buscam, não sentirão falta de bem algum. - No Salmo trinta e seis: Spera in Domino, et fac bonitatem, et pasceris in dividis suis (SI. 36, 3): Esperai em Deus, e fazei boas obras, e ele vos sustentará com suas riquezas. - E dá a razão no Salmo trinta e dois: Ecce oculi Domini super metuentes eum, et in his qui sperant in misericordia ejus, ut eruat a morte animas eorum, et alat eos infame (SI. 32, 18 s): Porque os seus olhos estão postos sobre os que o temem, para os livrarem da morte, e os sustentarem no tempo da fome.

Nos profetas, Isaías primeiro: Si volueritis, et audieritis me, bona terrae comedetis: quod si nolueritis, et me ad iracundiam provocaveritis, gladius devorabit vos (Is. 1, 19 s): Se quiserdes servir-me, comereis os bens da terra; e, se não quiserdes, e me provocardes à ira, a minha espada vos comerá a vós. - Notai o comedetis e o devorabit: se me servirdes, comereis; se me não servirdes, sereis comidos. - Quantos há que não têm que comer, e se andam comendo? Pelo profeta Oséias: Seminate vobis in justitia, et metite in ore misericordiae (Os. 10, 12): Semeai boas obras, e colhereis misericórdias. - E quantas? Quantas vós pedirdes pela boca, que isso quer dizer in ore misericordiae. - Vamos aos Evangelhos.

São Mateus: Quaerite primum regnum Dei, et justitiam ejus, et haec omnia adjicientur vobis (Mt. 6, 33): Buscai primeiro o reino de Deus, e tudo o que vos for necessário vos buscará a vós. - Beati qui esuriunt et sitiunt justitiam, quoniam ipsi saturabuntur (Mt. 5, 6): Bem-aventurados os que têm fome e sede da justiça, isto é, da virtude que faz justos, porque essa fome e sede se lhes converterá em fartura. - Quão errados vão os que, para a ter, andam esfaimados após as riquezas! Tende vós fome e sede do serviço de Deus, e ele vos sustentará abundantemente. - Fiat voluntas tua: panem nostrum da nobis hodie[4]. Façamos nós a vontade de Deus, e ele nos não faltará com o pão de cada dia, porque a disposição para ter o panem nostrum é o fiat voluntas tua.

Finalmente, nas epístolas canônicas. São Paulo, ad Romanos, capítulo oitavo: Accepistis spiritum adoptionis filiorum: si autem filii, et haeredes[5]. - Os que servem a Deus, e estão em graça, são seus filhos adotivos; se são seus filhos, logo são seus herdeiros. - Vede agora se aos herdeiros de Deus todo-poderoso lhes pode faltar alguma coisa. O mesmo S. Paulo, na primeira ad Corinthios: Omnia vestra sunt: vos autem Christi, Christus autem Dei (1 Cor. 3, 22 s): Cristo é de Deus, vós sois de Cristo: logo, todas as coisas são vossas, porque quem serve a Cristo não lhe pode faltar coisa alguma.

Eis aqui como todas as Escrituras conformemente estão dizendo que o meio mais certo e mais seguro de ter pão, e de nos não faltarem os bens temporais, é seguir a Cristo e servir a Deus. Agora quisera eu perguntar pela vossa cobiça à vossa fé, e pela vossa fé à vossa cobiça: Se tendes fé e tendes cobiça, por que não encaminhais a vossa cobiça pelos caminhos que vos ensina a fé, para assegurar os interesses que pretendeis? Nem cristãos nem cobiçosos sabemos ser. Mas é que não temos fé. Ouvi a S. Pedro Crisólogo: Homo homini exiguae cartulae obligatione constringitur: Deus Cantis ac tantis voluminibus caves, et debitor non tenetur? - Ides daqui para Portugal, não embarcais nada convosco: que haveis de comer? Respondeis: Levo uma letra de tantos mil cruzados. - Pois tendes por certo que não vos pode faltar pão, porque levais a letra de um mercador, e não tendes por certo, com tantas escrituras de Deus, que vos não há de faltar nada? - Apertemos mais este ponto. Na praça de Londres quereis ir para Leorne, levais letra de um herege; na de Amsterdão para Alemanha, levais letra de um judeu; na de Veneza para Constantinopla, levais letra de um turco, e ides seguro de que vos não há de faltar pão. - Pois, com as letras de um herege, de um judeu, de um turco cuidais que ides muito seguro, e com as de Deus não? Ah! modicae fidei, que não temos fé!

§ IV

As figuras do Testamento Velho. O maná do deserto. As bênçãos de Isac a Jacó e Esaú. Ainda que esta vida é primeiro que a outra, o buscar os bens dela há de ser às avessas.

