Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão nas Exéquias da Rainha, do Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. XI Erechim: EDELBRA, 1998.

PALAVRA DE DEUS EMPENHADA

SERMÃO NAS EXÉQUIAS DA RAINHA

N. S. D. Maria Isabel de Sabóia, que pregou o P. Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Majestade, na Misericórdia da Bahia, em 11 de setembro, ano de 1684.

Vão emendados nesta impressão os erros intoleráveis da primeira, e mais declaradas algumas coisas que então se entenderam mal, e também deixada alguma. aue ainda agora corria o mesmo risco.

Mortua est ibi velaria, et sepulta in eodem loco. Cumque indigeret aqua populus: cum que elevasset Moyses manum, percutiens virga bis silicem, egressae sunt aquae largissimae[1].

§ I

A morte de Maria, irmã de Moisés, e a morte de D. Maria Isabel de Sabóia, rainha de Portugal. Assunto do sermão: As grandes faltas que padeceu o povo com a morte da Rainha, e o grande remédio com que se restaurou depois da sua morte.

Eu fui aquele - muito alta e muito poderosa Rainha, e senhora nossa, hoje tanto mais alta e tanto mais poderosa, quanto vai da terra ao céu; do corpo,que se resolve em cinzas, ao espírito; deste desterro, à verdadeira pátria; e do reino e coroa mortal, à imortal e eterna - eu fui aquele que preguei os primeiros anos do reinado de Vossa Majestade, não em voz, mas em papel, porque mo não permitiu então a enfermidade. Eu sou o mesmo - grande lástima é, que vivam mais os vassalos, que os reis - e eu sou o mesmo que torno a pregar hoje o fim dos mesmos anos, mal ouvido também, e quase sem voz, porque a levou a idade. Em uma ação mudo, em outra pouco menos, dignas por certo ambas de se declararem melhor com o silêncio; aquela pela grandeza da matéria, esta pelo excesso da dor. Suprirá, porém, ó alma por tantos títulos gloriosos, o muito que no céu cantam à Vossa Majestade os Anjos, e o pouco que eu na terra posso dizer aos homens.

Mortua est ibi Maria, et sepulta in eodem loco[2]. Fala este texto de Maria irmã de Moisés, nome singular e único desde o princípio do mundo até a reparação dele, porque em espaço de quatro mil anos, nem nos dois mil da lei natural, nem nos dois mil da lei escrita, houve outra que se chamasse Maria. Tal é, com mais soberana antonomásia, a sereníssima Maria, rainha que foi e será sempre nossa. Tão única entre as que coroou o merecimento, ou fortuna, que nem o natural, nem o escrito, nem os dotes de que as enriqueceu a natureza, nem as cores com que as retrataram as histórias lhe poderão tirar jamais a singularidade de fênix. Mas como não basta o ser fênix para escapar da morte: Mortua est Maria[3].

Mortua est ibi[4]: Morreu ali. - E onde? Ibi: às portas da Terra de Promissão, que é o passo onde a morte espera, e costuma tomar os predestinados. Ibi: no deserto de Siri, não na cidade, senão no campo. Ibi: em um lugar chamado Cades, que quer dizer mutata. Estas foram as duas mudanças que fez primeiro a doença, e depois a morte. A doença mudou a casa, a morte mudou tudo.

Et sepulta in eodem loco: E foi sepultada Maria no mesmo lugar[5]. -Um só lugar bastou para dar sepultura à maior princesa de Israel; mas uma rainha da monarquia de Portugal não cabe em um só sepulcro. Já se lhe multiplicaram mausoléus na Europa; agora, com o que temos presente, se continuam na América; depois se seguirão os da África, e porque não tem mais partes o mundo, serão os da Ásia os últimos. Diga-se daquela Maria: Sepulta est in eodem loco - e nós digamos com verdade, o que já se disse por lisonja: Jacere uno non poterat tanta ruina loco.

Vai por diante o texto, e crescem as maravilhas: Cum que indigeret aqua populus: Morta e sepultada Maria, faltou a água ao povo - porque no mesmo ponto se secaram e sumiram as fontes, como se sepultassem com ela. O maior milagre que se viu na peregrinação dos filhos de Israel, foi que os seguia uma penha, da qual manavam fontes perenes, de que todos bebiam: Bibebant de consequente eos perra (1 Cor. 10, 4) - e estas foram as fontes que agora pararam e se sumiram. Mas, por que não antes, nem depois, senão agora? Respondem os intérpretes mais antigos, segundo as tradições daquele tempo, que esta água milagrosa foi concedida no deserto pelos merecimentos e orações de Maria. E quis Deus que na sua morte faltasse a mesma água, e padecesse sede o povo: Cum que indigeret aqua populus - para que todos conhecessem a quem deviam tão singular benefício. Oh! se Deus revelasse a Portugal os benefícios que lhe fez, e os males de que o livrou pelos merecimentos e orações de quem ali está sepultada! É certo, que se foram grandes os sentimentos na sua morte, muito maiores seriam as saudades da sua vida. Notável caso foi que àqueles mesmos homens, a quem o maná causava fastio, a morte de Maria causasse sede! Mas esta é a ingrata condição do natural humano: sentir mais o que perde do que estimar o que logra. Por isso permitiu Deus que perdêssemos o bem que tínhamos, para que o conhecêssemos melhor na falta dele.

Esta falta, porém, e esta perda tão grande, teve porventura naquele caso, e poderá ter no nosso, algum remédio ou reparo? Sim: muito pronto, e igualmente milagroso: Cum que elevasset Moyses manum, percutiens virga bis silicem, egressae sunt aquae largissimae. - Assim como a morte, com o mesmo golpe com que tirou-vida a Maria, secou as fontes, assim a vara de Moisés, dando dois golpes em uma pedra, fez que brotassem outra vez com maior abundância. De sorte que tão fora esteve a perda ser irreparável, que antes se restaurou e melhorou com grandes vantagens. E para que fosse maior a maravilha, e maior a propriedade do nosso caso, consistiu todo o remédio de uma e outra perda em quê? Em se dobrarem e se repetirem os golpes: lá - como diz o texto - em uma pedra; cá - como depois veremos - em um Pedro: Percutiens virga bis silicem, egressae sunt aquae largissimae.

Esta foi a grande falta que padeceu o povo com a morte de Maria, este foi o grande remédio com que se restaurou depois da sua morte, e esta será a grande matéria do presente discurso, dividido também duas partes. Na primeira parte veremos as grandes causas que tem a nossa dor na morte de Sua Majestade, para a chorar, como devemos. Na segunda, os grandes efeitos que deixou a mesma morte à nossa consolação, para enxugar as lágrimas. Lá primeiro se secaram as fontes, e depois se abriram; cá primeiro se abriram, e depois as secaremos. Deus nosso Senhor, que, permitindo a perda, dispôs juntamente a consolação dela, se sirva de me dar a graça e alento necessário para poder ser ouvido em uma e outra: Ave Maria.

§ II

Os notáveis extremos da dor de Sua Majestade, el-rei. Abraão e a dupla sepultura de Sara. Por que são decentes e decorosas as lágrimas de el-rei, não só choradas, mas ouvidas? A morte indigesta de Abel. Grande dor em grande coração não a digere o tempo. A água do lado de Cristo, e a fineza das pedras no dia de sua morte.

Mortua est Maria, et sepulta. - Querendo Jeremias chorar as perdas da sua pátria, pediu à sua cabeça que desse lágrimas a seus olhos: Quis dabit capiti meo aquam, et oculis meis fontem lacrymarum[6]? E de que fonte melhor, pergunto eu, de que fonte melhor podem tomar a corrente as nossas lágrimas, que começando também da nossa cabeça? Só imitando a nossa dor a de Sua Majestade, que muitos anos viva, podemos chorar dignamente tamanha perda. O mortua est Maria pertence só à rainha que está no céu; o sepulta tanto se pode aplicar a uma majestade como a outra, porque ambas viu a nossa corte sepultarem-se no mesmo dia. Não há sepultura mais cerrada, mais triste, mais escura, que o aposento do paço a que el-rei se recolheu com a sua dor, sem permitir nem um resquício ao menor raio de sol. A rainha sepultada morta, o rei sepultado vivo. Quando Sara passou desta vida, pediu Abraão ao senhor da terra, em que vivia peregrino, lhe quisesse dar uma sepultura com duas covas, para enterrar- a sua defunta: Ut det mihi speluncam duplicem, ut sepeliam mortuum meum (Gên. 23, 8 s.). Pois, se a morta era uma só: mortuum meum - por que pede Abraão não uma, senão duas covas, não uma, senão duas sepulturas: speluncam duplicem? - Porque Abraão amava com grande extremo a Sara sua esposa, e, como a viu morta, pedia uma sepultura para ela, outra para si. A morta era uma, e as sepulturas haviam de ser duas, porque os sepultados também haviam de ser dois. Sara sepultada como morta, e Abraão sem Sara também sepultado como vivo, mas sem vida. E se Abraão vivia sem Sara, morta Sara, como podia deixar de se sepultar Abraão? A morte abriu a primeira cova, o amor abriu a segunda: speluncam duplicem - uma para se enterrar Sara morta, outra para Abraão se sepultar vivo. Que pouco disse quem chamou ao amor tão forte como a morte: Foi-tis ut mors dilectio[7]! - A morte sepulta os que matou, o amor sepulta sem matar, que é gênero de morrer mais forte, mais duro, mais triste.

