Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão de São José, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. XI Erechim: EDELBRA, 1998.

SERMÃO DE SÃO JOSÉ

Dia em que fez anos El-Rei D. João o IV, na Capela Real, ano de 1642

Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.[1]

§ I

Qual dia desta vida é mais feliz: o primeiro ou o último. O dia da morte de São José e o dia do nascimento de El-Rei Dom João o IV Os dois nascimentos de São João Evangelista e o nascimento real de Dom João.

Questão foi mui duvidada entre os antigos qual dia desta vida era mais feliz, se o primeiro, se o último; se o do nascimento, se o da morte. Daqui veio que, seguindo várias gentes várias opiniões, umas se alegravam nos nascimentos, outras os celebravam com lágrimas; umas se entristeciam nas mortes, outras as solenizavam com festas. Chegou finalmente a dúvida ao tribunal de el-rei Salomão, o qual, inclinando-se à parte que parecia menos provável, resolveu que melhor é o dia da morte que o dia do nascimento: Melior est dies mortis die nativitatis (Ecl. 7, 2). - Com isto estar resoluto e definido assim na Escritura, hoje parece que temos a mesma questão, ou concordada, ou ressuscitada, porque estamos, por mercê de Deus, em um dia tão glorioso por uma morte, tão feliz por um nascimento, que bem se pode competir dentro em si mesmo, ou a vencer feliz suas glórias, ou a vencer glorioso suas felicidades. Consagrou-se este dia às glórias do céu, com a morte do maior santo que nele reina, o divino Esposo da Virgem Maria, S. José, e consagrou-se outra vez o mesmo dia às felicidades de Portugal, com o nascimento felicíssimo do mais desejado rei, e mais benemérito, el-rei, nosso senhor, Dom João o IV, para que sobre os trinta e oito, que hoje conta, continue por muitos e mui compridos anos as prosperidades que goza. Morre hoje José, e nasce Sua Majestade. Que ventura tão recíproca! Nem José morrendo podia deixar no mundo melhor substituto, nem Sua Majestade nascendo podia entrar no mundo com melhor planeta.

Estando Cristo, Redentor nosso, na cruz, olhou para S. João, o discípulo amado, e encarregou-lhe que tivesse cuidado de servir e acompanhar a sua Santíssima Mãe. Reparam alguns santos em não dar o Senhor este cargo a outro apóstolo, senão a S. João, porque, ainda que em São João concorriam todas as qualidades, em algumas era igualado, e em alguma excedido, e, para mordomo da Rainha dos Anjos, todos o excediam no atributo da ancianidade. Pois, se era mais moço João, e havia outros amados, e mais parentes, por que não escolhe Cristo a outro discípulo, senão a S. João para este ofício? A razão foi porque o ofício de acompanhar e servir à Senhora era ofício de S. José enquanto viveu, e para substituir em ausências de José, quem havia de ser senão João? Não é menos que de S. Cipriano o pensamento: Ut non tam Joseph oneretur tanti ministerii praepositura, sed Joannes. - Morrera José, vagara no mundo aquele grande lugar, e para substituir em sua morte, para suceder em sua ausência, ninguém havia no mundo que estivesse a caber, senão quem? João, o amado de Deus. João, o amado de Deus, substitui a José: Non tam Joseph, sed Joannes.

E isto quando? No dia de seu nascimento. Parece que não pode ser, porque nem o real nem o nascimento podem competir a S. João aqui. Ora, tudo foi. Quando Cristo deu a S. João o cuidado de servir à Senhora, as palavras que disse foram estas: Mulier, ecce filius tuus (Jo. 18, 26): Mulher, eis aí teu filho. - Deinde dicit discipulo: Ecce Mater tua (ibid. 27): João, eis aí tua Mãe - Mãe e filho, de que maneira? Mãe tinha S. João, mas era Maria Salomé; filho era, mas do Zebedeu. Pois, se estes eram seus pais, como se chama João filho da Senhora, e a Senhora mãe de João? É porque João tornou a nascer nesta hora, e nasceu só da Virgem por força das palavras de Cristo. Autores houve, e entre eles expressamente S. Pedro Damião, que disseram que, assim como as palavras hoc est corpus meum[2].- ditas uma vez por Cristo, tiveram força para converter o pão em corpo do mesmo Cristo, assim as palavras: Mulier, ecce filius tuus tiveram força para fazer a S. João, e o converterem de filho do Zebedeu em filho de Maria.