Vamos às figuras do Testamento Velho. O maná deu-o Deus aos filhos de Israel quando caminhavam para a Terra de Promissão, e não quando estavam no Egito. Parece que no Egito fora mais razão que Deus os socorresse por aflitos. Ora vede: A Terra de Promissão significava o céu, o cativeiro do Egito significava o pecado; pois por isso lhes não dá Deus o maná, senão depois que saíram do Egito, e quando caminhavam para a Terra de Promissão, por que aos que se tiram do pecado, e aos que caminham para o céu, a esses tem Deus prometido de sustentar, e de lhes não faltar em nenhum tempo, e em nenhum lugar com o necessário. Oh! quantos e quantas há neste mundo, que, quando vão ao confessionário, choram mais as suas pobrezas que os seus pecados, devendo ser às avessas! Saí vós do pecado em que estais, resolvei-vos a caminhar para o céu, e vereis como vos chovem os bens de Deus, e vos não falta nada. E se estiverdes em lugar ou em estado que não possais buscar de comer, o mesmo comer vos buscará a vós, como buscava aos filhos de Israel todos os dias. Mas vós quereis estar no Egito do pecado que vos tem cativo, e cativa há tanto tempo; quereis caminhar para o inferno a velas tendidas, e no cabo que vos faça Deus a matalotagem? Isso não pode ser: dar volta à vida, deixar o caminho do inferno, e tomar o do céu, e vereis como vos não falta coisa alguma: Dominus regit me, et nihil mihi deerit[6].

Segunda figura. Quis Isac dar a bênção a Esaú, seu primogênito, e disse-lhe que fosse primeiro caçar, e que lhe trouxesse alguma coisa. Enquanto Esaú foi ao monte, veio Jacó, e, fingindo ser Esaú, como Isac era cego, furtou-lhe a bênção. Abendiçoou pois Isac a Jacó, e disse desta maneira: Det tibi Deus de rore caeli, et de pinguedine terrae (Gên. 27, 28): Dê-te Deus das influências do céu e da abundância da terra. - Levada assim a bênção, veio Esaú com a caça, e, conhecendo o engano, pediu ao pai que ao menos desse outra bênção, ao que respondeu o velho que outra bênção já lha não podia dar; mas, para o consolar, o abendiçoou também com estas palavras: In pinguedine terrae, et in rore caeli erit benedictio tua (ibid. 39 s): A vossa bênção será da abundância da terra e das influências do céu. – Notável caso! As mesmas palavras que Isac disse a Jacó disse também a Esaú. A Jacó disse: De rore caeli, et de pinguedine terrae. - A Esaú disse: De pinguedine terrae, et de rore caeli. - Pois, se em Jacó foram bênção, como em Esaú o não foram, antes maldição? Ora notai: ainda que as palavras foram as mesmas, a ordem delas foi trocada. Na bênção de Jacó pôs no primeiro lugar os bens do céu, e no segundo os da terra: De rore caeli, et de pinguedine terrae. - Na bênção de Esaú pôs primeiro os bens da terra, e depois os do céu: De pinguedine terrae, et de rore caeli. - E eis aqui em que esteve ser bênção a de Jacó, e não ser bênção a de Esaú. Os mesmos bens, dados por Deus, ou não dados por Deus, são bênção ou maldição.

Senhores meus, todos havemos mister os bens da terra e mais os do céu: os da terra para esta vida, e os do céu para a outra; e, ainda que esta vida é primeiro que a outra, o buscar os bens dela há de ser às avessas. Os bens da outra hão-se de buscar no primeiro lugar, e os desta no segundo, porque nisto consiste termos bênção ou termos maldição. Quem busca primeiro os bens do céu, e depois os da terra, tem bênção, porque logra os da terra e mais os do céu; quem busca primeiro os da terra, e depois os do céu, tem maldição, porque nem logra os do céu nem os da terra. Eu não vos digo que não busqueis os bens da terra, que isso de os deixar e de os desprezar é espírito que Deus dá só a quem é servido; não vos digo que os não busqueis: só vos digo que os busqueis por caminho em que seguramente os possais achar, que é buscando em primeiro lugar os do céu, e servindo a Deus. Servi a Deus, e estai seguros que é impossível faltar o necessário. E se não, vamos aos exemplos.

§V

Os exemplos das Escrituras Sagradas. Abraão, Jacó, José e Davi.

