LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Sermão da primeira dominga da quaresma, de Padre Antônio Vieira.
Edição de Referência:
Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.
SERMÃO DA PRIMEIRA DOMINGA DA QUARESMA,
Na cidade de S. Luís do Maranhão, ano de 1653.
Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me[1].
§I
O Domingo das tentações e das vitórias. As ofertas, conselhos e petições que faz o demônio a Cristo para tentá-lo. Assunto do sermão: a última tentação do demônio a Cristo.
Oh! que temeroso dia! Oh! que venturoso dia! Estamos no dia das tentações do demônio, e no dia das vitórias de Cristo. Dia em que o demônio se atreve a tentar em campo aberto ao mesmo Filho de Deus: Si Filius Dei es[2] - oh! que temeroso dia! Se até o mesmo Deus é tentado, que homem haverá que não tema ser vencido? Dia em que Cristo com três palavras venceu e derrubou três vezes ao demônio - oh! que venturoso dia! A um inimigo três vezes vencido, quem não terá esperanças de o vencer? Três foram as tentações com que o demônio hoje acometeu a Cristo: na primeira ofereceu, na segunda aconselhou, na terceira pediu. Na primeira ofereceu: Dic ut lapides isti panes fiant (ibid. 3) - que fizesse das pedras pão; na segunda aconselhou: Mitte te deorsum (ibid. 6) - que se deitasse daquela torre abaixo; na terceira pediu: Si cadens adoraveris me (ibid. 9) - que caído o adorasse. Vede que ofertas, vede que conselhos, vede que petições! Oferece pedras, aconselha precipícios, pede caídas. E com isto ser assim, estas são as ofertas que nós aceitamos, estes os conselhos que seguimos, estas as petições que concedemos. De todas estas tentações do demônio, escolhi só uma para tratar, porque para vencer três tentações é pouco tempo uma hora. E quantas vezes para ser vencido delas basta um instante! A que escolhi das três, não foi a primeira nem a segunda, senão a terceira e última, porque ela é a maior, porque ela é a mais universal, ela é a mais poderosa, e ela é a mais própria desta terra em que estamos. Não debalde a reservou o demônio para o último encontro, como a lança de que mais se fiava; mas hoje lha havemos de quebrar nos olhos. De maneira, cristãos, que temos hoje a maior tentação: queira Deus que tenhamos também a maior vitória. Bem sabeis que vitórias, e contra tentações, só as dá a graça divina; peçamo-la ao Espírito Santo por intercessão da Senhora, e peço-vos que a peçais com grande afeto, porque nos há de ser hoje mais necessária que nunca. Ave Maria.
§II
É possível que promete o demônio um mundo por uma só adoração, por um só pecado? O demônio e o valor das almas. Em que andou errado o demônio ao oferecer a Cristo mundos? As balanças em que se pesam as almas. Se Cristo recebesse o mundo todo, e ficasse senhor dele, e entregasse sua alma ao demônio, ficaria bom mercador, faria bom negócio? O que fez hoje o demônio por uma alma alheia. A que diferente preço compra hoje o demônio as almas no Maranhão.
Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9).
Que ofereça o demônio mundos, e que peça adorações! Oh! quanto temos que temer! Oh! quanto temos que imitar nas tentações do demônio! Ter que temer, e muito que temer nas tentações do demônio, coisa é mui achada e mui sabida; mas ter nas tentações do demônio que imitar? Sim, porque somos tais os homens por uma parte, e é tal a força da verdade por outra, que as mesmas tentações do demônio, que nos servem de ruína, nos podem servir de exemplo. Estai comigo.
Toma o demônio pela mão a Cristo, leva-o a um monte mais alto que essas nuvens, mostra-lhe dali os reinos, as cidades, as cortes de todo o mundo, e suas grandezas, e diz-lhe desta maneira: Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9): Tudo isto te darei, se dobrando o joelho me adorares. - Há tal proposta? Vem cá, demônio, sabes o que dizes, ou o que fazes? É possível que promete o demônio um mundo por uma só adoração? É possível que oferece o demônio um mundo por um só pecado? É possível que não lhe parece muito ao demônio dar um mundo só por uma alma? Não, porque a conhece, e só quem conhece as coisas, as sabe avaliar. Nós, os homens, como nos governamos pelos sentidos corporais, e a nossa alma é espiritual, não a conhecemos; e como não a conhecemos, não a estimamos, e por isso a damos tão barata. Porém, o demônio, como é espírito, e a nossa alma também espírito, conhece muito bem o que ela é; e como a conhece, estima-a, e estima-a tanto, que do primeiro lanço oferece por uma alma o mundo todo, porque vale mais uma alma que todo o mundo. Vede se as tentações do demônio, que nos servem de ruína, nos podem servir de exemplo. Aprendamos sequer do demônio a avaliar e a estimar nossas almas. Fique-nos, cristãos, que vale mais uma alma que todo o mundo. E é tão manifesta verdade esta, que até o demônio, inimigo capital das almas, a não pode negar.