Nesta forçosa e não-forçada sepultura - a que o amor, se é amor, sem respeitar cetros nem coroas, condena os vivos - notáveis foram os extremos da dor de Sua Majestade, que Deus guarde, e não só notáveis, mas notados. Quer o cerimonial dos políticos modernos que não sejam lícitas aos reis em semelhantes casos mais que as lágrimas surdas, sem que a dor se ouça em voz, como excesso menos decoroso à majestade ou serenidade real. E como as paredes de palácio são de vidro, esta nota, por mais que fosse interior, se viu lá, e passou o mar em algumas cartas. Mas, se a mesma censura viesse à Bahia por apelação, eu prometo que iria de cá mais bem sentenciada. Os textos são de tal autoridade, que os não poderá negar nenhum jurista cristão, nem político, se o for.

Seja o primeiro o do mesmo Abraão, cujo sentimento ou fineza não acabamos de ponderar. Sepultada Sara, diz a História Sagrada que Abraão se foi meter na sua segunda cova, para chorar e prantear de mais perto o vivo a morta, e o sepultado a sepultada: Venit Abraham ut plangeret et fleret eam (Gên. 23, 2). - Note-se muito a diferença das palavras e a distinção dos afetos. O plangeret é prantear, e significa vozes; o fleret é chorar, e significa lágrimas: e primeiro foram as vozes que as lágrimas: ut plangeret et fleret - porque a boca está mais perto do coração que os olhos. Pela boca começou a respirar a dor, depois subiu aos olhos a se desafogar. Era tão heróico o valor, e tão valente o coração deste grande homem, que não duvidou tirar a vida com a própria espada, e ao próprio filho, com os olhos enxutos. E se a mesma Escritura, depois de contar esta prodigiosa façanha do amor natural, achou que os dois afetos, do prantear e chorar na morte de Sara, nem enfraqueceram a fama do valor de Abraão, nem fizeram dissonância às suas cãs, com que justiça, se não for desumanidade, se podem notar ou estranhar os mesmos afetos, sendo a causa igual, em tão menores anos?

Dirão os políticos que, posto que Abraão fosse tão grande homem, não era rei. Mas, para confutar e confundir a vaidade desta resposta, ouçam outra vez - se crêem nela - a mesma Escritura. O rei mais valoroso que houve no mundo, e o mais parecido ao nosso, foi Davi. Não o podemos provar com os gigantes, porque já os não há; prova-se porém - como o mesmo Davi o provou - com o desprezo e arrojamento às feras mais bravas, ou no corro, ou no bosque. E que fez Davi na morte de Abner? Não pode haver melhor texto: Levavit rex David vocem suam, et flevit (2 Rs. 3, 32): Levantou el-rei Davi a voz, e chorou. - O rei de maior coração foi Davi, e o maior coração de rei foi o seu, porque foi semelhante ao coração de Deus: Inveni virum secundum cor meum[8]. - Pois, se no rei de maior coração e de maior valor, foram decentes e decorosas as lágrimas, não só choradas, mas ouvidas: Levavit rex vocem, et flevit - se isto fez o maior rei, sendo a causa tanto menor, que devia fazer o nosso, na maior de todas? Quem lhe quiser buscar escusas à dor, tome as medidas à causa.

Uma só causa foi muito para notar nos extremos desta dor, e é a que eu agora notarei. Noto que, durando seis meses a doença da rainha, sempre com o desengano de que era mortal, não bastasse tanto tempo para que a dor de el-rei

se fosse digerindo pouco a pouco, como costuma, antes no fim estivesse tão crua e tão viva, que rompesse em tão notáveis extremos. A primeira morte que houve no mundo, que foi a de Abel, chamou sentenciosamente S. Basílio de Selêucia: Indigestam mortem: morte indigesta. E por que foi indigesta a morte de Abel? Porque no mesmo dia o viram seus pais são e morto. E nos tais casos não é muito que a dor súbita, e não prevenida, cause extraordinários efeitos. Porém, quando o tempo, que é a Hema de todas as dores, a não digere, não pode haver maior nem mais provado argumento, tanto da grandeza da dor como da grandeza do coração, que a não digeriu. Grande dor em grande coração, não a digere o tempo.

Quando o golpe da lança abriu o coração de Cristo, saiu dele sangue e água: Exivit sanguis et aqua (Jo. 19, 34). - Esta água, está definido de fé que não foi algum outro humor da mesma cor, senão verdadeira água elementar, como a que chove das nuvens e corre das fontes. Mas donde lhe veio ao coração de Cristo esta água, quando entrou lá, ou que água foi esta? Os que mais esquisitamente alegorizam o mistério, dizem que foi a água do dilúvio, porque sentiu tanto Deus aquela perda do gênero humano, como se a mesma água, que alagava o mundo e afogava os homens, lhe penetrasse o coração[9]. Assim o diz expressamente o texto sagrado, falando do mesmo dilúvio e do mesmo coração: Tactus dolore cordis intrinsecus (Gên. 6, 6): que foi tal então a dor de Deus, que não só lhe chegou ao coração, mas ao mais interior, ao mais íntimo e ao mais intrínseco dele: Dolore cordis intrinsecus. - E esta é a razão por que o sangue saiu primeiro, e a água depois - correspondendo admiravelmente um texto a outro: o sangue primeiro, porque estava na parte superior do coração; a água depois, porque estava no fundo, e na parte mais intrínseca: intrinsecus. - Agora saibamos quanto tempo passou, ou quantos tempos passaram entre a perdição do mundo, que foi no dilúvio, e a reparação do mesmo mundo, que foi na cruz. Segundo a mais verdadeira e certa cronologia, entre o dilúvio e a cruz passaram pontualmente dois mil e trezentos e oitenta anos, e em todo este tempo nem aquela água no coração de Cristo se sumiu, ou secou, ou se diminuiu, porque se conservou toda; nem se congelou, porque correu líquida; nem se alterou na cor ou na substância, porque saiu tão clara que se pôde ver e distinguir que era verdadeira água. Pois, se os anos e os séculos que tinham passado eram tantos, que se contavam a mais de milhares, como estava a água tão fresca e tão viva; como estava tão inteira, e em seu ser, sem se alterar um ponto, nem se digerir? Porque a água era a causa, e representava a dor, e a dor era daquele coração, que ela penetrou até o mais interior e mais íntimo: Tactus dolore cordis intrinsecus. - Era dor de Deus em coração de Deus, e dor grande em coração grande, nenhum tempo a digere.

Assim se não digeriu no grande coração do nosso monarca a sua grande dor, antes esteve tão fora de se digerir ou diminuir com o tempo que, tendo andado tão fino em todo o tempo da doença, na morte foi muito maior a sua fineza. Ainda estamos no Calvário. Mostraram grande sentimento na morte de Cristo o sol, e também as pedras: mas qual ou quais com maior fineza, as pedras, ou o sol? Não há dúvida que as pedras, porque o sol começou a se eclipsar quando pregaram a Cristo na cruz, e no ponto em que expirou cessou o eclipse; porém as pedras, quando o Senhor expirou, então é que se quebraram. Pois, esta foi maior fineza? Sim, porque o sol mostrou a sua dor enquanto Cristo padecia; as pedras, quando já não podia padecer. E muito maior fineza é padecer com o impassível que padecer com quem padece. No primeiro caso repartiu-se a dor entre Cristo e o sol; no segundo não se repartia, toda era inteiramente das pedras, e toda somente sua. Tal foi a segunda dor de Sua Majestade, a qual aonde havia de acabar, ali se obrou. Padecia com quem já não podia padecer, e quando parece que havia de ser meeiro na impassibilidade da sua morte, o amor o fez herdeiro universal das penas que acabaram com a mesma vida, padecendo as herdadas e mais as suas. Grande é aquele sentimento que só pode achar semelhanças no insensível. A dor das pedras foi toda sua, a de el-rei toda sua, e toda como sua: como própria do seu coração, como própria do seu juízo, como própria do seu amor, como própria da sua mesma pessoa, e de quem Sua Majestade é. No sentimento semelhante ao sol, portou-se el-rei como rei; na fineza semelhante às pedras, portou-se el-rei como Pedro: Et petrae scissae sunt[10]

§ III

A suma santidade da Rainha e o Sancta Sanctorum. O prodigioso testamento de Sua Majestade. A grandeza e a igualdade de ânimo da rainha diante do sucesso de Sabóia, a mais alta prova da constantíssima e inexpugnável virtude daquele soberano espírito.