Quem parece que tinha menos fundamento para ter, que Abraão, a quem Deus mandou sair de sua pátria, e viver desterrado dela? E, contudo, porque tratou de servir a Deus, e, particularmente, porque teve tanta fé e obediência, que chegou a lhe sacrificar seu filho, veio a ser tão rico e poderoso, que, sendo necessário socorrer a seu sobrinho Lot, levou só de sua casa trezentos e dezoito criados. Jacó, desamparado e fugitivo da casa de seu pai; e, contudo, porque serviu a Deus, e, particularmente, porque foi tão dado à oração e contemplação, que chegava a andar a braços com os anjos, veio a ter tanta fazenda, como ele mesmo disse, que, saindo da pátria só com seu bordão: In baculo meo transivi Jordanem[7] - depois se recolheu a ela com a família de gente e gado dividida em duas esquadras: Et nunc cum duabus turmis regrediort[8]. - José, vendido para o Egito, e lá escravo: contudo, porque foi tão casto, que resistiu aos requerimentos e violências de sua má senhora, veio a ter tanto pão, que não só sustentou a seus irmãos, e a toda a casa de seu pai, senão a todo o Egito e a todo o mundo. Davi, da menor família, e o menor de seus irmãos, como ele mesmo confessava, e, contudo, porque foi grande perdoador de injúrias, cresceu a tanta opulência, que os tesouros de que testou não se contaram por mil cruzados, nem por contos, senão por milhões. Eis aqui o que fez Deus a estes; e se acaso vo-lo não faz a vós, não é porque Deus não seja o mesmo que era, mas porque vós não sois quais eles foram. Seja o soldado como foi Davi, seja o lavrador como foi Jacó, seja o desterrado como foi Abraão, seja o desamparado e perseguido como foi José, e eu vos prometo que lhes não falte Deus com muitos bens. Mas concluamos com a nossa prova, e vamos à experiência.

§ VI

As provas da experiência. Por que muitas pessoas virtuosas padecem necessidades? Em Deus não há prover sem provar. Quais são os ladrões, as traças e a ferrugem dos bens deste mundo? Tito Lívio e a caveira de Suastilau, príncipe dos rutenos. Como anda enganada a cobiça dos que não guardam os mandamentos de Deus.

A experiência verdadeiramente parece que a tenho contra mim, porque não há dúvida que vemos muitas pessoa virtuosas que padecem grandes necessidades: logo, não é verdade que o caminho de ter pão é servir a Deus. Primeiramente, eu hei de crer mais ao testemunho de Davi que ao vosso. Olhai o que diz Davi: Junior fui, etenim senui; et nunquam vidi justum derelictum, nec semen ejus quaerens panem (SI. 36, 25): Eu fui moço, e também fui velho, e nunca vi um justo desamparado e a sua família sem o pão para a boca. - Se vós tivéreis os olhos tão alumiados como Davi, pode ser que disséreis o mesmo. Às vezes os que nós cuidamos que são justos não são justos; às vezes os que nós cuidamos que servem verdadeiramente a Deus não o servem verdadeiramente, e por isso lhes falta Deus com os bens. Serem os homens uma coisa, e parecerem outra, é fácil; faltar a palavra de Deus é impossível. Em resolução: todos aqueles que parecem bons, e padecem necessidades, é uma de duas: ou é que o não são, ou é que quer Deus provar se o são.

Faz um criado de el-rei uma petição a sua majestade, e diz desta maneira: Diz fulano que ele é criado da casa de Vossa Majestade, e porque há tanto tem - porque serve, e não se lhe paga sua moradia, pede a Vossa Majestade seja servido de lha mandar pagar com efeito, e receberá mercê. - Responde el-rei pelo seu mordomo-mor: Prove o foro, e deferir-se-lhe-á. - O mesmo passa no nosso caso. Serve um homem, ou uma mulher, a Deus, vê-se em necessidade, recorre àquele Senhor, alega-lhe com suas palavras e com suas promessas, e pede-lhe que o socorra, e, contudo, vemos que o não socorre Deus logo, e que padece. Que é isto? É que o mandou Deus provar os serviços, e está fazendo as suas provanças; e como tiver provado, logo se lhe deferirá com grande abundância. Cristãos e cristãs da minha alma, se servis a Deus, e sentis falta do necessário, tende mão, que vos prova Deus: Expecta Dominum, viriliter age - diz o mesmo Davi - et confortetur cor tuum, et sustine Dominum[9]. - É estilo este da casa de Deus. Vede-o nos mesmos exemplos. Abraão, rico por servir a Deus, mas provado primeiro com o desterro; José, rico por servir a Deus, mas provado primeiro com o cativeiro; Davi, rico por servir a Deus, mas provado primeiro com as perseguições; Jacó, rico por servir a Deus, mas provado primeiro com os trabalhos. E aos do Evangelho lhes sucedeu o mesmo. Não lhes deu Cristo de comer ao primeiro dia, nem ao segundo, senão ao terceiro: Quia jam triduo sustinent me[10]. - Depois que provou a constância e paciência com que o seguiam, então lhes deu o pão milagroso: primeiro os provou, depois os proveu. Em Deus não há prover sem provar.