De maneira que S. João teve dois nascimentos: um nascimento natural, com que nasceu filho do Zebedeu; outro nascimento sobrenatural, com que nasceu filho da Mãe de Deus. Pelo primeiro nascimento nasceu nas praias do Tiberíades, pelo segundo nascimento nasceu ao pé da cruz. Pelo primeiro nascimento nasceu de geração humilde, pelo segundo nascimento nasceu da mais ilustre e real prosápia que havia no mundo, filho de uma Senhora, herdeira de um rei morto à mão de seus inimigos: Jesus Nazarenus, Rex Judaeorum. - Assim nasceu S. João segunda vez, e assim foi necessário que nascesse, para suceder no lugar de S. José, como sucedeu, porque só se pode substituir dignamente a morte de José, com quê? Com o nascimento real de um João, o amado de Deus: Discipulum quem diligebat: Mulier, ecce filius tuus: Non tam Joseph, sed Joannes.

§ II

Por que razão se não deve chamar nascimento à morte de S. José? As más influências dos planetas quando estão debaixo da terra. As boas influências do planeta São José no limbo. As influências de José do Egito sobre seus irmãos israelitas. Por que razão José se mostrou tão benigno, e fez tantos favores e mercês a seus irmãos, de quem recebera tantos agravos?

Só vejo me podem reparar os curiosos em falar no dia de S. José por termos de morte, sendo que mais devia, com um e outro intento, chamar-lhe nascimento, porque assim chama a Igreja às mortes dos santos: Natalitia Sanctorum. - Se eu não fora mais amigo da verdade que da propriedade, assim o fizera, mas as mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos, a morte de S. José não. As mortes de outros santos podem-se chamar nascimentos, porque quando morreram à vida temporal nasceram à vida eterna. Não assim São José. Como não estava ainda aberta a porta do céu quando São José morreu, não foi o santo no dia de sua morte à glória, senão ao limbo. Ao limbo São José neste dia? Valha-me Deus, que duvidoso horóscopo! Não sei eu como poderei provar o que entrei dizendo, que não se podia nascer com melhor planeta. Dizem os matemáticos que nascer com os planetas debaixo da terra é prognóstico de infelicidades[3]. Pois, se São José neste dia seu o temos debaixo da terra, o corpo na sepultura, a alma no limbo, que influências podemos esperar deste planeta em tão funesto sítio? Ora, digo que é felicíssimo auspício ter neste nascimento a São José debaixo da terra, porque, ainda que os planetas debaixo da terra tenham perigosas influências, tiram-se por exceção os planetas que são Josés: os planetas que são Josés, para influírem felizmente, hão de estar debaixo da terra.

Estava o patriarca José em Egito; morreu, e diz o texto sagrado que depois de sua morte cresceram muito os israelitas em número e poder: Quo mortuo, creverunt filii Israel, quasi germinantes multiplicati sunt: ac roborati nimis, impleverunt terram[4]. - Que os filhos de Israel crescessem pelos merecimentos de José não me admira; antes, assim havia de ser, que isso quer dizer José, aumento e crescimento: Joseph accrescens. - O que me admira é que crescessem os israelitas depois dele morto: Quo mortuo. - Se José quer dizer crescimento, e os filhos de Israel cresceram por sua influência, por que não cresceram em sua vida, senão depois de sua morte? A razão é porque, para se lograrem as influências de José, há de estar debaixo da terra. Delicadamente o tirou Hugo Cardeal do mesmo texto. Diz o texto que: Creverunt quasi germinantes: cresceram os filhos de Israel assim como crescem as plantas. - Bem dito - diz Hugo: Uno grano emortuo, multa creverunt: Cresceram os filhos de Israel como as plantas, porque, assim como as plantas, para nascerem e crescerem, é necessário que a virtude de que nascem se enterre primeiro debaixo da terra, assim, para que a virtude de José influísse aumentos nos filhos de Israel, foi necessário que ele morresse e se enterrasse primeiro: Quo mortuo, creverunt. - Os outros planetas hão de estar em cima, mas os Josés debaixo da terra.