Mas, já que o demônio nos dá doutrina, quero-lhe eu dar um quinau. Vem cá, demônio, outra vez. Tu sábio? Tu astuto? Tu tentador? Vai-te daí, que não sabes tentar. Se tu querias que Cristo se ajoelhasse diante de ti, e souberas negociar, tu o renderas. Vais-lhe oferecer a Cristo mundos? Oh! que ignorância! Se quando lhe davas um mundo, lhe tiraras uma alma, logo o tinhas de joelhos a teus pés. Assim aconteceu. Quando Judas estava na Ceia, já o diabo estava em Judas: Cum jam diabolus misisset in cor ut traderet eum Judas[3]. - Vendo Cristo que o demônio lhe levava aquela alma, põe-se de joelhos aos pés de Judas, para lhos lavar, e para o converter. Tá, Senhor meu, reparai no que fazeis: não vedes que o demônio está assentado no coração de Judas? Não vedes que em Judas está revestido o demônio, e vós mesmo o dissestes: Unus ex vobis diabolus est[4]? - Pois, será bem que Cristo esteja ajoelhado aos pés do demônio? Cristo ajoelhado aos pés de Judas, assombro é, pasmo é; mas Cristo ajoelhado, Cristo de joelhos diante do diabo? Sim. Quando lhe oferecia o mundo, não o pôde conseguir; tanto que lhe quis levar uma alma, logo o teve a seus pés. Para que acabemos de entender os homens cegos, que vale mais a alma de cada um de nós que todo um mundo. As coisas estimam-se e avaliam-se pelo que custam. Que lhe custou a Cristo uma alma, e que lhe custou o mundo? O mundo custou-lhe uma palavra: Ipse dixit, et facta sunt[5] - uma alma custou-lhe a vida, e o sangue todo. Pois, se o mundo custa uma só palavra de Deus, e a alma custa todo o sangue de Deus, julgai se vale mais uma alma que todo o mundo. Assim o julga Cristo, e assim o não pode deixar de confessar o mesmo demônio. E só nós somos tão baixos estimadores de nossas almas, que lhas vendemos pelo preço que vós sabeis.
Espantamo-nos que Judas vendesse a seu Mestre e a sua alma por trinta dinheiros, e quantos há que andam rogando com ela ao demônio por menos de quinze! Os irmãos de José eram onze, e venderam-no por vinte dinheiros; saiu-lhes por menos de dois dinheiros cada um. Oh! se consideráramos bem os nadas por que vendemos a nossa alma! Todas as vezes que um homem ofende a Deus mortalmente, vende a sua alma: Venundatus est, ut faceret malum[6] - diz a Escritura falando de Acab. Eu, cristãos, não quero agora, nem vos digo que não vendais a vossa alma, porque sei que a haveis de vender; só vos peço que, quando a venderdes, que a vendais a peso. Pesai primeiro o que é uma alma, pesai primeiro o que vale, e o que custou, e depois eu vos dou licença que a vendais embora. Mas em que balanças se há de pesar uma alma? Nas balanças do juízo humano não, porque são mui falsas: Mendaces filii hominum in stateris[7]. - Pois, em que balança logo? Cuidaríeis que vos havia de dizer que nas balanças de S. Miguel, o Anjo, onde as almas se pesam? Não quero tanto: digo que as peseis nas balanças do mesmo demônio, e eu me dou por contente. Tomai as balanças do demônio na mão, ponde de uma parte o mundo todo, e da outra uma alma, e achareis que pesa mais a vossa alma que todo o mundo. Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9): Tudo isto te darei, se me deres a tua alma. - Não lhe tirou com menos bala a Cristo, que com o mundo inteiro. Mas já que vos dou licença para vender, ponhamos este contrato do demônio em prática, e vejamos se é bom o partido.
Suponhamos, primeiramente, que o demônio no seu oferecimento falava verdade, e que podia e havia de dar o mundo; suponhamos mais que Cristo não fosse Deus, senão um puro homem, e tão fraco que pudesse e houvesse de cair na tentação. Pergunto: se este homem recebesse o mundo todo, e ficasse senhor dele, e entregasse sua alma ao demônio, ficaria bom mercador? Faria bom negócio? O mesmo Cristo o disse noutra ocasião: Quid prodest homini, si mundum universum lucretur, animae vero suae detrimen tum patiatur (Mt. 16, 26)? Que lhe aproveita ao homem ser senhor de todo o mundo, se tem a sua alma no cativeiro do demônio? - Oh! que divina consideração! Alexandre Magno e Júlio César foram senhores do mundo; mas as suas almas agora estão ardendo no inferno, e arderão por toda a eternidade. Quem me dera agora perguntar a Júlio César e a Alexandre Magno, que lhes aproveitou haverem sido senhores do mundo, e se acharam que foi bom contrato dar a alma pelo adquirir. - Alexandre, Júlio, foi bom serdes senhores do mundo todo, e estardes agora onde estais? - Já que eles me não podem responder, respondei-me vós. Pergunto: Tomáreis agora algum de vós ser Alexandre Magno? Tomáreis ser Júlio César? Deus nos livre. Como! se foram senhores de todo o mundo? É verdade, mas perderam as suas almas. Oh! cegueira! E para Alexandre, para Júlio César, parece-vos mau dar a alma por todo o mundo, e para vós parece-vos bom dar a alma pelo que não é mundo, nem tem de mundo o nome? Sabeis de que nasce tudo isto? De falta de consideração, de não tomardes o peso à vossa alma. Quid prodest homini[8] ? - Que aproveitaria ao homem lucrar todo o mundo, e perder a sua alma? Aut quam dabit honro commutationem pro anima sua (Mt. 16, 26)? Ou que coisa há no mundo, pela qual se possa uma alma trocar?