Sabeis, senhores e senhoras, por que Deus nos não provê bem? Porque nós provamos mal, e a quem o não serve verdadeira e constantemente, não tem ele obrigação de sustentar. Somos cristãos, servimos a Deus, vemo-nos em pobreza e necessidade; em lugar de então o servirmos melhor, para que nos socorra, tomamos por meio de nos remediar o ofendê-lo. Quantos e quantas há, que, tanto que se vêm em necessidade, vendem a consciência, vendem a alma, e às vezes o corpo? E que faz Deus então? Como justíssimo juiz, em lugar de lhes dar a abundância que lhes havia de dar, se perseverassem constantemente, tira-lhes esse pouco remédio que tinham, com que fiquem perdidos de todo. Porque, assim como o caminho certo de ter pão é servir a Deus, assim o caminho certo de se perder o pão que se tem é desservi-lo. Não vos quero trazer disto mais que dois exemplos em dois mandamentos, um da primeira tábua, outro da segunda. Da primeira tábua, o terceiro; da segunda, o sétimo.

Diz Deus no sétimo mandamento: Não furtarás - e vós, com cobiça de acrescentar fazenda, ajuntais a alheia à vossa, por todas as artes que podeis. E que se segue daqui? Que pelo mesmo caso vos tira Deus a que tínheis, e mais a que lhe ajuntastes. Dos tesouros do céu dizia Cristo, taxando os da terra, que não os come a ferrugem, nem a traça, nem os roubam os ladrões: Thesauros in caelo: ubi peque aerugo, neque tinea demolitur, et ubi fures non effodiunt[11] . - Quais sejam os ladrões já sabemos; mas qual é a ferrugem e a traça dos bens deste mundo? A ferrugem é o alheio. Assim como a ferrugem come e consome os metais, assim o alheio come o próprio se se lhe ajunta. E qual é a traça, que também o rói e o come? A traça são as traças. Buscais mil traças e invenções para ajuntar o alheio ao vosso, essas são as que, em lugar de vo-lo acrescentar, vo-lo roem e vo-lo desbaratam. É o alheio pontualmente como o vomitório. Receita-vos o médico um vomitório: e que vos acontece depois que o tomais? Lançais-lo a ele, e tudo o mais que tínheis dentro. Assim é o alheio: guardai-vos de o meter no estômago, porque primeiramente não vo-lo há de lograr, e há-vos de puxar e levar consigo o mais que tiverdes nele. E vede quão pouco basta para fazer estes efeitos. Acab era rei: tomou a Nabot uma vinha, e, tanto que a vinha se ajuntou ao reino, perdeu o reino e mais a vinha. Fez a vinha o que faz o vinho: vomitou-a Acab, e com ela tudo o mais.

Conta Tito Lívio de um príncipe dos piesenigos, chamado Cures, que, querendo-lhe tomar suas terras Suatislau, príncipe dos rutenos, ele o houve às mãos em uma emboscada, e, mandando-lhe tirar a cabeça, fez da sua caveira uma taça encastoada em ouro, por onde bebia, com esta letra: Quaerendo aliena, propria amisit[12]: Buscando o alheio, perdeu o próprio. - Oh! que boa lembrança para a mesa dos príncipes, e dos que o não são! Se em todas as mesas se bebera por esta taça, não se comera em tantas o pão alheio; e se no Brasil déramos em desenterrar caveiras, em quantas pudéramos escrever a mesma letra! Cuja é esta caveira? É de fulano. Viveu rico e morreu pobre: testou de muitos mil cruzados, e seus filhos pedem esmola. Pois, que foi isto? Que ar mau deu por esta fazenda? Quaerendo aliena, propria amisit: Misturou a sua fazenda com a alheia, perdeu a alheia e mais a sua. Fazenda adquirida, com desserviço de Deus, e contra seus mandamentos! Deus nos livre. O servilo é o verdadeiro caminho de a adquirir e de a conservar.

Vamos ao segundo exemplo, da primeira tábua. Diz Deus no terceiro mandamento: Guardarás os domingos e as festas; e vós, por que aquele dia vos não fique sem granjear fazenda, não mandais à missa os vossos escravos, antes mandais, ou quando menos, permitis que trabalhem. Pois, sabei, e desenganai-vos, que tudo quanto se trabalha ao domingo é destruição de tudo o que se adquire pela semana. Dir-vos-ei agora um lugar, que há muitos anos tenho notado para os homens do Brasil: Quando fueritis in terra hostili, sabbatizabit et requiescet in sabbatis solitudinis suae, eo quod non sabbatizaverit in sabbatis vestris, quando habitabatis in ea[13]. - Se fizerdes trabalhar a terra aos dias santos, eu a entregarei aos inimigos, e então guardará os dias santos a terra. - Perguntemos aos nossos vizinhos da Paraíba e da Guiana quanto há que se não cultivam as suas canas, e que não moem os seus engenhos. Pois, que é isto? É que estão agora as terras e os engenhos guardando os dias santos, que seus donos antigamente lhes não deixaram guardar: Sabbatizabit et requiescet.