Grande advertência de Filo. Pode-se duvidar a razão por que José se mostrou tão benigno, e fez tantos favores e mercês a seus irmãos, de quem recebera tantos agravos. Digo que se pode duvidar, porque bem mostraram os primeiros dois irmãos, Caim e Abel, que não basta a razão de irmandade para abrandar corações. E se um irmão respeitado mata, um irmão ofendido, que fará? Pois, se José estava tão ofendido de seus irmãos, como se mostrou tão benigno e liberal com eles? A razão, disse Filo que foi por umas palavras que disseram a José os irmãos. Quando lhe deram conta de si, disseram que eram doze: os dez que ali estavam, um que ficara com o pai, e outro que morrera, que era o mesmo José. As palavras foram estas: Duodecim fratres sumus: minimus cum patre nostro est, alius non est super[5]. - O menor de todos, Benjamim, ficou com o pai; o outro, que era José, non est super: já não está em cima, está debaixo da terra. - Já está debaixo da terra José? Por isso se mostrou tão benigno e liberal com os irmãos, diz Filo: Alius non est super, de se loquentes audiens, quid animi habere potuit? - Ouvindo dizer José que já não estava em cima, senão que estava debaixo da terra, que outra coisa pôde fazer, senão amar, favorecer, influir beneficamente liberalidades? Os outros planetas, para influírem benignamente hão de estar em cima; mas José, quando não está em cima, senão debaixo da terra, como hoje - assim tem o hebreu: Hodie non est super - no dia em que não está em cima, senão debaixo da terra, então influi vida, mercês, felicidades e aumentos.

§ III

Que influências pode esperar o dia do nascimento de el-rei de tão divino planeta? O nascimento do Verbo Eterno, o Esperado, sob a guarda de São José, e o nascimento de Dom João, o Encoberto, sob os cuidados e vigilância do Esposo de Maria. Que semelhança tem o tempo que São José guardou encoberto a Cristo, que não chega a um ano, com mais de trinta e seis anos inteiros em que teve encoberto ao rei encoberto? Como desempenhou o grande santo a obrigação que tinha de encobrir e provar o nome de encoberto no novo rei nascido no seu dia, debaixo das cinzas de el-rei Dom Sebastião.

Temos visto o nascimento real de João, o amado, e o sítio do planeta em que nasce, debaixo da terra, no mesmo ou semelhante dia; e, porque os dias, como diz Davi, também se falam e se entendem uns com os outros: Dies diei eructar verbum[6] - com razão perguntará o dia do nascimento de Sua Majestade ao dia em que nasce, de São José, que influências pode ou deve esperar de tão divino planeta. A resposta não é como a dos matemáticos, duvidosa e incerta, mas tão certa e sem dúvida como tudo o que dizem os evangelistas. Vamos ao nosso Evangelho, que é de São Mateus, no capítulo primeiro, e ouçamos com admirável propriedade o que diz, como se falara deste dia, e do nosso caso: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph (Mt. 1, 18): Estava - diz - a Mãe de Jesus, Maria, desposada com José. - Onde se deve advertir que a palavra desposada não significa promessa recíproca de bodas futuras, senão verdadeiro e atual matrimônio, por contrato, e palavras de presente, como consta do mesmo texto: Noli timere accipere Mariam conjugem tuam[7] - mas a cortesia do evangelista não disse casada, senão desposada, como termo mais decente e decoroso. O que suposto, era a Senhora já Mãe de Jesus, porque tinha concebido ao Verbo Eterno, mas antes de mãe, primeiro desposada. E por quê? Como era e havia de ser sempre Virgem, tanto importava ser primeiro desposada, como depois: por que razão logo ordenou a providência divina que não concebesse ao Filho de Deus, senão depois de desposada: Cum esset desponsata Mater Jesu? - A razão principal é porque convinha e era necessário que a conceição e parto da mesma Virgem estivesse encoberto: Ut virgineus partus celaretur. - Assim o dizem São Jerônimo, São Basílio, São João Damasceno, Santo Ambrósio, São Bernardo, e é comum dos santos padres. Constava da Sagrada Escritura, pelo oráculo e testemunho do profeta Isaías, que o Messias e rei prometido para redentor do mundo havia de nascer de uma Virgem: Ecce Virgo concipiet, et pariet filium[8]. - E porque este rei, não só na terra, senão no mesmo inferno, havia de ter muitos êmulos e inimigos, esta era a importância e necessidade por que convinha e tinha ordenado a divina Providência que estivesse encoberto a todos, como com efeito se encobriu no desposório ou matrimônio da Virgem Santíssima com S. José, parecendo que não tinha mais mistério a conceição e nascimento daquele Filho, que o comum e ordinário dos outros homens.