O Todas as coisas deste mundo têm outra por que se possam trocar. O descanso pela fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que se trocar. E, sendo que não há no mundo coisa tão grande por que se possa trocar a alma, não há coisa no mundo tão pequena e tão vil por que a não troquemos, e a não demos. Ouvi uma verdade de Sêneca, que, por ser de um gentio, folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há coisa para conosco mais vil que nós mesmos. - Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é vossa própria alma. Provo. Se vos querem comprar a casa, o canavial, o escravo, ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado, e não o vendeis muito bem vendido? Pois, se a vossa casa, e tudo o que nela tendes, o não quereis dar, senão pelo que vale, a vossa alma, que vale mais que o mundo todo, a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus Cristo, por que a haveis de vender tão vil e tão baixamente? Que vos fez, que vos desmereceu a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo e como o vosso cavalo? Se vos perguntam acaso por que não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma? Ainda mal, porque haveis de queimar e porque há de arder eternamente.
Ora, cristãos, não seja assim: aprendamos ao menos do demônio a estimar nossa alma. Vejamos o que o demônio hoje fez por uma alma alheia, para que nós nos corramos e confundamos do pouco que fazemos pelas próprias. Vai-se o demônio ao deserto, está-se nele quarenta dias e quarenta noites, como se fora um anacoreta; e em todo este tempo esteve vigiando, e espreitando ocasião, e, tanto que a teve, não deixou pedra por mover para a conseguir. Vendo que não lhe sucedia, parte para Jerusalém, e, sendo tão inimigo de Deus, vai-se ao Templo, para persuadir a Cristo que se arrojasse do pináculo: Mitte te deorsum[9] - estuda livros, alega Escrituras, interpreta salmos: Scriptum est enfim; Quia angelis suis mandavit de te, et in manibus tollent te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum[10]. - Resistido também aqui, e vencido segunda vez o demônio, nem por isso desmaia: corre vales, atravessa montes, sobe ao mais alto de todos, e só por ver se podia fazer cair a Cristo, não repara em dar de uma só vez o mundo todo. E que o demônio faça tudo isto por uma alma alheia, e que façamos nós tão pouco pela própria! Que se ponha o demônio quarenta dias em um deserto para me tentar, e que eu nos quarenta dias da quaresma não tome um quarto de hora de retiro para lhe saber resistir! Que vigie o demônio, e espreite todas as ocasiões para me condenar, e que deixe eu passar tantas de minha salvação, e ocasiões que uma vez perdidas, não se podem recuperar! Que vá o demônio ao Templo de Jerusalém, distante tantas léguas, para me despenhar ao pecado, e que, tendo eu a igreja à porta, não me saiba ir meter em um canto dela, como o publicara, para chorar meus pecados! Que o demônio, para me persuadir, estude e alegue os livros sagrados, e que eu não abra um só espiritual, para que Deus fale comigo, já que eu não sei falar com ele! Que o demônio, vencido a primeira e segunda vez, insista, e não desmaie para me render, e que, se comecei acaso alguma obra boa, à primeira dificuldade desista, e não tenha constância nem perseverança em nada! Que o demônio, para me fazer cair, desça vales, e suba montes, e que eu não dê um passo para me levantar, tendo dado tantos para me perder! Finalmente, que o demônio, para granjear minha alma, não repare em dar no primeiro lanço o mundo todo; e que eu estime a minha alma tão pouco, que bastem os mais vis interesses do mundo para a entregar ao demônio! Oh miséria! Oh cegueira!
A que diferente preço compra hoje o demônio as almas, do que oferecia por elas antigamente! Já nesta nossa terra vos digo eu! Nenhuma feira tem o demônio no mundo onde lhe saiam mais baratas: no nosso Evangelho ofereceu todos os remos do mundo por uma alma, no Maranhão não é necessário ao demônio tanta bolsa para comprar todas: não é necessário oferecer mundos, não é necessário oferecer reinos, não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba, e dois tapuias, e logo está adorado com ambos os joelhos: Si cadens adoraveris me[11]. - Oh! que feira tão barata! Negro por alma, e mais negra ela que ele! Esse negro será teu escravo esses poucos dias que viver, e a tua alma será minha escrava por toda a eternidade, enquanto Deus for Deus. Este é o contrato que o demônio faz convosco, e não só lho aceitais, senão que lhe dais o vosso dinheiro em cima.
§ III
A mais grave e a mais útil matéria que tem o Estado do Maranhão. Os pecados do Maranhão, e a resolução do pregador de só dizer a verdade. O cativeiro de Israel no Egito, e os cativeiros injustos do Maranhão. Quem trouxe ao Maranhão a praga dos holandeses, a praga das bexigas, a fome e a esterilidade?
Senhores meus, somos entrados à força do Evangelho na mais grave e mais útil matéria que tem este Estado. Matéria em que vai, ou a salvação da alma, ou o remédio da vida: vede se é grave e se é útil. É a mais grave, é a mais importante, é a mais intrincada, e, sendo a mais útil, é a menos gostosa. Por esta última razão, de menos gostosa, tinha eu determinado de nunca vos falar nela, e, por isso também, de não subir ao púlpito. Subir ao púlpito para dar desgosto, não é do meu ânimo, e muito menos a pessoas a quem eu desejo todos os gostos e todos os bens. Por outra parte, subir ao púlpito, e não dizer a verdade, é contra o ofício, contra a obrigação e contra a consciência, principalmente em mim, que tenho dito tantas verdades, e com tanta liberdade, e a tão grandes ouvidos. Por esta causa resolvi trocar um serviço de Deus por outro, e ir-me doutrinar os índios por essas aldeias.