Temos posto diante dos olhos à nossa dor e o exemplar soberano que devemos imitar: nele igual a causa, enquanto esposa, em nós também sem igual enquanto rainha. É certo que para assunto tão alto, tomara eu estar melhor instruído de notícias particulares, como quem se acha tão longe. Mas valer-me-ei do testemunho de quem só as podia ter mais certas, mais interiores, e de mais perto. Muitas vezes ouvi ao confessor da rainha, nossa senhora, estas palavras formais, bem sabidas e repetidas em toda a corte: - Não sabe Portugal qual é a rainha que Deus lhe deu: deu-lhe uma rainha santíssima, deu-lhe uma rainha prudentíssima. - O trono dos reis tem o seu assento entre Deus e os homens: acima dos homens, de quem são superiores, e abaixo de Deus, de quem são súditos. Para servir e agradar a Deus, o que mais lhes importa é a santidade: para reger e governar os homens, o que mais hão mister é a prudência. E estas duas prerrogativas tão singulares, uma natural, outra sobrenatural, não só estavam juntas naquele capacíssimo espírito, mas sublimadas uma e outra a tal eminência de perfeição, que as não sabia declarar quem só as podia conhecer, com menor encarecimento que o do grau superlativo: santíssima, prudentíssima.

Começando pela santidade, o lugar mais santo e mais sagrado do Templo de Salomão era o chamado Sancta Sanctorum. Ali estava a Arca do Testamento, ali as Tábuas da Lei, ali a Vara de Moisés, ali a Uma do Maná, ali, sobre as asas de querubins, o Propiciatório em que Deus assistia e falava: tudo santo, tudo angélico, tudo divino. E estas coisas tão misteriosas e tão sagradas via-as o povo? Nem o povo, nem os mesmos ministros do Templo as podiam ver, porque o Sancta Sanctorum estava coberto e cerrado com um véu espesso, dentro do qual só podia entrar o Sumo Sacerdote. No dia, porém, em que morreu o Senhor do mesmo Templo: Velum templi scissum est in duas partes a summo usque deorsum (Mt. 27, 51): Rasgou-se o véu do Templo de alto abaixo em duas partes - e todas aquelas coisas tão santas e tão secretas, que ninguém via, então ficaram patentes e manifestas a todos. - Tal foi, ou tal sucedeu à santidade da nossa rainha. Como o primeiro atributo da virtude é encobrir-se e ocultar-se, na vida foram menos conhecidas as perfeições da sua santidade, porque só o sacerdote entrava no Sancta Sanctorum, só o confessor penetrava os segredos, e sabia os interiores dela. Porém, tanto que a morte rompeu o véu, e se viu o que não se via, todos a conheceram, todos a aclamaram, todos a canonizaram por santa.

Padecem as virtudes debaixo dos aparatos e resplandores da majestade o mesmo que as estrelas debaixo dos raios do sol: de dia estão encobertas, e não se vêem; mas, tanto que o sol se meteu no ocaso, então se vê e se observa com admiração e sem número o que dantes não se via nem se contava. Estes são os efeitos da morte. Lá disse o poeta: Mors sola fatetur quantula sint hominum corpuscula[11]. - O que cobre a terra mostra quão pequenos são os corpos; o que descobre o céu, quão grandes são as almas. - Assim o mostrou o prodigioso testamento de Sua Majestade, de que cá nos chegaram os ecos, em que tantas são as virtudes que resplandecem quantas as cláusulas que se lêem. Escreveu ali a morte o que tinha historiado a vida, e o que recopilou o testamento no fim e foi o índice de todas as suas obras. Os testamentos, que são as últimas vontades dos que morrem, ordinariamente são pios, mas nem por isso argúem grande virtude, porque são voluntários por força. Nos que viveram mal, e querem morrer bem, são retratações da vida; nos que sempre viveram bem, são retratos dela. Os testamentos dos ricos mostram os tesouros que adquiriram; os dos justos, as virtudes que exercitaram. Tal foi o testamento de Sua Majestade, cheio de religião, cheio de piedade, cheio de misericórdia, o qual será eterno na memória dos vindouros, como nas lágrimas de todos os que tal procuradora perderam. Chorarão os pobres, chorarão as viúvas, chorarão os órfãos, chorarão os miseráveis e necessitados de todo o gênero, e até os templos e os altares enriquecidos poderão chorar, se estas lamentações para eles não foram aleluias. Tudo isto exercitava em seus dias a santa e piedosa rainha secretamente, sem saber a mão esquerda o que fazia a direita, sendo o seu quarto de Palácio em Lisboa a primeira Casa da Misericórdia, e a que tem este nome a segunda.

Desta maneira foi santa para com Deus e para com o próximo aquela grande e heróica alma. Mas o que eu sobretudo admiro, é quão superiormente foi santa em si, e para consigo. Um dos maiores caso que tem visto o mundo em muitas idades, foi na nossa o sucesso de Sabóia. Mas ainda foi maior, e mais digna de admiração e assombro, a constância e igualdade de ânimo com que Sua Majestade se portou nele depois de tantos empenhos. Fala Davi não menos que de Deus, e diz que a sua magnificência e a sua virtude se ostenta nas nuvens: Magnificentia ejus et virtus ejus in nubibus (SI. 67, 35). - Pois, nas nuvens a sua magnificência e a sua virtude? Nas nuvens, e não no céu e na terra? Nas nuvens, e não no mesmo e nos outros elementos povoados de tanta multidão e variedade de criaturas? Nas nuvens, e não nos homens nem nos anjos? Sim, porque todas as outras coisas fê-las Deus para que durem e permaneçam; as nuvens fê-las por meio do sol, para que se desfaçam em um momento. Levanta o sol os vapores da terra, condensa-os em nuvens, e que é o que vemos? Tudo o que a imaginação de cada um pode fingir, e ainda mais. Castelos, torres, cavaleiros, gigantes, navios, armadas, arcos de desmedida grandeza, e tudo isto não só relevado, mas dourado, porque o mesmo sol com seus raios, de horizonte a horizonte, tudo cobre e veste de ouro. Mas, assim como estas portentosas e formosíssimas máquinas em um momento se desvanecem e resolvem em nada, assim se desvaneceram e desfizeram todos aqueles aparatos e prevenções tão extraordinárias e tão custosas, com que se haviam de celebrar as esperadas bodas. No caso de Faetonte, diz Ovídio que as areias do Tejo se derreteram, e que o rio, em lugar de levar águas ao mar, levava correntes de ouro: Quodque suo Tagus amue vehit, fluir ignibus aurum[12]. - E isto que antigamente foi fábula, viram os olhos em nossos dias. Saiu do Tejo a armada querenada de ouro, matizando com assombro o azul de ambos os mares; saiu do Tejo carregada de diamantes e pérolas, como se saíra do Indo e Ganges; mas, com o mesmo vento que a levou tão cheia, e a trouxe tão vazia, tudo se desfez em vento. Neste vento, porém, e neste nada, em que se desfez tudo, assim como tinha ostentado os extremos da sua magnificência, assim descobriu os quilates da sua virtude aquele soberano espírito, tão excelso no divino como no humano. Na grandeza de ânimo, com que fez tudo, mostrou a sua magnificência como rainha; na igualdade de ânimo, com que viu tudo desfeito, mostrou a sua virtude como santa: Magnificentia ejus, et virtus ejus in nubibus (SI. 67, 35).

Mas, se a virtude de Sua Majestade se qualificou de santa no que aquele sucesso desfez por fora, muito mais a canonizou no que desfez por dentro. Por fora desbaratou as suas prevenções, por dentro os seus pensamentos. O mais santo homem que houve na sua idade foi Jó, e, vendo em um momento perdido e desbaratado quanto tinha, nenhum abalo fizeram em seu ânimo todas aquelas perdas. Tudo sofreu, não só com paciência e constância, mas com ação de graças a Deus: Dominus dedit, Dominus abstulit. Sit nomen Domini benedictum[13]. - E houve alguma coisa em que Jó se conformasse menos com a vontade divina, e que mais lhe doesse e ferisse o coração? Uma só, e admirável. Cogitationes meae dissipatae sunt, torquentes cor meum (Jó 17, 11): O que me aflige, o que me atormenta, o que me quebra e rompe o coração, é ver dissipados meus pensamentos, e quanto tinha fabricado e pintado neles. - Assim o declara elegantissimamente o Caldeu, vertendo em lugar de cogitationes meae, tabulae meae[14]: as minhas pinturas, as minhas idéias, as minhas fábricas, os meus desenhos. - Quais fossem os pensamentos de Sua Majestade sobre um negócio tão grande, concluído tanto a seu prazer e contentamento, mais se pode considerar que exprimir. Tinha empenhado o desejo, tinha empenhado o amor, tinha empenhado o sangue: na aliança dos parentescos, na união dos estados, na presença e comunicação das pessoas, na coroação de uma casa real, e sucessão de ambas; sobretudo, nas conseqüências e esperanças tão bem-fundadas de grandes felicidades, e no gosto e gostos de as ver e lograr longamente. E que, desarmando em vão todas estas fábricas, e apagando-se ou tingindo-se de negro todas estas pinturas de seus pensamentos, as fábricas as recebesse caídas com tanta igualdade de ânimo, e as pinturas as visse despintadas com tanta serenidade de olhos, e que os tormentos e tormentas que se levantaram no coração de Jó, não fizessem no seu o menor movimento, esta foi a maior, esta foi a mais fina, esta foi a mais alta prova da constantíssima e inexpugnável virtude daquele soberano espírito, mais soberano por santo que por real.