Que semelhança tem agora, ou que propriedade em São José, a providência de Deus neste mistério com o nascimento de Sua Majestade, que Deus guarde, no dia do mesmo santo? Disse-o Ruperto, com umas palavras que, se lhe pedíramos as fizesse de encomenda, não vieram mais nascida ao intento: Ut esset sponsus, custos que Beatae Mariae Virginis, ac nati ex ea regis: Desposa-se José com Maria, e nomeadamente com Maria Mãe de Jesus, porque o fim destes desposórios foi ser José esposo da Virgem, e guarda do rei nascido: Custos nati regis. - Oh! grande excelência! Oh! grande glória! Oh! dignidade superior a todos os santos a de José! Que os foros da mesma onipotência nasçam debaixo de seu amparo, e que, não tendo Cristo anjo da guarda, porque é Deus, tenha por custódio um homem, que é São José: Custos nati regis? - Grande glória de José, e grande graça também do nosso rei e reino! Que o amasse Deus, e cuidasse do seu remédio com tão especial providência, que o patrocínio que deu em seu nascimento ao rei que havia de restaurar o mundo, esse mesmo patrocínio desse em seu nascimento ao rei que havia de restaurar a Portugal! Um e outro nasceu debaixo da mesma proteção, um e outro nasceu debaixo da tutela e amparo de São José: Joseph, custos nati regis.

Sendo, pois, estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores e ambos encobertos, o primeiro, como diz a profecia de Isaías: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel, salvator[9] - o segundo, prometido pela profecia e; tradição de Santo Isidoro a Espanha, não com outro nome ou antonomásia„ senão a do Encoberto, vejamos quão particularmente encobriu a um e outro o que a um e outro deu Deus por guarda o cuidado e vigilância de São José. A Cristo encobriu-o como Esposo de Maria, nove meses e treze dias, desde suar conceição até depois de seu nascimento, em que o descobriu a estrela no Oriente,, aos Magos, e os Magos, em seguimento dela, a toda Judéia. E como o encobriu` Spiritus sanctus superveniet in te, et virtus Altissimi obumbrabit tibi.[10] - À Virgem, Senhora nossa, tinha dois esposos, um divino, outro humano. O esposo divino era o Espírito Santo; o humano, São José. Do primeiro esposo era obrai o filho concebido, como disse o anjo à mesma Virgem: Spiritus Sanctus superveniet in te - acrescentando: Et virtus Altissimi obumbrabit tibi: que ar virtude do Altíssimo lhe faria sombra. - E que sombra foi esta? Ou quem foi esta sombra? Foi sem dúvida o segundo esposo, a cuja sombra esteve a Virgem depois de desposada, e, com a sombra e nome de pai, encobriu o que verdadeiramente não era seu filho. Assim ficou o rei e Redentor, que havia de ser do mundo., encoberto desde sua encarnação nove meses até seu nascimento e treze dias., até que a estrela, e os Magos, e Deus por eles, o descobriu ao mundo: Ubi est qui natus est rex Judaeorumt[11]