É pecado geral do Brasil deitar a moer ao dia santo. Deus deu à terra um dia na semana para descansar; vós não quisestes que descansasse e louvasse a Deus um dia: pois descansará agora toda a semana, e todo o mês, e todo o ano, e tantos anos. Senhores, por que cuidais que vos morrem as peças? Por que cuidais que vos fogem e desaparecem? Por que cuidais que se arruínam e desfabricam, e estão feitos taperas tantos engenhos? Eu vo-lo direi: Por descuido e pouco zelo desta capitania. Não mandais o vosso escravo ao domingo à igreja? Pois, que faz Deus? Já que vós não obedeceis ao meu preceito, e não quereis que o vosso escravo venha um dia na semana à igreja, eu vo-lo matarei, e virá estar toda a semana nos adros. Sabeis que fazem ali os vossos escravos? Estão para ouvirem as missas, que vós lhes não fizestes ouvir. Por cobiça de lavrar e granjear mais, mandastes trabalhar o vosso escravo ao dia santo. Que faz Deus? Deixa-o fugir para o mato, e que nunca mais apareça, e agora anda folgando sete dias da semana, porque vós não quisestes que descansasse um só. Por fazer as seis tarefas redondas, mandastes deitar a moer ao domingo à tarde. E que faz Deus? Dispõe que tenhais tais perdas no mar e na terra, que não possais sustentar a fábrica, e que não moais nem uma só tarefa. Sabeis que faz agora a tapera do engenho? Está guardando os dias santos, que seu dono lhe não deixou guardar.

Eis aqui, senhores, como anda enganada a vossa cobiça. Cuida que pode avançar fazenda quebrando os mandamentos de Deus, e é tanto pelo contrário, que não só se não adquire fazenda por este caminho, antes se perde a que estava adquirida. O caminho certo e seguro de ter fazenda é fazer o que Deus manda; o caminho certo e seguro de ter pão é seguir a Cristo, como experimentaram os do nosso Evangelho: Manducaverunt, et saturati sunt[14].

§ VII

Como havemos de alcançar muito pão? O que dizem os cobiçosos e os avarentos. O remédio seguro: dar do que temos por amor de Deus. Por que razão cinco pães bastaram para sustentar a tantos? Quando o que damos cabe numa mão, o que recebemos não cabe em duas. Para semear não há melhor terra que as mãos dos pobres. Que fez Noé, acabado o dilúvio, para agradecer a Deus? As vantagens da esmola sobre o semear e o negociar

Temos dito o primeiro alvitre que prometemos, que é como havemos  de alcançar pão; vamos agora ao segundo: como havemos de alcançar muito. Oh! que ponto este para os cobiçosos e para os avarentos! Se eu os consultasse a eles do remédio para acrescentar pão, para multiplicar fazenda , uns haviam de dizer que negociar, e, melhor que tudo, negociar para o Maranhão, porque o que em Portugal vale dois, aqui se vende por vinte. Este meio será muito bom, quando no mundo não houver quatro coisas: quando em Zelândia não houver Pechilingues; quando em Argel não houver turcos; quando na agulha de marear não houver Suestes; e quando na costa do Maranhão não houver baixios. Mas, enquanto há estas quatro coisas, é muito arriscado modo de ganhar esse.

Outros dirão que é bom meio servir a el-rei em algum posto grande, ou muito junto a ele, ou muito afastado dele, que estes são os postos em que os homens se aproveitam. Dizem que o rei se há de tratar como o fogo: nem tão perto, que queime; nem tão longe, que não aquente. Às avessas há de ser. Do rei, ou muito perto, ou muito longe. Se tendes posto muito perto ao rei, tudo se vos sujeita, tudo vos vem às mãos; e se tendes posto muito longe do rei, tudo vós sujeitais, e em tudo vós meteis a mão. Este modo de acrescentar fazenda não há dúvida que é muito pronto e muito efetivo, e também me atrevera eu a dizer que era bom, se neste mundo não houvera uma conta, e no outro outra. Se no outro mundo não houvera inferno, e neste mundo não houvera justiça, era muito bom; mas nesta vida limoeiro, e na outra vida fogo eterno; nesta vida confiscado, e na outra vida queimado, não é bom modo de ganhar.

Outros dirão que para ter muito, o melhor remédio é tê-lo, guardar, poupar, não gastar, morrer de fome, e matar à fome, porque dizem que muito mais cresce a fazenda com poupar muito que com ajuntar muito. Este meio eu confesso que é muito bom, mas bom para ajuntar fazenda para outros, e não para si, porque o que eu poupo, e o que não gasto, não é meu: é daqueles a quem eu o hei de deixar, e depois o hão de gastar muito alegremente. E poupar, e morrer de fome, para que outros vivam e alardeiem, é uma avareza muito louca.