E se buscarmos as raízes a um exemplo tão raro e tão heróico, acharemos que tinha Sua Majestade, dentro do seu mesmo coração, outra oficina, onde estas mesmas fábricas se tornavam a fundir, e recebiam nova forma, que era a oração mental. No meio do ruído da corte e dos concursos do paço, recolhia-se Sua Majestade por muitas horas ao seu oratório como a um deserto, e ali, levantando o espírito sobre todas as coisas cá de baixo, ouvia da boca de Deus, no silêncio da contemplação, aqueles altíssimos desenganos, e via, no espelho da eternidade, aquelas claríssimas luzes, em que o tudo e o nada são da mesma cor, em que o tudo e o nada têm a mesma conta, em que o tudo e o nada têm o mesmo peso, em que o tudo e o nada têm as mesmas medidas: e por isso nenhuma mudança ou variedade das coisas humanas lhe alteravam o coração, tendo-o sempre unido com a vontade divina. E como nesta união da vontade humana com a divina consiste a suma da santidade, e a santidade suma, aqui se fundava o subidíssimo conceito que da perfeição de Sua Majestade tinha seu confessor, venerando-a, não só como rainha santa, mas, em grau superlativo, como santíssima.

§ IV

Como pôde a rainha chegar a tão subido grau de prudência no curso de tão poucos anos? As duas escolas em que estudou a prudência, até se graduar de prudentíssima; a natural e a sobrenatural. A escola de el-rei e a escola de Davi. Com que prova a Escritura a singular prudência de Abigail? Quanto estimava el-rei os conselhos da rainha. Por que diz S. Paulo que Deus não tem conselheiro? A prudência das rainhas nas Escrituras Sagradas. O sol e a lua, espelhos dos reis e das rainhas.

O outro elogio de prudentíssima não necessita de prova nem ponderação, porque foi bem conhecido e admirado de todos. Mas como pôde a rainha, nossa senhora, chegar a tão subido grau de prudência no curso de tão poucos anos? A prudência é filha do tempo e da razão: da razão pelo discurso, do tempo pela experiência. Na nossa rainha foi filha da razão somente. Filha de mãe sem pai, como a sabedoria divina quando se fez humana. Mas como podia isto ser?

Eu acho que teve a rainha, nossa senhora, duas escolas em que estudou a prudência, até se graduar de prudentíssima: uma natural, outra sobrenatural. A primeira escola, sobre seu sutilíssimo engenho, foi a companhia, o trato e a comunicação de el-rei, que Deus guarde. O provérbio antigo dizia: Nube pari[15] - e não houve par tão semelhante - sendo de França e Portugal - como este, que ajuntou a vida, e dividiu a morte. Na agudeza do entendimento, na presteza do discurso, na madureza do juízo, na compreensão dos negócios, no acerto das resoluções, na eleição dos meios e fins, e em todas as partes da perfeição e consumada prudência, não pareciam el-rei e a rainha duas almas, senão uma só. Mais tinham. Sendo duas, como verdadeiramente eram, sem recorrer à transmigração de Pitágoras, parece que talvez trocavam os sujeitos, e por comunicação recíproca se infundiam uma na outra. Aquela discrição, aquela elegância, aquele agrado, e aquele feitiço de palavras, com que todos se levantavam dos reais pés de Sua Majestade, não só consolados, mas cativos, parecia em el-rei participado da alma da rainha. Pelo contrário, aquele valor, aquela resolução, aqueles espíritos varonis e generosos para empreender grandes ações, e levar ao cabo quanto empreendia, pareciam na rainha participados e infundidos da alma de el-rei. E, sendo tal em uma e outra majestade a semelhança dos gênios, e a comunicação recíproca de ambas as almas, ambas grandes, ambas excelentes, ambas de alto e vivíssimo engenho, naturalmente cresceram de sorte, e fizeram tais progressos no exercício e prática de toda a prudência real, que el-rei saiu prudentíssimo, como é, e a rainha prudentíssima, como foi.

Esta foi a primeira escola. A segunda, e mais alta, era a que freqüentava Davi, estudando pelos mandamentos divinos: Prudentem me fecisti mandato tuo[16]. - Da prudência de Davi em tudo o que obrava, ainda sendo muito moço, estão cheias as Escrituras. E diz este grande rei que toda a sua prudência a aprendeu pelos Mandamentos. Mas de que modo? A observância dos Mandamentos é muito boa para não ofender a Deus, para alcançar sua graça, e para ir ao céu; mas para ser prudente nas coisas desta vida? Sim. E dá a razão o mesmo Davi a priori e formalíssima. - Porque eu - diz ele - estudando pelos Mandamentos, soube mais que os doutores e mais que os velhos. - Mais que os doutores: Super omnes docentes me intellexi, quia testimonia tua meditatio mea est[17]. - Mais que os velhos: Super senes intellexi, quia mandata tua quaesivi[18]. - Não se pudera declarar nem provar melhor. A prudência compõe-se de ciência e experiência: a ciência está nos doutores, que a estudam pelos livros; experiência está nos velhos, que a aprendem pelos anos. E porque eu - diz Davi - sem anos e sem livros, estudando só pelos mandamentos, soube mais que os doutores e mais que os velhos, esta foi a arte com que me fiz, ou Deus me fez prudente: Prudentem me fecisti mandato tuo. - Assim, e nada menos, a nossa prudentíssima rainha: como toda a sua aplicação, todo o seu estudo, e todo o seu cuidado se empregava na observância perfeitíssima da lei divina, esta foi a segunda e melhor escola, em que, sem anos e sem livros - sem anos, porque tinha tão poucos; e sem livros, porque só lia os espirituais, e não os políticos - pôde chegar a tão subido grau de prudência. Por isso santa, e por isso também prudentíssima.

Uma só mulher lemos em toda a Escritura laureada com o título de prudentíssima, que foi Abigail: Eratque mulier prudentíssima (1 Rs. 25, 3). - E com que prova a Escritura esta singular prudência de Abigail? Parece que a prova foi feita mais para a prudência da nossa rainha que para a sua. Prova a Escritura ser Abigail prudentíssima só com dizer que Davi - cuja mulher foi - fazia tanto caso de seus conselhos, que em certa ocasião, em que estava mui empenhado, só porque Abigail lhe aconselhou o contrário, e lhe meteu a matéria em escrúpulo: Non erit tibi hoc in singultum, et in scrupulum cordis[19]. - Davi cedera do seu intento, e de todos os que o seguiam, e seguira o conselho de Abigail. E mulher, de cujo conselho fazia tanto caso um rei tão prudente como Davi, que o antepunha ao parecer seu, e de todos os seus, achou a mesma Escritura divina que não eram necessários outros exemplos nem outros documentos, para prova de ser prudentíssima: Eratque mulier illa prudentissima.

Quanto el-rei, nosso senhor, estimasse os conselhos da rainha, que está no céu, e os antepusesse a todos, todos o sabemos. É certo que não sei qual é o maior argumento de prudência neste caso: se da prudência do rei, que tanto estimava os conselhos da rainha; se da prudência da rainha, que tão prudentes conselhos dava a el-rei. Mas, deixando indeciso este grande problema, como não havia Sua Majestade de antepor a todos os outros conselhos, o conselho de quem primeiro se aconselhava com Deus, examinando tão escrupulosamente diante dele o que havia de aconselhar? O imprudente aconselha-se com os homens, o prudentíssimo aconselha-se com Deus. Assim o fazia a prudentíssima rainha: só boa conselheira, porque só bem aconselhada. Adão perdeu-se, porque se aconselhou com sua mulher, aconselhada pela serpente. E el-rei esteve sempre seguro de semelhante perigo, porque se aconselhava com a sua aconselhada por Deus. Por isso, em todas as matérias grandes tomava as últimas resoluções com o seu conselho. Os dos outros conselheiros nestes casos eram para as consultas, o da rainha para os decretos.

Diz S. Paulo que Deus não tem conselheiro: Quis enim consiliarius ejus fuit[20]? - É dito notável, porque consta da Escritura que Deus chamou muitas vezes a conselhos os anjos. Pois, se Deus admitia os anjos aos seus conselhos, como diz S. Paulo que Deus não tem conselheiro? Porque fala o apóstolo dos conselhos de Deus, em que ultimamente se decreta o que há de ser. E os conselhos de Deus, em que se tomam as últimas resoluções, só se fazem entre as Pessoas divinas. Assim se compunha das pessoas soberanas somente o supremo e secreto conselho dos nossos príncipes, em que as últimas deliberações se assentavam: ambos conferindo, a rainha aconselhando, el-rei resolvendo. Nenhum rei de Portugal teve tal conselheiro da puridade.