Mas, se São José guardou encoberto a Cristo nove meses e treze dias, que comparação tem este tempo, que não chega a um ano, com mais de trinta e seis anos inteiros em que teve encoberto ao rei encoberto de Portugal, desde o dia do seu nascimento até o felicíssimo de sua restituição? Vejo que me respondem que São José não só encobriu a Cristo naquele primeiro ano não acabado, mas em outros, cujo número certo se não sabe. Sabendo pelo anjo que Herodes, entre os inocentes de Belém, queria tirar a vida a Cristo, fugiu da Judéia para o Egito, e, depois da morte do mesmo Herodes, sabendo, também por aviso do céu, que reinava em Judéia Arquelau, seu filho, retirou-se para Galiléia. De sorte que, para encobrir o primeiro rei nascido, tomou por meio tirá-lo diante dos olhos dos dois reis seus inimigos, e escondê-lo em terras estranhas. Porém, para encobrir o segundo rei, não só no seu nascimento, nem na sua infância, puerícia ou adolescência, senão na idade de varão perfeito em tantos anos, a traça com que o encobriu a outros dois reis, que não menos lhe podiam tirar a vida e a coroa, qual seria? Verdadeiramente milagrosa e digna da onipotência divina. Dentro na mesma Espanha, dentro no mesmo Portugal, e diante dos olhos dos mesmos reis, escondeu e encobriu de maneira ao encoberto que, vendo-o, o não viam nem viram. É certo que assim foi, mas duvidoso, como podia ser.

No dia da Ressurreição, ajuntou-se Cristo aos dois discípulos que iam para Emaús, os quais em todo aquele caminho o viam e ouviam, sem o conhecerem. Porventura transfigurou-se Cristo, ou mudou as feições do rosto? Por nenhum modo. Pois, se eram seus discípulos, costumados a vê-lo todos os dias, e agora o estavam vendo, e no seu rosto não havia mudança, como o não conheciam? Responde o evangelista: Oculi eorum tenebantur ne eum agnoscerent[12]. - A palavra tenebantur melhor se pode entender do que declarar na nossa língua: tenebantur, estavam detidos; tenebantur, estavam presos; tenebantur, estavam suspensos; tenebantur, estavam em si e fora de si, como extáticos, os olhos que o viam, e não conheciam - fazendo este milagre nos discípulos a onipotência de Cristo, e nos reis, que tanto podiam temer e acautelar-se do que hoje é nosso, a mão invisível de São José. Desde o princípio, em que se fizeram senhores de Portugal aqueles reis estranhos, Filipe II tinha diante dos olhos a senhora D. Catarina, Filipe III ao Duque D. Teodósio, Filipe IV a Sua Majestade, que, finalmente, lhe tirou da cabeça a coroa, e, vendo-os, não conheciam o que neles deviam recear e temer, cegando-os São José com a mesma luz de seus olhos, encobrindo o seu e o nosso Encoberto com o descobrir.