Pois, que remédio para acrescentar a fazenda útil, discreta, e muito seguramente? O remédio é muito fácil: dar da que tiverdes por amor de Deus. De maneira que ambos os nossos pontos se vêm a resumir a Deus. Quereis ter pão? Servi a Deus. Quereis ter muito? Dai por amor de Deus. Pois o dar, o tirar de mim, é caminho de acrescentar? Antes parece caminho de diminuir. Se fora dar por amor dos homens, ou por outro respeito, sim que era caminho de perder o que se dá; mas dar por amor de Deus, não há mais certa negociação, não há mais certo modo de ajuntar fazenda. Vede-o no nosso Evangelho: Unde ememus panes, ut manducent hi (Jo. 6, 5)? - Perguntou o Senhor onde achariam pão para que comessem todos. Respondeu Santo André que todos os pães que haviam não passavam de cinco: Est puer unus hic, qui habet quinque panes (ibid. 9) - e com estes, sendo só cinco, quis Cristo dar de comer a todos. - Pois, Senhor, não vedes que tendes doze discípulos que sustentar, e que os pães não são mais que cinco? Se tivésseis muito pão, então estavam bem essas liberalidades; mas, sendo tão pouco? Antes, por isso mesmo: se os apóstolos tiveram doze pães, então não era necessário mais; porém, como não tinham mais que cinco, era força buscar algum modo de os acrescentar, e não podia haver meio mais breve, nem mais certo, que dá-los aos pobres. E assim foi que os apóstolos, porque deram cinco pães, não só receberam doze pães, senão doze alcofas: Duodecim cophinos. - Se os apóstolos foram de ânimo avarento e acanhado, e quiseram comer os seus cinco pães, saíra menos de meio pão a cada um; mas porque cada um deu o seu pedaço de pão, ficou com uma alcofa cheia. Dizia o Sábio, falando de uma mulher sábia: Manum suam aperuit inopi, et palmas suas extendit ad pauperem[15] - Abriu a mão, e estendeu as mãos. - Mas por que ou para quê? Porque quando abris uma mão para dar por amor de Deus, é necessário abrir duas para receber; quando o que dais cabe numa mão, o que recebeis não cabe em duas. Assim lhes aconteceu hoje aos apóstolos. O pão que deram - que era o que tocava a cada um - cabia em três dedos, e o que recolheu cada um não cabia em duas mãos; por isso foi necessário tomarem alcofas: Duodecim cophinos.

Tudo temos em um caso do Testamento Velho. Acabado o dilúvio, saiu Noé em terra com seus filhos, e todos os animais, e lançou-lhes Deus a bênção, dizendo: Crescite et multiplicamini super Cerram (Gên. 8, 17): Crescei e multiplicai sobre a terra. - E que fez Noé? Aedificavit altare Domino: et toliens de cunctis pecoribus et volucribus mundis, obtulit holocausta (ibid. 20): Levantou um altar, e começou a degolar de todos os animais de que era lícito fazer sacrifício, e queimou-os sobre ele. - Parece que de repente se esqueceu aqui Noé do que Deus tinha dito e mandado. Não tinha dito Deus que crescessem e multiplicassem sobre a terra todos os animais? Pois, como os degola Noé, e queima, e sacrifica sobre o altar? Olhai: Noé não matou as reses para as comer, matou-as para as oferecer e sacrificar a Deus, e para as coisas crescerem e multiplicarem, o meio mais certo e mais seguro é dá-las a Deus.

E de que modo as daremos a Deus? Bendita seja sua infinita majestade e bondade, pois se serviu ensinar-nos por sua própria boca o que nem imaginar nos atreveríamos: Quandiu fecistis uni ex his fratribus meis minimis, mihi fecistis[16]: Tudo o que dais ao pobre, dais-lo a mim. - Vedes, cristãos, como podemos dar a Deus tudo: tudo o que damos ao pobre, damo-lo a Deus, e, se quereis que as vossas coisas cresçam e se multipliquem, repartias com os pobres. Dois modos há no mundo com que as coisas crescem e se multiplicam muito: um natural, ou da arte, como na lavoura; outro industrial como na mercancia. Na lavoura semeais um alqueire de pão, colheis quinze, colheis vinte, e, se a terra é muito boa, colheis trinta. Na mercancia empregastes cinqüenta, ganhastes cento, ganhastes duzentos, e às vezes mais. Tudo isto tendes na esmola! Dar esmolas é semear e é negociar, mas com grandes vantagens. Para semear não há melhor terra que as mãos do pobre, e para negociar não há melhor correspondente que Deus. Não são considerações minhas, tudo é fé e Sagrada Escritura. Vamos ao negociar.

§ VIII

Dar esmola ao pobre é dar a câmbio a Deus. S. João Esmoler e a promessa de Cristo. Os pobres, banqueiros de Deus. Qual é a terra regada com águas, de que fala o Eclesiástico. Os exemplos de São Paulino Bispo e de São Joaquim.