Estando nesta resolução até quinta-feira, houve pessoas, a que não pude perder o respeito, que me obrigaram a que quisesse pregar na cidade esta quaresma. Prometi-o uma vez, e arrependi-me muitas, porque me tornei a ver na mesma perplexidade. É verdade que no juízo dos que tivessem juízo, sempre a minha boa intenção parece que estava segura. Pergunto-vos: Qual é melhor amigo: aquele que vos avisa do perigo, ou aquele que, por vos não dar pena, vos deixa perecer nele? Qual médico é mais cristão: aquele que vos avisa da morte, ou aquele que, por vos não magoar, vos deixa morrer sem sacramentos? Todas estas razões tinha por mim, mas não acabava de me deliberar. Fui à sexta-feira pela manhã dizer Missa por esta tenção, para que Deus me alumiasse, e me inspirasse o que fosse mais glória sua, e ao ler da Epístola me disse Deus o que queria que fizesse, com as mesmas palavras dela. São de Isaías no capítulo cinqüenta e oito.
Clama, ne cesses: quasi tuba exalta vocem tuam, et annuntia populo meo scelera eorum (Is. 58, 1): Brada, ó pregador, e não cesses; levanta a tua voz como trombeta, desengana o meu povo, anuncia-lhe seus pecados, e dize-lhe o estado em que estão. - Já o pregão do rei se lançou com tambores; agora, diz Deus, que se lance o seu com trombetas: Quasi tuba exalta vocem suam. - Não vos assombre, senhores, o pregão, que, como é pregão de Deus, eu vos prometo que seja mais brando, e mais benigno que o do rei. E se não, vede as palavras que se seguem: Me etenim de die in diem quaerunt, et scire vias meas volunt, quasi gens quae justitiam fecerit, et judicium Dei sui non dereliquerit (ibid. 2): E sabes por que quero que desenganes este meu povo, e por que quero que lhe declares seus pecados? - Porque são uns homens - diz Deus - que me buscam todos os dias, e fazem muitas coisas em meu serviço, e, sendo que têm gravíssimos pecados de injustiças, vivem tão desassustados, como se estiveram em minha graça: Quasi gens quae justitiam fecerit. - Pois, Senhor, que desengano é o que hei de dar a esta gente, e que é o que lhe hei de anunciar da parte de Deus?
Vede o que dizem as palavras do mesmo texto: Nonne hoc est magis jejunium quod elegi? Dissolve colligationes impietatis, et dimitte eos qui confracti sunt liberos[12]. - Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, o qual é o jejum que quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão, estes são os que Deus me manda que vos anuncie: Annuntia populo meo scelera eorum[13]. - Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal, todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vos ides direitos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida.
Pois, valha-me Deus! Um povo inteiro em pecados? Um povo inteiro ao inferno? Quem se admira disto não sabe que coisa são cativeiros injustos. Desceram os filhos de Israel ao Egito, e, depois da morte de José, cativou-os el-rei Faraó, e servia-se deles como escravos. Quis Deus dar liberdade a este miserável povo, mandou lá Moisés, e não lhe deu mais escolta que uma vara. Achou Deus que para pôr em liberdade cativos, bastava uma vara, ainda que fosse libertá-los de um rei tão tirano como Faraó, e de uma gente tão bárbara como a do Egito. Não quis Faraó dar liberdade aos cativos, começam a chover as pragas sobre ele. A terra se convertia em rãs, o ar se convertia em mosquitos, os rios se convertiam em sangue, as nuvens se convertiam em raios e em coriscos, todo o Egito assombrado e perecendo! Sabeis quem traz as pragas às terras? Cativeiros injustos. Quem trouxe ao Maranhão a praga dos holandeses? Quem trouxe a praga das bexigas? Quem trouxe a fome e a esterilidade? Estes cativeiros. Insistiu e apertou mais Moisés para que Faraó largasse o povo, e que respondeu Faraó? Disse uma coisa, e fez outra. O que disse foi: Nescio Dominum, et Israel non dimittam (Ex. 5, 2): Não conheço a Deus, não hei de dar liberdade aos cativos. - Ora, isso me parece bem; acabemos já de nos declarar. Sabeis por que não dais liberdade aos escravos mal havidos? Porque não conheceis a Deus. Falta de fé é causa de tudo. Se vós tivéreis verdadeira fé, se vós crêreis verdadeiramente na imortalidade da alma, se vós crêreis que há inferno para toda a eternidade, bem me rio eu que quisésseis ir lá pelo cativeiro de um tapuia. Com que confiança vos parece que disse hoje o diabo: Si cadens adoraveris me[14]? - Com a confiança de lhe ter oferecido o mundo. Fez o demônio este discurso: Eu a este homem ofereço-lhe tudo; se ele é cobiçoso e avarento, há de aceitar; se aceita, sem dúvida me adora idolatrando, porque a cobiça e avareza são a mesma idolatria. É sentença expressa de S. Paulo: Avaritiam, quae est simulacrorum servitus[15]. - Tal foi a avareza de Faraó em querer reter e não dar liberdade aos filhos de Israel cativos, confessando juntamente que não conhecia a Deus: Nescio Dominum, et Israel non dimittam (Êx. 5, 2). - Isto é o que disse.