Assim desempenhou o grande santo a obrigação que tinha de encobrir e provar o nome de encoberto no novo rei nascido no seu dia; mas ainda lhe falta, ou nos falta, uma maior consideração e vigilância deste seu empenho. O ódio, a emulação, a cautela, o receio de perder o ganhado em Portugal, que tinham os reis estranhos, a grandeza do poder e a doçura do possuir, podia lisonjear e adormecer todo este cuidado; mas da nossa parte, e em nós, os portugueses, além da dor do perdido, estava com os olhos abertos ao remédio o amor, o desejo e a necessidade. O amor, ainda que é cego para ver, é lince para adivinhar; o desejo é um afeto sempre ardente e inquieto, que não sabe sossegar um momento; sobretudo, a necessidade da redenção, da liberdade, e de rei natural, era a que mais apertava os cordéis a este tormento, e tinha com a soga na garganta todos estes afetos. E como podia ser que, sendo eles tão vigilantes, e tendo sempre o direito da corroa, e a pessoa do rei a quem pertencia diante dos olhos, de tal sorte a encobrisse S. José, que a ninguém viesse ao pensamento ser ele o que o havia de recuperar? Mas em encobrir o nosso Encoberto neste grande perigo de o declararem as evidências ou conjecturas de alguns destes afetos, mostrou o santo quão alta e delicadamente observou as obrigações do ofício de o guardar: Custos nati regi s - equivocando milagrosamente um rei com outro rei, e encobrindo um vivo com outro morto. Perdeu-se, ou morreu, na batalha de África el-rei Dom Sebastião, e puderam tanto as saudades de um rei, que se tinha perdido a si e a nós, que, sem se divertirem aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e vinda, a nossa redenção, e este foi o altíssimo conselho com que São José, debaixo das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto o rei futuro e vivo. Não vemos conservar-se vivo o fogo, debaixo das cinzas que o encobrem? Pois, assim conservou e encobriu São José a vida de el-rei, que Deus guarde, debaixo das cinzas de el-rei D. Sebastião defunto. É o que diz expressamente Isaías no capítulo 61. Promete Deus ali de alegrar os tristes, de consolar os desconsolados, de libertar os cativos, e conclui que pelas cinzas lhe dará a coroa: Ut mederer contritis corde, et praedicarem captivis indulgentiam: ut consolarer omnes lugentes - e, finalmente - et darem eis coronam pro cinere[13]. - Assim estava Portugal triste, assim estava desconsolado, assim estava cativo, e assim lhe prometia São José a coroa perdida, debaixo das cinzas do rei morto reputado por vivo, e assim conservava vivo e encoberto aquele que verdadeiramente havia de restituir aos tristes, desconsolados e cativos a coroa perdida. De maneira que, encoberta a verdade debaixo do engano, a esperança debaixo da desesperação, a vida debaixo da morte, e a coroa debaixo das cinzas, aos príncipes estranhos, que tudo isto tinham por riso, não lhes dava cuidado, o remédio; e os vassalos, amigos e naturais, que o tinham, pouco menos, quase por fé, com milagrosa providência, enganada a sua dor, e o seu amor, o seu desejo e a sua necessidade, se consolavam e animavam da falsa e equivocada esperança, até que a verdade, debaixo dela encoberta, ao tempo destinado pelo céu, lhe trouxe a felicidade que hoje logramos.

§ IV

Qual foi a razão por que ordenou Deus que o Libertador que havia de ser de Portugal se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome de Libertador, senão pelo nome de Encoberto? Joás, rei de Israel, e João, rei de Portugal. A bênção daquele que apareceu na sarça, cumprida em São José, e a restauração de Portugal.

Certo que ponderar cabalmente esta felicidade será causa de não faltar nunca Portugal ao eterno agradecimento a São José. Que uma vida - não sejamos ingratos, por não saber o que devemos a Deus - que uma vida, em que estavam fundadas as conseqüências que hoje se logram, apesar da emulação de dois reis, debaixo de sua mesma jurisdição se conservasse! Que nasça a décima-sexta geração de Portugal tão esperada, e que, sendo décima-sexta por três vias, nem o amor dos naturais, nem os ciúmes dos estranhos em trinta e sete anos o descobrisse! Vivo, apesar de tantas advertências políticas; encoberto, apesar de tantas evidências manifestas! Grandes milagres da providência divina, e este segundo, a meu ver, ainda maior. E, se não, pergunto: Qual foi a razão por que ordenou Deus que o Libertador que havia de ser de Portugal se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome de Libertador, senão pelo nome de Encoberto? A razão foi porque maior milagre da Providência era conservá-lo encoberto, que fazê-lo libertador. Fazê-lo libertador, foi deliberarem-se os homens a uma coisa muito útil; conservá-lo encoberto, foi cegarem-se os homens a uma coisa muito manifesta; e maior milagre é encobrir evidências ao entendimento, que persuadir conveniências à vontade. O que todos ponderam, o que todos admiram, o de que todos fazem maior caso, é que se unissem e concordassem as vontades de todo um reino, para fazer o que fizeram. Muito foi, mas, bem considerado, não foi muito, porque, que muito que as vontades dos homens se persuadissem a uma coisa tão útil e tão honrosa, como ter reino, ter rei, ter liberdade, viver sem cativeiro e sem opressão? Porém, que o autor felicíssimo de todo este bem nascesse e vivesse entre nós tão retratado pelos oráculos divinos e ainda nomeado pelo próprio nome, e o tivesse Deus encoberto, sem que o amor nem a emulação, que são os dois afetos mais linces, o descobrissem! Que o vissem os olhos, e que guardasse segredo o entendimento! Que suspirassem os desejos, e que não bastassem as maiores advertências! Dissimulado a evidências, e encoberto a olhos vistos! Este é o maior milagre, esta a maior maravilha, mas agora exercitada, e muitos séculos antes já ensaiada: por quem? Pelo autor da mesma proteção, São José.