É famosa questão entre os políticos, se os reis devem ter valido ou não? E ambas as partes se defendem com fortíssimos argumentos. Só Sua Majestade, que Deus guarde, com seu singular juízo soube compor e conciliar esta controvérsia. Seguiu a parte negativa, porque não teve valido; e seguiu juntamente a afirmativa, porque teve valida. Os validos chamam-se primeiros ministros, e, porque são ministros, não devem ser validos. A rainha sim, porque é a primeira, e não é ministro. O ministro aconselha como inferior, a rainha como igual; o ministro como quem serve, a rainha como quem ama; o ministro como quem depende, a rainha sem dependência; ministro como quem pode ter interesses particulares, a rainha como quem tem um só interesse comum, que é o do rei e o do reino. Que havia de ser do reino e povo todo de Israel, e da mesma monarquia dos persas e medos, se, depois de firmados os decretos de el-rei Assuero, não acudisse a rainha Ester? Mas porque acudiu tão confiada e oportunamente, Amã, que era o traidor, foi crucificado; Mardoqueu, que era o leal, foi exaltado: e o povo, que estava inocente, ficou livre. Que seria outra vez do mesmo povo, quando Adonias, por força de armas, quis invadir a coroa que ainda era das doze tribos, se a rainha Bersabé, na mesma hora da conjuração, não atalhara aquela ruína? Mas foi tal a sua prudência e indústria que, excluído sem golpe de espada Adonias, foi coroado Salomão, o mais sábio de todos os reis, e de mui feliz governo. Talvez pode faltar ao rei o calor, como a Davi nos últimos anos, e talvez pode também sobejar, como ao mesmo Davi, na vingança intentada de Nabal Carmelo: se falta o calor, fomenta-o a rainha Abisai; se sobeja, modera-o a rainha Abigail. E de que lhe prestou também a rainha Micol? Ela foi a que por arte lhe salvou a vida das mãos de seu pai Saul, e quando ao rei lhe não podia valer seu grande valor, lhe valeu a prudência da rainha. Finalmente, a prudência pinta-se com um espelho na mão: e que espelho mais puro, mais claro, e mais fiel que aquele em que o mesmo rei parece dois, e é um: Erunt duo in carne una[21]?

Como espelhos dos reis, e das rainhas, pôs Deus no céu um rei, que é o sol, e uma rainha, que é a lua. Assim o dizem todas as letras sagradas e profanas. E a que fim? Para que os reis na terra imitem aqueles exemplares no céu. E quando a rainha é tão prudente como a nossa, quer Deus que nas matérias grandes, e de importância, nenhuma coisa resolva ou faça o rei - como não resolvia, nem fazia o nosso - sem consenso e aprovação da rainha. Declare-nos esta política celestial quem melhor que todos a entende. Para Josué prosseguir a vitória contra os gabaonitas, não só pediu ao sol que parasse, senão também à lua: Sol, contra Gabaon ne movearis, et luna contra vallem Aialon[22]. - Mas, se a Josué, para estender o dia, lhe era só necessária a luz do sol, para que faz a mesma petição e requerimento à lua? Porque entendeu o grande capitão dos exércitos de Deus que uma ação tão grande, e tão nova como aquela, não a faria o rei dos planetas sem consenso e aprovação da rainha. Ao sol pediu a luz para que lha desse, à lua para que o aprovasse e não impedisse. E isto, que só parece moralidade, é fundado em razão muito verdadeira e sólida, porque, se a lua também não parasse, confundir-se-ia totalmente a harmonia dos orbes celestes, e a ordem e governo do universo pereceria. Tanto importa para o bem universal o consenso e união dos dois supremos planetas, e tanto entendeu Josué que lhe não bastava ter só ao sol, se lhe faltasse a lua.

Quem quiser - para que concluamos este discurso - quem quiser avaliar e pesar bem a perda de Portugal na falta da sua tão prudente e tão santa rainha, considere o que seria do mundo se a lua lhe faltasse: Luminare maius, ut praeesset diei; luminare minus, ut praeesset nocti[23]. - O sol fê-lo Deus para o dia, a lua para a noite; e, se faltando a lua, a noite fosse totalmente escura, triste e medonha, como se havia de viver esta ametade da vida? A lua é o lume das trevas, a lua é o alívio das tristezas, a lua o refúgio dos temores, a lua a consolação e remédio de tudo o que o sol, divertido a outro hemisfério, não pode remediar nem suprimir. Oh! quantos trabalhos grandes, não só universais mas particulares, não só públicos mas secretos, tiveram alívio, consolação e remédio por meio da luz, e benignas influências daquele segundo planeta eclipsado, que já nos não há de alumiar: Et luna non dabit lumen suum[24]! O mesmo Deus, que fez o dia e a noite, ao tribunal de sua justiça acrescentou o da sua misericórdia, para que as causas dos miseráveis e aflitos tivessem apelação e recurso. Assim como o tiveram sempre todos - mas já o não podem ter - na misericórdia, na piedade, na clemência, e na indústria tão eficaz e tão viva de quem ali está morta.

Vejam agora se têm bastantes causas de sentir e chorar os que tal rainha ou tal mãe perderam. Lá diz a Escritura que em Débora deu Deus uma mãe ao seu povo: Donec surgeret Debora, surgeret mater in Israel[25]. Os reis de Portugal, por confissão do mundo, não só são reis, mas pais dos seus vassalos. E, posto que a providência e bondade divina nos deixou um tão bom pai, que por muitos anos nos conserve, quem haverá que não chore a falta de tão prudente e piedosa mãe, digna por tudo de eterna memória, de eternas saudades, e de eternas lágrimas? Chore, pois, Portugal, chore o Brasil, chore em ambos os mundos toda a monarquia. E quem haverá de nós, se tem uso de razão, que não chore olhando para aquela sepultura, vendo cortada em flor aquela vida que pudéramos lograr muitos anos; vendo debaixo da terra aquela poderosa intercessora, que nos alcançava os favores do céu; vendo aquele augustíssimo nome, que trazíamos gravado nos corações, escrito em epitáfios; vendo, enfim, a sereníssima Maria de Portugal morta ali e sepultada: Mortua est ibi Maria, et sepulta?

§ V

Os grandes efeitos que deixou a mesma morte de Sua Majestade para enxugar as lágrimas. Os três casamentos e os três divórcios com que a providência divina acudiu ao Reino de Portugal.

Temos visto na morte de Sua Majestade as grandes causas que tem a nossa dor de chorar, posto que não ponderadas com aquela eficácia de razões, nem com aquela energia de afetos, nem com a profundidade de sentimento que merecia tamanha perda. Segue-se neste segundo discurso, ou nesta segunda parte dele, ver os efeitos, também grandes, que deixou a mesma morte à nossa consolação, para enxugar as lágrimas. Agora quisera eu que em todo este teatro se voltara a cena: que os lutos trocassem as cores, que as caveiras se revestissem de vida, que os ciprestes se reproduzissem em palmas, que os epitáfios se convertessem em panegíricos, e que as luzes funestas dessa pirâmide se mudassem em luminárias de ação de graças; porque os que até aqui foram estragos e despojos, agora serão troféus e triunfos, não de outra causa, senão da mesma morte. Corramos a cortina aos secretos da Providência divina, des­cubra-se o que estava encoberto, e vejamos no que vimos o que não víamos.

Desde o dia em que a Rainha, nossa Senhora, entrou em Portugal, até o dia em que partiu para o céu, as coisas de maior vulto que sucederam em todo aquele tempo foram três matrimônios notáveis. Um matrimônio declarado por nulo, um matrimônio contratado, um matrimônio consumado. O matrimônio nulo, foi o do senhor rei D. Afonso, que está em glória; o matrimônio contratado foi o da Alteza Real de Sabóia, que não teve efeito; o matrimônio consumado foi o de el-Rei, nosso senhor, que muitos anos viva. No primeiro esteve o reino enganado, no segundo esteve arriscado, no terceiro esteve desconfiado. E Deus, que tanto ama a Portugal, como desfez este engano, como acudiu a este perigo, e como confiou esta desconfiança? Bendita seja para sempre sua bondade. Assim como os matrimônios foram três, assim os remediou com três divórcios. O primeiro divórcio, no matrimônio nulo, fê-lo o desengano; o segundo divórcio, no matrimônio contratado, fê-lo a enfermidade; o terceiro divórcio, no matrimônio consumado, fê-lo a morte. E que bens ou utilidades para Portugal tirou a Providência divina destes três divórcios? Os três maiores bens, e as três maiores utilidades que podíamos desejar, e as que mais havíamos mister, e agora se conhecem. O primeiro divórcio deu-nos uma princesa herdeira do reino, o segundo divórcio livrou-nos de príncipes estrangeiros, o terceiro divórcio habilitou-nos para ter príncipes naturais na baronia dos reis portugueses. Vejam agora a nossa dor e as nossas lágrimas se têm grandes motivos para se enxugarem.