Nos Provérbios, capítulo dezenove, diz assim o Espírito Santo: Foeneratur Deo qui miseretur pauperis[17]: - Sabeis que coisa é dar esmola? Quem dá esmola ao pobre dá a câmbio a Deus. - Cuida o outro que, quando lá esmola, que a dá para a perder, e engana-se, porque a dá a câmbio; e dar i câmbio mão é perder o que se dá, antes é acrescentá-lo. Quem dá a câmbio sempre tem o seu capital seguro, e sobre isto recebe as ganâncias. Assim lhe acontece a quem dá esmola: segura tudo o que deu, e sobre isso recebe as ganâncias. Mas que ganâncias? Não como as dos homens, porque Deus paga muito melhor. Os homens, se lhes dais dinheiro a câmbio, dão-vos quando muito a seis e quatro por cento; e Deus não dá a seis por cento, senão a cento por um: Centuplum accipiet, et vitam aeternam (Mt. 19, 29): No outro mundo a vida eterna, e neste cento por um.

Quereis-lo ver por experiência? Ora, ouvi um grão caso. S. João?Esmoler mandou dar a um homem pobre e honrado quinze libras: deram os criados somente cinco. Ao outro dia veio uma mulher com um escrito de quinhentas libras. Estranhou o santo o escrito, chamou o tesoureiro, perguntou-lhe quanto dera. Disse que quinze libras, mas replicou o santo: Não pode ,ser, que Deus paga cento por um; e por quinze libras haviam de vir mil e quinhentas, e aqui não vêm mais que quinhentas. Confessou então o criado a ;sua avareza. Ficaram todos admirados, mas, muito mais quando ouviram o que acrescentou a mulher: - Eu, senhor bispo, tinha intenção de trazer mil e quinhentas libras, e assim o escrevi ontem neste papel; mas esta manhã não achei mais que quinhentas, com grande admiração minha, porque mão sabia i causa, e agora a sei. - Dizei-me: Se no Monte da Piedade de Roma, ou no banco de Veneza se dera a cento por um, houvera quem ali não metera o seu dinheiro? Pois os pobres são os banqueiros de Deus. Dá-se naquele banco a cento por um, e, sendo nós tão amigos de acrescentar, não metemos todos o nosso cabedal naquele banco. Pois, crede-me, que o banco de Veneza pode quebrar, como está hoje menos seguro com a guerra do turco, e o de Deus não há de quebrar, nem quebrou nunca.

É boa mercancia a esmola? Pois ainda é melhor lavoura. O Eclesiastes, no capítulo onze: Mitte panem tuum super transeuntes aquas, quia post tempora multa invenies illum (Ecl. 11, 1): Semeai o vosso pão em terra regada com águas, e eu vos prometo que, ainda que pareça perdido, o achareis depois. Que terra é esta regada com águas, diz S. Basílio, senão as mãos dos pobres? Estão os pobres chorando a sua miséria, e regando as suas mãos, assim como a Madalena regava os pés de Cristo; pois, nesta terra assim regada semeai o vosso pão, e vereis quão abundantemente o recolheis. O Hebreu diz: Mitte panem tuum super faciem aquarum: sobre a face das águas - e eu digo: sobre a água das faces. Está a viúva, a donzela honrada padecendo necessidade: pode chorar, porque padece; mas não pode pedir, porque é nobre. Estão-lhe correndo as lágrimas pelas faces abaixo; pois, mitte panem tuum super fatiem aquarum: semeai ali a vossa esmola, semeai ali o vosso pão, e vereis quão bem vos rende a seara, porque mão há terra mais fértil. Semeai o vosso pão nesta terra, e vereis que vos rende mais de cento por um. S. Paulino Bispo, antes de o ser, foi casado: pediu-lhe esmola um pobre; disse à mulher que lhe desse dois pães que havia em casa, mas ela não deu mais que um. Ao outro dia chegou uma barca de pão, mandada ao santo, e juntamente nova que outra que vinha com ela se perdera. Admirou-se, não da que chegou, mas da que se perdera; a mulher então confessou que não dera os dois pães, senão um só. - Pois, esse que destes nos trouxe a barca de pão que chegou a salvamento; e o que deixastes de dar meteu mo fundo a que se perdeu. Quantas vezes perdeis muito pão porque não dais um pão? Nas outras terras colhe-se o trigo aos alqueires, aqui às barcadas.

Pois, senhores, se tendes tão boa terra em que semear, por que a deixais estar muitas vezes erma e devoluta? São Joaquim, cujo dia celebramos hoje, repartia a sua fazenda em três partes, e uma era para os pobres. Com menos me contento. Aquele semeador do Evangelho semeou em quatro partes: nas pedras, nas espinhas, no caminho e na terra boa. Já que se semeia tanto nas espinhas, que são os vícios; já que se semeia tanto na rua, que é a vaidade; já que se semeia tanto nas pedras, que é o que levam os ingratos, por que se não semeará a quarta parte da terra boa, que são as mãos dos pobres? Por que se não semeará alguma parte dos bens nesta terra boa, que multiplica cento por um: Fecit fructum centuplum[18]?

§ IX

A quaresma, tempo de semear. Para que se fez a quaresma? Assim como a avareza tira o merecimento ao jejum, a esmola lho acrescenta. Como pode ser que em uma cidade tão nobre, e cabeça de um estado, como S. Luís do Maranhão, não haja um hospital, e que a Misericórdia não sirva mais que de enterrar os mortos?