Conta o texto sagrado, no quarto Livro dos Reis, capítulo onze, que em uma ocasião quiseram tirar a vida tirânica os herdeiros do sangue real de Israel ao menino Joás; porém, que Josabá o livrou do perigo, e o criou escondidamente: Abscondit eum, ut non interficeretur[14] - até que, passados alguns anos, os nobres do povo se uniram, e todos com as armas nas mãos entraram no paço real, e, impedindo as guardas em um sábado, aclamaram por rei a Joás, e o meteram de posse do reino que lhe pertencia, lançando do paço a Atália, uma senhora que então governava. Desta maneira refere o texto este caso, e bem se vê que é tão próprio do que sucedeu em Portugal que, se ao nome de Joás se mudara o s em m, se pudera trasladar este capítulo, e escrever-se em nossas crônicas. Bem está: mas quem fez isto? A quem se deve esta façanha? Quem há de levar a glória desta maravilha? Quem? São José. Diz Isidoro Isolano que Josabá, a cuja indústria deve sua vida e restituição Joás, foi figura de São José, esposo da virgem: Joseph profecto in Jozaba praefiguratus est, quae Joas infantem clam nutrivit et aluit, ac regem Israel tandem constituit. - Hei de construir as palavras ao pé da letra, para maior glória de São José, e maior evidência do nosso caso. - Joseph profecto in Jozaba praefiguratus est: Verdadeiramente São José foi figurado e representado em Josabá: Quae Joas infantem clam nutrivit et aluit: que guardou ao infante Joás vivo e encoberto: Ac regem Israel tandem constituit: e, finalmente, o fez rei de Israel, metendo-o de posse do reino que lhe tocava. - E não é isto mesmo o que fez São José com o rei e reino de Portugal? Nem o caso pode ser mais próprio, nem eu quero dizer mais nesta matéria.

Estas são as obrigações em que São José tem empenhado a Vossa Majestade, senhor, e as conseqüências delas são que, assim como São José não só foi salvador do Salvador, senão também do mundo, assim não foi só salvador do nosso libertador, senão também do reino libertado. Espero em Deus que o hei de provar literalmente. - Benedictio illius qui apparuit in rubo, veniat super caput Joseph (Dt. 33, 16): A bênção daquele que apareceu na sarça desça sobre José. - Esta bênção foi lançada ao patriarca José, e diz o Pelusiota, e outros, que se cumpriu em São José, Esposo da Virgem. E qual foi a bênção daquele que apareceu na sarça a Moisés? Ele mesmo o disse: Vidi afflictionem populi mei, et descendi ut liberem eum (Êx. 3, 7 s): Vi a aflição de meu povo, debaixo do poder de um rei estranho, e desci do céu a libertá-lo. - Pois, se a bênção do que apareceu a Moisés na sarça é ser libertador do povo oprimido do poder de um rei estranho, e esta bênção se cumpriu em São José, Esposo da Virgem, digam-me agora os historiadores quando se cumpriu esta bênção, senão na restauração de Portugal. Viu o santo as aflições deste povo verdadeiramente seu, e desceu do céu a libertá-lo, guardando com particular providência a vida do nosso felicíssimo libertador, como fez à de Cristo, segundo a proteção que tomou em um e outro nascimento: Custos nati regis - que foi o fim com que se desposou com a Virgem: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.

§ V

Quando se começou a celebrar São José no Império de Cristo? Conclusão: deve o Reino de Portugal tomar solenemente a São José por particular advogado e protetor de sua conservação e aumentos.