O que fez foi que, fugindo todos os israelitas cativos, sai o mesmo rei Faraó com todo o poder de seu reino para os tornar ao cativeiro: e que aconteceu? Abre-se o Mar Vermelho, para que passassem os cativos a pé enxuto - que sabe Deus fazer milagres para libertar cativos. - Não cuideis que mereceram isto os hebreus por suas virtudes, porque eram piores que esses tapuias: daí a poucos dias adoraram um bezerro, e de todos, que eram seiscentos mil homens, só dois entraram na Terra de Promissão; mas é Deus tão favorecedor de liberdades, que o que desmereciam por maus, alcançavam por injustamente cativos. Passados à outra banda do Mar Vermelho, entra Faraó pela mesma estrada, que ainda estava aberta, e o mar, de uma e outra parte, como em muralhas, caem sobre ele e sobre o seu exército as águas, e afogaram a todos. O em que aqui reparo é o modo com que conta isto Moisés no seu Cântico: Operuit eos mare: submersi sunt quasi plumbum in aquis vehementibus. Extendisti manum tuam, et devoravit eos terra (Ex. 15, 10. 12): que caiu sobre eles e os afogou o mar, e os comeu e engoliu a terra. - Pois, se os afogou o mar, como os tragou a terra? Tudo foi. Aqueles homens, como nós, tinham corpo e alma: os corpos afogou-os a água, porque ficaram no fundo do mar; as almas tragou-as a terra, porque desceram ao profundo do inferno. Todos ao inferno, sem ficar nenhum, porque onde todos perseguem, e todos cativam, todos se condenam. Não está bom o exemplo? Vá agora a razão.
Todo o homem que deve serviço ou liberdade alheia, e, podendo a restituir, não restitui, é certo que se condena: todos, ou quase todos os homens do Maranhão, devem serviços e liberdades alheias, e, podendo restituir, não restituem: logo, todos ou quase todos se condenam. Dir-me-eis que, ainda que isto fosse assim, que eles não o cuidavam nem o sabiam, e que a sua boa-fé os salvaria. Nego tal: sim, cuidavam, e sim, sabiam, como também vós o cuidais e o sabeis; e se o não cuidavam, nem o sabiam, deveram cuidá-lo e sabê-lo. A uns condena-os a certeza, a outros a dúvida, a outros a ignorância. Aos que têm certeza, condena-os o não restituírem; aos que têm dúvida, condena-os o não examinarem; aos que têm ignorância, condena-os o não saberem, quando tinham obrigação de saber. Ah! se agora se abriram essas sepulturas, e aparecera aqui algum dos que morreram neste infeliz estado, como é certo que ao fogo das suas labaredas havíeis de ler claramente esta verdade! Mas sabeis por que Deus não permite que vos apareça? É pelo que Abraão disse ao rico avarento, quando pedia que mandasse Lázaro a este mundo: Habent Moysen et prophetes (Lc. 16, 29): Não é necessário que vá de cá do inferno quem lhe apareça e lhe diga a verdade: lá têm a Moisés e a lei, lá têm os profetas e doutores. - Meus irmãos, se há quem duvide disto, aí estão as leis, aí estão os letrados, pergunte-lho. Três religiões tendes neste Estado, onde há tantos sujeitos de tantas virtudes e tantas letras; perguntai, examinai, informai-vos. Mas não é necessário ir às religiões: ide à Turquia, ide ao inferno, porque não pode haver turco tão turco na Turquia, nem demônio tão endemoninhado no inferno, que diga que um homem livre pode ser cativo. Há algum de vós, só com o lume natural, que o negue? Pois, em que duvidais?
IV
Melhor é sustentar do suor próprio que do sangue alheio. Resposta aos que dizem que o Estado do Maranhão não se pode sustentar sem índios. Modo pelo qual, com muito pouca perda temporal, se podem segurar as consciências de todos os moradores deste Estado, e, com muito grandes interesses, se podem melhorar suas conveniências para o futuro. Qual será o preço dos chamados meios cativos, com que se lhes pagará o trabalho do seu serviço.
Vejo que me dizeis: Bem estava isso, se nós tivéramos outro remédio, e com o mesmo Evangelho nos queremos defender. - Qual foi mais apertada tentação: a primeira ou a terceira? Nós entendemos que a primeira, porque na primeira estava Cristo com fome de quarenta dias, e ofereceu-lhe o demônio pão; na terceira ofereceu-lhe reinos e monarquias, e um homem pode viver sem reinos e sem impérios, mas sem pão para a boca não pode viver: e neste aperto vivemos nós. Este povo, esta república, este Estado, não se pode sustentar sem índios. Quem nos há de ir buscar um pote de água, ou um feixe de lenha? Quem nos há de fazer duas covas de mandioca? Hão de ir nossas mulheres? Hão de ir nossos filhos? Primeiramente, não são estes os apertos em que vos hei de pôr, como logo vereis; mas, quando a necessidade e a consciência obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer que sim: que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos, e que todos nós nos sustentássemos dos nossos braços, porque melhor é sustentar do suor próprio que do sangue alheio. Ah! fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue! A Samaritana ia com um cântaro buscar água à fonte, e foi tão santa como sabemos. Jesabel era mulher de el-rei Acab, rainha de Israel, e foi comida de cães, e sepultada no inferno, porque tomou a Nabot uma vinha, que não lhe chegou a tomar a liberdade. Pergunto: qual é melhor: levar o cântaro à fonte, e ir ao céu, como a Samaritana, ou ser senhora, servida, e rainha, e ir ao inferno, como Jesabel? Melhor era que nós Adão, e tinha ofendido a Deus com menos pecados, e devia ao trabalho de suas mãos o bocado de pão que metia na boca. Filho de Deus era Cristo, e ganhava com um instrumento mecânico o com que sustentava a vida, que depois havia de dar por nós. Faz isto por nós o mesmo Deus, e nós desprezar-nos-emos de fazer outro tanto por guardar a sua lei?