Ora, senhores, o tempo em que se faz esta lavoura é este da quaresma. Este é o tempo de semear. Não faltam pobres. Para que cuidais que se fez a quaresma? Para duas coisas: para jejuar e para dar esmola. O que agora direi é de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio, e de todos os doutores. Nos dias que não são de jejum comemos duas vezes: jantamos e ceamos; nos dias que são de jejum comemos uma só vez: jantamos, e não ceamos. E para quê? Para que demos aos pobres o que havíamos de cear. Jejuar, e guardar pão, não é abstinência, é avareza. Pois, assim como a avareza tira o merecimento ao jejum, a esmola lho acrescenta. Demos esmola, e todos, que todos a podem dar. Os que têm muito, dêem do muito; os que têm pouco, do pouco; e os que não têm que dar, tenham paciência de não ter, e desejo de poder dar por amor de Deus.

Bem sei que há muita caridade nesta terra, mas não posso deixar de estranhar uma muito grande falta que aqui há. É possível que numa cidade tão nobre, e cabeça de um estado, não haja um hospital, e que a Misericórdia não sirva mais que de enterrar os mortos? Vede o que há de dizer Cristo no dia do juízo: Venite, benedicti Patris mei: possidete paratum vobis regnum: esurivi enim, et dedistis mihi manducare; sitivi, et dedistis mihi bibere; hospes eram, et collegistis me; infirmus, et visitastis me[19]. - Notai primeiro que não fez menção do enterro dos mortos, porque a principal misericórdia é com os corpos vivos: Esurivi, et dedistis mihi manducare; sitivi, et dedistis mihi bibere. - Segundo: que fez menção da casa de hospitalidade para os peregrinos e enfermos: Hospes eram, et collegistis me: infirmus, et visitastis me. - Terceiro: que não disse: foram enfermos os outros - senão fui enfermo eu; não disse: foram peregrinos os outros - senão: fui peregrino eu, e hospedastes-me, e visitastes-me: Hospes eram, infirmus: et collegistis me, et visitastis me. - Pois, seria bem que viesse Cristo a esta cidade com fome, com sede, despido, peregrino, enfermo, e não haver uma casa onde o hospedar? Melhor fora não haver na Misericórdia igreja, que não haver hospital, porque a imagem de Cristo, que está na igreja, é imagem morta, que não padece; as imagens de Cristo, que são os pobres, são imagens vivas, que padecem. Se não houver outro modo, converta-se a igreja em hospital, que Cristo será mui contente disso. Fazei casa aos pobres, que Deus vos fará casa a vós; tirai de vossas casas com que a fazer, que Deus vos lançará sobre elas uma bênção como a que hoje lançou sobre o pão dos apóstolos, com que tudo se acrescente e se multiplique, com grandes aumentos de bens temporais e da graça, penhor da glória: Ad quam, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] E como estivessem fartos, recolheram e encheram doze cestos de pedaços (Jo. 6, 12 s.).

[2] Comeram, e se saciaram (Mt. 14, 20).

[3] E levantaram do que sobejou doze cestos (ibid.).

[4] Seja feita a tua vontade; o pão nosso nos dá hoje (Mi 6,10 s).

[5] Recebestes o espírito de adoção de filhos: e, se somos filhos, também somos herdeiros (Rom. 8, 15. 17).

[6] O Senhor me governa, e nada me faltará (SI. 22, 1).

[7] Encostado ao meu báculo passei o Jordão (Gên. 32, 10).

[8] E agora volto com duas partidas (ibid).

[9] Espera ao Senhor, porta-te varonilmente, e fortifique-se o teu coração; e está firme, esperando ao Senhor (SI. 26,14).

[10] Porque há já três dias que anda aturadamente comigo (Mc. 8, 2).

[11] Tesouros no céu, onde não os consome a ferrugem nem a traça, e onde os ladrões não os desenterram nem roubam (Mt. 6, 20).

[12] Livi. Lib. 23, cit. a Fabr. Dom. 8 post Pent.

[13] Quando estiverdes em terra de inimigos, repousará ela, e descansará nos sábados da sua soledade, pois que não repousou nos vossos sábados, quando moráveis nela (Lev. 26, 34 s).

[14] Comeram, e se saciaram (MG 14,20).

[15] Abriu a sua mão para o necessitado, e estendeu os seus braços para o pobre (Prov. 31, 20).

[16] Quantas vezes vós fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim é que o fizestes (Mt. 25,40).

[17] 0 que se compadece do pobre dá o seu dinheiro a juro ao Senhor (Prov.19,17).

[18]Deu fruto cento por um (Lc. 8,8).

[19] Vinde, benditos de meu Pai, possuí o reino que vos está preparado: porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era hóspede, e recolhestes-me; estava enfermo, e visitastes-me (Mt. 25, 34 ss).