§ VI

O primeiro motivo de consolação: o fruto do primeiro divórcio: a princesa herdeira do Reino. De que modo se conserva viva na única Isabel a única Maria.

O fruto do primeiro divórcio, que foi a princesa herdeira do reino, e tal princesa, assim é também o primeiro e mais vivo motivo da nossa consolação.Por quê? Porque em Sua Alteza temos outra vez viva a Rainha, nossa senhora, não como ressuscitada, mas como não morta. A proposição parece paradoxa, mas não é menos que do mesmo Autor da vida e da morte: Mortuus est pater ejus, et quasi non est mortuus: similem enim reliquit sibi post se (Eclo. 30, 4): Morreu o pai, e quase não é morto, porque deixou depois de si outro semelhante. - De maneira que, quando o filho que sucede ao pai é semelhante a ele, entre a vida do pai morto e a vida do filho vivo não há diferença mais que um quase: Et quasi non est mortuus. - Se quando a Rainha, nossa senhora, se foi para o céu, nos deixara, ou se não deixara em Sua Alteza, verdadeiramente seria morta. Mas como nos deixou, e se deixou em um original tão vivo de si mesma, a sua morte não foi morte, senão quase morte: Et quasi non est mortua - porque vive na filha semelhante a si, que nos deixou depois de si: Similem enim sibi reliquit post se.

É tão certa esta conseqüência, que se nesta segunda vida de Sua Majestade pudera haver alguma dúvida, não estava a dificuldade na vida da mãe, senão na semelhança da filha. A exceção parece escura, mas a razão é muito clara, porque o que é único não tem primeiro antes de si nem segundo depois de si. E, sendo a Rainha, nossa senhora, um sujeito soberano, tão singular e único em tudo, segue-se que quem não teve semelhante a si não podia deixar semelhante depois de si: Similem sibi post se. -Assim é, ou assim havia de ser, se Deus não renovara em Portugal uma maravilha, que só fez no princípio do mundo. No princípio do mundo, antes de haver Eva, Adão não tinha semelhante a si: Non inveniebatur similis ejus[26]. - E que fez Deus para que Adão, que não tinha semelhante a si, tivesse semelhante? Dividiu o mesmo Adão em duas partes, ou em duas pessoas, e, tirando-lhe do lado, e de suas próprias entranhas a Eva, por este modo maravilhoso fez que o que não tinha semelhante a si, tivesse semelhante a si: Faciamus ei similem sibi[27].

Daqui se infere em singular excelência de Eva que, se Adão não tinha semelhante entre todas as criaturas, também Eva entre todas elas não tinha semelhante. E assim foi. Naquele tempo já estavam criadas no mundo todas aquelas elegâncias da natureza, que não só são as semelhanças da formosura, senão os encarecimentos dela. Nos prados já havia as rosas e açucenas; nas minas já havia os rubis e os diamantes; nas conchas já havia as pérolas e os aljôfares; no céu já havia o sol e as estrelas. Não são estes os maiores encarecimentos da formosura? Sim. Pois, assim como entre todas estas belíssimas criaturas, nem juntas, nem divididas, se achava semelhante a Adão, assim entre todas elas se não podia achar semelhante a Eva. A conclusão é manifesta, porque Eva foi feita para ser semelhante a quem não tinha semelhante, e quem é semelhante a quem não tem semelhante não pode ter semelhante. Tal é hoje em Portugal a filha única daquela mãe também única. Tão única e sem semelhante uma e outra, que quando para todas as outras formosuras sobejavam os encarecimentos, só para a sua se não achavam as semelhanças: Non inveniebatur similis ejus. - Olhe lá de cima a única mãe, e não achará em toda a terra outra semelhante a si, senão a única filha que deixou depois de si: e por isso tão viva nela depois da morte, como se não morrera.

Querendo José que Benjamim ficasse no Egito, replicaram os irmãos pedindo que o deixasse tornar, e alegaram para isso que era filho único, e que sua mãe não tinha outro: Ipsum solum habet mater sua (Gên. 44, 20). - A mãe de Benjamim era Raquel, e Raquel havia muitos anos que era morta. Pois, se era morta, como supõem os irmãos, e dizem que era viva? Porque, ainda que era morta em si, vivia no mesmo filho, que morrendo deixara depois de si. Era Raquel mãe, e era morta: como mãe tinha em Benjamim o filho; e como morta conservava em Benjamim a vida. Assim se conserva viva na única Isabel a única Maria. Viva na pessoa, viva na gentileza, viva na majestade, viva no juízo, viva na discrição, viva na piedade para com Deus, viva no agrado para com os vassalos, viva, enfim, em todas as perfeições e virtudes verdadeiramente reais. Havendo, pois, Deus feito tão grande mercê a Portugal, que nos deu a nossa mesma rainha em duas vidas, antes temos razão de nos alegrar, que de nos entristecer. E se a sua morte não foi morte, senão quase morte: Et quasi non est mortua - responda quando muito ao quase da morte um quase da tristeza: Quasi tristes, semper autem gaudentes[28].

§ VII

O segundo motivo de consolação, fundado no segundo divórcio: estar Portugal livre de príncipes estrangeiros. A diferença que vai de rei nosso a nosso rei. Os reis de Israel. Como se resolveu Portugal a admitir príncipes estrangeiros? O que seria de Portugal no estado presente, com um príncipe estrangeiro jurado, e um rei natural coroado, ambos na mesma corte? Roma, e as discórdias entre César e Pompeu.

O segundo motivo da nossa consolação, fundado no segundo divórcio, foi livrar-nos Deus por este meio de príncipes estrangeiros. Um príncipe estrangeiro, de tão soberanas qualidades como o desposado, bem pudera ser nosso rei; mas vai grande diferença de ser nosso rei ou ser rei nosso. Aquele povo, a quem Deus chamava seu, e amava sobre todos, deu-lhe por lei que não pudesse fazer rei, homem que não fosse da sua nação: Non poteris alterius gentis hominem regem facere, qui non sit frater tuus. - E não só pôs Deus esta lei ao povo, senão também a si mesmo, prometendo-lhe que não elegeria rei de outra nação, senão da sua: Quem Dominus Deus tuus elegerit de numero fratrum tuorum. - Assim o fez na eleição de Saul, de Davi, de Jeú, e de todos os que mandou ungir por reis. É verdade que talvez o príncipe estranho pode ser dotado de melhores partes, e de maiores virtudes que o próprio; mas, ainda no tal caso, antes querem os homens o próprio menos bom que o estranho melhor. Ouvi o maior exemplo, ou o maior encarecimento, que nem imaginar se podia nesta matéria.

Antes de o povo de Israel ter reis, Deus era o rei que os governava: Tu es ipse Rex meus et Deus meus, qui mandas salutes Jacob[29]. - E neste mesmo tempo, que resolveram entre si aqueles homens? Duas coisas, não só notáveis, mas estupendas. A primeira, que não queriam a Deus por rei: Non te abjecerunt, sed me, ut regnem super eos[30]. - A segunda, que pediram rei homem da sua nação, como tinham as demais: Constitue nobis regem, sicut universae habent nationes[31]. - Pois, um povo que tem a Deus por rei, antes quer um rei homem que um rei Deus? Contanto que fosse da sua nação sim, que tal é o ímpeto natural do desejo humano. Antes quiseram um rei homem, contanto que fosse da sua nação, que um rei que não era da sua nação, ainda que fosse Deus. E que fez Deus neste caso? Maior maravilha? Não me querem por rei, sendo Deus? Pois, eu me farei homem da sua mesma nação, e, como eu for rei da sua mesma nação: Natus rex Judaeorum - todos os que então me conhecerem, darão o sangue e a vida por mim; e quando no fim me conhecerem os demais, farão o mesmo. Assim foi, e assim há de ser. Finalmente, sinalando Deus ao mesmo povo o tempo em que se havia de acabar o seu reino, o sinal que lhe deu foi que então se acabaria, quando o cetro de Israel passasse às mãos de príncipe estrangeiro.

Pois, se isto é assim, e provado com tantos documentos humanos e divinos, como se resolveu Portugal a admitir príncipe estrangeiro? É certo que a resolução foi tomada com grande juízo e prudentíssimo conselho, porque não foi voluntária, senão forçosa. Não elegemos a sujeição de príncipe estrangeiro como melhor, nem como bem, senão como mal necessário. O bem e o melhor era ter príncipe herdeiro varão. Esses foram sempre os desejos e ânsias da mesma rainha, e a esse fim se ordenavam tantas orações, tantos sacrifícios, tantas esmolas, tantas romarias, tantas novenas, e tantos votos seus, e de todo o reino. Mas, como Deus nos não ouvisse, e a desesperação de filho se confirmasse, foi força acudir ao remédio da sucessão real não como queríamos, senão como era possível, muito ao nosso pesar.