Direis que os vossos chamados escravos são os vossos pés e mãos, e também podereis dizer que os amais muito, porque os criastes como filhos, e porque vos criam os vossos. Assim é, mas já Cristo respondeu a esta réplica: Si oculus tuus scandalizat te, erue eum: et si manus, vel pes tuus scandalizat te, amputa illum[16]. - Não quer dizer Cristo que arranquemos os olhos, nem que cortemos os pés e as mãos, mas quer dizer que, se nos servir de escândalo aquilo que amarmos como os nossos olhos, e aquilo que havemos mister como os pés e as mãos, que o lancemos de nós, ainda que nos doa, como se o cortáramos. Quem há que não ame muito o seu braço e a sua mão? Mas se nela lhe saltaram herpes, permite que lha cortem, por conservar a vida. O mercador, ou passageiro, que vem da índia, ou do Japão, muito estima as drogas, que tanto lhe custaram lá; mas, se a vida periga, vai tudo ao mar, para que ela se salve. O mesmo digo no nosso caso. Se para segurar a consciência, e para salvar a alma, for necessário perder tudo, e ficar como um Jó, perca-se tudo.
Mas, bom ânimo, senhores meus, que não é necessário chegar a tanto nem a muito menos. Estudei o ponto com toda a diligência e com todo o afeto, e, seguindo as opiniões mais largas e mais favoráveis, venho a reduzir as coisas a estado que entendo que, com muito pouca perda temporal, se podem segurar as consciências de todos os moradores deste Estado, e com muitos grandes interesses podem melhorar suas conveniências para o futuro. Dai-me atenção.
Todos os índios deste Estado, ou são os que vos servem como escravos, ou os que moram nas aldeias de el-rei como livres, ou os que vivem no sertão em sua natural e ainda maior liberdade, os quais por esses rios se vão comprar ou resgatar - como dizem - dando o piedoso nome de resgate a uma venda tão forçada e violenta, que talvez se faz com a pistola nos peitos. Quanto àqueles que vos servem, todos nesta terra são herdados, havidos, e possuídos de má-fé, segundo a qual não farão pouco - ainda que o farão facilmente - em vos perdoar todo o serviço passado. Contudo, se depois de lhes ser manifesta esta condição de sua liberdade, por serem criados em vossa casa, e com vossos filhos, ao menos os mais domésticos, espontânea e voluntariamente vos quiserem servir, e ficar nela, ninguém, enquanto eles tiverem esta vontade, os poderá apartar de vosso serviço. E que se fará de alguns deles, que não quiserem continuar nesta sujeição? Estes serão obrigados a ir viver nas aldeias de el-rei, onde também vos servirão na forma que logo veremos. Ao sertão se poderão fazer todos os anos entradas, em que verdadeiramente se resgatem os que estiverem - como se diz - em cordas, para ser comidos, e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo cativeiro. Assim serão também cativos todos os que sem violência forem vendidos como escravos de seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o governador de todo o Estado, o ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados das quatro religiões, carmelitas, franciscanos, mercenários, e da Companhia de Jesus. Todos os que deste juízo saírem qualificados por verdadeiramente cativos, se repartirão aos moradores pelo mesmo preço por que foram comprados. E os que não constar que a guerra em que foram tomados fora justa, que se fará deles? Todos serão aldeados em novas povoações, ou divididos pelas aldeias que hoje há, donde, repartidos com os demais índios delas pelos moradores, os servirão em seis meses do ano alternadamente de dois em dois, ficando os outros seis meses para tratarem de suas lavouras e famílias. De sorte que nesta forma todos os índios deste Estado servirão aos portugueses, ou como própria e inteiramente cativos, que são os de corda, os de guerra justa, e os que livre e voluntariamente quiserem servir, como dissemos dos primeiros; ou como meios cativos, que são todos os das antigas e novas aldeias, que, pelo bem e conservação do Estado, me consta que, sendo livres, se sujeitaram a nos servir e ajudar ametade do tempo de sua vida. Só resta saber qual será o preço destes que chamamos meios cativos, ou meios livres, com que se lhes pagará o trabalho do seu serviço. É matéria de que se rirá qualquer outra nação do mundo, e só nesta terra se não admira: O dinheiro desta terra é pano de algodão, e o preço ordinário por que servem os índios, e servirão cada mês, são duas varas deste pano, que valem dois tostões! Donde se segue que por menos de sete réis de cobre servirá um índio cada dia! Coisa que é indigna de se dizer, e muito mais indigna de que, por não pagar tão leve preço, haja homens de entendimento e de cristandade, que queriam condenar suas almas, e ir ao inferno.
§V
Não será melhor perder índios por serviço de Deus, que perdê-los por castigo de Deus? Os quatro bens que advêm.
Pode haver coisa mais moderada? Pode haver coisa mais posta em razão que esta? Quem se não contentar e não satisfizer disto, uma de duas: ou não é cristão, ou não tem entendimento. E se não, apertemos o ponto, e pesemos os bens e os males desta proposta.