Tenho acabado o sermão: de todo ele quisera tirar somente uma coisa, queira o Senhor seja tão bem recebida nos ânimos de todos, como é a todos necessária e importantíssima. O que concluo de todo este discurso é que deve o Reino de Portugal tomar solenemente a São José por particular advogado, e protetor de sua conservação e aumentos. A razão que tenho para isto é a mais eficaz que pode ser: querer Deus que seja assim, nem nós devemos querer outra coisa. Sonhou el-rei Faraó que haviam de vir a seu reino aqueles catorze anos de vária fortuna, e dizendo-lhe que importava prevenir-se de algum varão de grande prudência, que superintendesse à conservação e remédio do reino: Placuit Pharaoni consilium (Gên. 41, 37): Contentou o conselho ao rei - e, voltando-se para José, disse: Numquid sapientorem et consimilem tui invenire potero (ibid. 39)? Porventura, José, posso eu achar algum que seja mais sábio, mais prudente, e em cujas mãos e conselho esteja mais segura minha monarquia? - O cetro e a coroa ponho debaixo do vosso patrocínio: mandai, ordenai, despendei não como vassalo, mas como pai. O mesmo digo no nosso caso.

Isidoro de Isolanis, já acima alegado, autor que há muitos anos que escreveu, admirando-se muito de que em seu tempo não fosse celebrado na Igreja o glorioso São José, conclui assim: Suscitabit Dominus Sanctum Joseph ad honorem nomini sui, caput et patronum peculiarem Imperii militantis Ecclesiae: Esteja embora esquecido por agora São José, e não seja sua memória tão celebrada como merece, que Deus levantará este grande santo a seu tempo, para que seja particular padroeiro do seu império na Igreja, militante: Patronum peculiarem Imperii militantis Ecclesiae. - Duas coisas havemos de saber para entendimento destas palavras: uma, quando se começou a celebrar São José; outra, qual é no mundo o império de Cristo. O tempo em que se começou a celebrar São José foi pontualmente depois da perda de el-rei Dom Sebastião, de triste memória, e antes da felicíssima restituição à coroa de el-rei Dom João, nosso Senhor, para que, posto entre a ruína do reino e o remédio, compadecido da ruína, a remediasse. E o império de Cristo, qual é? O mesmo Senhor foi servido de no-lo explicar quando disse a nosso fundador, o senhor rei Dom Afonso Henrique: dolo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire: Quero em vós, e em vossa descendência, estabelecer o meu império. - Pois, se Deus levanta no mundo a São José, quando quer levantar a Sua Majestade por rei, se o império de Cristo na Igreja militante somos nós, e São José há de ser particular padroeiro deste império, que resta, senão que efetivamente se conclua de nossa parte, que é o constituir e reconhecer com pública solenidade a São José por protetor particular do Reino de Portugal, e sua conservação, dizendo a este José o que os egípcios disseram ao outro: Salus nostra in manu tua est: respiciat nos tantum Dominus noster, et laeti serviemus regi[15]?

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[1] Estando Maria, mãe de Jesus, desposada com José (Mt. 1, 18).

[2] Este é o meu corpo (Mt. 26, 26).

[3] Bocarro, in Anacephaleosim Reg. Lusit.

[4] Depois da sua morte, os filhos de Israel cresceram e se multiplicaram como os renovos das árvores, e mui possantes encheram a terra (Êx. 1, 6 s).

[5] Nós somos doze irmãos: o mais pequeno está com nosso pai, o outro já não está em cima (Gên. 42, 13) segundo tradução do próprio Vieira.

[6] Um dia diz uma palavra a outro dia (SI. 18, 3).

[7] Não temes receber a Maria tua mulher (Mt. 1, 20).

[8] Eis que uma virgem conceberá, e parirá um filho (Is. 7, 14)

[9] Tu verdadeiramente és um Deus escondido, o Deus de Israel, o Salvador (Is. 45, 15).

[10] O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra (Lc. 1, 35).

[11] Onde está o rei dos judeus, que é nascido (Mt. 2, 2)?

[12] Os olhos deles estavam como fechados, para o não conhecerem (Lc. 24, 16).

[13] Para curar os contritos de coração, e pregar remissão aos cativos; para consolar a todos os que choram, e dar-lhes coroa por cinza (Is. 61, 1 ss).

[14] Escondeu-o, para que o não matasse (4 Rs. 11, 2).

[15] A nossa conservação está na tua mão: atenda-nos ao menos nosso senhor, e alegres serviremos ao rei (Gên. 47, 25).