Nem encontram a verdade deste pesar as demonstrações de alegria tão extraordinárias que vimos, porque, se por fora eram alegres, por dentro eram tristes e lastimosas. Não havia coração verdadeiramente português que no secreto não chorasse, e no público não engolisse as lágrimas, lamentando todos com Jeremias: Haereditas nostra versa est ad alienos, domus nostra ad extraneos[32]. - Aquelas festas, aqueles repiques, aquelas luminárias, aquelas procissões, com que Portugal solenizou os desposórios; aquelas galas, aqueles teatros, aquelas fábricas triunfais que estavam prevenidas para o recebimento, que cuidais os de perto e os de longe que eram? Considerada a soberana grandeza de um e outro desposado, apenas igualavam a dignidade das bodas; e para os extremos de amor com que Portugal estima, venera, e quase idolatra a sua princesa, ainda lhe pareciam muito menos. Considerado, porém, isto mesmo como reparo da coroa na substituição de príncipe estrangeiro, tudo era o contrário do que parecia. As galas eram lutos, as fábricas eram ruínas, os teatros eram túmulos, os repiques eram sinais, as procissões e as luminárias eram enterros, porque o tronco e baronia dos reis portugueses, continuada por tantos séculos, ali se sepultava para sempre.

Mas, enquanto os conselhos da terra se acomodavam a este mal necessário, nos conselhos do céu se estava decretando que não fosse necessário, nem fosse mal, senão o bem, e maior bem do reino. Como os anos da rainha prometiam larga vida, e Deus tinha decretado de a cortar no meio deles, a suposição da sua vida por uma parte, e a previsão da sua morte por outra, eram as duas causas encontradas por que os conselhos do céu se não conformavam com os da terra. Os da terra insistiam em efetuar o casamento, os do céu só tratavam de o estorvar e desfazer. E que seria de nós se se não desfizera? Que seria de nós, torno a dizer, se se não desfizera? Consideremos o que seria de Portugal no estado presente com um príncipe estrangeiro jurado, e um rei natural coroado, ambos na mesma corte. Irmãos eram Jacó e Esaú, e não couberam no ventre da mesma mãe; irmãos eram Rômulo e Remo, e não couberam na mesma cidade; irmãos eram Caim e Abel, e não couberam em todo o mundo; e como haviam de caber em Lisboa, e se haviam de conservar em paz, um príncipe estrangeiro genro, e um rei natural sogro, que são os parentescos mais perigosos, e em que menos se conserva a união?

Deixo os exemplos da Escritura, porque são em sujeitos de inferior hierarquia; mas veja-se Lisboa em Roma como em espelho, e no sucesso e parentesco de César com Pompeu reconheça o seu perigo. Pompeu Magno era genro de Júlio César; e César sogro de Pompeu: e quais foram as dissensões destas duas grandes cabeças, e por que causas? Lucano o disse, e ponderou excelentemente: Nec quemquam jam ferre potest Caesar ve priorem, Pompeus ve parem: César que afetava o império, não podia sofrer ver-se menor que Pompeu: Caesar ve priorern: Pompeu, que o sustentava, não podia sofrer que César lhe fosse igual: Pompeus ve parem. - E desta malsofrida desigualdade se originaram os desgostos, dos desgostos nasceram as discórdias, das discórdias as parcialidades das parcialidades a divisão de Roma, e da divisão as guerras mais que civis: Bella per Emathios plusquam civilia campos. - Estes são os perigos e os trabalhos que Deus nos livrou por meio do divórcio do matrimônio contratado, dando juntamente justas causas ao mesmo divórcio, por meio da enfermidade não conhecida nem esperada. E bem que se viu que a enfermidade foi traçada pela divina Providência só a fim de desfazer o matrimônio, porque tanto que esteve desfeito, logo o príncipe sarou, e teve saúde. Para que demos as graças e a glória a Deus, e digamos daquela enfermidade o que Cristo disse da de Lázaro: Infirmitas haec non est ad sortes, sed pro gloria Dei, ut glorificetur per eam.[33]

§ VIII

Terceiro motivo de consolação, fundado no terceiro divórcio. El-rei Dom Pedi-o e a pedra do deserto duplamente ferida. Por que razão a morte de el-rei Dom Afonso se antecipou à da rainha? Efeitos benignos da morte de el-rei Dom Afonso e da rainha D. Maria no príncipe D. Pedro. O príncipe D. Pedro e as profecias do Reino de Portugal.

O terceiro e último motivo da consolação de Portugal, é a esperança de príncipes naturais, morta na vida, e ressuscitada na morte da Rainha, nossa senhora, por meio do terceiro divórcio. No tempo antigo, em que era lícita a poligamia, bem podia o marido ter filhos legítimos, vivendo a legítima mulher infecunda. Assim os teve Abraão em Agar, vivendo Sara, e assim os teve Jacó em Lia, vivendo Raquel. Mas, depois que Cristo, nosso Senhor, como supremo legislador, revogou esta dispensação, e reduziu o matrimônio à unidade primeva e natural, só a morte pode remediar este defeito, suprindo as segundas bodas a infecundidade das primeiras. E este é o lugar que a desesperação passada deixou à esperança presente, passando-se do tálamo real ao túmulo.

Naquela pedra, que, ferida da vara, restaurou a esterilidade das fontes, deixamos alegorizado a El-rei D. Pedro, nosso senhor. E como os golpes foram dois, vejamos a propriedade e os efeitos com que os dobrou e repetiu a morte: Percutiens virga bis silicem[34]. - O primeiro golpe foi a morte de el-rei D. Afonso; o segundo golpe foi a morte da Rainha, nossa senhora, ambos tão sentidos de Sua Majestade, e com tão particulares demonstrações, como o pedia o parentesco e o amor. Mas quais foram os efeitos destes dois golpes da morte na mesma pedra, ou no mesmo rei D. Pedro, a quem feriram? O primeiro golpe, que foi a morte de el-rei, deu-lhe a coroa; o segundo golpe, que foi a morte da rainha, há-lhe de dar a sucessão.

Quanto ao primeiro golpe, quem imaginou nunca que a coroa gloriosíssima de el-rei D. João o IV, tendo três filhos varões, se viesse assentar na cabeça do último? Mas os primogênitos não só os faz a geração, senão também a morte. A geração faz os primogênitos, dando-lhes o primeiro lugar entre os vivos: a morte faz os primogênitos, matando os primeiros, e deixando vivos os últimos. Com muita razão lhe compete a Sua Majestade o título de primogenitus mortuorum (Apc. 1, 5): primogênito dos mortos, porque foi necessário que morresse o príncipe D. Teodósio, e que morresse el-rei D. Afonso, para que ele fosse o primogênito e herdeiro da coroa. Mas para Sua Majestade herdar a coroa, tanto importava que a morte de el-rei D. Afonso fosse o primeiro golpe, como o segundo; tanto importava que morresse antes, como depois da rainha. E por que ordenou a Providência divina que el-rei - e tão inesperadamente - morresse antes? Para que por este meio lhe fosse restituído à Rainha, nossa senhora, o primeiro título, do qual por amor de nós com tão heróica generosidade se tinha privado. A maior fineza que fez por nós aquele incomparável espírito, para desengano e remédio do reino, foi descer-se da majestade à alteza, e humanar-se ao segundo lugar de princesa, a que no trono e na coroa era rainha. Porém Deus, que ainda nesta vida quis premiar condignamente uma ação tão heróica, ordenou que a morte de el-rei se antecipasse à sua, para que, reposta no sólio da primitiva majestade, assim como tinha entrado em Portugal rainha, saísse do mundo rainha. Menos era que o primeiro golpe da morte desse a el-rei nosso senhor a coroa, se lha não dera também a tempo em que pudesse coroar a quem tanto lho merecia.


Este foi o efeito do primeiro golpe na morte de el-rei; o segundo golpe, que foi a morte da rainha, que fez? Fez que, cortado este impedimento, possa e haja de ter Sua Majestade a feliz sucessão que havemos mister, e não sucessão de qualquer modo, senão de filhos varões. E para que nos alegremos com a certeza desta esperança, que ainda parece duvidosa, digo que é tão certa e infalível, como fundada na palavra e promessa do mesmo Deus. No juramento de el-rei D. Afonso Henriques lhe revelou Deus uma desgraça, e lhe prometeu uma felicidade. A desgraça revelada foi que na décima-sexta geração se atenuaria a prole: Usque ad decimam sextam generationem, in qua attenuabitur proles. - A felicidade prometida é que nessa mesma prole atenuada ele olhará e verá: Et in ipsa sic attenuata ego respiciam, et videbo. - A décima-sexta geração de el­rei D. Afonso o I, todos sabemos que foi el-rei D. João o IV. A prole de el-rei D. João o IV, atenuada, todos estamos vendo que é el-rei D. Pedro, nosso senhor, depois de mortos seus irmãos, porque nele está a prole em um só filho e em um só fio. Logo, ainda é o tempo em que Deus há de olhar e ver: Et in ipsa sic attenuata ego respiciam et videbo? E que é em Deus o olhar e o ver? Não digo que me agradeçais a explicação e a prova, mas que deis graças a Deus por ela. O olhar e ver em Deus, segundo a frase do mesmo Deus e da Escritura, é dar sucessão não só de um, senão de muitos filhos varões. Ora vede.