O mal é um só, que será haverem alguns particulares de perder alguns índios, que eu vos prometo, que sejam mui poucos. Mas aos que nisto repararem, pergunto: Morreram-vos já alguns índios? Fugiram-vos já alguns índios? Muitos. Pois, o que faz a morte, por que o não fará a razão? O que faz o sucesso da fortuna, por que o não fará o escrúpulo da consciência? Se vieram as bexigas, e vo-los levaram todos, que havíeis de fazer? Havíeis de ter paciência. Pois, não é melhor perdê-los por serviço de Deus, que perdê-los por castigo de Deus? Isto não tem resposta.
Vamos aos bens, que são quatro, os mais consideráveis. O primeiro, é ficardes com as consciências seguras. Vede que grande bem este. Tirar-se-á este povo do estado de pecado mortal; vivereis como cristãos, confessar-vos-eis como cristãos, morrereis como cristãos, testareis de vossos bens como cristãos; enfim, ireis ao céu, não ireis ao inferno, ao menos certamente, que é triste coisa.
O segundo bem é que tirareis de vossas casas esta maldição. Não há maior maldição numa casa, nem numa família, que servir-se com suor e com sangue injusto. Tudo vai para trás, nenhuma coisa se logra, tudo leva o diabo. O pão que assim se granjeia é como o que hoje ofereceu o diabo a Cristo: pão de pedras, que, quando se não atravessa na garganta, não se pode digerir. Vede-o nestes que tiram muito pão do Maranhão, vede se o digeriu algum, ou se lhe logrou algum? Houve quem se lhe atravessou na garganta, que nem confessar-se pôde.
O terceiro bem é que por este meio haverá muitos resgates, com que se tirarão muitos índios, que doutra maneira não os haverá. Não dizeis vós que este Estado não se pode sustentar sem índios? Pois, se os sertões se fecharem, se os resgates se proibirem totalmente, mortos estes poucos índios que há, que remédio tendes? Importa logo haver resgates, e só por este meio se poderão conceder.
Quarto e último bem: que feita uma proposta nesta forma, será digna de ir às mãos de Sua Majestade, e de que Sua Majestade a aprove e a confirme. Quem pede o ilícito e o injusto, merece.que lhe neguem o lícito e o justo; e quem requer com consciência, com justiça e com razão, merece que lha façam. Vós sabeis a proposta que aqui fazíeis? Era uma proposta que nem os vassalos a podiam fazer em consciência, nem os ministros a podiam consultar em consciência, nem o rei a podia conceder em consciência. E, ainda que por impossível el-rei tal permitisse, ou dissimulasse, de que nos servia isso, ou que nos importava? Se el-rei permitir que eu jure falso, deixará o juramento de ser pecado? Se el-rei permitir que eu furte, deixará o furto de ser pecado? O mesmo passa nos índios. El-rei poderá mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos, não chega lá sua jurisdição. Se tal proposta fosse ao reino, as pedras da rua se haviam de levantar contra os homens do Maranhão. Mas se a proposta for lícita, se for justa, se for cristã, as mesmas pedras se porão de vossa parte, e quererá Deus que não sejam necessárias pedras nem pedreiras. Todos assinaremos, todos informaremos, todos ajudaremos, todos requereremos, todos encomendaremos a Deus, que ele é o Autor do bem, e não pode deixar de favorecer intentos tanto de seu serviço. E tenho dito.
§ VI
Que homem haverá tão esquecido de Deus e tão inimigo de si mesmo, que se não contente com uma coisa tão justa e tão útil? Saiba o mundo, saibam os hereges e os gentios, que não se enganou Deus quando fez aos portugueses conquistadores e pregadores de seu santo nome. Oração final.
Ora, cristãos, e senhores da minha alma, se nestas verdades e desenganos, que acabo de vos dizer, se nesta minha breve proposta consiste todo o vosso bem, e toda a vossa esperança espiritual e temporal; se só por este caminho vos podeis segurar nas consciências; se por este caminho vos podeis salvar, e livrar vossas almas do inferno; se o que se perde, ainda temporalmente, é tão pouco, e pode ser que não seja nada; e as conveniências e bens que daí se esperam são tão consideráveis e tão grandes, que homem haverá tão mau cristão, que homem haverá tão mal entendido, que homem haverá tão esquecido de Deus, tão cego, tão desleal, tão inimigo de si mesmo, que se não contente de uma coisa tão justa, e tão útil, que a não queira, que a não aprove, que a não abrace? Por reverência de Jesus Cristo, cristãos, e por aquele amor, com que aquele Senhor hoje permitiu ser tentado, para nos ensinar a ser vencedores das tentações, que metamos hoje o demônio debaixo dos pés, e que vençamos animosamente esta cruel tentação, que a tantos nesta terra tem levado ao inferno, e nos vai, levando também a nós. Demos esta vitória a Cristo, demos esta glória a Deus, demos este triunfo ao céu, demos este pesar ao inferno, demos este remédio à terra em que vivemos, demos esta honra à nação portuguesa, demos este exemplo à cristandade, demos esta fama ao mundo.