Estava muito desconsolada Ana, que depois foi mãe de Samuel, por se ver estéril e sem filhos, e disse assim a Deus - notai as palavras: - Si respiciens videris affictionem famulae tuae, dederisque servae tuae sexum virilem (1 Rs. 1, 11): Se vós, Senhor, olhando virdes a esterilidade de vossa serva, e me derdes filho varão. - E que fez Deus? Olhou e viu, como lhe pedia Ana: Si rispiciens videris - e porque olhou e viu, não só lhe deu um filho varão, senão muitos: Donec sterilis peperit plurimos[35]. De sorte que o olhar e ver de Deus é dar, não só um, senão muitos filhos varões. E se Deus assim o fez, quando só ouviu a quem lhe disse: Si respiciens videris - muito maior razão e obrigação tem de fazer o mesmo, quando ele é o mesmo que diz: Ego respiciam et videbo. - Deste modo remediará Deus a nossa necessidade e a nossa sede: Cum que indigeret aqua populus. - E deste modo suprirá a fecundidade da pedra a esterilidade das fontes: Percutiens virga bis silicem, egressae sunt aquae largissimae.

§ IX

A morte de Raquel e a morte da rainha D. Maria Francisca de Sabóia. Conclusão.

Tenho acabado o sermão, e dou graças a Deus de o poder levar ao cabo. A peroração dos pregadores em semelhantes casos é exortar aos desenganos da morte: eu, à vista desta morte, só quisera aconselhar as imitações da vida. Imitemos a vida e as virtudes de uma tão pia e santa rainha; e imitemos, sobretudo, o que sobretudo importa, que é a pureza e resguardo da consciência, em que foi vigilantissimamente insigne. Estando o coração de Sua Majestade muito ansiado com a força das dores, rompeu uma vez em dois ais, e logo fez chamar o seu confessor, para se confessar daquela que lhe pareceu menos paciência. O gemer nas dores não é imperfeição, mas é maior perfeição não gemer. Assim o ensinou Davi, quando disse que os seus gemidos lhe davam grande trabalho: Laboravi in gemitu meo[36]. - Os gemidos e os ais fê-los a natureza para alívio. Que trabalho era logo este, que davam a Davi os seus gemidos? Era o trabalho que ele punha em os afogar no peito e os reprimir: Laboravi in gemitu meo. Comprimendo, ne foras exeat - comenta Santo Efrém. E uma consciência tão delicada, que disto fazia escrúpulo, e se confessava logo um espírito tão puro e tão purificado com seis meses de purgatório, vede se voaria direito ao céu.

As mesmas confianças nos deixou devotamente fundadas a última circunstância da morte de Sua Majestade, morrendo quando Cristo nasceu. Muito venturosa foi Raquel em morrer em Belém, porque era grande sinal da salvação morrer naquele lugar, em que havia de nascer o Salvador. Reparou porém muito Jacó em que morresse Raquel no tempo da primavera: Eratque vernum tempus[37]. - E que importava, ou fazia ao caso, morrer mais na primavera que em outro tempo? No conceito de Jacó immportava muito, porque Cristo havia de nascer em Belém, e havia de nascer no inverno. E, assim como a morte de Raquel imitou o nascimento de Cristo na circunstância do lugar, quisera ele que também o imitasse na circrunstância do tempo. Mas esta circunstância ou prerrogativa estava guardada para a nossa Raquel. Saiu a nossa Raquel do mundo quando Cristo entrou no mundo. Cristo nasceu em dezembro, a nossa Raquel morreu em dezembro; Cristo aos vinte e cinco, a nossa Raquel aos vinte e sete, dia em que foi recebida aquela ditosa alma, e colocada no trono da glória.

Assim o cremos piamente, soberana Rainha e senhora nossa; e assim como vos obedecemos e servimos na terra, assim vos veneramos com i a mesma piedade no céu. Gozai, gozai para sempre, não a coroa que deixastes, senão a que merecestes com as vossas tão esclarecidas e exemplares virtudes: com a modéstia nas grandezas, com a moderação nas riquezas, com a temperança nas delícias, com a constância nas variedades do mundo, com a piedade e compaixão nos trabalhos alheios, e com a paciência nos próprios, de que até os reis se não livram nesta miserável vida. As vidas de Sua Majestade e Alteza, que são o nosso maior cuidado, pouca urbanidade seria a minha se eu as recomendasse, senhora, vosso amor, sendo as duas ametades da mesma alma, que lá as levou juntamente, e tem consigo. 0 que vos pedimos, Rainha e senhora nossa, é que vos lembreis do vosso reino de Portugal, e daqueles leais vassalos, que tanto vos souberam merecer a memória. Lembrai-vos das orações, dos sacrifícios, das penitências, dos votos, das procissões, das intercessões e relíquias dos santos, trazidas até de reinos estranhos, para vos impetrar a vida. Ouviu-nos Deus melhor, porque a comutou com a eterna. Este Brasil, parte tão considerável da monarquia - tão carregada sempre, como útil, e tão útil como digna de ser lembrada e favorecida - depois que voes tem no céu já começou a experimentar as assistências do vosso patrocínio, na paz, na justiça, e na suavidade eficaz do estado presente, com que se; promete grandes felicidades. As que eu lhe desejo - desejando-lhe todo o bem - não são aquelas a que o mundo dá este nome: que todas se mudam com o tempo, todas acabam com vida, e todas vêm a parar no que estamos vendo. Alcançai-nos de Deus querer só ao mesmo Deus, querer só sua graça, querer só sua vista, querer só o que vós sobretudo quisestes e procurastes. Porque deste modo - e só por este modo - vos imitaremos na vida, vos seguiremos na morte, e vos acompanharemos na eternidade. Amém.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

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[1] Ali faleceu Maria, e no mesmo lugar foi enterrada. E como o povo necessitasse de água, tendo Moisés levantado a mão, ferindo duas vezes com a vara a pederneira, saíram dela águas copiosíssimas (Núm. 20, 1 s. 11).

[2] Ali faleceu Maria, e no mesmo lugar foi sepultada (Núm. 20, 1). - Nome da rainha.

[3] Sua morte.

[4] Lugar onde morreu, que foi em uma casa de campo.

[5] Sua sepultura, com mausoléu, em todas as partes do mundo.

[6] Quem dará água à minha cabeça, e uma fonte de lágrimas a meus olhos (Jer. 9,1)?

[7] O amor é valente como a morte (Cânt. 8, 6).

[8] Achei um homem segundo o meu coração (At. 13, 22).

[9] Barthol. Escob. de Testam. et Codicillo Christi.

[10] E partiram-se as pedras (Mt. 27, 51).

[11] Juvenal Saty. 10.

[12] Ovid. Met. lib. 2.

[13] O Senhor o deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor (Jó 1, 21).

[14] Chald. apud Pinedam ibi.

[15] Casa-te com um que te seja igual.

[16] Tu me fizeste prudente no teu mandamento (SI. 118, 98).

[17] Mais que todos os que me ensinavam tenho entendido, porque os teus testemunhos são a minha meditação (ibid. 99).

[18] Mais que os anciãos entendi, porque busquei os teus mandamentos (ibid. 100).

[19] Não terás no coração este pesar nem este remorso (ibid. 31).

[20] Quem foi o seu conselheiro (Rom. 11, 34)?

[21] Serão dois numa carne (Gên. 2, 24).

[22] Sol, detém-te sobre Gabaon; e tu, lua, pára sobre o vale de Ajalon (Jos. 10, 12).

[23] Um luzeiro maior, que presidisse ao dia; outro mais pequeno, que presidisse à noite (Gên. 1, 16).0

[24] A lua não dará a sua claridade (Mt. 24, 29).

[25] Até que se levantou Débora, até que se levantou uma mãe em Israel (Jz. 5, 7).

[26] Não se achava semelhante a ele (Gên. 2, 20).

[27] Facamos-lhe um semelhante a ele (ibid. 18).

[28] Como tristes, mas sempre alegres (2 Cor. 6, 10).

[29] Tu mesmo és o meu rei e o meu Deus, que dispões as salvações de Jacó (SI. 43, 5).

[30] Não é a ti que eles rejeitaram, mas a mim, para eu não reinar sobre eles (1 Rs. 8, 7).

[31] Constitui-nos um rei, como o têm todas as nações (ibid. 5).

[32] A nossa herança passou a forasteiros, as nossas casas a estranhos (Lam. 5, 2).

[33] Esta enfermidade não se encaminha a morrer, mas a dar glória a Deus, para ser glorificado por ela (Jo. 11, 4).

[34] Ferindo duas vezes com a vara a pederneira (Núm. 20, 11).

[35] Até que a estéril teve muitos filhos (1 Rs. 2, 5).

[36]Trabalhado me vejo no meu gemido (SI. 6, 7).

[37] Era então primavera (Gên. 48, 7).