Saiba o mundo, saibam os hereges e os gentios, que não se enganou Deus quando fez aos portugueses conquistadores e pregadores de seu santo nome. Saiba o mundo que ainda há verdade, que ainda há temor de Deus, que ainda há alma, que ainda há consciência, e que não é o interesse tão absoluto e tão universal senhor de tudo, como se cuida. Saiba o mundo que ainda há quem por amor de Deus, e da sua salvação, meta debaixo dos pés interesses. Quanto mais, senhores, que isto não é perder interesses: é multiplicá-los, é acrescentá-los, é semeá-los, é dá-los à usura. Dizei-me, cristãos, se tendes fé: os bens deste mundo, quem é que os dá, quem é que os reparte? Dizeis-me que Deus. Pois, pergunto: qual será melhor diligência para mover a Deus a que vos dê muitos bens, servi-lo ou ofendê-lo? Obedecer e guardar a sua lei, ou quebrar todas as leis? Ora, tenhamos fé, e tenhamos uso de razão.
Deus, para vos sustentar e para vos fazer ricos, não depende de que tenhais um tapuia mais ou menos. Não vos pode Deus dar maior novidade com dez enxadas que todas as vossas diligências com trinta? Não é melhor ter dois escravos, que vos vivam vinte anos, que ter quatro, que vos morram ao segundo? Não rendem mais dez caixas de açúcar que cheguem a salvamento a Lisboa, que quarenta levadas a Argel ou Zelândia? Pois, se Deus é o senhor das novidades da terra, se Deus é o Senhor dos fôlegos dos escravos, se Deus é o Senhor dos ventos, dos mares, dos corsários, e das navegações, se todo o bem ou mal está fechado na mão de Deus, se Deus tem tantos modos, e tão fáceis de vos enriquecer ou de vos destruir, que loucura e que cegueira é cuidar que podeis ter bem algum, nem vós, nem vossos filhos, que seja contra o serviço de Deus? Faça-se o serviço de Deus, acuda-se à alma e à consciência, e logo os interesses temporais estarão seguros: Quaerite primum regnum Dei, et justitiam ejus; et haec omnia adjicientur vobis[17]. - Mas quando não fora, nem se seguraram por esta via nossos interesses, faça-se o serviço de Deus, acuda-se à consciência, acuda-se à alma, e corte-se por onde se cortar, ainda que seja pelo sangue e pela vida.
Dizei-me, cristãos: Se vos víreis em poder de um tirano que vos quisesse tirar a vida pela fé de Cristo, que havíeis de fazer? Dar a vida, e mil vidas. Pois, o mesmo é dar a vida pela fé de Deus, que dar a vida pelo serviço de Deus. Não há mais cruel tirano que a pobreza e a necessidade; e padecer às mãos deste tirano, por não ofender a Deus, também é ser mártir, diz Santo Agostinho. Nada disto há de ser necessário, como já vos tenho dito; mas quem é cristão verdadeiro, há de estar com este ânimo e com esta resolução.
Senhor Jesus, este é o ânimo, e esta é a resolução, com que estão de hoje por diante estes vossos tão fiéis católicos. Ninguém há aqui que queira outro interesse mais que servir-vos; ninguém há que queira outra conveniência mais que amar-vos; ninguém há que tenha outra ambição, mais que de estar eternamente obediente e rendido a vossos pés. A vossos pés está a fazenda, a vossos pés estão os interesses, a vossos pés estão os escravos, a vossos pés estão os filhos, a vossos pés está o sangue, a vossos pés está a vida, para que corteis por ela e por eles, para que façais de tudo e de todos o que for mais conforme à vossa santa lei. Não é assim, cristãos? Assim é, assim o digo, assim o digo, e prometo a Deus em nome de todos. Vitória, pois, por parte de Cristo, vitória, vitória contra a maior tentação do demônio. Morra o demônio, morram suas tentações, morra o pecado, morra o inferno, morra a ambição, morra o interesse, e viva só o serviço de Deus, viva a fé, viva a cristandade, viva a consciência, viva a alma, viva a lei de Deus, e o que ela ordenar, viva Deus, e vivamos todos, nesta vida com muita abundância de bens, principalmente os da graça, e na outra, por toda a eternidade, os da glória: Ad quam nos, etc.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
[1] Tudo isto te darei, se prostrado me adorares (Mt. 4, 9).
[2] Se és Filho de Deus (ibid. 6).
[3] Como já o diabo tinha metido no coração a Judas (Jo. 13, 2).
[4] Um de vós é o diabo (Jo. 6, 71).
[5]Ele disse, e foram feitas as coisas (SI. 148, 5).
[6] Foi vendido para fazer o mal (3 Rs. 21, 20).
[7] São mentirosos os filhos dos homens em balanças (S). 61, 10).
[8] De que aproveita ao homem (Mt. 16, 26)?
[9] Lança-te daqui abaixo (MI 4, 6).
[10] Porque escrito está: Que mandou aos seus anjos que cuidem de ti, e eles te tomarão nas palmas, para que não suceda tropeçares em pedra com o teu pé (ibid.).
[11] Se prostrado me adorares (Mt. 4, 9).
[12] Acaso não é antes este o jejum que eu escolhi? Rompe as ligaduras da impiedade, deixa ir livres aqueles que estão quebrantados (Is. 58, 6).
[13]Anuncia ao meu povo as suas maldades (Is. 58, 1).
[14] Se prostrado me adorares (Mt. 4, 6).
[15] A avareza, que é serviço de ídolos (Col. 3, 5).
[16] Se o teu olho te serve de escândalo, arranca-o; e se a tua mão ou o teu pé te serve de escândalo, corta-o (Mt. 5, 29; Mc. 9, 42, 44).
[17] Buscai primeiramente o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas se vos acrescentarão (Mt. 6, 33).